quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ειρήνη Παπά, Eiríni Papás, Irene Papas — 1/7


A imagem icônica e eterna de Irene Papas em "Zorba"

Irene Papas pautou sua carreira pela diversidade. Diversidade em todos os sentidos da palavra: variado, múltiplo, diferente. Fez comédias que vão do mais sofisticado ao mais ridículo; participou de dramas que vão do mais denso ao mais facilmente lacrimoso; é uma espécie de papisa da tragédia grega no cinema, mas também tem lugar de honra no duvidoso panteão do giallo, do mais raso ao mais erótico e apelativo. Fez filme para a Disney, tirou a roupa quando isso era tabu, gravou um LP com músicas de Theodorákis quando ele estava no exílio, emprestou seu prestígio a um filme sobre o assassinato de Lambrakis quando isso poderia significar sua expulsão da Grécia; foi musa de Michális Kakogiánnis e de Manoel de Oliveira, trabalhou com os maiores diretores do mundo, contracenou com os melhores atores e interpretou em um espectro de idiomas que vai do grego ao espanhol, passando pelo inglês, o italiano e dublagens aqui e ali em iugoslavo, romeno e francês.

Papas não é apenas o rosto da atriz grega, por excelência. Não é só a melhor atriz grega do século XX. Ela já virou ícone há muito tempo. Sua extraordinária dramaticidade — de animal selvagem fustigado e maltratado sem qualquer razão — captada por Kakogiánnis em Zorba está na mesma galeria de Chaplin, Theda Bara, Valentino, Garbo, Gable, Marilyn e poucos outros. Não falarei de sua vida porque é sua carreira que venho celebrar, hoje. Em dezembro de 1948 foi lançado seu filme de estréia e embora ela tenha se aposentado em 2004, contando, portanto, cinqüenta e seis anos na ativa, estamos próximos do aniversário de setenta anos de Χαμένοι άγγελοι ("Anjos Perdidos"); para celebrar a data, assim como os 92 anos dessa amada atriz — que ela completará em setembro deste ano  inicio aqui uma série de artigos sobre seus filmes. Não sigo uma ordem cronológica, vou e volto no tempo, fujo de todas as referências mais óbvias e dou destaque, precisamente, a essa diversidade que tanto caracterizou Papas e que faz dela um símbolo do cinema mais plural e mais universal.

O primeiro artigo fala de seis filmes dos quais a atriz participou, e que foram baseados em obras de dois grandes escritores: Federico García Lorca e Gabriel García Marquez, e outros dois de sua parceria com o ator Gian Maria Volontè. Nos próximos falaremos de seus filmes políticos, suas tragédias gregas, seus filmes religiosos, históricos e assim por diante, tendo um único objetivo: homenagear a vida e a carreira dessa mulher magnífica que tanto fez pelo cinema, pelo teatro, pela arte de representar, por seus colegas, por seus amigos, por seu povo e, em suma, pelo ser humano.


PAPAS, GARCÍA LORCA E GARCÍA MARQUEZ


NOCES DE SANG (1977)

Para escrever Bodas de Sangre, Federico García Lorca (1898/1936) se baseou em um fato real ocorrido em 1928: uma mulher abandonou seu noivo na véspera do casamento para fugir com o sujeito a quem realmente amava; um irmão do noivo perseguiu os dois e matou o sujeito. Lorca não foi o primeiro a utilizar o tema; a escritora Carmen de Burgos lançara o romance Puñal de claveles pouco antes, baseando-se na mesma tragédia, e seu livro também serviu de inspiração para Lorca. A peça é de 1931 e teve sua estréia no Teatro Beatriz, de Madrid, em 8 de março de 1933. A direção coube ao próprio Lorca e quem criou o papel de "La Madre" foi Josefina Tapia. O papel de noiva coube a Pepita Diaz, que comandava a companhia. No texto do dramaturgo, o personagem Leonardo Felix (o único, por sinal, que tem nome) esteve noivo de uma moça durante três anos até que o pai dela obrigou a filha a desmanchar o noivado sob o argumento de que ele era um pé-rapado e ela merecia alguém de família mais abastada. O rompimento causa tristeza e desgosto em ambos e pouco depois ele se casa com a prima dessa mesma moça. 

Federico García Lorca
O casal já tem um filho e a mulher espera outro. Leonardo, porém, jamais esqueceu sua antiga noiva e continua apaixonado por ela. Ele vai ao desespero quando descobre que ela foi pedida em casamento por outro homem e se casará dali a poucos dias. Ela também jamais o esqueceu e está se casando para ver se consegue virar essa página de sua vida.

Existe uma ligação acidental entre Leonardo e o sujeito que vai se casar com sua antiga noiva: em disputas por terras, o pai de Leonardo matou o pai e o irmão do sujeito. Quando a mãe do sujeito descobre que sua futura nora foi noiva de Leonardo fica furiosa, já que a perda do marido e do filho são feridas que não cicatrizam para ela, mas se conforma ao saber que Leonardo tinha apenas oito anos na época dos crimes. E de qualquer forma, não há nada que desabone a menina com quem o filho pretende se casar, e ela aceita o arranjo. O problema é que a menina ainda ama Leonardo e caminha para seu casamento com absoluto desinteresse. No dia do enlace, Leonardo e sua esposa comparecem — assim como a menina também comparecera ao casamento de Leonardo com sua prima  e o clima é de tensão durante todo o tempo. No fim, Leonardo e a menina fogem juntos. O noivo abandonado vai atrás deles e no enfrentamento com Leonardo, os dois acabam morrendo.

Pepita Diaz ("La Novia") e Lorca na estréia
de "Bodas de Sangre", em março de 1933
Lorca devia ter verdadeira adoração pelo teatro greco-romano, porque sua peça possui uma estrutura muito semelhante à das antigas tragédias. Temos o "párodo" com os lenhadores, cenas em que poesias são cantadas como em um "estásimo", e há o simbolismo explícito de um lenhador que faz o papel da Lua e uma mendiga que representa a Morte. Nas palavras do próprio dramaturgo: Hay que volver a la tragedia. Nos obliga a ello la tradición de nuestro teatro dramático. Tiempo habrá de hacer comedias, farsas. Mientras tanto yo quiero dar al teatro tragedia. E assim ele fez, não só com Bodas mas com as duas peças que viriam a seguir: Yerma e La Casa de Bernarda Alba, tratadas atualmente como uma trilogia rural ou folclórica. Até onde sei, o texto teve quatro adaptações cinematográficas que valem registro: uma versão argentina de 1938, dirigida por Edmundo Guibourg e trazendo a musa de Lorca, Margarita Xirgu no papel de "Madre"; uma versão marroquina, feita em 1977 e dirigida por Souheil Ben-Barka; a versão espanhola de Carlos Saura, muito conhecida, feita em 1981 e tendo a dança de Antonio Gades como destaque; e a mais recente, de 2015, no estilo "camponeses de Iphone e com perfil no Instagram", dirigida por Paula Ortiz e renomeada, sem a menor necessidade, de La Novia.

Souheil Ben-Barka
É a segunda versão que nos interessa, aqui. Souheil Ben-Barka nasceu em 1942 na cidade de Timbuktu, em pleno deserto do Saara, no antigo "Sudão Francês", Mali. Durante a década de 60 formou-se em cinema pelo Centro Sperimentali di Cinematografia, em Roma, e continuou no país trabalhando como assistente de direção para vários cineastas, entre eles Pasolini. No início da década seguinte se estabeleceu no Marrocos, montou uma produtora e começou a dirigir filmes. Tinha dois trabalhos de repercussão razoável — Les mille et une mains (1973) e La guerre du pétrole n'aura pas lieu (1975) — quando decidiu explorar Bodas de Sangre.

Noces de Sang tem roteiro de Souheil e Tayeb Saddiki e é falado em francês. A história se passa em um vilarejo no sul do Marrocos, Leonardo se chama Amrouch, e Souheil adaptou a peça completamente para a realidade do local. O resultado foi excepcional. A pobreza e a rusticidade do país africano caem como luva na vida dos personagens de Bodas. Embora relativamente ricos, a mãe e o noivo vivem no que parece ser uma lapa, de tão simples e obscura. Amrouch e sua mulher também. Não há mesas e não há cadeiras; tudo é o chão, lençóis, cetins, almofadas bordadas, tapetes e esteiras. Nos diálogos a mãe está trabalhando em um tear; o pai e a filha vivem em uma casa um pouco menos pobre mas vê-se que tudo é autêntico, sem exageros nem para mais e nem para menos.

Papas e o tear
Amrouch e a sogra
Mãe do noivo e pai da noiva

Paisagens médio-orientais
As paisagens são espetaculares. Souheil fugiu de estúdios e iluminações artificiais valorizando, com muito acerto, as externas filmadas com o sol brilhando, então somos prazerosamente brindados com as mais maravilhosas e desconhecidas imagens do Marrocos. A Morte anda por entre cactos, comerciantes cavalgam próximos a rochedos que mais se parecem pepitas gigantes de ouro, e criados caminham junto a árvores que nos remetem ao Japão. Um espetáculo de cores. E essa qualidade não se resume apenas às paisagens; a cena do casamento está toda roteirizada como um casamento típico marroquino, então os figurinos e as celebrações são todas originais. Há pouco falamos dos "estásimos" utilizados por Lorca; em Noces de Sang, a poesia é preservada e muito bem inserida em todo o contexto, na maior parte das vezes em off, mas Souheil aproveitou a festa do casamento para preenchê-la com artistas africanos, cantando canções em seu dialeto. No mais, todos estão morenos ou do sol ou da poeira. Todos têm aquela aparência atemporal do sofrimento. Não há belezas ocidentais. A credibilidade é alcançada pela escolha de um elenco inteiramente desconhecido do ocidente.


