segunda-feira, 14 de março de 2011

Luiz Antonio Fleury Filho fala de Quércia, Tancredo e Ulysses


Luiz Antonio Fleury Filho em 06/09/1990
(Foto de Bernardo Schmidt)
Entrevistei Luiz Antonio Fleury Filho em 9 de novembro de 2001. O ex-governador (1991/1995) teve uma convivência pequena mas intensa com Jânio durante seu período como secretário de Segurança e governador. Mais importante: Fleury foi o último candidato a quem Jânio publicamente apoiou para qualquer cargo. Pensava eu que esta seria uma conversa rápida e objetiva. Ledo engano. Nossa prosa durou SETE HORAS. O Fleury que fui rever (o primeiro encontro que tive com ele foi em 1990) em seu escritório paulistano de deputado federal, eleito três anos antes, não era simplesmente um ex-governador, mas um conversador excepcional, cativante, e um político cheio de histórias divertidas e lembranças relevantes que vão de Tancredo a Brizola, passando por Ulysses, Montoro, Jânio e Orestes Quércia. Nosso encontro, que começou na hora do almoço e só foi terminar – a contra-gosto de ambas as partes – depois das nove, teve uma primeira parte dedicada a Jânio, mas as impressões de Fleury sobre o ex-presidente publicarei em momento oportuno, na biografia que estou escrevendo do homem da vassoura. Liquidado esse assunto, não me furtei de perguntar ao ex-governador a respeito de assuntos como sua convivência com Ulysses, Tancredo e o rompimento com seu padrinho político, Orestes Quércia. Fleury respondeu a tudo com tranqüilidade e seu depoimento se reveste de importância ainda maior, com a passagem do tempo e o desaparecimento de Quércia. É um documento para a história recente de São Paulo e do Brasil.
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O Rompimento com Orestes Quércia

LUIZ ANTONIO FLEURY FILHO – A última conversa que eu tive com o Quércia foi em dezembro de 94, depois dele ter perdido a eleição para presidente da república. E ele rompeu comigo em fevereiro de 95, eu estava viajando, no enterro do Roberto Rolemberg, que era presidente estadual do PMDB, meu grande amigo, e que faleceu, e no enterro o Quércia me culpou e jogou isso pro PMDB, precisava culpar alguém pela derrota fragorosa que ele teve, ficou atrás do Enéas e me culpou, dizendo que eu não tinha dado a ele o apoio que ele merecia.

Aí, fazendo um retrospecto, voltando ao passado, em primeiro lugar o Quércia jamais teve interferência no meu governo. Eu adotei uma posição, que foi uma posição até que me custou algumas inimizades, que era a de que ninguém continuaria exercendo a mesma função que exercia no governo Quércia, então eu mudei o secretariado completamente. Alguns secretários permaneceram. Exemplo: Cláudio Alvarenga, que eu havia indicado pra Secretaria de Governo, permaneceu na Secretaria de Governo, e a Alda Marco Antônio que estava indo muito bem na Secretaria do Menor, continuou na Secretaria do Menor, fazendo um excelente trabalho. Todos os outros secretários não permaneceram nos seus cargos. Isso me custou, como eu disse, algumas incompreensões de amigos meus. Por exemplo, eu indiquei o Rubens Approbato Machado pra ser Secretário da Justiça do Quércia. Então o Rubens me ajudou muito na campanha, e tudo, é meu grande amigo até hoje mas ficou um pouco magoado de não ter continuado, mas eu tinha que adotar um critério pra não cometer o erro que o [Celso] Pitta cometeu, de não mudar nenhum secretário, e aí ou você muda todos ou você não muda ninguém e fica com pecha de boneco. Então eu optei por mudar todo mundo. Alguns secretários que tiveram um trabalho muito grande eu remanejei, por exemplo o Frederico Mazzucchelli, do Planejamento, que era um homem ligado ao Almino [Afonso], inclusive, no início, que eu pus na Fazenda. O [Eduardo] Maia [de Castro Ferraz], que era presidente do Baneser, eu pus no Planejamento, era uma equipe com quem eu evidentemente convivia no PMDB, e o Fernando Morais, que era secretário da Cultura, eu coloquei como secretário da Educação, houve alguns acertos, mas vários eu realmente não aproveitei, o que, repetindo, causou alguns estremecimentos.

O Quércia, na verdade, no início, me pediu um lugar pro [José] Machado [de Campos Filho], que eu coloquei como secretário da Habitação, um lugar para o Alfredinho, primo dele, que eu coloquei como presidente da Eletropaulo, e um lugar para o Antonio Sérgio, que era presidente do metrô, e ele me pediu pra que eu colocasse como secretário, e eu o coloquei como secretário dos Transportes Metropolitanos. Antes de eu tomar posse estourou uma denúncia contra o Antonio Sérgio, e eu adotei um procedimento no meu governo, que era o de que se surgisse uma denúncia com algum tipo de substância, eu afastava o secretário, ou o diretor, seja lá quem fosse, até que se esclarecesse o fato. Se o esclarecimento fosse positivo, ótimo, voltava, senão, não voltava; o Antonio Sérgio foi antes da posse, então eu o desconvidei. Logo depois da minha posse, surgiram as denúncias contra o Alfredinho e eu o afastei da presidência da Eletropaulo. Eu acho que ali, ali, o Quércia começou a verificar que eu teria vôo próprio, e acho que ali ele já começou a bolar como é que ele ia romper comigo. Quando saíram os mais notórios quercistas do primeiro escalão – porque o Quércia ficou oito anos no governo, quatro como vice-governador, quatro como governador – e ele tinha gente do primeiro ao décimo escalão, muitas iniciativas eu vi que patinavam em razão disso, e isso acabou me dificultando, o final do governo, principalmente.

