quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rei Lear, King Lear, Korol Lir, Король Лир

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Em sentido horário: Laurence Olivier, Yuri Yarvet,
Ian Mckellen e Paul Scofield

Como admirador confesso de Olivier, nunca parei para tentar compreender exatamente o que significa o tal method acting que se disseminou pelos Estados Unidos e pela Europa nas décadas de 50 e 60, através de Stella Adler, Lee Strasberg e outros. Não senti a necessidade de saber, já que depois de ver o Henrique V de Olivier tive a certeza de que talento, voz e conhecimento profundo do papel são suficientes para uma boa interpretação. Ainda penso assim. Quando vi Luis Melo interpretando impecavelmente seu Macbeth, em 93, me veio a mesma sensação. Só que quando fui ao camarim e conversei com o querido Melo, grande foi minha surpresa quando reiterou o que Antunes já me dissera meses antes: o paradigma de interpretação shakespeariana no CPT não é Olivier – embora respeitado – e sim Paul Scofield (1922/2008), sobretudo por seu Rei Lear, filme dirigido pelo inglês Peter Brook em 1970. Lembro-me de Melo falando sobre a distinção entre o que seria um ator técnico – Olivier – e aquele onde a interpretação é resultado de um trabalho interior – Scofield. Em minha cabeça, imaginei, a diferença entre um lança-chamas, que funciona quando acionado e conforme a intensidade que se escolhe, e uma panela de pressão, em que a explosão é sempre iminente mas não acontece nunca.

Peter Brook (em foto atual) e o Lear de Scofield no teatro, em 1962

Melo, porém, sempre me pareceu muito mais um discípulo do modo físico e visceral de Olivier do que do método de inanição performática utilizado por Scofield em seus filmes, onde tudo é contido, tudo é reprimido e o menos é mais. Como não tive o privilégio de ver Scofield no teatro, limito-me forçosamente a seus trabalhos no cinema e creio que se o tal método funcionou lindamente no clássico A Man for all Seasons, que lhe deu não apenas o Tony no teatro mas o Oscar no cinema, derrapou feio no Rei Lear de Peter Brook, o qual assisti, finalmente, há alguns dias. A tarefa de analisá-lo é das mais complicadas, porque trata-se de um cult, aquele tipo de filme que na época de seu lançamento foi aniquilado pela crítica e ignorado pelo público, mas que hoje é respeitadíssimo, sabe-se lá por qual razão, e tem um fã-clube ardoroso que insiste em encontrar-lhe qualidades exatamente naquilo que o conduziu a seu fracasso. Juntarei a essa análise um comentário sobre outro Lear cinematográfico, o de Grigori Kozintsev, e dois Lears televisivos, o de Olivier e o mais recente, de Ian Mckellen. Abstenho-me de acrescentar à lista o monumental Ran, de Kurosawa, que por sua originalidade merece um post individual.

O Lear de Paul Scofield no teatro, 1962

O cartaz do Lear de Peter Brook
Peter Brook (hoje com 85 anos) é um gênio inconteste do teatro moderno, mas como cineasta é bissexto; desde 1953, fez aproximadamente 15 filmes em diferentes países e com diferentes idiomas. Nenhum deles foi um sucesso. Dirigiu o Lear de Scofield no teatro em 1962 e oito anos mais tarde resolveu levar a montagem ao cinema, mas não meramente como teatro filmado; a produção era, de fato, cinematográfica e foi toda filmada na Dinamarca. É, portanto, um Lear nórdico, onde tanto o rei quanto os súditos vestem roupas pesadas, peles grossas, e as externas são quase todas em campos cobertos de neve. Seria provavelmente a explicação para o verdadeiro urso que Scofield carrega nas costas à guisa de casaco durante as primeiras cenas. Hoje fala-se, complacentemente, em uma abordagem “minimalista” de Brook para a cenografia, o que não tem maior relevância, considerando que em quaisquer adaptações shakespearianas, o que importa é o texto. Onde o minimalismo de Brook peca é na direção dos atores e, em menor escala, na supressão arbitrária de falas do texto.