Papas: La Madre

A única exceção é Papas, no papel da mãe. Esse papel de mater dolorosa foi feito por ela tantas vezes que a "mãe" de Bodas é apenas uma variação. Ela está ótima como sempre. Embora muito nova (51 anos) e bonita demais para o papel, ela tem aquele olhar que pode seduzir em um momento e matar de medo no outro. Todas as suas cenas são memoráveis mas gosto muito da primeira, na qual amaldiçoa as facas e as armas; ela é um misto de incisiva e divertida quando faz a recomendação ao filho, durante o casamento: Con tu mujer procura estar cariñoso, y si la notaras infatuada o arisca, hazle una caricia que le produzca un poco de daño (...). Que ella no pueda disgustarse, pero que sienta que tú eres el macho, el amo, el que manda. E quando se certifica de que a noiva fugiu ela fuzila o consogro com um olhar de tal desprezo que temos pena dele. E ela dispara: Al agua se tiran las honradas, las limpias; ¡ésa, no! (...) Ha llegado otra vez la hora de la sangre! Brilhante. Infelizmente não tive acesso à versão original francesa e só pude ouvi-la dublada em espanhol. Não comprometeu em nada o prazer de vê-la e ouvi-la dizendo Lorca.

"Al agua se tiran las honradas, las limpias; ¡ésa, no! (...) Ha llegado
otra vez la hora de la sangre!"

Jamila, Laurent Terzieff, Doghmi Larbi, Souad Jalil,
Muni e Miloud Habachi
O resto do elenco também é muito bom e muitos deles não eram sequer profissionais. Neste caso as exceções são o competente Laurent Terzieff, que fez um Amrouch perturbado e triste. Doghmi Larbi faz um pai tão fanfarrão quanto ingênuo; está preocupado demais com o dinheiro e não vê que a filha lhe escapa por baixo do nariz. Marguerite Dupuy, cujo nome artístico era "Muni", faz a criada da noiva e junto a Papas, tem a melhor performance do filme. Seu trabalho é precioso. A jovem Jamila se esforçou bastante; sem ser uma grande atriz, ela soube transmitir sempre que possível a turbulência emocional da noiva. E era uma moça linda. Souad Jalil também se desincumbiu muito bem do papel da prima sofredora. E por fim, Miloud Habachi, o noivo, tem uma performance contida e correta até a cena da perseguição de Amrouch, quando a angústia de encontrar o rival o leva quase que a um acesso de loucura. Ele fez muito bem seu papel. E é um exemplo daquilo a que me refiro quando falo da autenticidade do elenco. Olhando Miloud ninguém jamais diria que é um ator. E provavelmente não era. Tanto ele quanto Souad só tem Noces de Sang em seu currículo no IMDB. Jamila tem dois ou três trabalhos.

A excelente Marguerite Dupuy, cujo nome artístico era "Muni"
..."hazle una caricia que le produzca un poco de daño"...

Segundo o IMDB, Noces de Sang foi lançado em Marrocos em 1977. Na França só chegou três anos depois. Souheil tentou incluir o filme na seleção oficial de Marrocos para o Festival de Cannes. Não conseguiu. Só Deus saberá o porquê. É um filme bem feito, um trabalho original e de grande beleza. Espero que seu lançamento em DVD o torne conhecido para o mundo. O primeiro passo seria uma capa um pouco melhor, porque essa que existe por aí traz a foto de duas pessoas que não faço idéia de quem sejam. Posso afirmar que não estão no filme.

YERMA (1998)

Yerma foi lançada por Lorca no ano seguinte à Bodas de Sangre. O texto versa sobre assunto extremamente atual e que continua provocando calafrios às patrulhas religiosas e politicamente corretas: é a história da absoluta miséria emocional e espiritual em que mergulha uma camponesa que não consegue engravidar do marido, em um local onde ser mãe não é apenas um desejo da mulher, mas uma obrigação inarredável. E ela vai sofrer em seu habitat, como em qualquer outro, com a frustração, a fofoca, as suspeitas do marido, as tentações e com tudo aquilo que circunda a vida de uma mulher que tem um anseio natural e prazeroso transformado em uma draconiana imposição social.

Quando a peça se inicia, a personagem título está casada há dois anos e ainda não conseguiu engravidar. Vê uma por uma de suas amigas engravidando em menos tempo e isso vai deixando-a progressivamente mais desesperada. Ela gosta do marido mas não atenua sua preocupação o fato dele não mostrar a mesma empolgação que ela com o assunto. Pelo contrário; seu grande interesse não está nem nela e nem no filho, e sim no trabalho diário, que o faz ausente da casa na melhor parte do dia. Certo dia, levando o almoço para o marido, Yerma encontra uma velha — a personagem "Vieja" — no meio do caminho e começam a conversar.

Lorca
A velha conhece a família de Yerma, tem nove filhos vivos (de catorze que pariu), conta que poderia ter se casado com um de seus tios mas o enlace não ocorreu porque ela era espevitada demais e ele era quieto e metódico. Em suas palavras, Yo he sido una mujer de faldas en el aire, he ido flechada a la tajada de melón, a la fiesta, a la torta de azúcar. Muchas veces me he asomado de madrugada a la puerta creyendo oír música de bandurria que iba, que venía, pero era el aire.

Diante disso Yerma sente confiança para se abrir com a velha e perguntar por que ainda não teve filhos. A velha faz duas ou três perguntas sobre a relação de Yerma com o marido; Yerma confessa, resoluta, que se entrega ao marido pensando somente no filho que virá, y me sigo entregando para ver si llega, pero nunca por divertirme. Acresce o fato de que Yerma tem uma queda pronunciada e antiga por Victor, um pastor de ovelhas a quem conhece desde a infância e que desperta nela todas as sensações que nela deveriam ser provocadas pelo marido. A velha mata a charada; em meias palavras, deixa claro que o problema é a completa ausência de paixão e de atração física entre os dois. Segundo ela, se o ato sexual fosse prazeroso, as chances dela engravidar seriam muito maiores. E pede para não responder mais nada porque se trata de uma questão de honra.

Cartaz original de Yerma, arte
de José Caballero
Yerma, porém, ou não entende ou finge que não entende o que a velha diz, e pede que Deus a ampare. A velha dispara uma resposta que deve ter eriçado os pelos da nuca de beatos e beatas em geral, na Espanha de 1934: Dios, no. A mí no me ha gustado nunca Dios. ¿Cuándo os vais a dar cuenta de que no existe? Son los hombres los que te tienen que amparar. (...) Aunque debía haber Dios, aunque fuera pequeñito, para que mandara rayos contra los hombres de simiente podrida que encharcan la alegría de los campos.

A situação vai piorando. O desgosto de Yerma por não engravidar aumenta na mesma medida em que esfria completamente a vida sexual dela com o marido. O casal começa a ser comentado nas rodas de fofoca, embora Yerma seja uma santa e coloque a honra e a fidelidade muito antes de sua própria felicidade. O marido fica iritado com isso e tenta impedir Yerma de sair de casa, para evitar os comentários. Usa uma expressão bem machista da época: Las ovejas en el redil y las mujeres en su casa. A resposta de Yerma é mais uma bomba de neutrons contra a beatice e o conservadorismo gerais: Justo. Las mujeres dentro de sus casas. Cuando las casas no son tumbas. Cuando las sillas se rompen y las sábanas de hilo se gastan con el uso. Pero aquí, no. Cada noche, cuando me acuesto, encuentro mi cama más nueva, mas reluciente, como si estuviera recién traída de la ciudad.

Mais um cartaz original, arte
de Antonio Morales
Como se não bastasse, Victor, a quem Yerma desejava de longe, e que retribuía sutilmente essa atração, vai embora para outra cidade, acabando com mais um sonho de Yerma. Ela então vai até a casa da mãe de um amiga, que faz rezas para as mulheres engravidarem. Ela sai sem autorização e ainda passa a noite na casa da mulher, sem avisar Juan, o marido, que vai buscá-la quando já está amanhecendo. Os dois tem mais um embate violento. E como esse artifício também falha, Yerma vai se tornando cada vez mais reclusa e deprimida.

O ápice se dá em uma romaria da região em que mulheres vão para conhecer homens e casar ou rezar pela gravidez. Yerma vai com o marido mas lá eles vão cada um para um lado e ela acaba reencontrando a velha. São passados alguns anos desde o primeiro encontro de ambas. A velha conta que daquela primeira vez não quis se expandir em comentários mas que agora falaria abertamente: o problema evidentemente era o marido. A velha lhe propõe que Yerma deixe Juan imediatamente e se case com um de seus filhos que está solteiro. Com ele os filhos virão seguramente. Yerma se ofende e rechaça a oferta, em nome da honra. A velha então se cansa e diz a ela que siga a vida definhando e murchando como uma folha seca. Juan escuta a conversa e eles têm um último diálogo. Ele diz com todas as palavras que não quer ter filhos e pede a ela que se conforme. Horrorizada, Yerma percebe que a confissão o excitou e ele se aproxima e começa a beijá-la e a agarrá-la. Ela o estrangula até a morte e, aos que vêem a cena, ela diz que acaba de matar "seu filho", misturando o desequilíbrio do momento com o fato de ter matado a única possibilidade de engravidar.

