quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Renato Consorte, Augusto Boal e Sérgio Viotti

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Renato Consorte (1924/2009)


Mais um gênio que nos deixa. Não vou falar do Renato que foi jubilado no Largo São Francisco, que era amigo de Ibrahim Nobre, que participou do TBC ou da Vera Cruz. Não vou nem mesmo falar do Renato que fez Arena Conta Tiradentes, Mac Bird, as duas turnês de Arena Conta Zumbi ao Peru, México e Estados Unidos, e a turnê do misterioso Arena Conta Bolívar por esses mesmos países. Quiçá o Renato que contracenou com Bibi ferreira em Gota d'água? Sobre o Renato televisivo, então, nem é preciso falar, porque é esse que está sendo pranteado pelo grosso da população.

Vi Renato pela primeira vez no teatro em 1991, junto a Paulo Autran em Seis Personagens à procura de um autor, a terceira remontagem de Paulo para o famoso texto de Pirandello. Renato fazia o papel do atrabiliário diretor, e o texto, denso e árido, recebia o refrigério de seu humor a cada uma de suas hilariantes entradas. Sobre o companheiro, eis o que disse Paulo:

"Diretor" é motor do espetáculo, é quem dá o ritmo e o dinamismo necessários, é também o ponto de ligação entre personagens e atores, entre personagens e platéia. Acho que Renato Consorte com seu humor, sua inteligência, sua autoridade e seu enorme talento compreende isso perfeitamente.

Compreendia melhor do que ninguém. Àquela altura Renato já tinha 42 anos de teatro, cinema e televisão, assim como Paulo. Três anos depois fui vê-lo na despretensiosa Porca Miséria, de Marcos Caruso, onde Renato foi se divertir com a velha amiga Myrian Muniz. Não o vi mais no teatro. Mas me encontrei com ele várias vezes pelos teatros da vida, as festas da classe e as eventuais entrevistas. Um dia perguntei-lhe de Guarnieri e de Arena Conta Tiradentes. Disse-me que foi a única vez que contracenou com Cecco. "Mas fomos amigos a vida inteira".

Na entrevista de Guarnieri para a Funarte, em 76, quem é que aparece no meio do público para perguntar? Renato:

- Guarnieri, meu nome é Renato Consorte.
- Ah, muito prazer
- Igualmente.

E o público gargalhou com a formalidade dos dois velhos companheiros. Na Feira Paulista de Opinião, de 68, Consorte fez o antológico censor vestido de gorila que finge defecar em seu próprio capacete e depois joga tudo no público (uma chuva de bombons "Sonho de Valsa" que quase fez enfartar os menos precavidos). Era uma peça de Plínio Marcos. Mas na Animália de Guarnieri, da qual Renato não participou, havia até rubricas com seu nome, graças à uma impagável blablação pela qual Renato era famoso, e que ele gostava de fazer para confundir as pessoas. Na peça de Guarnieri um soldado vai falar, e com sua fala vem a rubrica: "Prossegue ininteligivelmente, a la Renato Consorte".

Guarnieri (esq.) contracena com Renato em Arena Conta Tiradentes

No ciclo de entrevistas do EXPO-Arena 50 anos, Renato foi entrevistado junto a Rolando Boldrin e Umberto Magnani. Desnecessário dizer que os dois mais riam e assistiam do que respondiam qualquer coisa. Em seu primeiro comentário, Renato deu o tom de sua participação:

- Boa noite, muito obrigado. Eu me chamo Renato Consorte. E o que mais?
- Como você chegou no Teatro de Arena? - perguntou Bel Teixeira.
- Pela porta da frente.

Gargalhadas. Sua entrevista inteira foi uma delícia. Sobre o Tiradentes ele contou esta pérola:

- Tinha uma cena de amor em Tiradentes, de "quais-quais-quais", de Marília e Dirceu. O Dirceu era o Guarnieri e a Marília era a Vânia Sant'Ana. Os dois ficavam trocando figurinhas, na base do vem de cá, vai de lá... eu sei que nessa cena de amor, nós dois, eu e o David José, demos a descarga nos dois banheiros. (risos) Charrrrr! O Guarnieri, muito cara de pau, não falou nada na hora. No que eu entrei em cena o Guarnieri falou: "Foi ele".

Sobre o gorila que defecava no capacete, o resultado foi pior. Renato foi preso. Na EXPO-Arena, comentou sobre os dois majores que o interrogaram:

- Eram dois majores. Um era o major Beltrão, muito simpático, delicado, era meu fã no Rio de Janeiro e me tratava de "senhor". Eu soube depois que ele matava as pessoas com um tiro na nuca. Naturalmente pedindo licença para atirar. O outro boçalóide se chamava major Inocêncio. Ele me disse: "Eu vi o senhor no teatro vestido de golira!" Para mim não foi engraçado engolir aquilo, ele dizendo: "Vestido de golira, de rabo e tudo". Eu sou casado com uma antropóloga e esqueci que gorila não tem rabo. Quem tem rabo é macaquito de realejo!

