Diogo Vilela não fez o público paulista esperar muito para revê-lo, depois do sucesso avassalador e inesquecível de Solidão, a Comédia. Já em 1995, um ano após o encerramento daquele espetáculo, Diogo voltava a São Paulo com Navalha na Carne, novamente em dupla com o diretor Marcus Alvisi.
A obra-prima de Plínio Marcos tivera montagens históricas ao longo dos anos. Atores como Nelson Xavier, Jece Valadão e Roberto Bonfim já haviam interpretado o papel de Vado, contracenando com atrizes como Tônia Carrero, Ruthinéia de Moraes e Glória Menezes, no papel de Neusa Suely. Plínio era extremamente zeloso e ciumento com seus textos e não tinha nenhum pejo em dizer "não" ao pedido de algum diretor que quisesse montar suas peças. A década de 90 já começara com uma montagem vitoriosa de Dois perdidos numa noite suja, com Alexandre Borges e Petrônio Gontijo. Com esta montagem de Navalha, Plínio mais uma vez mostraria que sua intuição estava certa, ao permitir a utilização de seu texto a Diogo. No programa da peça, Diogo fala sobre sua escolha:
"Quando resolvi produzir a peça Solidão, a Comédia, de Vicente Pereira, percebi que o motivo mais forte de realizá-la foi a possibilidade de viver em cena personagens profundos, loucos, contundentes, o que me daria a chance de exercitar nuances de interpretação, o maior prazer de um ator em cena. Senti que amadurecia. Agora com Navalha na Carne espero continuar esta experiência, não só produzindo com a atriz Louise Cardoso, e trabalhando com meus amigos, como também vivendo um personagem com um universo tão distinto do meu através de um texto da dramaturgia nacional que demonstra a alma do submundo brasileiro. É com muito orgulho que escolhemos Plínio Marcos para este momento".
No papel de Vado, o próprio Diogo. Adepto da malhação desde a explosão das academias no início dos anos 80, Diogo sempre teve uma boa forma física. Para o papel do másculo e agressivo Vado, os músculos salientes caíram como luva. Sua malandragem foi um genuíno trabalho de ator, já que Diogo está longe de ter o physique du role ideal para o papel de um cafetão, como é o caso de Jece e Bonfim. Para o papel de Neusa Suely, Diogo chamou sua parceira de TV Pirata, Louise Cardoso. Geralmente, é melhor que Neusa seja uma atriz um pouco mais velha e menos atraente do que Louise - que com 41 anos, estava perfeitamente bonita e desejável - para que não seja necessário exagerar na maquiagem que a transformará numa mulher judiada, chegando aos 50 (erro semelhante foi cometido por Braz Chediak na primeira versão cinematográfica de Navalha, que contou com Glauce Rocha aos 39 anos naquele papel, e por Neville de Almeida na segunda versão do filme, em que Neusa foi interpretada pela linda e voluptuosíssima Vera Fischer, que podia até ter a idade do personagem, mas certamente não se parecia com ele). A maquiagem de Ronan, o figurino de Cao e sobretudo o talento de Louise foram suficientes para que este pequeno problema fosse resolvido.
Completando o triângulo dramático de Navalha, Hilton Cobra foi chamado para interpretar o homossexual Veludo. Deu um verdadeiro show. Deslizando sobre o palco e os cenários de Gringo Cardia como uma libélula, ele foi fantástico. O pequeno Hilton era uma usina de deboche e humor em doses cavalares. A cena em que Vado e Veludo fumam maconha e atormentam Neusa foi de cair para trás de tanto rir. Assim como sua saída do palco, quando grita "Vacona!" para Louise. Excelente. Foi justamente esse deboche e esse humor que faltaram um pouco a Carlos Loffler, que optou por um interpretação mais sombria do personagem, na nova versão cinematográfica da peça.
Mas esse era um dos poucos momentos descontraídos, dentro do universo de humilhação e miséria de Navalha. Pelo que me lembro, Diogo dava um tom mais severo do que literalmente agressivo a Vado. O abuso era mais verbal do que físico, quando creio que Neusa é uma mulher típicamente rodrigueana, daquelas que quanto mais apanham, mais se apaixonam. Diogo dava uns chacoalhões em Louise, mas nesse ponto talvez lhe tenha faltado aquele tom mais cínico de Jece, que batia e ainda fazia com que a mulher se sentisse culpada. Mesmo assim, o jogo entre os dois era perfeito.
Além de Diogo, aos berros, chamando Louise de "velhota", ou reclamando que não encontrava a maconha e ainda estava "com a presa seca", duas cenas me marcaram profundamente nesse espetáculo. Ambas de Louise. Primeiro, como não podia deixar de ser, o monólogo de Neusa. Seu desabafo patético, terrível e cortante. Louise alcançou um grau de tragicidade estupendo com esse monólogo. Merece figurar no rol de nossas maiores atrizes. Igualmente impressionante foi o fim da peça, quando Vado vai embora com o dinheiro de Neusa. Louise grita o clássico "Você vai voltar, eu sei que você vai voltar" e senta-se. Sozinha no palco, ela puxa um sanduíche embrulhado, abre-o e começa a comê-lo, com a mais extraordinária expressão de indiferença que eu já vi. Uma história completa de abuso, pobreza e injustiça passou por aquele rosto pálido, que mastigava mas mantinha os olhos imóveis, semi-cerrados.
Assisti esse espetáculo duas vezes, no Cultura Artística de São Paulo. Na segunda vez, tomei coragem para conversar com Plínio Marcos, que vendia seus livros em uma banca improvisada no saguão do teatro. Uma figura fantástica, que a noite de São Paulo conhecia bem e que eu sempre encontrava pela madrugada, conversando sossegado com os amigos. Quando me ofereceu um de seus livros por 10 reais, eu ia por a mão no bolso para pegar o dinheiro quando uma amiga que estava comigo imediatamente puxou 10 reais de sua carteira e lhe deu, dizendo "deixa que eu pago". Plínio sorriu e me disse: "Esse é o tipo de mulher que vale a pena ter!"
Nenhum comentário:
Postar um comentário