Lorca, Xirgu e o diretor da peça, Cipriano Rivas,
depois da estréia de Yerma, dezembro de 1934
A peça segue a mesma linha de tragédias greco-romanas de outros trabalhos de Lorca, com o coro das lavadeiras e os longos interlúdios poéticos à semelhança de "estásimos", tão comuns em peças de Ésquilo ou de Sêneca. O formato também remete ocasionalmente à ópera, razão pela qual há mais de um trabalho nesse estilo sobre Yerma, sendo um deles composto por Heitor Villa-Lobos. Em 1998 a feminista, promotora da cultura andaluza e diretora bissexta Pilar Távora se juntou a José Luiz Garci e os dois adaptaram o texto de Lorca para o cinema, como parte das comemorações pelo centenário do poeta e dramaturgo. Pilar ficou com a direção e foi particularmente feliz na escolha de sua protagonista: a lindíssima Aitana Sánchez-Gijón, que vivia um grande momento em sua carreira com o inesperado sucesso de A Walk in the Clouds, em 1995 (sua estréia hollywoodiana, na qual contracenou com Keanu Reeves).

Aitana Sánchez-Guijón, em foto promocional de "Yerma"

Aitana: uma Yerma modelar
Sua interpretação de Yerma é estupenda. Que trabalho mais admirável! Yerma sempre foi um papel difícil, deprimente, e não fazemos outra coisa a não ser assistir a desgraça da personagem aumentar a todo instante. Não é diferente aqui, mas Aitana é tão linda, tão doce, e ao mesmo tempo tão cheia de personalidade e tão verdadeira no que transmite, que a história adquire um colorido diferente. Ela é um talento real, pujante, maiúsculo. Há um espectro de cores em sua interpretação que geralmente não há em Yerma, onde o tom é sempre cinzento ou escuro. Já na primeira cena somos cativados por ela malgrado sua instabilidade, pela doçura determinada com que tenta fazer o marido se alimentar melhor, e percebemos a parábola de sua emoção, que vai da felicidade esperançosa do começo até a irritação, quando o marido sai, e em seguida à felicidade infantil e tão genuína com que celebra a gravidez da amiga e lhe dá conselhos.

A Yerma de Aitana: em tudo, comovente
Os roteiristas se deram a liberdade de criar um pouco em cima do texto de Lorca; a cena em que ela leva comida ao marido não existe na peça e graças à Aitana, é comovente. Dói ver sua dedicação ser tão desmerecida pelo marido. Também comove sua doçura ao ver uma simples ovelhinha mamando nas tetas da mãe, ou sua emoção real diante da criança, quando vai buscar água do poço, outra invenção dos roteiristas. A cena em que se despede de Victor tem um dos closes mais poderosos e de mais lancinante tristeza que já vi. Ele lhe deseja felicidade e ela responde: ¡Dios te oiga! ¡Salud! A câmera se afasta junto com ele, focalizando-a, e ela permanece imóvel, inerme. Ele se detém por um segundo na porta, angustiado e impotente, tão sabedor quanto ela do que poderiam e deveriam ter vivido, juntos. Ele pergunta se ela disse alguma coisa. Ela pausa e diz "salud". Seu rosto é uma máscara que contém toda a tristeza do mundo. Assim como é pura alegria quando diz "Mariiia", para a amiga grávida, ela se trasmuda em pura tristeza nesse close. É impossível represar as lágrimas, nesse momento.

Toda a tristeza do mundo: "¿Decías algo?"... "Salud dije"...

"Maldito sea el cuerpo"...
E se agiganta nas cenas de sua revolta. Suas discussões com Juan podem até ver a esposa submissa, mas não verão uma mulher que deixou de pensar ou de querer. Ela aceita seu destino mas vocaliza sua irresignação. Sua submissão está na esfera da honra e não da volição. Ela não trairá sua honra, mas não fingirá que vive uma vida feliz. Na casa da mulher que faz as rezas Aitana se supera; ela começa comedida, falando equilibradamente sobre o que espera das rezas. Vai se empolgando com a expectativa, perde as estribeiras e despeja todas as verdades de sua alma em meio a um bando de desconhecidas. Sem pejos, sem papas na língua. Quando o marido aparece, ela o enfrenta, reclama, fraqueja, descorçoa e volta ao equilíbrio. Quando vai da súplica do Te busco a ti ao desespero de Maldito sea mi padre, que me dejó su sangre de padre de cien hijos! Maldita sea mi sangre, que los busca golpeando por las paredes!, ela é superlativa. Sua saída mereceria aplausos, como em um teatro.

Juan Diego, Mercedes Bernal, Papas e Jesús Cabrero

O ator Juan Diego, já cinqüentão, com sua voz rouca e sempre cheia de ultraje, está muito bem no papel do atrabiliário Juan. Jesús Cabrero faz um Victor como ele deve ser: o objeto do desejo reprimido de Yerma, mas de um desejo idealizado, edulcorado, sob sua ótica infantil, sem resvalar para o lúbrico e para o óbvio. Mercedes Bernal é uma ótima Maria e o resto do elenco é todo muito bom.

Papas: vieja pagana

Papas e Aitana
Coube à Irene Papas o papel que no livro é referido como "Vieja" e no filme recebe o adendo de "Vieja Pagana". Ela estava com setenta anos, aparentava vinte a menos e passa, como sempre, não apenas a imagem perfeita de ter sido uma beleza fulgurante num passado recente, mas também uma parideira exemplar. Na primeira cena com Aitana, a jovem domina o diálogo com sua dramaticidade. Um bate-bola espetacular: a jovem confessa toda a enormidade de sua amargura e a velha absorve tudo, mas não manda de volta. Percebe-se no rosto de Papas aquele sofrimento antigo, aquele sofrimento no olhar que só ela soube transmitir. Mas a velha se fecha e limita-se a dar pistas que qualquer um, menos Yerma, entenderiam. Yerma diz, enquanto vira as costas: Entonces, que Dios me ampare. Mais uma vez, uma única coisa a dizer: comovente. O que Aitana passa é literalmente isso: o mais puro desamparo. Ninguém está por ela. Nem a família, nem o marido e nem as ditas "amigas". Só Deus.

Uma expressão abissal de tortura mental, emocional e espiritual

"Ay, ay. Menos ¡ay! y mas alma"...
Na segunda a situação se inverte: o desdém da velha sobrepuja o moralismo de Yerma. Mas não há como não comentar a performance de Aitana. Quando a velha lhe diz que antes no he querido decirte, pero ahora, sí, a expressão de Aitana é abissal. É a expressão de alguém que foi torturada durante anos. Existe a dor da tortura mental, emocional e espiritual, e ao mesmo tempo uma espécie de enfado por ter que comentar suas misérias. É terrível que Yerma fosse tão obcecada com a questão da honra, porque naquele momento a velha lhe deu uma chave para livrar-se de todos os grilhões que mantinham sua vida no fundo do poço. A velha deixou isso claro desde o começo: é um espírito livre, sem compromisso com convenções sociais ou com a tristeza; enterrou filhos, viveu do jeito que quis e está muito bem. Sua proposta para Yerma é feita na melhor das intenções, a meu ver; durante os primeiros anos ela não quis se intrometer para não influenciar a jovem de forma equivocada, mas as coisas chegaram a um ponto em que não fazia sentido silenciar sobre lo que ya no se puede callar. Lo que está puesto encima del tejado. Papas empresta astral positivo e uma tal empolgação à sua fala que consegue nos contagiar. E a poesia de Lorca faz o resto do trabalho: La ceniza de tu colcha se te volverá pan y sal para las crías. Tudo em vão. 

A velha ainda aparecerá algumas vezes repetindo suas máximas, na memória de Yerma. Mas existe uma circunstância lamentável neste filme, que é a voz de Papas ter sido dublada. Não vai qualquer desdouro a María Alfonsa Rosso, que é uma ótima atriz e tem uma bela voz, mas Papas fala espanhol, tem uma voz adorável e não precisava de dublagem. Se a diretora julgava que seu espanhol não passava por nativo, deveria ter chamado outra atriz. Entretanto, Papas foi dublada tantas vezes que não chega a fazer maior diferença em um papel coadjuvante, especialmente se o trabalho é de qualidade, como neste caso.

Aitana Sánchez-Gijón: a melhor atriz espanhola de sua geração

O filme foi lançado no segundo semestre de 1998 e não teve a repercussão ou as premiações que merecia. É uma pena. Existe um certo paralelismo no início de carreira de Papas e Aitana. Ambas são lindíssimas e lutaram para provar seu talento. Aitana provou que tem um grande talento e fez alguns filmes bons. Infelizmente nos últimos anos tem estado menos visível, trabalhando mais em teatro e televisão, na Espanha. É um crime, considerando que — embora nascida na Itália — é a melhor atriz espanhola de sua geração.