O meu secretário da justiça, no início foi o Manoel Alceu Afonso Ferreira, que era advogado e é até hoje, advogado do Estadão, e o Quércia sempre foi um tradicional inimigo do Estadão, então ele também não gostou quando eu escolhi o Manoel Alceu pra ser meu secretário, que eu escolhi porque é extremamente competente e fez um grande trabalho. E logo quando eu assumi chega uma lista pra nomeação do Tribunal de Alçada, e encabeçando a lista estava o Aloísio Toledo César, que era articulista do Estadão, e de quem o Quércia tinha verdadeiro ódio, só que o Aloísio era meu amigo, era um grande amigo do Cláudio Alvarenga também, e acima de tudo era um sujeito extremamente competente, como advogado e estava encabeçando a lista, e eu sempre nomeei o primeiro da lista, pra tudo. Pra reitor, pra procurador geral, pra pelo quinto constitucional, eu só quebrei essa regra por duas vezes, que foram casos que eu tinha que quebrar, que eu posso até te contar daqui a pouco, mas a regra era essa: veio em primeiro lugar na lista, está nomeado. Até amigos meus, que entraram em lista e que eu não nomeei ficaram bravos comigo mas eu tinha um critério e eu aprendi na minha vida que quando você tem um critério, tudo fica mais fácil, porque você tem só que defender o seu critério, você não tem que defender caso a caso. Eu tinha um critério. O primeiro da lista está nomeado. O Aloísio aparece na lista, o Quércia me liga pedindo pra não nomear e eu nomeei o Aloísio. Mas eu nunca deixei de apoiá-lo, a relação continuava tranqüila, pelo menos de minha parte, conversávamos, tudo, não havia nenhum mal-estar, nenhuma rusga, etc.

Com Orestes Quércia, 1990
Aí, por circunstâncias da vida, eu começo a me destacar. Durante todo o meu governo, até o final do governo, inclusive, eu sempre estive entre os cinco governadores melhor avaliados do país, e eu até brincava muito com o Ciro [Gomes], porque o Ciro sempre vinha como o primeiro, o segundo colocado, só que a população do Ceará correspondia na época ao número de alunos que eu tinha matriculado na rede pública, seis milhões e duzentos mil habitantes, era o número de alunos que eu tinha na rede pública. E é diferente você estar entre os cinco melhores governadores do país tendo uma mídia como a mídia de São Paulo, que é extremamente exigente, geralmente é contra o governo, etc., e eu sempre estive entre os cinco primeiros, e saí do governo, o último Datafolha do meu governo, é de 23 de dezembro de 94, me dá 78% de aprovação. O Quércia é um homem profundamente inseguro. É uma coisa interessante. Ele é desconfiado – isso eu estou analisando depois de que tudo aconteceu – ele era presidente nacional do partido, e de repente eu passo a ser dentro do partido, uma referência, e o nome mais forte pra uma candidatura à presidência da república.

Então o que acontece: em 93, final de 92, início de 93, ele era presidente nacional do PMDB, e começa uma articulação dentro do PMDB, liderada pelo Pedro Simon, no sentido de que o presidente não fosse reeleito. E esse movimento começa, e essa tese começa a ganhar corpo dentro do PMDB. E o Quércia naquele momento percebeu que ele provavelmente perderia a convenção nacional e renunciou ao mandato de presidente nacional do PMDB. E aí ele esperou; eu estava em San Diego, na Califórnia, participando de uma assembléia, quando isso aconteceu, e ele publicou uma carta dizendo que havia uma série de traidores que estavam trabalhando contra ele, e que por essa razão ele estava renunciando à presidência do PMDB, e assumindo no lugar dele o [José] Fogaça, que era o primeiro vice-presidente. Naquele momento eu deveria ter rompido com ele. Aquele foi um momento em que se eu estivesse no Brasil eu provavelmente teria rompido com ele, mas eu estava fora, eu estava no exterior, e o meu pessoal que estava aqui, analisando os fatos, achou que se eu rompesse com ele eu estaria colocando a carapuça de traidor. Mas ele causou um prejuízo brutal, porque ao acusar um “traidor” e não identificar ninguém, ele acabou colocando essa pecha em todo mundo, por exemplo, o Jarbas Vasconcelos, em Pernambuco, passou a ser chamado de traidor, o Pedro Simon, no Rio Grande do Sul, os adversários, o Íris Rezende passou a ser chamado de traidor, eu passei a ser chamado de traidor, porque como ele generalizou e não deu nomes, todo mundo passou a ser chamado de traidor. E aí, alguns secretários meus ligados a ele começam também um movimento e dão algumas declarações me criticando, dizendo que eu deveria ter defendido o Quércia, e tal, aí eu demiti todo o pessoal que teve esse tipo de atitude, fiz uma reformulação do secretariado, etc. e tal.