Scofield e seu casaco-urso

A primeira cena é uma tal bagunça que trunca a narrativa logo de cara. O diálogo inicial entre Gloucester e Kent sobre Edmundo é cortado; embora pareça trivial, ele é da maior importância. Gloucester refere-se à bastardia do filho na frente dele, comentando, inclusive, de maneira completamente imprópria, o prazer que teve em gerá-lo (there was good sport at his making, and the whoreson must be acknowledged). Talvez sem essa intenção, Gloucester humilha Edmundo para Kent, o que dá ensejo ao primeiro monólogo de Edmundo, pouco depois, sobre sua condição de bastardo. O filme começa com Lear prostrado em um trono que parece uma cápsula. Sua expressão é de febre ou prisão de ventre, ele fala como um moribundo e sua voz faz lembrar o Don Corleone de Marlon Brando. Nada mais equivocado. Toda a primeira cena, ou seja, a convocação solene de Lear para avisar que vai dividir seu reino em três e decidir com quem Cordélia vai se casar é para uma cerimônia festiva. O próprio critério escolhido pelo rei para definir quem levará a melhor parte das terras – o talento de cada uma das filhas para bajulá-lo – não poderia ser mais ridículo e mais indicativo da forma frívola e infantil com que o rei trata de coisas tão sérias. Não há nenhuma razão, portanto, para a gravidade inicial de Lear.

Susan Engel, Irene Worth e Anne-Lise Gabold
As filhas realizam seu festival de puxa-saquismo olhando diretamente para a câmera, solução interessante, mas que acaba no vazio quando Goneril dá seu texto como se o estivesse lendo, sem a menor modulação. A explicação de Cordélia para não bajular Lear foi cortada. Ela não expande seu ponto de vista – sure I shall never marry like my sisters, to love my father all – tocando na vaidade de Lear, ponto fraco do rei, e ele fica sem razão para a explosão que vem a seguir. A rapidez com que vai da condição de moribundo ao ódio pela filha que mais amava torna irônico e quase fora de contexto o come not between the dragon and his wrath, dito por Lear a Kent. O banimento de Kent também é cortado pela metade e o duque da Borgonha sequer aparece, privando o público do excelente diálogo entre Lear e o ambicioso duque, que se recusa a casar com a filha mais nova do rei caso ela venha sem seu prometido dote. Na seqüência, Lear aparece montando seu cavalo, às carreiras, como um jovem, num salto de 180º do moribundo que era até minutos antes.

Patrick Magee, Cyril Cusack (acima), Robert Lloyd, Ian Hogg (no meio), o Bobo de Jack MacGowan e o Lear de Scofield

Outro equívoco de Brook, a meu ver, é a inserção de legendas explicativas, como a que anuncia o disfarce de Kent e a estadia de Lear no castelo de Goneril. O texto é claríssimo e perfeitamente detalhado em todos os pontos, não sendo necessárias legendas de qualquer tipo. O elenco é bom, em sua maior parte; Irene Worth - única das três irmãs presentes na montagem teatral que reprisou seu papel na versão cinematográfica - é brilhante quando tem a oportunidade, assim como a Cordélia de Anne-Lise Gabold é competente quando não lhe cortam as falas. São um contraponto à medíocre Regan de Susan Engel. O Albânia de Cyril Cusack é bom, mas vítima da confusão do homem ingênuo e de têmpera mansa – o proverbial milky-liver’d man acusado por Goneril – com o corno abúlico, interpretação a meu ver equivocada e que retira dele qualquer dramaticidade. Patrick Magee é um ótimo Cornualha, mas Brook errou em transformar o casamento dele e de Regan em uma união sincera. Ela sofre quando ele morre, e não vejo possibilidade disso, sendo Regan tão insidiosamente cruel e desonesta. No mais, Ian Hogg e Robert Lloyd são competentes como os irmãos Edmund e Edgar. Lloyd por vezes alcança genuína dramaticidade em um papel geralmente fadado ao over acting. Segundo se diz por aí, isso se deve ao fato de que o frio que o vemos sentindo em algumas externas é frio mesmo, estando o ator praticamente nu nas geleiras dinamarquesas. Alan Webb não brilha como Gloucester (embora a cena em que perde seus olhos seja arrepiante) e Jack MacGowan faz um Bobo correto.