ERÊNDIRA (1984)

Em 1972 o colombiano Gabriel Garcia Marquez (1927/2014) publicou um livro com sete contos escritos no fim da década de 60, chamado La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada. Além de Eréndira, o livro incluiu Un señor muy viejo con unas alas enormes, El mar del tiempo perdido, El ahogado más hermoso del mundo, Muerte constante más allá del amor, El último viaje del buque fantasma e Blacamán: el bueno vendedor de milagros.

O conto que dá título ao livro é a história de Erêndira, uma menina bastarda de catorze anos que vive com sua vó, uma velha de setenta. A velha era casada com o famoso contrabandista Amadis — "o grande" — e ambos tiveram um filho, também de nome Amadis. Esse filho se meteu com uma mulher qualquer e teve Erêndira. O velho Amadis morreu de "fiebres melancólicas" (doença que levava esse nome desde o século XVII e nem imagino o que seja) e o filho foi assassinado. Erêndira acabou indo morar na mansão decadente da avó, onde trabalhava como um camelo, acumulando as funções de cozinheira, faxineira, aia, governanta e caseira. A velha passava os dias num ritual demoradíssimo de se levantar, tomar um longo banho e passar horas tendo seu cabelo armado, sendo vestida e emperequetada como uma velha rainha. Depois tocava velhas canções de sua juventude no piano e chorava, ouvindo seus discos em um gramofone, enquanto se empaturrava de doces.

Gabriel García Marquez
Em resumos deste conto comenta-se comumente que a avó trata Erêndira como "uma escrava". Sim, a avó não a trata como filha, não está nem aí para sua educação e passa o dia delegando-lhe tarefas. Mas, segundo o livro, su cuarto era también lujoso, aunque no tanto como el de la abuela, y estaba atiborrado de las muñecas de trapo y los animales de cuerda de su infancia reciente. Ou seja, Erêndira era uma escrava com privilégios da Casa Grande. Paradoxo tristemente normal naquele recôndito, ignorante e desregrado interior norte-colombiano — ou de qualquer outro lugar — em meados do século passado. Podemos considerar, inclusive, que sua vida não é muito diferente do que foi a vida de uma modesta empregada doméstica até não muito tempo atrás. Mais do que escravidão, existe o costume arraigado e difundido, para o bem ou para o mal; de um lado, uma velha cínica, egoísta e insensível, e, do outro, o paroxismo doentio de obediência baseado nas mais severas convenções familiares e religiosas da época: a neta que se vê na obrigação moral de obedecer sua vó em detrimento de seu próprio bem-estar.

Gabo
Quando Erêndira, esgotada pelo trabalho, dorme e deixa um candelabro com velas acesas perto da cortina de seu quarto e o vento provoca um incêndio que destrói a casa inteira, aí sim o caráter da velha mergulha no mais profundo da maldade e ela se mostra fria e amoral como o pior dos psicopatas: ela estabelece um valor para o prejuízo causado pela neta e decide cafetiná-la para qualquer um que estiver disposto a pagar, a fim de que com a venda de seu corpo ela vá saldando sua dívida. Esgotados os clientes em uma localidade, a velha começa a viajar pelo país como um circo itinerante, em que a atração única são alguns minutos de sexo com Erêndira. Em meio às dezenas de clientes que vão ajudando a velha a reconstituir seu patrimônio, aparece um jovem de nome Ulisses, filho de um holandês e uma índia, que se apaixona perdidamente pela menina. Os dois tentam fugir juntos mas a velha, a essa altura, já é conhecida pelas autoridades, tem um a carta de recomendação de um senador colombiano, e o casal é pego pela polícia. Erêndira em outra ocasião é raptada por padres e levada a um convento, com base na lei de um concordato que permite que mulheres nessa condição fiquem sob custódia da igreja até seguirem melhor vida. Mais uma vez, a velha dá um jeito de armar um casamento de fancaria para reaver a menina.

1ª edição do livro que traz o conto
A velha vai ficando cada vez mais rica, a prostituição de Erêndira atinge um status mitológico e a situação vai se cristalizando até o momento em que Ulisses volta e eles planejam o assassinato da velha. A primeira tentativa, na qual o rapaz dissolve quase um quilo de arsênico em um bolo de aniversário para a velha, falha miseravelmente. Ela come o bolo inteiro e só o que acontece é que uma reação colateral a faz ficar careca. A segunda é ainda pior: o rapaz esconde bananas de dinamite no piano e as detona enquanto a velha está tocando. A explosão manda tudo pelos ares, menos a velha, que tem graves queimaduras mas segue bem viva. Frustrado pelos fracassos, o menino pega um facão e mata a velha a facadas. Em momento do mais fantástico surrealismo, as feridas da velha jorram um sangue verde, reptiliano, "era una sangre oleosa, brillante y verde, igual que la miel de menta". Livre, Erêndira pega um colete em que a velha bordara lingotes de ouro (para poder andar sempre com o grosso de seu patrimônio) e sai correndo para longe, sem esperar Ulisses, que tenta alcançá-la mas não consegue.

Ohana e Papas
Seria inútil elogiar ou fazer maiores comentários sobre o trabalho de Marquez, tão superlativo. O conto é simplesmente perfeito. Em 1982, o competente diretor Ruy Guerra decidiu transformá-lo em filme, num consórcio cultural que envolveu quatro países: Brasil, México, França e Alemanha. As filmagens foram todas no México. O papel de Erêndira coube à então esposa de Guerra, Cláudia Ohana, que aos dezenove anos, com seu porte mignon, o sorriso infantil e os enormes olhos verdes, passava tranqüilamente por uma pré-adolescente. A escolha para o papel da "Abuela Amadis" é interessante: Guerra escolheu Irene Papas, embora ela não tivesse o physique du rôle da personagem. A avó é uma septuagenária branca e obesa. É referida como "la ballena blanca", como "grande, monolítica", fala-se de "sus nalgas siderales" e ela é tão gorda que andava apoiada na neta. Papas tinha apenas 56 anos, não era morena de pele mas também não era branca como a avó. E, sobretudo, não era gorda. Muito pelo contrário; ela era esbelta e continuava sendo linda e atraente como sempre foi. É aí que temos provavelmente o único ponto de semelhança entre ambas: segundo o livro, a avó, aún a su edad, en su mal estado y con aquella luz cruda en la cara, hubiera podido decir que había sido la más bella del mundo. É coisa que realmente se pode dizer de Papas.

Papas: La Abuela

Foto promocional de "Erêndira"
A avó é uma personagem maravilhosa e Papas entendeu-a como ninguém. Marquez se concentrou em um modelo autoritário que não comanda pelo medo ou pelo respeito; é um protocolo familiar, haja vista a afirmação de Erêndira: Nadie puede irse para ninguna parte sin permiso de su abuela. O escritor criou o contrário da velha megera, da madrasta de Cinderella, da bruxa perversa e Papas fez dela uma senhora simpática, dócil, que desperta pena e comiseração pela pompa exagerada e ridícula com que continua vivendo sua triste vida. O salão do palacete, aquele monte desordenado e coloridíssimo de flores, o vento permanente, a velha tocando e tendo apenas o avestruz como assíduo espectador, tudo é digno de riso e pena. As reclamações da avó, seus queixumes, seus trejeitos não estão muito distantes da maneira de ser das matronas latinas. Recomendações como plancha toda la ropa antes de acostarte para que duermas con la conciencia tranquila ou antes de acostarte fíjate que todo quede en perfecto orden, pues las cosas sufren mucho cuando no se les pone a dormir en su puesto são típicas de mães e avós meticulosas e cheias de manias, e o fato de serem entrecortadas por uma única réplica de Erêndira — "si, abuela" — as tornam pérolas de humor.

Um salão florido...
... um avestruz que é fiel espectador...
"Si, Abuela"...

Papas e o colete com lingotes de ouro.
Foto promocional de "Erêndira"
Até no segundo momento, em que aflora sem rebuços a personalidade psicopata da avó, ela não é odiosa. Pelo contrário. Ela é divertida. Suas blablações durante o sono, bem como os monólogos inqualificáveis nos quais tenta explicar o quanto Erêndira deveria estar satisfeita com sua vida  Tienes ropas de reina, una cama de lujo, una banda de música propia, y catorce indios a tu servicio. ¿No te parece espléndido?  são certeiros em transmitir a vilania daquela mulher, só que de uma maneira mais cômica do que trágica. O tema já é demasiadamente pesado e cheio de desgraças para que se crie um personagem nojento, detestável, a quem desejaremos a morte mais horrorosa desde o começo. Papas dá um viés de leveza solene, apalermada, ligeiramente grotesco, perfeito ao papel. Sua cena empanturrando-se com o bolo, enquanto catequiza Ulisses é de chorar de rir. A gargalhada histérica da atriz quando percebe que seu cabelo está caindo é um primor. O mesmo se pode dizer de sua expressão que mistura tristeza indignada e seriedade, ao mesmo tempo em que lhe sobem filetes de fumaça, depois da explosão do piano. Até o espanhol de Papas (irretocável) tem uma sonoridade gostosa e malemolente. É um trabalho genial e uma das melhores performances de sua carreira.