Minha posição sobre a sucessão era a seguinte: eu disse a ele que ele tinha pouca chance. Falei pra ele, “eu estou do teu lado, agora, eu acho que você tem pouca chance. Eu acho que seria melhor você escolher alguém e você fazer o sucessor”, até porque, eu acho que foi um erro dele ter saído do governo do estado e tirado o Dr. Ulysses da presidência do PMDB, foi um negócio que pegou pesado. Eu acho que ele errou, porque ele ficou exposto demais e começou toda aquela campanha contra ele.

Aí eu faço a reformulação, o episódio foi superado, nós continuamos tendo um bom relacionamento, no plano pessoal não houve nenhuma alteração de comportamento, e aí quando chega em 94, começa um movimento encabeçado pelos senadores do partido para que eu fosse o candidato a presidente, e inclusive o [Antônio] Brito, que era ministro do Itamar, estava muito bem, o Brito poderia ter sido candidato, mas resolveu ser candidato a governador do Rio Grande do Sul. E eu tive uma conversa com o Brito, e ele “Não, Fleury, eu vou ser candidato lá no Rio Grande do Sul, o candidato a presidente tem que ser você”, havia toda uma movimentação, e eu estava realmente muito bem em termos nacionais, e poderia ter sido um candidato muito forte a presidente da república. Aí o Quércia resolve se lançar candidato a presidente e precipita toda a decisão do PMDB. E aí me coube o papel, pela segunda vez, eu mando fazer uma pesquisa em fevereiro de 94 e mostro pra ele que ele ia ficar atrás do Enéas. Nós já tínhamos uma pesquisa que mostrava isso. Eu falei pra ele “Olha, eu se fosse você saía candidato a governador de São Paulo”, mas ele insistiu em ser o candidato, e ele tinha força dentro do partido e acabou sendo o candidato a presidente, eu o apoiei, mas foi um ano em que as regras estabelecidas para a campanha impediam que aparecesse na televisão outra pessoa que não fosse o candidato, e também impedia a divulgação de cenas externas. Eu o apoiei para presidente da república, fiz campanha, levei a candidatura até o final, só que ele precisava achar uma desculpa política pro fracasso, porque uma coisa que a gente aprende na vida pública, é que você pode ter uma derrota eleitoral, isso é normal, faz parte da vida, agora você não pode ter uma derrota política. O Quércia teve uma derrota política em 1994, porque ele ficou atrás do Enéas. Ninguém votou nele. Ele teve menos votos em São Paulo do que o Barros Munhoz [candidato derrotado do PMDB ao governo].

Foi constrangedor, então ele tinha que culpar alguém, e uma coisa é inegável: o Quércia manteve e mantém até hoje o controle do PMDB de São Paulo, tanto que ganhou do Michel [Temer] agora, então ele jogou para o partido que tinha sido derrotado por minha causa. Que na verdade eu não o teria apoiado como ele precisava ser apoiado. E foi quando eu estava no enterro do Roberto Rolemberg que ele fez essa declaração, e aí usou uma frase que o [Roberto] Duailibi até usou no livro dele, que em relação a mim ele era o culpado. E aí ele deu uma entrevista pro Juca Kfouri, onde ele disse que eu o havia traído na eleição de 94. Quando eu cheguei eu procurei o Juca, não quis me manifestar sobre a entrevista em Jales, no enterro do Rolemberg, mas procurei o Juca, e falei pro Juca que queria dar uma entrevista. Aí dei uma entrevista e bati muito forte. Pesado. Eu confesso a você que eu estava muito calmo na entrevista, mas aí o Juca pôs no ar o Quércia falando, e aí eu disse aquilo que eu realmente pensava. Foi mais ou menos assim, eu vou repetir porque isso é público, você pode usar, inclusive, pode procurar nos arquivos que não tem problema, mas foi mais ou menos da seguinte maneira: que eu estranhava que ele me chamasse de traidor, porque se eu era um traidor, por que ele esperou eu sair do governo pra romper comigo, antes de mais nada? E que na verdade a vida do Quércia era uma vida de traição. Por quê? Porque em 1982 ele traiu o Montoro e o Covas, porque ele havia concordado com o Covas pra vice e por trás articulou para ser vice do Montoro, então traiu os dois. Depois em 85 ele traiu o Fernando Henrique, porque disse que apoiava o Fernando Henrique e por baixo ele apoiou o Jânio pra ser prefeito de São Paulo. Depois, em 89 ele publicamente disse que apoiava o Dr. Ulysses, mas de todo o secretariado dele, só eu e mais um ou dois secretários é que fizemos a campanha do Dr. Ulysses em São Paulo, e eu não vi o Quércia se mexer pelo Dr. Ulysses, ou cobrar de algum secretário apoio ao Dr. Ulysses em momento algum. O Quércia nunca tocou nesse assunto. Ficou fora.