Há três momentos bastante memoráveis, que ocorrem quando Brook pára de inventar sobre o texto, e inventa junto ao texto. Um deles é a cena em que Lear exprobra Goneril em frente a seu séquito; a imprecação do rei tem duas partes, sendo que a primeira começa com o darkness and devils! e termina com o célebre how sharper than a serpent’s tooth it is to have a thankless child. Lear sai e volta dali a pouco para a segunda parte, onde avisa que yet I have left a daughter. No filme, Lear termina a primeira parte, faz menção de sair mas volta e vira a mesa com o jantar; ato contínuo, seus homens seguem-lhe o exemplo e provocam um quebra-quebra que destrói toda a sala. Só então ele inicia a segunda parte de sua maldição contra a filha mais velha.

Allan Webb (Gloucester) e Scofield

Em segundo, a trama de Edmundo para incriminar o irmão Edgar com o pai. Na peça, Gloucester encontra Edmundo lendo a carta supostamente escrita por Edgar e obriga o filho a entregá-la. O velho então lê e acusa o filho legítimo de traição. No filme, Edmundo esconde o pai e, num estratagema que remete ao que Iago fez com Othello, deixa a carta num batente, atrai o irmão e o induz a ler a carta em voz alta, que Gloucester ouve escondido, crendo que as palavras estão sendo ditas espontaneamente por Edgar.

Por fim, aquela que é talvez a mais engenhosa solução criada por Brook: a fuga de Lear da carroça que o leva a Dover. No texto original, Gloucester fica horrorizado com a maldade de Regan e Cornualha e resolve ajudar o rei, que está numa palhoça imunda com Kent (disfarçado de servo), o Bobo, Edgar (disfarçado de Poor Tom), e um bando de mendigos. Ciente de que Cordélia invadirá a Inglaterra com o exército francês, a fim de livrar o reino das duas irmãs celeradas, Gloucester leva Lear e o Bobo para um celeiro e dá um jeito para que o rei seja mandado a Dover. Vai até o celeiro (ato III, cena VI) e pede a Kent que se encarregue de embarcar o rei na carroça, o que é feito em seguida.

Lear: "Make no noise, make no noise; draw the curtains: so, so, so. We’ll go to supper i’ the morning. So, so, so"

Quando reaparece, Lear está sozinho em “campos próximos a Dover” (ato IV, cena VI), tem o encontro com Gloucester, já cego, e é finalmente encontrado pelos soldados de Cordélia. A maneira como chegou lá e a razão para não estar na carroça que o levaria até a filha não são claras (bem como o sumiço do Bobo, de que se falará mais à frente). Brook foi brilhante: mostrou o rei e o Bobo na carroça e aproveitou o último diálogo entre eles, que na peça ocorre ainda na palhoça, e o transformou em mote para que Lear pulasse da carroça: Make no noise, make no noise; draw the curtains: so, so, so. We’ll go to supper i’ the morning. So, so, so, ao que o Bobo responde: And I’ll go to bed at noon. Lear foge. O Bobo não aparece mais.