Blablações durante o sono...
... empanturrando-se com um quilo de arsênico...
... e uma gargalhada pantagruélica: perfeição

Oliver Wehe
O alemão Oliver Wehe é um perfeito querubim, no papel de Ulisses. Não entendi bem a escolha do francês Michael Lonsdale para interpretar Onésimo Sánchez. Ele não fala espanhol e foi dublado em todas as cenas. Ohana também foi, mas sua escolha se deu muito mais pela aparência do que por qualquer outra razão, e no caso de Lonsdale um ator colombiano poderia ter sido chamado. De qualquer forma, é um elenco da melhor qualidade. O verdadeiro pé-de-coelho da produção toda, porém, foi Guerra ter conseguido o próprio Garcia Marquez para roteirizar seu conto. E o trabalho do escritor, mais uma vez, é excepcional. É bem verdade que o conto é tão rico e bem escrito que transformá-lo em roteiro parece uma conseqüência natural. Marquez, por sinal, já havia roteirizado alguns de seus contos, então não era um neófito e se desincumbiu brilhantemente da missão. O roteiro é enxutíssimo. A única liberdade a que Marquez se permitiu foi mostrar Onésimo Sánchez, que no conto é referido indiretamente e não aparece. Ele é um político tradicional, cafajeste, despeja platitudes em seus comícios e tem seu rendez-vous com Erêndira. Em seu diálogo com ela, o político prevê sua morte e de fato, próximo ao fim do filme, ele é mostrado enfartando dentro de seu carro. São criações de Marquez para o filme, já que nada disso está no conto. É pertinente como uma espécie de indicativo, talvez, de que se aproxima o fim do calvário de Erêndira, mas não faz grande sentido. Encaixa-se muito bem, entretanto, em toda a trama do filme.

Cláudia Ohana: Erêndira

Guerra e Marquez
O momento em que as prostitutas locais carregam Erêndira presa sobre sua cama merecia mais destaque. Aquilo que no filme foi rápido e sem graça, é, no livro, rico e dramático: La mostraron en su altar de marquesina por las calles de más estrépito, como el paso alegórico de la penitente encadenada, y al final la pusieron en cámara ardiente en el centro de la plaza mayor. Eréndira estaba enroscada, con la cara escondida pero sin llorar, y así permaneció en el sol terrible de la plaza, mordiendo de vergüenza y de rabia la cadena de perro de su mal destino. O mesmo se pode dizer da cena em que a avó é finalmente assassinada. Marquez descreve o momento de forma tão intensa, tão cinematográfica, que a cena me pareceu menos impactante do que poderia ser. É um momento de tripla catarse: a velha finalmente morre, Ulisses consegue seu intento e Erêndira fica livre. E o que houve ficou aquém do que eu esperava. Seria meu único comentário menos positivo.

Ruy, Ohana, Papas e Gabo em Cannes

É um filme excelente e — a exemplo do que também pode ser dito do marroquino Noces de Sang — seu mérito é ainda maior, considerando um orçamento que certamente foi pequeno. Aliás, eu seria omisso se não citasse a ótima trilha sonora de Maurice Lecoeur, orquestrada por Guy Printemps e executada por Gilbert Roussel. Um exemplo de simplicidade e sensibilidade. Ruy Guerra concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1983 mas perdeu para Shôhei Imamura por Narayama bushikô. Papas ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Chicago, no ano seguinte. Aparentemente tentaram incluir o filme na disputa do Oscar para Melhor Filme Estrangeiro pelo México mas não conseguiram. E nem brisa do Globo de Ouro, de quem se esperaria algum reconhecimento, sendo uma associação da imprensa estrangeira.

Papas entre Xavier Deluc e Héctor Alterio,
em "Les cavaliers aux yeux verts", de 1990
Foi a primeira de quatro colaborações entre Ruy e Marquez: em 1988 veio Fábula de la bella Palomera (A Bela Palomera), argumento original de Marquez que ele roteirizou junto a Guerra, desta vez em português e para um elenco brasileiro, trazendo novamente Cláudia Ohana e grandes nomes como Ney Latorraca, Tônia Carrero e Dina Sfat, entre outros. Em 1992 Guerra escreveu e dirigiu para a televisão espanhola a minissérie Me alquilo para soñar, toda filmada em Cuba e cujo roteiro é baseado em um conto de Marquez escrito em 1980 e incluído no livro Doce cuentos peregrinos. E em 2005 o brasileiro adaptou, desta vez em parceria com Tairone Feitosa, uma antiga novela do escritor, La Mala Hora (publicada em 1962), que no Brasil recebeu com o nome de O Veneno da Madrugada. Papas e Ohana também se reencontraram em 1990, em filme pouco conhecido, dirigido por Michel Wyn para a TV francesa, Les cavaliers aux yeux verts.

CRONACA DI UNA MORTE ANNUNCIATA (1987)

Pouco antes de Erêndira virar filme, em 1981, Marquez lançou uma novela chamada Cronica de una muerte anunciada. O título é auto-explicativo: desde a primeira linha já se sabe que o personagem Santiago Nasar será assassinado e o episódio todo é contado como se fosse uma elaborada e substanciosa reportagem policial. Assim como Lorca, no caso de Bodas de Sangre, Marquez também se baseou em uma fatos reais para escrever Cronica: o episódio ocorreu na cidade colombiana de Sucre, em 1951, onde um rapaz (Miguel Reyes) se casou com uma moça (Margarita Chica), descobriu que ela não era virgem e a devolveu à sua família. Os irmãos da moça a obrigaram a revelar quem tinha sido seu primeiro, a moça acabou dizendo um nome (Cayetano Gentile) e os irmãos foram e mataram o sujeito a facadas em plena luz do dia, na frente de toda a cidade. Em 1994 Reyes processou Marquez por utilizar sua história, o que lhe teria causado danos profissionais. Em 2008 ele lançou um livro com a sua própria versão dos fatos.

Miguel Reyes, que inspirou o personagem
Bayardo San Roman
Reyes comentou: En el fondo, es el mismo relato, pero los personajes de García Márquez tienen mucho de su lírica, de su poesía. Los míos son auténticos, de carne hueso, que se mataron, se ofendieron. Em 2011 a justiça deu ganho de causa a Marquez. Em sua sentença, o juiz afirmou: Cientos de obras literarias, artísticas y cinematográficas han tenido como historia central hechos de la vida real, siendo adaptados a la perspectiva de su creador, sin que esto sea óbice para reclamar derechos económicos sobre las mismasMiguel morreu no ano passado, aos 95 anos.

Marquez esbanja talento na descrição dos personagens envolvidos e na participação de cada um deles no episódio, indo e voltando no tempo com notável destreza, mostrando o cronista excepcional que era. A história é contada vinte e sete anos depois (ou seja, 1978, provável ano em que Marquez pensou em escrever sobre o assunto, ou quando começou a escrever a crônica) por um narrador que não tem nome mas sabe-se que era amigo de Santiago e de outros personagens. Ele colhe informações e depoimentos e procura esclarecer alguns fatos ainda envoltos em mistério.

Gabo, e sua provável reação
ao processo movido por Reyes
Tempos antes do assassinato, chega à cidade um forasteiro riquíssimo — Bayardo San Roman  que se encanta com a menina Angela Vicário e decide que vai conquistá-la e se casar com ela. Nesse processo não mede nem esforços e nem despesas; consegue o beneplácito da família e, por fim, a concordância da menina. Mesmo que ela de fato não o ame. Se casam com grande estrépito, vão morar em uma casa que Bayardo comprou por vinte vezes o seu valor real, apenas para agradar Angela, só que na noite de núpcias o rapaz verifica que ela não é virgem. Arrasado, ele devolve a menina à família e deixa a cidade. Mãe e irmãos da menina a reprendem com violência e exigem que ela diga quem foi que a desonestou. Coagida, ela acaba dando o nome de Santiago Nasar. Os irmãos de Angela, então, resolvem matar Santiago para vingar a honra da irmã. Estão alterados e bêbados pela festa de casamento, mas saem à cata de facas afiadas para realizar o feito e, perguntados sobre suas intenções, não escondem de absolutamente ninguém que vão matar Santiago.

O indigitado, porém, tem sua própria namorada, Flora, se divertiu com o amigo Cristo Bedoya no casamento e está totalmente alheio de que os irmãos de Angela o procuram para matá-lo. E o livro conta toda essa pré-história, narra as últimas horas de Santiago, cujo assassinato é sabido por toda a cidade menos por ele, as inúmeras tentativas de avisá-lo do que ia acontecer, a fim de que ele se prevenisse, e ainda a investigação empreendida pelo narrador, nas conversas com os sobreviventes da época, como as empregadas, a mãe e os amigos de Santiago. O grande mistério do livro é se Santiago — um rapaz jovem, bonito, apreciado e apreciador das moças locais  de fato foi o homem que desvirginou Angela.