Depois, na minha eleição eu não era candidato dele. Eu só fui candidato dele porque pragmaticamente eu era capaz de ganhar a eleição, tanto que a equipe que ele colocou aqui não era a equipe nº 1 do Chico Santa Rita, era a equipe nº 2. Na verdade eu não conheço a equipe nº1 mas a 2 se mostrou muito competente e eu adoro a equipe que trabalhou comigo, são meus amigos até hoje. Isso é outra coisa que eu aprendi: numa candidatura majoritária, primeira condição pra você ganhar uma eleição é que a tua equipe se apaixone pela tua candidatura, e esse pessoal se apaixonou pela minha candidatura.

Quércia, José Aristodemo Pinotti e Fleury na campanha municipal de Campinas em 1992
Sobre a traição dele ao Almino [vice de Quércia, preterido na escolha do candidato ao governo] eu nem cheguei a falar porque tinha um outro aspecto. Uma coisa que chamou a atenção durante a minha campanha é que eu parei a campanha três dias porque eu vi que o Dr. Ulysses não seria reeleito deputado federal. Aí eu chamei o Luís Carlos Santos – e nós tínhamos pesquisas que mostravam que o Luís Carlos ia estourar em matéria de voto – pedi ao Luís Carlos que cedesse alguns prefeitos que estavam apoiando ele pra apoiar o Dr. Ulysses, peguei o Mauro Bragatto, que era na época candidato a estadual, pus o Dr. Ulysses debaixo das asas do Mauro Bragatto, o Mauro Bragatto percorreu toda a região de Presidente Prudente com o Dr. Ulysses, e eu não entendia porque o Quércia não apoiava o Dr. Ulysses, cheguei a conversar com o Quércia, falei “Quércia, nós precisamos ajudar o Dr. Ulysses porque ele não vai ser eleito, é o presidente nacional do partido”, e depois eu entendi que ele queria ser o presidente nacional, e ele já estava traindo o Dr. Ulysses. Se o Dr. Ulysses não se elegesse deputado, era mais fácil pra ele assumir a presidência do partido.

Depois ele traiu o partido, em 94, quando, sabendo que ia ficar atrás do Enéas – porque eu mostrei isso a ele em fevereiro – mesmo assim ele levou o partido pra essa aventura, que foi a candidatura dele, e praticamente foi o momento em que o PMDB começa a perder substância nacional. E não é só isso; ele traiu o [Alberto] Goldman. O Goldman, que era o defensor dele dentro do partido pra todas as horas, e o Goldman mudou de partido por causa dele. Traiu o Aloysio [Nunes Ferreira], que saiu do PMDB por causa do Quércia, e traiu o [José Aristodemo] Pinotti. Em 95, o Pinotti estava se preparando pra ser candidato novamente a prefeito de Campinas. O Quércia fez o Pinotti mudar o título dele pra São Paulo, dizendo que ele ia ser candidato a prefeito em São Paulo e lançou o [João Oswaldo] Leiva. Lembra? Que ficavam os dois, porque o Pinotti entrou na Justiça, uma hora aparecia o Pinotti, outra hora aparecia o Leiva, lembra? Quer dizer, ele traiu o homem que trouxe ao mundo todos os filhos dele, que era o Pinotti, e que foi sócio dele, então quem é o traidor? Coloquei tudo no programa. Então quem é o traidor? E me traiu também, porque em 94 eu era o candidato preferido pra presidência da república, e ele impediu a minha candidatura. Então, quem é o traidor da história?

Com Fleury e sua esposa Ika, no dia do primeiro turno da eleição, em 03/10/1990

Mas aí eu continuei, porque aí o Juca me pergunta: “Mas a que o Sr. atribui isso?” Eu falei “olha, na verdade, eu acho que de certa forma eu represento tudo aquilo que o Quércia sempre sonhou ser e nunca conseguiu. Por quê? Pra começar eu sou muito feliz comigo mesmo. Eu sou gordo, mas estou bem com a minha gordura, não preciso fazer ginástica, provar que eu sou atleta, e correr todo dia pra mostrar que eu sou viril, que eu sou macho. Não pinto o cabelo, meu cabelo é grisalho, naturalmente grisalho, nunca pintei, respeito quem pinta, mas nunca pintei. E outra coisa: eu falo inglês e francês correntemente. O Quércia está se esforçando, tem aula com um professor de inglês, é um homem esforçado e dedicado, um dia ele vai falar inglês. E outra coisa: eu tenho respeito intelectual das pessoas. As pessoas me respeitam intelectualmente. Eu sou professor universitário, sou promotor de justiça, o Quércia fez dois concursos pra promotor e não passou. Eu só fiz um e passei no primeiro. E tenho o respeito intelectual das pessoas. No meio universitário eu sou respeitado. Eu faço palestra, eu posso ir em qualquer universidade fazer palestra – podem até discordar das minhas idéias, mas eu sou respeitado como professor universitário, e como intelectual – tenho livros escritos e publicados”, e terminei falando o seguinte: “Eu ando de avião de carreira e nunca fui vaiado”.