O cartaz original de Korol Lir

O filme teve modestíssima estréia em fevereiro de 1971, na Dinamarca. Com alguns dias de diferença, outro Rei Lear estreava, este na União Soviética. Era o Король Лир, ou Korol Lir, versão do aclamado cineasta soviético Grigori Kozintsev (1905/1973) para a tragédia do velho rei, com tradução feita em 1949 pelo escritor Boris Pasternak (1890/1960). O diretor já tinha, na época, mais de 40 anos de carreira mas só ascendera à fama internacional em 1964, com seu Hamlet, também objeto de veneração nas escolas de teatro (como o CPT) que realizaram a façanha dificílima de obter uma cópia do filme na era pré-DVD.

Kozintsev era vinho de outra pipa. Era um verdadeiro cineasta e um mestre na utilização da fotografia em preto-e-branco, artifício do qual se vale com efeito infinitamente mais contundente do que Brook. Na área da criação, aquilo que Brook arrancou a fórceps pela mutilação do texto ou pelo tom equivocadamente sombrio, Kozintsev alcançou usando simplesmente a arte. Já na primeira cena, vemos Lear mascarado, saindo às gargalhadas de um aposento, onde encontrava-se no meio da bandalheira com uma menina. Não há nada disso no texto, e no entanto a solução é perfeita para mostrar imediatamente o quilate do irresponsável que está prestes a dividir seu reino baseando-se única e exclusivamente na capacidade que as filhas terão de cobri-lo de elogios vazios.

Grigori Kozintsev
A partir daí vemos pequenos e inteligentes toques do diretor que fazem toda a diferença. O texto inicial de Lear, explicando o porquê de reunir a todos é feito por um arauto a princípio e só no meio é assumido pelo próprio rei. O rei francês, pretendente de Cordélia, tem seu tradutor simultâneo ao lado, que vai lhe soprando em francês o que dizem os presentes, cartada lapidar de Kozintsev, jamais repetida seja no teatro ou no cinema. O diálogo entre Lear e Cordélia é lento; mas não é modorrento e tedioso como no caso da exposição das filhas no filme de Brook; ele perde a velocidade e aumenta na tensão, justamente pela bomba que Cordélia está jogando no rei, ao não compactuar com sua vaidade. E de fato Lear explode e rasga o enorme mapa do reino que tem em sua frente, provocando grande efeito dramático. A cena tem um crescendo excepcional com a discussão de Lear e Kent, em cujo rosto o rei cospe, antes de bani-lo. O rei anuncia sua partida, escolhe o séquito – soldados, pajens, animais – e dirige-se ao topo do palácio pelo lado de fora, onde o povo se reúne em vigília para saber o que foi deliberado.

O Lear de Yuri Yarvet 

Tudo com o acompanhamento certeiro da magnífica trilha sonora do compositor Dmitri Shostakovich, parceiro profissional constante de Kozintsev. Lá chegando, a música arrefece, em suspense, e ele grita (em russo) uma das falas do destampatório de Lear contra Cordélia, he that makes generation messes to gorge his appetite, shall to my bosom be as well neighbour’d, pitied and relieved as thou, my sometime daughter, em uma das poucas ocasiões em que o diretor optou por interpolar falas de uma cena em outra. Aqui e ali ele encurta falas e diminui conversas. Sempre com critério cirúrgico, a fim de não deformar as cenas e contextos.

No lado negativo, Kozintsev teve a criatividade paradoxal para inventar uma cena onde se vê o rei da França e a filha mais nova de Lear se casando, às margens do palácio, mas ao mesmo tempo cortou a conversa final de Cordélia com as irmãs, bem como o diálogo seguinte entre Goneril e Regan. Não deveria tê-lo feito, já que nos dois momentos temos a explicação – a predileção de Lear por Cordélia – para a inveja fundamental das duas irmãs mais velhas. Ao invés disso, na carruagem que leva Lear e Goneril para o castelo desta, ela cobre o rei com um manto para que ele não sinta frio, num deslocado sinal de carinho filial, o que desde logo se vê que nenhuma das duas, revoltadas e secas pelo ciúme de Cordélia, tem pelo pai.