O diretor Francesco Rosi explica a Irene Papas e aos irmãos gêmeos
Carlos e Rogério Miranda como devem bater em Ornella Muti

Francesco Rosi
O filme é uma produção franco-italiana e foi rodado na Colômbia em 1986, com direção do afamado Francesco Rosi. Para roteirizar a novela jornalística de Marquez, o diretor escalou Tonino Guerra, um dos maiores roteiristas italianos de todos os tempos e parceiro constante de Fellini, Antonioni, Monicelli, o próprio Rosi e tantos outros craques. O elenco é ao mesmo tempo estelar e irregular: Guerra fez uma leve alteração na história, tornando Cristo Bedoya o narrador, que volta à cidade para pesquisar o ocorrido. Sergi Mateu interpreta Bedoya na juventude; na maturidade, o personagem foi entregue a Gian Maria Volontè, que formava, com Vittorio Gassman e Marcello Mastroianni, a trinca de atores mais famosos da Itália. O papel de Santiago foi para o filho de Alain Delon, Anthony Delon; o personagem Bayardo foi entregue ao britânico Rupert Everett, na época com apenas vinte e sete anos e trabalhando em vários filmes europeus; quem deu vida à Angela Vicario foi Ornella Muti e sua mãe, Purísima del Carmen, é interpretada por Irene Papas. A filha de Rosi, Carolina, estreou no cinema fazendo o pequeno papel de Flora.

Papas, Everett, Delon e Ornella

Bedoya: Volontè
O papel de Bedoya na meia-idade não era desafio para Volontè, e sua escalação para o filme se deve à sua extraordinária presença. Segundo entrevista de Rosi, anos depois, "ele era o único que não falava espanhol. Mas tinha pouco diálogo, e era Volonté; ele não precisava de palavras para expressar seus sentimentos. Deu ao personagem toda a intensidade de sua presença física e emocional". E tanto ele quanto Mateu não decepcionam. Rupert Everett tinha a juventude e o devil-may-care charm de Bayardo. Fez bem seu papel, embora estivesse bastante cru. Infelizmente falou inglês e foi dublado em italiano. Mas como a dublagem parece ser o calcanhar-de-aquiles do cinema italiano (e europeu em geral), não compromete. Ornella Muti é um caso para a ciência: no livro, Angela Vicário tem vinte anos. Ornella aparentava dezessete. Na realidade estava com trinta e um. Creio que nunca vi uma atriz manter tão naturalmente os traços não só de juventude, mas de adolescência. Na cena em que briga com as irmãs, ou na qual mãe e irmãos arrancam-lhe uma confissão, ela grita, chora, fica vermelha e inchada. É a própria personificação da adolescente problemática. Uma composição perfeita. Ornella era e continua sendo o que sempre foi: linda e talentosa.

"Gracias por todo, madre. Usted es una santa"

Papas como Purísima: tudo menos uma monja
Coincidentemente, como ocorrera em Erêndira, Papas quebrou o molde original de uma personagem de Marquez. Sua Purísima não é tal qual o autor a descreve. No livro ela dissimula o rigor de seu caráter com um "aspecto manso y un tanto afligido", "parecía una monja", e se consagró con tal espíritu de sacrificio a la atención del esposo y a la crianza de los hijos, que a uno se le olvidaba a veces que seguía existiendo. Um miscast total; essa descrição nos traz à memória a sofrida Rainha Katherine, de Anne of the thousand days, e não a Pura Vicario de Papas, que é viva e sangüínea. No livro diz-se que até a surra dada em Angela foi con tanto sigilo, que su marido y sus hijas mayores, dormidos en los otros cuartos, no se enteraron de nada hasta el amanecer. No filme o marido e as filhas podem até não ouvir, mas Papas persegue a filha por uma escada como se fossem dois animais selvagens e não há qualquer sigilo na tunda recebida por Ornella. É, de uma forma ou de outra, trabalho sem maior relevância e Papas está lá por seu prestígio, assim como Volontè.

Ornella e Papas: catfight nível hard dezesseis anos depois do famigerado
giallo "Un posto ideale per uccidere"

Papas e Delon na época do lançamento de Cronaca
O problema principal do filme, a meu ver, é Anthony Delon. O rapaz era jovem, bonito e possuía, nos olhos e na cor da pele, algo da herança médio-oriental de Ibrahim Nasar, o árabe que era pai de Santiago. Mas é só. Ele não traz nenhum tipo de profundidade ao personagem, suas reações são toscas e seu trabalho é amador. Não há química entre ele e nenhuma das mulheres (o mesmo ocorrendo, aliás, entre Everett e Ornella) e com isso quebra-se uma das pernas da mesa que deveria ser sustentada por Volontè, Everett, Ornella e Delon. Outra questão é o roteiro; Guerra foi de uma fidelidade admirável ao texto de Marquez e isso nem sempre funciona a favor do filme. Por vezes tem-se o desejo de que o roteirista não tivesse respeitado tanto o texto. Há situações e personagens que podiam ser eliminadas e outras que poderiam ser realçadas. Tal como ficou, é um retrato um pouco hermético do livro. Embora a beleza das locações seja de tirar o fôlego e algumas tomadas sejam obras de arte — como a de Volontè resgatando da água os documentos, no edifício colonial em ruínas, "que fuera por dos días el cuartel general de Francis Drake" — o filme acabou manco, moroso e sem romance. E aqui temos o diametral oposto dos filmes citados anteriormente: o orçamento de Cronaca foi de doze milhões de dólares, uma quantia altamente respeitável para um filme europeu, na década de 80.

O filme estreou em maio de 1987. Foi para Cannes no ano seguinte mas perdeu para Sous le soleil de Satan, de Maurice Pialat. Hoje está inteiramente esquecido e não me consta que tenha sido sequer lançado em DVD. É punição excessiva; o filme pode não ser o que se esperava e frustrou as expectativas, mas também não é um desastre.

PAPAS, VOLONTÈ, FRANCESCO ROSI E ELIO PETRI

Embora não dividam nenhuma cena, Cronaca di una morte annunciata foi a última vez que Irene Papas e Gian Maria Volontè trabalharam juntos. Antes de Cronaca já houvera dois encontros, o primeiro deles em 1967, com direção de Elio Petri, e o segundo com Rosi e praticamente a mesma equipe de Cronaca, em 1979. Vamos a eles. 


A CIASCUNO IL SUO (1967)

O escritor siciliano Leonardo Sciascia (1921/1989) começou a se notabilizar como romancista na década de 50. Esquerdista, Sciascia não se pejava de dar a seus romances um forte colorido político, sempre denunciando a cumplicidade do governo com a corrupção, bem como a presença da Máfia e de mafiosos em posições diversas de poder. Segundo Eduardo Dâmaso, a literatura de Sciascia "não se esgota na sua própria trama ou nos seus personagens. Ela é o veículo de uma forte intervenção política. O escritor põe a nu os caminhos da Mafia por entre os meandros do poder e da sociedade italianas, com toda a espessura do racionalismo pessimista que marca a sua relação com a política". Em 1966 surgiu A Ciscuno il Suo ("a cada um o seu") e no ano seguinte o livro foi levado ao cinema pelo diretor Elio Petri, com roteiro de Petri e Ugo Pirro. Na história, o farmacêutico Arturo Manno (Luigi Pistilli) começa a receber cartas anônimas com ameaças de morte. Ele e os amigos acreditam que as cartas venham de algum marido ciumento, ou pai extremado, já que Manno é grande mulherengo e seria questão de tempo até que alguém viesse tomar satisfações com ele. Mas ninguém leva o teor das cartas a sério. Certo dia Manno e seu amigo Antonio Roscio (Franco Tranchina) vão caçar patos e em meio à caçada Manno é alvejado. Na seqüência Roscio também é baleado. Ambos morrem.

Elio Petri
As investigações iniciais dão conta de que o assassino pode ter vindo da família de uma menina de quinze anos, com quem Manno estava se relacionando. A morte de Roscio, neste caso, teria sido acidental. Paolo Laurana (Gian Maria Volontè), um professor que fazia parte do círculo de amigos de Manno, começa a investigar por conta própria. Descobre que Roscio tinha procurado um deputado em Roma e pretendia revelar a identidade de um notável corrupto de sua cidade. Morreu antes de fazê-lo, mas Laurana se certifica de que o alvo do atentado não era Manno, e sim Roscio.

Na tentativa de saber quem é o tal "notável", Laurana pede a ajuda de outro dos amigos de Manno, o advogado Rosello (Gabriele Ferzetti), cuja prima era esposa de Roscio. Rosello leva Laurana até a casa onde Roscio vivia com a esposa, a lindíssima Luisa (Irene Papas), por quem Laurana fica absolutamente fascinado. Além de Luisa, Laurana conversa com o pai de Roscio (Salvo Randone), que lhe dá um diário secreto escrito pelo filho, documento que a viúva não tinha sequer idéia de que existia; e conversa com o pároco (Mario Scaccia), que lhe diz, sem rebuços, que se tivesse que escolher um "notável" da região seria Rosello, que, segundo ele, era un cretino non privo di astuzia.

Irene, Ferzetti e Volontè
Laurana: perdidamente apaixonado
Papas: uma menina de quarenta e um anos

Ferzetti e Volontè
Laurana vai ligando os pontos — Rosello é empresário, rico e ligado ao governo — e chegando à certeza de que o assassinato foi encomendado por Rosello. Ele põe o diário em um cofre e vai contando o que descobre à Luisa, que ele acredita ser sua aliada. Rosello também percebe que o cerco está se fechando.