Quércia, em 06/09/1990
(Foto de Bernardo Schmidt)

Bom, eu soube que ele ficou uma fera, aí deu uma entrevista pra Istoé me chamando de canalha, aí já partiu pra baixaria. E na minha campanha pra deputado houve um conluio, e não foi um conluio acidental, houve inclusive contatos, que eu sei que aconteceram, entre o Maluf, o Quércia e o Covas, pra que eu não me elegesse. Os três eram candidatos a governador e me sabotavam, o meu partido se aliou ao Covas, o PTB, e eu apareci quatro vezes no programa de televisão porque eu tive que recorrer à justiça. Isso agora, em 98. Eu deixei os últimos 15 dias pra colocar outdoor com o meu nome. O meu outdoor ficou exatamente 24 horas. O dono da central de outdoor chegou no meu escritório e devolveu o cheque, dizendo “olha, eu recebi orientação do palácio, que se continuar o teu outdoor, nunca mais eu faço campanha nenhuma”, me devolveu o dinheiro. Foi violenta, a coisa. Foi uma campanha violentíssima, e até desleal porque eu não podia aparecer na televisão. Eu entrei com direito de resposta contra os três e foi indeferido dizendo que eu não era candidato a governador, então minha eleição foi uma eleição muito complicada. Eu tive dificuldade de recursos, até, porque o governo falou: “Quem ajudar o Fleury não recebe até o final do governo”. Foi brava a coisa. Tive 70 mil votos ali, e muita gente que eu encontrei depois falou “eu nem sabia que você era candidato”.


Eu acho que o Quércia foi um bom governador de São Paulo. Ele tem as suas falhas, mas há que se reconhecer que ele fez um bom governo. E saiu com uma aprovação excepcional. Eu fui muito leal ao Quércia, paguei e pago até hoje um preço muito alto por essa lealdade que eu tive a ele. E eu acho o Quércia um sujeito determinado, inteligente, dedicado à família, ele protege a família dele como um leão. São qualidades que ele tem, eu acho que é um sujeito “ladino” no bom sentido da palavra. O defeito dele em relação a mim é que ele não gosta de sombra, um problema político que acabou indo pro lado pessoal porque ele levou para o lado pessoal. Mas eu tenho que reconhecer que ele fez um bom governo, até porque eu fiz parte do governo.

Tancredo

Eu fui presidente da Confederação Nacional do Ministério Público, toda essa estrutura moderna do ministério público, eu sou um dos responsáveis por ela. E uma característica pessoal minha que todo mundo fala é a coragem. Até uma certa ousadia, vai além da coragem, um certo destemor, no bom sentido, não em termos físicos, mas em termos de atitude. Aí o Tancredo, governador de Minas, começa a ser cogitado pra ser candidato a presidente da república, começou a ser falado o nome dele. E foi um pouco depois do episódio das Diretas, do qual eu participei diretamente, sem trocadilho. A primeira entidade nacional a apoiar a campanha das diretas foi exatamente a Confederação Nacional do Ministério Público, e eu era presidente, declaramos apoio, e tal, o Montoro foi um dos grandes responsáveis pela campanha das Diretas, o Dr. Ulysses, Tancredo, Teotônio, Brizola teve uma participação importante...

Bom, aí surge uma greve do Ministério Público de Minas Gerais. Uma coisa inédita, foi a primeira vez que o Ministério Público entrou em greve, e o pessoal de Minas, e o presidente da associação do Ministério Público de lá perde a condição de diálogo, a greve radicaliza-se ao extremo. O pessoal de Minas então me liga, como presidente da confederação, pra tentar fazer uma intermediação junto ao governador pra reaproximar as partes. Eu entro em contato com o pessoal de Minas e me coloco à disposição, “eu vou até aí falar”, e tal, e fui conversar com o Tancredo, que era o governador. Quem, aliás, fez a intermediação para que o encontro acontecesse foi o presidente da assembléia de então, que era do PMDB, o Genésio Bernardino, depois foi deputado federal, e tudo, depois não conseguiu a reeleição. Eu tinha 35 anos e era o líder nacional do Ministério Público. Aí eu vou conversar com o Tancredo. E o Dr. Tancredo me recebe, e eu me recordo bem que quando nós entramos tinha várias outras pessoas, aí ele deu um sinal, todo mundo sai da sala. Ficamos só nós dois. Então foi uma conversa assim como nós dois estamos, téte-a-téte. E o Dr. Tancredo tinha uma característica que era muito interessante; ele era um homem suave no trato, agradabilíssimo na conversa, mas que tinha plena consciência da sua autoridade e a exercia na sua plenitude. E não abria mão da sua autoridade. Aliás, é uma característica do Dr. Tancredo, do Jânio, só que o Jânio tinha gestos espetaculares, o Tancredo não, o Tancredo era exatamente o contrário, mas os dois tinham essa consciência de autoridade, que é uma coisa importante. Absolutamente cativantes.