Umas das intervenções criativas mais positivas do diretor é o monólogo de Edmundo, que não ocorre com fundo neutro e sim em frente a um quadro mostrando a genealogia nobiliárquica de Gloucester, tradução cenográfica irretocável para a vergonha do personagem por sua bastardia. O elenco, como sucede no filme de Brook, também é competente em sua maioria. O estoniano Yuri Yarvet (1919/1995)era um ótimo ator, um ótimo Lear, e minha única restrição à sua performance está na forma contemplativa com que interpreta algumas das explosões de Lear, notadamente a maior de todas, quando exprobra as duas filhas e sai com o Bobo para enfrentar a tempestade. No filme, as duas comentam não haver necessidade para o séquito real (ato II, cena IV), já que elas têm seus próprios criados, e logo após Regan perguntar what need one?, elas se fecham no castelo e deixam o rei sozinho. A fala seguinte de Lear, que começa com O, reason not the need e tem seu ápice de fúria e catarse em No, you unnatural hags, Yarvet dá silencioso, pensativo, enquanto anda até a entrada do palácio.

A lindíssima Valentina Shendrikova, a Goneril
de Elza Radzina e a Regan lasciva de Galina Volchek

É bem verdade que a fantástica trilha incidental de Shostakovich, a ventania que sopra sobre os cavalos, mostrando o céu crepuscular, e o grito final de O, fool, I shall go mad!, quase redimem a cena, mas o que há é o desperdício de uma fala maravilhosa, que só Olivier soube interpretar com perfeição, como veremos no próximo Lear. Entre as filhas, Elza Radzina não brilha como Goneril, inclusive por faltar-lhe a sensualidade madura necessária para conotar o romance adulterino dela com Edmundo. Sensualidade e um ar libidinoso e devasso que sobram, contudo, em Galina Volchek, excelente como Regan. Uma das melhores cenas do filme é a morte de Cornualha, em que ela não apenas se recusa a lhe dar a mão, enquanto ele morre, como não espera sequer seu corpo esfriar para caçar Edmundo pelo palácio e transar com ele. Coroando esse festival de descaramento, Regan volta da transa com Edmundo e beija lascivamente o cadáver exposto do marido. Sacada sensacional de Kozintsev. Quanto à Valentina Shendrikova, é talvez a Cordélia mais linda da história do cinema e da TV. Nem precisaria ter feito bem seu papel – como de fato fez – sendo tão extraordinariamente bela.

No que concerne a Kent, o nível infelizmente não sobe de Brook para Kozintsev; Vladimir Yemelyanov é um Kent morno e o fiel e prestimoso escudeiro de Lear merecia alguém mais versátil. Regimantas Adomaitis (Edmundo) e Leonhard Merzin (Edgar) são bons mas não brilham. Aleksandr Vokach é um bom Cornualha, na medida em que transmite com eficiência o caráter arrogante e odioso do personagem. Donatas Banionis cai na mesma esparrela de Peter Brook; seu Albânia é um corno abúlico. Só.

Karlis Sebris e Vladimir Yemelyanov (acima), Regimantas Adomaitis e Leonhard Merzin (no meio), Aleksandr Vokach e Donatas Banionis

Karlis Sebris é fraquíssimo como Gloucester e faz pensar o que teria levado Kozintsev a escalar um ator tão medíocre para um papel de tal magnitude. Não obstante, Sebris se beneficia da inteligência do diretor, que optou por corrigir dois “erros” do texto original shakespeariano. O primeiro é a odisséia de Edgar com o pai no caminho a Dover, que no começo comove, mas na parte em que Gloucester supõe que está se jogando de um precipício mas na verdade foi enganado pelo filho e simplesmente cai no chão, sendo encontrado por um transeunte que é o próprio Edgar com outra voz, a ação cria uma barriga, como se diz no jargão teatral. Kozintsev espertamente cortou essa parte, para não prejudicar a ação. O golpe de mestre ele dá quando Lear é encontrado pelos soldados de Cordélia e ele fica novamente sozinho com o filho; no texto de Shakespeare, não vemos a morte de Gloucester e, somente depois de confrontar o irmão, Edgar conta que revelou sua identidade ao pai pouco antes deste morrer. No filme, a solução é de simplicidade magistral: em meio à caminhada a Dover, Gloucester reconhece o filho tocando-lhe o rosto, e morre de alegria logo em seguida.