A última vez que o vi foi em 2005 (creio), na festa de lançamento do "Senta que lá vem comédia". Estava com a esposa, com quem completaria brevemente 50 anos de casado. Disse-me que tinha feito um filme qualquer, que não assisti, porque dele quero guardar suas performances no teatro, e sua bonomia irresistível no trato pessoal. Falei com ele ao telefone, meses atrás. Prometi entrevistá-lo extensamente para a pesquisa que então empreendia sobre Guarnieri. Perdi a oportunidade. Mais uma dessas burrices ciclópicas das quais jamais me perdoarei.

Renato era respeitado e querido em seu meio e em todos os meios pelo qual transitou. Seu humor divino, sua inteligência e, sobretudo, seu talento, jamais serão esquecidos. OBRIGADO, Renato querido! (27/1/2009)
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Querido e maravilhoso Boal (1931/2009)

Eu nem sabia que ele estava doente... o vi recentemente em uma entrevista na TV Senado e ele estava bem-humorado e animado como sempre. Andava com dificuldade, não largava sua bengala (presente do filho, como ele fazia questão de dizer), mas era aquela mesma catarata de idéias, quando falava, fazendo lembrar o Darcy Ribeiro. Os dois se assemelhavam, nisso; eram pessoas que precisariam de duas ou três vidas para pôr em prática todo aquele manancial de iniciativas extraordinárias que tinham diariamente.

Nunca consegui aceitar, completamente, sua migração do teatro convencional para as outras formas de teatro que ele foi inventando, ao longo dos anos, porque seu talento era superior e o nosso teatro se ressentia dessa falta. Entretanto, não era difícil compreender que para o humanitário gigante que havia dentro dele, sua seara se encontrava, de fato, junto ao povo menos favorecido. E ele optou não por levar os menos favorecidos ao teatro, mas por introduzir o teatro diretamente na vida deles, transformando-os em agentes diretos dessa arte, através de idéias estupendas, como o Teatro do Oprimido.
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Não acredito que ele será festejado como merece, no Brasil, porque nosso país não tem memória. Mas o Boal, e seu "irmão" Guarnieri (que é como o próprio Boal se refere a Guarna no livro "O Teatro como arte marcial"), não se importavam com isso e sabiam que mais valia tocar a vida de um único ser humano, em determinado momento, do que qualquer tipo de celebração vazia. Basta ver a notinha medíocre do UOL, publicada às 17:52 de 2 de maio, que em extremo requinte de desinformação, afirma que "Boal dirigiu ainda, entre outras peças, Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri". O José Renato é quem deve ter adorado ler isso. E nenhuma menção a obras-primas máximas de nosso teatro, compostas em parceria com Guarnieri, como Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes.

Quando vi no orkut um tópico qualquer em que um rapaz faz uma declaração de amor e admiração ao Boal, fiquei feliz e abri o meu e-mail. Ainda não sabia o que tinha ocorrido e pretendia copiar e colar a mensagem e mandá-la ao Boal, como cheguei a fazer algumas vezes. Não pude mais mandar. Mas não importa. Ele sabia que era amado, e amado por quem devia amá-lo, que era sua família, o povo que ele ajudou com seu magnífico trabalho artístico, cultural e intelectual, e todos nós, seus admiradores, que tivemos o privilégio de viver na mesma época que ele.

É muito apropriado que hoje (domingo), Francis Hime faça um show de graça no Teatro Municipal, como parte da Virada Cultural. Porque quando ele cantar "Meu caro amigo", parceria sua com o Chico, talvez o público saiba, pela primeira vez, que esse caro amigo é ninguém menos do que nosso caro amigo, querido e saudoso, Augusto Boal. (3/5/2009)
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Sérgio Viotti (1927/2009)
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Entre os inomináveis bicos que fiz na minha época de faculdade, um deles foi uma figuração na novela "Olho no Olho", de Antônio Calmon. A gravação ocorreu no Jockey Clube, em fins de 1993 ou início de 1994 e era uma cena em que a personagem de Danielle Winnits - que estreava nas telenovelas, creio - participava de uma corrida e vencia, ou coisa que o valha. Não assistia a novela, então não tenho a menor idéia.