Fleury, na época em que trabalhava
 no Ministério Público

Mas eu me recordo, o Dr. Tancredo, nós conversamos, tal, e ele me disse o seguinte: “Presidente, o Sr. diga a seus colegas que eu não posso abrir mão da minha autoridade. No momento em que eles voltarem ao trabalho, no mesmo dia eu recebo uma delegação. E aí nós retomamos a negociação, acho que a ponderação é justa, mas se eles não retornarem ao trabalho, sinto muito mas eu não vou recebê-los”. Eu respondi “acho que o Sr. tem razão, promotor não devia fazer greve, eu penso como o Sr., e eu vou lá defender isso na assembléia geral, estão todos me aguardando, tem uma assembléia geral, e eu vou defender que eles retornem ao trabalho e virei com eles aqui”. Ele falou: “Perfeitamente”. Aí eu virei pra ele, falei assim “Dr. Tancredo, o Sr. foi promotor”, o primeiro cargo público do Dr. Tancredo foi promotor de São João Del-Rey, eu disse a ele, “e eu queria que a minha entidade fosse a primeira a apoiar o Sr. para a presidência da república”. Ele me responde “mas eu não sou candidato”. Eu falei “tudo bem, Dr. Tancredo, mas vão me perguntar sobre isso aí fora”. E ele “bom, meu filho, se perguntarem pra você, você diga que apóia”, e deu uma risadinha muito sutil. Eu entendi o recado, evidentemente, e depois eu até perguntei pra ele “mas Dr. Tancredo, porque é que o Sr. fez questão de conversarmos só nós dois?”, ele falou “Dr. Fleury, conversa de mais de dois é comício”. Ele era um homem genial.

Tancredo, na juventude
Aí eu saio e vem toda a imprensa em cima de mim. Eu digo “Bom, eu vim aqui por duas razões. Primeira: pedir ao Dr. Tancredo que receba uma delegação do Ministério Público, pra acabar com esse impasse, e tal, eu vou agora pra assembléia geral, conversar com os meus colegas, espero que eles voltem ao trabalho e que as coisas se encaminhem para uma solução, e também pra declarar ao Dr. Tancredo o apoio da Confederação Nacional do Ministério Público, que eu represento como presidente, à candidatura dele à presidência da república”. “Mas ele é candidato?”, perguntaram, falei “o Dr. Tancredo falou que não é, mas se ele for ele terá o nosso apoio”. Aquilo foi a manchete de todos os jornais, em Minas, a Confederação Nacional do Ministério Público foi a primeira entidade a apoiá-lo. Eu não tinha a autorização nem da minha diretoria. Aí eu cheguei e expus aos meus colegas a idéia, todos eles concordaram se eu fosse junto, eu dormi em Minas Gerais, eles retornaram ao trabalho no dia seguinte e à tarde o Dr. Tancredo nos recebeu. Se reiniciou a negociação e ele acabou dando o reajuste que eles estavam pleiteando. Foi a primeira organização da sociedade civil, vamos dizer assim, que apoiou o Tancredo, o que era uma aposta altamente arriscada porque era o momento em que o Maluf era o favorito, ainda, e ele era o favorito porque ele era o candidato do establishment, vamos dizer assim, daquele momento, e depois virou. E eu não tinha apoio da minha diretoria, não tinha conversado com ninguém, fui lá e banquei. Reuniu-se a diretoria, porque começou a pipocar telefonema de todo lado, tinha muita gente – como por exemplo, o pessoal do Rio Grande do Sul – que era Arena, até debaixo d’água. Aí o pessoal do Rio Grande do Sul, “pô, como é que você faz isso?” “Você compromete!” “E se ganhar Maluf, como é que a gente fica?”, e tal, mas na política você tem que correr determinados riscos.

Depois nós fizemos uma reunião de diretoria em que a diretoria resolveu se solidarizar com a minha atitude, e aí fizemos em Brasília uma reunião que deveria ter uns 400 promotores do Brasil inteiro, de apoio à candidatura do Dr. Tancredo no Hotel Nacional. Ele compareceu e eu fiz um discurso entregando pra ele as reivindicações da categoria, e ele fez um discurso de improviso, porque o Dr. Tancredo tinha isso: ele falava muito bem de improviso, mas se preparava antes. Eu tive três ou quatro conversas com ele pra dizer o que a gente queria ouvir. E ele foi lá e fez um discurso que foi aplaudido de pé. Ele não era um orador empolgante, mas ele era da velha guarda, que dava gosto de você ouvir pelo conteúdo, nem tanto pela eloqüência, muito mais pelo conteúdo. Ele era muito coerente. O Jânio, por exemplo, era um orador primoroso, no gestual, na forma de falar, ele era envolvente, era um orador extremamente envolvente, o Dr. Tancredo era um orador mais racional. Tive então a oportunidade de conhecer bem o Dr. Tancredo. Ele era brilhante. Não demonstrava nenhum sinal de senilidade, estava em grande forma.