Laurana e Luisa vão até Palermo, onde o professor pretende contar tudo a um comissário de polícia. Só que Laurana o contata cedo demais e é avisado de que o comissário só o receberá a partir do meio-dia. Ele então se encontra com Luisa e eles vão de automóvel até um local ermo, onde conversam. Ardendo de ciúme, ele pergunta se ela e Rosello são amantes; Luisa confessa que no passado foram, antes dela se casar com Roscio, mas agora não. Ela começa a passar mal e se deita no chão. Laurana tenta beijá-la, ela se esquiva e vai embora com o automóvel, deixando-o no meio da estada.




Mais à frente ela pára o carro e joga fora os pertences dele, que são rapidamente recolhidos por um sujeito, ao mesmo tempo em que Laurana é abduzido por um grupo de capangas. Percebe-se então, que Luisa estava mancomunada com Rosello o tempo todo. Ou, como boa mulher de mafioso, ela deu corda a Laurana para ver se ele iria longe o suficiente a ponto de tirá-la dali. Como não foi o caso, ela roeu a corda no último minuto. A chave do cofre onde está o diário é tomada de Laurana, ele é espancado e jogado dentro de um casebre no pé de uma pedreira; eles então detonam uma bomba que explode a casa e ela é soterrada pela avalanche de pedras decorrente da explosão. A cena final mostra Luisa e Rosello se casando.

Petri dirigindo Ferzetti e Volontè
É um ótimo filme de Elio Petri e uma das melhores adaptações de livros de Sciascia (o próprio Petri voltaria ao autor anos depois, com o aclamado Todo Modo). Nesta, possivelmente mais do que em outras, há um elemento inteiramente inusitado de humor, que se deve a Gian Maria Volontè. O elenco todo é de primeira e está afinadíssimo mas Volontè é impagável! Não li o livro e não sei como o autor descreveu Laurana, mas no filme o ator criou um anti-galã perfeito. Ele mora com a mãe, é aquele trintão completamente imaturo, está sempre com cara de bobo, é desajeitado e está morrendo de paixão por Luisa. Seu desejo de investigar e de revelar a verdade por trás das escaramuças é legítimo, mas ele perdeu completamente o foco e a objetividade, desde que estabeleceu contato com a viúva de Roscio; sentimos concretamente o efeito avassalador que a voluptuosa morena tem sobre o professor. Aliás, é curioso que em determinadas críticas ele seja referido como "um professor de esquerda", porque seu lar, sua família e a maneira que ele vive não poderiam indicar mais sua posição de pequeno burguês.

Papas: uma verdadeira visão de beleza

Foi o primeiro de três filmes que Volontè realizaria com Irene Papas. Ela, por sinal, está deslumbrante. Linda, sexy, provocante, e não move para isso um único músculo. É um espetáculo. Parecia não ter chegado nem aos trinta anos e já estava com quarenta e um! Na sua interação com Volontè, por sinal, isso funciona muito bem. Ela não parece mais velha (embora fosse, de fato, sete anos mais velha que ele), mas ele é tão desajeitado que é como se víssemos um garoto perdidamente apaixonado pela namorada do irmão mais velho. Ela é mulher demais para um sujeito como ele. Ponto negativo: dublaram sua voz. Como diria a música, "nem Deus sabe o motivo". Gabriele Ferzetti também está muito bem, um perfeito cafajeste menor, com seu cabelo tingido e seu rosto passado a ferro. Tem cara de vinte anos a mais que Papas. E é apenas um ano mais velho que ela.

O filme concorreu a Melhor Roteiro e Melhor Filme, em Cannes. Perdeu Melhor Filme para Blow-Up, de Antonioni, mas levou Roteiro, empatado com Jeu de massacre, dirigido e roteirizado por Alain Jessua. Quem também concorria a Melhor Filme, naquele ano, mas só levou o FIPRESCI (prêmio extra-oficial dado pela Fédération Internationale de la Presse Cinématographique) foi Terra em Transe, de Glauber.

CRISTO SI È FERMATO
A EBOLI (1979)

O italiano Carlo Levi (1902/1975) dedicou sua juventude à medicina, à pintura e ao ativismo político, mais notadamente o anti-fascista. Na década de 20 ele se formou em medicina, teve suas primeiras exposições e escreveu seus primeiros artigos, todos sobre pintura. Foi a Paris, onde conheceu luminares da arte, da música e do pensamento, o que serviu para alimentar ainda mais suas aspirações artísticas, intelectuais e humanistas, afastando-o da medicina. No início da década de 30 ele ingressou em um movimento anti-fascista chamado "Giustizia e Libertà" e por conta de suas atividades nesse grupo foi preso em 1934, e novamente no ano seguinte. Por trás de sua prisão, e de várias outras, conta-se que estava o afamado escritor Dino Segre, conhecido como Pitigrilli, que seria colaborador da OVRA — Organizzazione per la Vigilanza e la Repressione dell'Antifascismo  a polícia secreta do regime de Mussolini (Segre negou a acusação, anos depois, mas seu nome figurava entre a lista de informantes da OVRA).

Essa segunda prisão, ocorrida em maio de 1935, veio acompanhada de uma sentença de confinamento no sul de seu próprio país, na região então chamada de Lucânia (hoje, Basilicata), em uma cidadezinha chamada Aliano, próxima à província de Matera. Ele passou um ano nesse local e foi libertado em maio de 1936, como um sinal de boa-vontade, graças ao júbilo italiano pela vitória do exército de Mussolini na Segunda Guerra Ítalo-Etíope. O Duce estava no auge de seu delírio psicopata de colonizar a África e com essa guerra grotesca, que matou meio milhão de africanos e mais de cinco mil italianos, ele anexou a Abissínia (Etiópia e Eritréia) à Itália.

Levi, nos anos 20
Os anos seguintes Levi passou em Paris e retornou à Itália no início da década de 40, seguindo com a militância anti-fascista. Chegou a ser preso mais uma vez, em 1943 mas foi libertado quando Mussolini foi preso e executado. Em 1945 ele escreveu e lançou as memórias de seu desterro de um ano na Lucânia. O editor foi Giulio Einaudi, preso junto a Levi em 1934. O nome do livro é "Cristo si è fermato a Eboli", dando a entender que Cristo percorreu toda a Itália mas quando chegou a Eboli, cidade que fica um pouco antes de Aliana, ele deu meia volta e foi embora. O que ele queria dizer era óbvio: enquanto Mussolini mandava soldados para matar e morrer em reinos distantes que nada tinham a ver com a Itália, a região sul de seu próprio país estava inteiramente esquecida. E o livro conta em detalhes as suas experiências junto àquele povo simples, ignorante e ignorado. Levi continuou pintando e escrevendo pelo resto de sua vida. Na década de 60 se elegeu senador pelo Partido Comunista Italiano e exerceu o cargo até o início da década seguinte. Morreu de pneumonia em janeiro de 1975.

Tonino Guerra
Em 1978 o diretor Francesco Rosi decidiu fazer um filme a partir desse livro de Carlo Levi. Para ajudá-lo com o roteiro Francesco chamou Tonino Guerra e o bissexto Raffaele La Capria. Para a magnífica trilha sonora Rosi escalou outro de seus colegas constantes, o compositor Piero Piccioni, uma verdadeira usina de composições, com quase duzentos trabalhos em seus cinqüenta e cinco anos de carreira. Para o papel de Carlo Levi o diretor sabia que iria precisar de alguém com carisma e talento suficientes para transmitir a sensibilidade do tema, as sutilezas do texto e as idiossincrasias de Levi. Rosi abriu mão de qualquer compromisso com semelhança física e chamou um de seus atores favoritos, Gian Maria Volontè. A cereja no bolo foi Irene Papas e juntando-a ao grupo de Rosi, Guerra, Piccioni, Volontè, edição de Ruggero Mastroiani (irmão mais novo de Marcello Mastroiani) e direção de Arte de Pasqualino De Santis, temos a espinha dorsal que trabalharia oito anos depois em Cronaca di una morte annunciata. Só que é seguro dizer que o trabalho de Guerra com o livro de Levi é impecável e o resultado foi superior à adaptação da novela de Garcia Marquez. Mais do que isso: tudo aquilo que porventura não funcionou a contento em Cronaca, beira a perfeição em Cristo si è fermato a Eboli.

Rosi com Volontè e Papas na filmagem de "Cristo si è fermato a Eboli"

O Levi envelhecido de Volontè
O filme é um primor de delicadeza, a começar pela cena inicial, em que Levi se penitencia por não ter voltado a Aliano para visitar seus amigos menos favorecidos. Essa mea culpa foi escrita apenas dez anos depois do ocorrido; no filme ela tem sabor de despedida. Levi está velho, sentado em seu atelier em meio a dezenas de seus quadros, contemplando alguns daqueles nos quais retratou camponeses, operários e personagens, marcantes ou anônimos, de confinamento. Em seguida temos a longa seqüência da chegada de Levi a Aliano, a adição do querido cão Barone à sua vida e a adaptação ao local e a seus costumes. A localidade carece da mais básica assistência médica, então quando se propala que Levi se formou em medicina, os camponeses vão em flocos até a pensão onde ele se hospedou. E os episódios vão se sucedendo na vida do ativista e pintor. As locações extraordinárias, fidelíssimas às originais vão sendo mostradas; a vila está decadente, os prédios todos estão velhos e qualquer problema de monta só pode ser resolvido no município vizinho de Matera. Um elenco de personagens característicos e pitorescos é apresentado, suas personalidades são delineadas e suas histórias são contadas, tudo muito bem amarrado por Tonino Guerra.

