segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Gota D'água, com Izabella Bicalho - Grandes Espetáculos V


Meus caros, são poucos, ao longo dos anos, os que se têm aventurado pela Gota D’água, musical de Chico Buarque e Paulo Pontes. A montagem original reunia o supra-sumo do teatro brasileiro e foi um sucesso tão extraordinário que desestimulou montagens futuras. Atrizes, sobretudo, viam em Bibi Ferreira uma Joana insubstituível e insuperável. Pode-se dizer que Gota D’água foi trancada na excelência da montagem de Bibi, que teve a direção de Gianni Ratto. Recentemente houve uma ou outra tentativa sem maior repercussão, e a última de que se tem notícia chegou ao requinte picaretíssimo de mutilar o espetáculo e apresentá-lo três vezes menor, sob o título surrealista de “breviário Gota D’água”. Enquanto isso, seguiu cristalizada na memória de todos a montagem de 1975.

Bibi Ferreira, aliás, como nossa maior atriz, é especialista em marcar a ferro e fogo as peças que realiza, com o selo de sua genialidade. Exemplo eloqüente disso foi o recente My Fair Lady, que passou longe da montagem de Paulo e Bibi, em 63.
Izabella Bicalho e João Fonseca acabam de provar que existe vida depois de Bibi e Gianni Ratto. Pode-se dizer que a jovem atriz – idealizadora e produtora do projeto – ajoelhou-se, fez uma reverência aos mestres, para em seguida destruir a pauladas o cadeado que impedia a Gota D’água de ser remontada. A direção de Fonseca é precisa e dá agilidade ao texto de Paulo e Chico, que é seivoso, de um vocabulário extenso e de diálogos lapidares.

As cinco amigas de Joana e os seis amigos de Jasão foram condensados em três homens e três mulheres, desfragmentando positivamente as conversas. A coreografia (de Édio Nunes) é dinâmica e as marcações são limpas e contribuem para essa agilidade. O cenário (de Nello Marrese) é vermelho e negro, cores da tragédia, do sangue, das maquinações sombrias, da corrupção, do desamor de Jasão e de toda a carga emocional que acompanha Joana. A iluminação (Luiz Paulo Nenen) é competente e despretensiosa, destacando o que deve ser destacado e mantendo na penumbra o que deve ser apenas notado e sentido. “Partido Alto” e “À flor da terra”, duas músicas de Chico que não pertencem à Gota, foram incluídas nesta encenação. A segunda música ocupa o fim do 1º ato e produz um dos momentos mais pungentes do espetáculo: depois da discussão violentíssima entre Jasão e Joana, em que ambos se xingam de tudo o que é possível e ele lhe dá dois ou três sopapos, ele sai e em meio às súplicas dela para que fique e escute o que ela tem a dizer. Entra, então, a música e a cena é repetida como se mostrada pelos olhos de Joana; ela intercala suas falas originais com os versos – inéditos, escritos exclusivamente para a montagem – da música. Terminada a canção, lindamente acompanhada pelo elenco, retoma-se o texto original, e Joana dispara: “Mas vou me vingar. Isso não fica assim, não...”. Pano rápido, prorrompem as palmas, metade do teatro aplaude e a outra enxuga as lágrimas.

O elenco coadjuvante foi uma bela surpresa, porque Bibi não era a única a meter medo naqueles que pretendiam debruçar-se sobre a Gota. Os atores que a acompanhavam, por si só consistiam num verdadeiro olimpo teatral. Assim, é com imenso prazer que se vê Thelmo Fernandes desincumbindo-se tão bem do Creonte, criação magistral de Oswaldo Loureiro. Boa voz para falar e para cantar, humor e deboche na medida certa, Thelmo vestia os sapatos gigantes de Oswaldo e deu conta do recado galhardamente. O Egeu de Luca de Castro não deixou nada a dever para Luiz Linhares, assim como Jorge Maya também arrasou no papel de Xulé, com sua voz estupenda. Maira Kastenberg foi correta como Alma, papel feito por Bete Mendes em 75. Entre as amigas de Joana merece menção a Estela de Renata Celidônio, destaque do côro feminino, que na montagem original trazia craques como Sônia Oiticica e Isolda Cresta.