Ulysses

Eu também comecei a me aproximar do Dr. Ulysses na época das Diretas, e depois, quando eu fui presidente da Confederação, que foi a partir de 83, eu tive uma vida que era quase a vida de deputado, eu ia pra Brasília praticamente toda semana, porque já vislumbrava que nós íamos chegar num momento de fazer uma nova constituição e eu queria que quando isso acontecesse as idéias sobre o Ministério Público já estivessem cristalizadas dentro dos parlamentares, e isso acabou acontecendo. Graças a Deus o plano deu certo. Então eu tinha muito contato e era muito ligado ao PMDB, um contato muito bom com o Dr. Ulysses. Depois, quando eu fui candidato a governador, houve esse episódio no final da campanha, que eu ajudei o Dr. Ulysses. Ele foi o último, em matéria de votação, no PMDB. Ele passou raspando. E o Dr. Ulysses sempre soube que eu não era favorável à tese do Quércia ser presidente nacional do partido. Por duas razões: primeiro porque eu achava que o Quércia ia se expor desnecessariamente, e segundo porque o Dr. Ulysses queria continuar como presidente, eu sabia disso. Cheguei a sustentar essa idéia junto ao grupo mais próximo do Quércia, e foi mal-recebida, evidentemente, eu sempre achei que o Quércia deveria manter o Dr. Ulysses na presidência do PMDB, e o Dr. Ulysses faria a articulação para ele ser candidato a presidente. E não ele ficar na presidência, porque iria se expor e poderia se desgastar, como acabou se desgastando.

Bom, aí o Dr. Ulysses deixou a presidência do partido, e o discurso dele na despedida, eu tinha na minha gaveta, quando eu fui governador, e na mudança pra esta casa se extraviou, estou querendo ver se eu acho, porque é uma das peças de oratória mais bonitas que eu já li, tem um trecho que ele diz o seguinte, “daqui pra frente, volto à planície, tiro a farda de general e visto a farda de combatente. Mas uma coisa eu quero deixar bem claro: eu não vou morrer de pijama”. É um discurso lindo, lindo, lindo, uma das peças literárias mais bonitas... o Oswaldo Manicalli deve ter isso, que era o fiel escudeiro dele, é uma peça de oratória belíssima. O Dr. Ulysses não era um grande orador, não era bom de palanque, não era um sujeito de fazer vibrar multidão, mas ele fazia uso da palavra como poucos, os discursos dele são muito densos, têm muito conteúdo, ele não era um sujeito apelativo.

Fleury e Ulysses
Aí aconteceu o seguinte: eu, toda segunda-feira, recebia os deputados federais, toda terça-feira, os deputados estaduais. Quando o Dr. Ulysses deixa a presidência do partido, na primeira segunda-feira que eu estava atendendo deputados federais – eu atendia por ordem de chegada – eu comecei a atender, e tal, e aí quando foi por volta de uma hora da tarde eu atendi o último, que era o Dr. Ulysses. Quando ele entrou eu pergunto “Dr. Ulysses, mas o Sr. está aí desde que horas?”, ele respondeu “Ah, eu cheguei às nove”. Aí eu chamei o oficial de gabinete e falei “Olha, eu vou atender os deputados federais toda segunda-feira, mas o Dr. Ulysses eu atendo na hora que ele chegar. O Dr. Ulysses não espera na sala, ele vai entrar”. E pedi desculpas a ele. Aí levei ele pra almoçar, ele almoçou comigo. Conversamos, tal, ele me chamava de “Flêrrí”, falava com a pronúncia afrancesada, e passou a ir às tardes. Eu atendia os deputados pela manhã, ele ia pra Brasília às segundas-feiras à noite. Seis horas da tarde ele passava no palácio, conversava comigo, a gente se atualizava, tal, e ele pegava o avião e ia pra Brasília. Assuntos políticos, assuntos pessoais, brincadeiras, ele era um sujeito muito bem-humorado. Ele era um sujeito com aquela cara meio patibular mas era um brincalhão.

Eu tive passagens excepcionais com o Dr. Ulysses, ele era um sujeito muito disposto, especialmente pra idade dele, e quando ele foi candidato a presidente eu participei, fiz campanha pro Dr. Ulysses, inclusive gravei televisão, pedindo voto, e tal, era secretário de Segurança, estava muito bem, a segurança em São Paulo estava melhorando, e ele ficou muito grato, foi quando eu comecei a ter um contato mais próximo com ele, com a Dona Mora, com a Celina e o Tito, que eram os enteados dele, e passamos a ter um relacionamento mais próximo. E me recordo de uma reunião na casa dele em que estava se discutindo o que ele devia falar e o Miguel Reale Jr., o Miguelzinho, falando das idéias, em termos de segurança, e administração penitenciária, e falou, falou, falou e falou, aí eu falei “Dr. Ulysses, o Sr. quer ganhar a eleição, né? Fala: ‘Preso tem que trabalhar’”. Nossa, quase apanhei! Mas o Miguel e eu sempre tivemos divergências intelectuais, né? E o Miguel fez a reforma do código de 84, eu critiquei muito, eu também sou penalista, então sempre tivemos aí as nossas diferenças, mas em 89 estávamos nós dois do lado do Dr. Ulysses, foi antes dos tucanos, e tal. Aliás, diga-se de passagem, quando o PSDB foi formado, eu fui convidado pra ir pro PSDB, eu era secretário Segurança e fui convidado pelo Montoro. O Montoro me ligou, tal, tivemos uma conversa na casa dele, me convidou, ele e o Fernando Henrique, foram eles que me convidaram para ir, mas eu estava na secretaria, tinha compromissos programáticos, de lealdade, e não podia sair do partido.