O que importa é que na hora do almoço, a Globo armou um bandejão e foram todos almoçar, os atores de um lado e os figurantes do outro. Depois houve uma pausa e, andando por ali, encontrei Viotti sozinho aguardando o reinício. Não resisti e sentei-me com ele nas arquibancadas do Jockey. Havia assistido seu espetáculo solo As Idades do Homem (monólogo com cenas shakespearianas que ele surrupiou do mestre John Gielgud) pouco antes e conversado rapidamente com ele, então me apresentei e retomamos a conversa.

Eu fazia teatro, na época, e vivia um período em que respirava Shakespeare do momento que acordava até o momento em que ia dormir, então conversar com Viotti era alimentar essa quase obsessão com as lembranças e a cultura de alguém que viveu em Londres durante a década de 50, e teve a oportunidade de assistir todos os maiores atores shakespeareanos. No Brasil, aumentou esse lastro cultural no convívio com pessoas como Bárbara Heliodora e seu parceiro, Dorival Carper.

Viotti viu temporada trás temporada do Old Vic e assistiu Olivier, Gielgud, Richardson, a geração que os sucedeu, Burton, Finney, Bates, e falava de todos com absoluto conhecimento. Via-se imediatamente que Viotti não era apenas correspondente da BBC, ator ou fã de teatro, mas um verdadeiro estudioso. Falamos tanto... me contou do assombroso Tito Andrônico de Olivier, dirigido por Peter Brook; dos uivos de Tito ao ver as cabeças de seus dois filhos sendo entregues a ele pelo Aarão de Anthony Quayle, o longo véu vermelho saindo da boca de Vivian Leigh, simbolizando o sangue da língua amputada de Lavínia... lembramos de Leo Mackern, de Edith Evans, Peggy Ashcroft, Vivian Leigh, Peter Hall, Ken Brannagh, "que é talentoso, embora não tenha lábios", observação de Viotti que veio acompanhada de uma imitação hilária, já que ele era pródigo em caretas divertidíssimas... ih, tanta coisa. Eu precisaria de uns dez posts para reproduzir nossa conversa, mas não esqueço dele no fim; depois das duas horas que durava a pausa e que passamos proseando, rindo, papeando com a intimidade de velhos amigos, ele se virou para mim:

- Quem e você??
- Eu lhe disse, eu assisti o senhor na peça As Idades...
- Sim, isso eu sei, mas o que você está fazendo aqui?
- Hã... eu sou figurante.

Ele fez um cara de sarro impagável, riu e falou:

- Até que enfim encontrei alguém para falar de Shakespeare. Só posso falar disso com o Dorival e com a Bárbara.

Dali a pouco uma contra-regra avisou que as gravações iam recomeçar. Ele virou-se com cara de decepção para seu xará, Sérgio Mamberti, lá perto, que também batia papo com alguém, e este não perdeu a deixa:

- Tá vendo, Viotti? Eles vêm nos interromper no meio das nossas conversas!
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Nunca achei Viotti um GRANDE ator. Ele era talentoso e perfeito para determinados papéis característicos, como o Pickering de My fair Lady, que fez com Paulo e Bibi no teatro, e para o estupendo personagem que fez no "Primo Basílio" produzido pela Globo. Lamento, evidentemente, não tê-lo visto em alguns dos espetáculos extraordinários de que participou nas décadas de 60 e 70. Como escritor ele me parecia ser competente, correto, mas não primoroso. Escreveu peças, roteiros e programas de Rádio e TV que estacionaram no tempo. Já sua biografia de Dulcina - malgrado a idolatria que ele alimentava pela atriz - é contribuição inestimável à história do Teatro, por ser o único trabalho de fôlego sobre a lendária atriz. Viotti era também um contista competente, mas guardou por tantos anos seus contos que só no fim da década de 90 lançou um pequeno volume de contos escritos décadas antes. Para se ter uma idéia, o prefácio era do poeta Jorge de Lima, morto em 1953.

Com Viotti, em maio de 1993. Abordei-o na saída de seu camarim, depois de vê-lo em "As Idades do Homem". Quando nos preparávamos para essa foto, tirei meus óculos e disse-lhe: "Com ou sem óculos, Sérgio?" "Com óculos, sempre", respondeu-me. "Sem óculos é só ele", disse-me, apontando para seu "eu" no palco. Decidi então colocar os óculos, de volta, em homenagem a ele.

Creio que a grande qualidade de Viotti estava em sua personalidade. Sua verve, seu humor, sua cultura, sua constante disponibilidade para todos, seu interesse em conhecer e em incentivar os mais jovens. Ele era um educador, muito mais do que um ator. Um promotor cultural, humano e um ser absolutamente encantador. Que Deus o tenha. (26/7/2009)

2 comentários:

  1. Muito bom, diversificado e útil seu blog. Consultarei com frequência. Parabéns, Bernardo!
    Cecilia Rangel
    wwwceciliarangel.blogspot.com

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