O Jasão de Lucci Ferreira deixou um pouco a desejar. O que lhe sobra em boa aparência lhe falta em presença e alcance de voz. Fraco, covarde e venal, Jasão precisa emanar carisma, sedução e um charme bem cafajeste – como no caso do grande Roberto Bonfim, o Jasão original – para que se crie uma empatia com o personagem e um contraponto crível para a psicótica dor de corno de Joana. Com efeito, é preciso que o público não goste de Jasão mas compreenda o porquê daquela mulher ter dedicado dez anos de sua vida a ele. No embate com Izabella, Lucci infelizmente desaparece.

O espetáculo, entretanto, pertence à Izabella Bicalho. A partir de sua primeira entrada – quase 20 minutos depois do início da peça – o público fica eletrizado, imantado, e cada cena se torna apenas uma espera para a próxima descarga elétrica de sua performance. Tudo em Izabella contribui para lapidar sua Joana; pequena como Bibi, ela se agiganta ao menor esgar, ao menor relance de seus olhos enormes e transbordantes de tragicidade, no andar lento e compassado, na postura carregada e tensa. Discutindo com Jasão ela se assemelha a uma pantera aprisionada numa jaula e nas explosões de fúria, vê-se plena demência e caos em seu olhar.

A voz de Izabella é um capítulo à parte. Embora seja atriz de carreira teatral sólida, experimentada em musicais os mais variados, interpretar um papel que já foi de Bibi – e que Bibi declara sem rebuços ter sido o melhor papel de sua vida – é tarefa ingente, e ninguém lá ignorava o fato de Izabella estar sendo comparada à grande dama a cada passo que dava. O público da Gota D’água, pelo menos no que tange a São Paulo, é um público maduro, dividido basicamente entre freqüentadores de teatro, conhecedores do texto e pessoas que viram a montagem original e estavam lá para avaliar a remontagem. Ninguém estava lá por passatempo ou por mero acidente. A expectativa, portanto, era enorme quando ecoaram os primeiros acordes de “Bem-querer”, assim como foi enorme a satisfação de se ouvir a voz de Izabella, dramática, chorosa, e não obstante, perfeitamente límpida, desfiando os versos de Chico. O público deleitou-se e aplaudiu generosamente, repetindo as palmas na bela interpretação de “Mais um dia”. Mas o clímax do espetáculo ocorreu na admirável rendição de Izabella para “Gota D’água”, logo após o último diálogo de Joana e Jasão.

Sob o impacto da conversa, em que supostamente fazem as pazes, ela canta a música com a voz cortada, rouca, em jatos curtos, quase chorando. Finda a canção, depois de construir uma atmosfera de profunda emoção ela recomeça, desta vez despejando sobre o público emocionado, os versos em toda a plenitude de sua voz poderosa, encorpada, doce e violenta, triste e vigorosa, com toda a força de sua dramaticidade, num crescendo envolvente, estarrecedor que fez tremer o teatro, até o fim arrepiante, catártico, seguido por uma explosão de aplausos que demorou a arrefecer.

O sucesso da temporada paulista de Gota D’água – com ingressos esgotados para todas as sessões – é mais do que merecido e o mérito se deve inteiramente à Izabella. Sua performance é das mais brilhantes que já vi em toda a minha vida. Só espero que Bibi Ferreira consiga uma folga do seu Às favas com os escrúpulos para ver a maravilha de interpretação que vem recebendo o personagem criado por ela, na antológica Gota D’água de 1975. (16/6/2008)

3 comentários:

  1. eu concordo com tudo que foi dito sobre Isabella e este espetaculo magnífico.Fico orgulhosa do talento e força dessa mulher que conheci tão pequenina fazendo uma narizinho engraçada e adoravel,na historia de Monteiro Lobato.
    Assino em baixo que este espetáculo deveria viajar o mundo representando o Brasil.
    Amo Isabella Bicalho e desejo que mais coisas lindas venham ao seu alcance.
    Bjos Tamara taxman

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  2. Bernardo:

    Parabéns pelo seu trabalho minucioso e pela paixão à cultura teatral que você demonstra. Uma página impressionane e de inestimável contribuição aos que amam o teatro brasileiro e os seres artistas que o habitam. Cordial abraço, Carlos Guimarães Coelho - jornalista e produtor cultural (Uberlândia - MG)

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  3. Que arquivo maravilhoso...A história do teatro ao nosso alcance...Amei e vou sempre pesquisá-lo sempre(Maria Lucia/Mongagua/SP)

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