Bom, depois quando eu já era governador e ele fora da presidência do partido, a gente, como eu disse, toda semana tinha uma conversa, rápida, mas tinha. Toda segunda-feira. E aí vem o episódio do Collor, e o Dr. Ulysses, no início, era frontalmente contra o impeachment, frontalmente contra. Ele dizia o seguinte: “O povo é igual ao leão. Depois que prova o gosto do sangue, da carne humana, ele não vai se contentar com um só”. E se você analisar os fatos, sem entrar no mérito, você vai ver que houve uma mudança em termos de tratamento, em relação a político, em que se generalizou, “todo político é safado”, e muita gente foi imolada no altar da moralidade sem merecer, vou dar um nome: Ibsen Pinheiro, que foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal por onze a zero. O Alceni Guerra, foi um verdadeiro linchamento. Então o Dr. Ulysses tinha muito receio disso, e eu me lembro de uma reunião, o Quércia, ele eu, exatamente pra conversar sobre isso, ele pediu que eu chamasse o Quércia para uma conversa, nós três, e ele expôs esse receio e foi quando ele usou essa expressão, e ele falou pro Quércia: “Pode ter certeza que depois do Collor, o próximo é você”. E aí aconteceu o seguinte: o Collor em determinado momento ataca o Dr. Ulysses [em uma reunião na casa do parlamentar Onaireves Moura, em que Collor usou o termo “bonifrate das forças reacionárias” para caracterizar Ulysses], chamou ele de velho, senil, e aí o Dr. Ulysses foi no Jô Soares e diz “velho sim, velhaco nunca”. E o Dr. Ulysses me liga e fala “Fleury, esse moço perdeu o juízo. Olha, não vamos pagar por aquilo que nós não fizemos”. Aí ele vai no Jô, no dia seguinte, me fala “fui convidado, vou ao Jô”, ele foi e aí o processo se precipita.

"Ao Bernardo, pesquisador incansável e 'papo' de se esquecer das horas, com os votos de sucesso do Fleury. 09/11/01"

E aí começa o processo de formação do ministério do Itamar. E o Dr. Ulysses e eu conversando o tempo inteiro, até que naquele feriado que ele estava na casa do Renato Archer, em Angra, eu estava em Campos do Jordão. Aí ele me ligou quando saiu o anúncio de alguns ministros. Que ele não gostou. Ele me ligou imediatamente, falou “você assistiu a televisão?”, respondi “assisti, sim, Sr.”. Ele falou “precisamos conversar! Não dá pra aceitar isso, precisamos ajudar o Itamar, acho que ele está cometendo alguns erros”. Eu respondo “tudo bem, Dr. Ulysses, como é que o Sr. quer fazer?” Isso era um sábado à noite. Ele falou “eu vou amanhã pra São Paulo, de manhã”, que era domingo, e perguntou “quando é que você volta pra São Paulo?”, eu respondo “vou amanhã cedo, também”, e ele “tá bom, então podemos conversar amanhã, no final da tarde? Porque assim eu vou segunda cedo pra Brasília, e você poderia ir à noite”. Falei “tá bom, Dr. Ulysses, tá combinado, então”. Aí no domingo de manhã, Campos amanheceu completamente nublado, não tinha teto pra decolar. Eu liguei pra ele na casa do Renato, falei “Dr. Ulysses, aqui está sem teto pra decolar, então vamos fazer o seguinte: vamos deixar nossa conversa pra amanhã cedo, em São Paulo, o Sr. podia tomar café da manhã comigo, porque eu vou no final da tarde, vou de carro, então vou chegar mais tarde. Amanhã cedo a gente conversa, aí o Sr. vai pra Brasília”. Não era nada tão urgente, mas ele estava aflito. Ele falou “não, não, eu vou pra São Paulo hoje de qualquer maneira”. Perguntei “o tempo aí tá bom?”, ele falou “aqui tá bom, tá meio nublado mas dá pra ir”. Falei “tá bom, Dr. Ulysses, então a gente se encontra amanhã, e amanhã o Sr. toma café comigo”. Ele pergunta “a que horas?”, falei “oito horas no palácio, tá bom?”, ele disse “tá bom”, “então amanhã a gente se fala, até logo”. E aí, morreu.

Essa nossa conversa foi mais ou menos oito e meia da manhã, ele acordava cedo, eu também acordo cedo, e aí quando foi no final da tarde o Oswaldo, me ligou, comunicando, e eu soube que o Severo foi junto. O Severo, que foi meu secretário de Ciência e Tecnologia. Mas enfim, o Dr. Ulysses eu te diria o seguinte: eu lamento só ter privado da intimidade dele de uma forma mais intensa por pouco tempo, porque ele era um gigante, era um homem de uma dimensão extraordinária. Acho perfeita uma frase que disseram sobre ele, não lembro mais quem foi, que ele era um homem de tamanha dimensão, que o túmulo dele só poderia ser o mar, porque qualquer cova seria pequena pra grandeza desse homem. Ele era uma figura ímpar. Era um sujeito de uma coragem, de uma inteligência, de uma capacidade de articulação... era um monstro.

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