Volontè: Levi
Com o tempo Levi vai se acostumando e com o dinheiro trazido por sua irmã, em uma visita, ele consegue alugar a casa que pertencia a um padre. Necessitado de alguém que faça a faxina e o ajude com outras tarefas domésticas, alguém lhe recomenda a mulher que trabalhava na casa quando o padre ainda estava vivo: Giulia Venere. Para esse papel, Francesco escalou Irene Papas. É interessante lermos como Levi descreveu Giulia, que foi uma das personagens mais importantes e que mais o impactou, nesse período:

Ela estava com quarenta e um anos, e tivera dezessete gravidezes, entre bem-sucedidas e abortos, de quinze pais diferentes. (...) Giulia era uma mulher alta e curvilínea, com a cintura fina como uma ânfora, entre seu peito e os quadris robustos. Ela deve ter tido um tipo de beleza barbárica e solene em sua juventude. Seu rosto agora estava enrugado pelos anos e amarelado pela malária mas ficaram os sinais de antiga beleza em sua estrutura severa, como nas paredes de um templo clássico, que perderam o mármore que as adornava mas ainda preservam a forma e as proporções. Sobre o corpo grande e imponente, ereto, emanando uma força animalesca, se erguia, coberta por um véu, uma cabeça pequena, alongadamente oval.

A testa era alta e reta, com metade coberta por um cacho de cabelo neríssimo, liso e oleoso; os olhos amendoados, negros e opacos, tinham veios brancos, azul e marrom, como os dos cachorros. O nariz era longo e fino, um pouco arqueado; a boca larga, de lábios finos e pálidos, com um toque amargo, se abria em uma risada perversa, a mostrar duas fileiras de dentes branquíssimos, potentes como os de um lobo. Esse rosto tinha uma forte característica arcaica, mas não no sentido do clássico grego, nem do romano, mas de uma antigüidade mais misteriosa e mais cruel, crescida sempre na mesma terra, sem relacionamentos ou miscigenações com homens, mas ligada a seu torrão e às eternas divindades animais. Via-se uma sensualidade fria, uma ironia obscura, uma crueldade natural, uma protérvia impenetrável e uma passividade cheia de poder, que estavam unidas em uma expressão que era a um tempo severa, inteligente e perversa. Na ondulação dos véus e da saia larga e curta, nas pernas longas e fortes como troncos de árvores, aquele grande corpo se movia com gestos lentos, equilibrados, plenos de uma força harmônica, a carregava, alta e altiva, naquela base monumental e materna, a cabela pequena e negra de serpente.

Quem, além de Papas, se encaixaria tão perfeita, tão definitivamente nessa descrição? O corpo robusto e bem feito, a beleza "barbárica e solene", os dentes lupinos, a "passividade cheia de poder", a "expressão que era a um tempo severa, inteligente e perversa"? Tudo era Papas. Ao contrário de Volontè — esbelto e charmoso, enquanto Levi era feio, gordo, tinha um rosto reptiliano e parecia uma tartaruga — é possível compreender Papas (embora linda como sempre) no papel de uma mulher de aparência rústica, vivida e calejada. Mesmo considerando que ela estava com 52 anos e teve que ser maquiada para aparentar as tais rugas e demais marcas do tempo ostentadas por Giulia aos quarenta e um. E ninguém poderia fazê-lo melhor do que ela.

"I Monachicchi?"
Levi faz longas referências à Giulia, sua personalidade, sua credulidade, sua experiência, seus palanfrórios sobre mágica e entidades sobrenaturais e, em geral, sobre a extraordinária impressão que ela lhe causou, e as diluiu por grande parte do texto. Tonino Guerra aglutinou o grosso dessas referências em três cenas: a primeira, na qual ela aparece juntando os gravetos na porta, vemos Carmelo, seu filho pequeno e ela fala de suas gravidezes; a segunda, na qual ela fala sobre os três anjos que visitam a casa diariamente, e a necessidade de retirar o lixo apenas no dia seguinte; e a terceira, importantíssima e uma das melhores de todo o filme: Giulia junta água quente em uma banheira para que Levi possa utilizá-la, enquanto conta a história dos "monachicchi", crianças que morreram sem serem batizadas e cujo espírito permanece na Terra, fazendo estripulias. No meio do banho, Giulia entra sem qualquer cerimônia no banheiro e ainda ralha com Levi por não tê-la avisado, já que ele não teria como lavar suas costas sem ajuda. A seqüência é, hoje, um tanto politicamente incorreta: ele comenta a vontade que tem de pintar o retrato de Giulia, ela se recusa terminantemente por alguma de suas superstições, e ele diz agressivamente que ela fará o que ele mandar, dando-lhe um tapa. Passado o susto, Giulia abre seu sorriso lupino e dá uma gargalhada cheia de maldade, sinalizando que era só do que precisava. Para piorar, o menino está na porta, viu a mãe levando o tapa e começa a chorar. Ela vai até ele na maior tranqüilidade e resolve aproveitar a banheira, de onde Levi sai ás pressas, e dá um banho no menino.

"Tão logo viu e sentiu minhas mãos erguidas, o rosto de Giulia se cobriu de uma chama
de felicidade e ela abriu um sorriso alegre, mostrando seus dentes de lobo"...

Giulia Venere, retratada por Carlo Levi
Uma interpretação soberba de Papas. Desde a empolgação e o humor delicioso com que fala dos "monachicchi" até suas gargalhadas hilariantes, divertidas, contagiosas, cheias do perverso prazer a que alude Levi. Conforme assinalei, a cena foi amarrada por Guerra a partir de várias referências do escritor, mas ele não inventa nada. Levi diz, textualmente:

Giulia estava disposta a fazer qualquer serviço para mim, e todavia, quando pedi a ela que posasse para um retrato, se recusava como se fosse algo impossível. Entendi que sua repugnância tinha uma razão mágica, e isso me confirmou. (...) Também entendi que para vencer seu temor mágico, teria que usar magia mais forte que o medo; e não poderia ser outra senão um poder direto e superior: a violência. Então ameacei bater nela, e cheguei a fazê-lo, e talvez até algo mais. (...) Tão logo viu e sentiu minhas mãos erguidas, o rosto de Giulia se cobriu de uma chama de felicidade e ela abriu um sorriso alegre, mostrando seus dentes de lobo. Como eu previ, nada era mais desejável para ela do que ser dominada por uma força absoluta. Tornando-se dócil como um cordeiro, Giulia posou com paciência e, em face a argumentos indiscutíveis de poder, esqueceu-se de seus medos naturais e bem justificados.

Giulia e Carmelo, retratados por Levi
Infelizmente Rosi não incluiu no filme as cenas de Giulia posando para Levi. Em dado momento, após a cena da banheira, ela avisa que não poderá mais trabalhar para o pintor, provavelmente por ciúme do barbeiro, que é seu amante, e ela não aparece mais. Rosi se concentrou em situações que mostram Levi sendo obrigado a explicar seus posicionamentos políticos, sempre libertários e anti-bélicos, o que o colocava em rota de colisão com seus guardiões, ufanistas que vibravam com os sucessos italianos na guerra com a Etiópia. Por conseguinte, o personagem de Giulia fica um pouco claudicante, sem destino dentro do contexto do filme. E do livro também. Não se concebe que alguém a quem Levi dedicou páginas e mais páginas, além de dois quadros, desapareça sem mais nem menos. Em todo caso, quando o filme foi lançado houve um pequeno equívoco do responsável pelo cartaz: o trabalho é muito bonito e mostra uma colagem de pinturas de Levi, tendo Volontè no meio, representando o pintor. Papas está em destaque, só que para retratá-la foi utilizado um quadro que não mostra Giulia; é, na verdade, "La madre di Salvatore Carnevale", de 1956.

"La madre di Salvatore Carnevale" (1956) e o cartaz do filme

Cristo si è fermato a Eboli é talvez o melhor filme de Rosi e mais um daqueles trabalhos exemplares de Papas. E no entanto, por alguma razão, o filme foi esnobado por todos os grandes prêmios e só ganhou o BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro (em 1983, ou seja, nem mesmo em seu ano de lançamento) e alguns prêmios menores.

Edições recentes do livro de Carlo Levi trazem ninguém menos do que Irene Papas caracterizada como Giulia, na capa. Prova da excelência contínua de seu trabalho, de seu talento transcendental, e de que uma performance superior pode transformar um papel coadjuvante em símbolo não apenas de um filme, mas do livro no qual ele é baseado.


Edição recente do livro de Levi, com Papas na capa, caracterizada como Giulia
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Bibliografia:

Agradecimento especial à Larissa Maragno e Tom Anderson

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Ver também:

Ειρήνη Παπά, Eiríni Papás, Irene Papas — 2/5

Ειρήνη Παπά, Eiríni Papás, Irene Papas — 3/5


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