Yuri Yarvet e o Bobo de Oleg Dal
O Bobo de Oleg Dal é ótimo, e seu diferencial é parecer, efetivamente, o cômico ou o palhaço de uma companhia itinerante de teatro. O artista polivalente, pau pra toda obra, que canta, dança, interpreta e é músico. Contribui para isso a solução dada por Kozintsev ao destino do Bobo, e aqui é necessário o parêntese prometido anteriormente. O Bobo do Rei Lear tem sido motivo de discussão há quatro séculos pelo fato de que na cena VI do ato III, Gloucester avisa Kent que uma carroça levará o rei a Dover para que ele encontre Cordélia; Kent, então, conduz Lear e o Bobo à tal carroça, fazendo uma recomendação específica ao Bobo: Come, help to bear thy master. Thou must not stay behind. Entretanto, essa é a última cena que conta com a presença do Bobo. Não está com Lear quando ele reaparece no ato IV e não está presente no reencontro do rei com Cordélia. Na última cena da peça (cena III, ato V), Lear diz and my poor fool is hang’d!, o que seria uma explicação clara e cristalina para o destino trágico do Bobo, talvez capturado na carroça que ia a Dover, ou quem sabe até mesmo na saída do celeiro, por homens ligados a Cornualha. Só que estudiosos em Shakespeare afirmam que o fool na fala de Lear não é uma referência ao Bobo e sim à Cordélia, já que “fool” era também uma expressão carinhosa que podia ser usada entre um pai e uma filha. Contribui para essa interpretação a célebre fala seguinte de Lear, perguntando why should a dog, a horse, a rat have life, and thou no breath at all?

O Lear de Kozintsev vê Cordélia enforcada e começa seu monólogo dirigindo-se ao povo, que assiste, horrorizado

A questão, porém, continua aberta; há diretores que somem com o Bobo, e outros que o fazem reaparecer de alguma forma. O que Kozintsev fez foi incluir o Bobo no grupinho de músicos trazidos por Cordélia para suavizar o ambiente onde Lear repousa (cena VII, ato IV), antes da conversa entre os dois. No fim do filme, vemos a última grande criação do diretor: Lear não entra com a filha nos braços, como manda a rubrica da peça. Seus tenebrosos gritos de angústia são dados enquanto ele a vê enforcada, e o monólogo you are men of stones é feito no topo do castelo, para o público que assiste horrorizado, e no período em que ela é retirada da corda e levada até ele. Morto Lear, vemos o Bobo, testemunha de tudo o que ocorreu, tocando a flauta com a música que vai encerrar o filme.

Korol Lir acabou sendo o canto do cisne de Grigori Kozintsev, que morreu dois anos depois. O filme infelizmente teve uma distribuição falha e só se tornou conhecido de fato no segundo lustro do novo século, com o advento do DVD. O mesmo, aliás, aconteceu com o Lear de Peter Brook.

Nesta e na próxima foto, o Lear prematuro de Olivier no Old Vic, em 1946

Paul Scofield e Laurence Olivier foram Lears prematuros no teatro. Scofield tinha 40 anos quando encenou seu Lear em Stratford, e Olivier tinha apenas 39 quando fez o seu no Old Vic, em 1946. Ambos tiveram, entretanto, razões bastante diferentes para encarnar o velho rei na juventude. Scofield o fez porque quis; aliás, desde os 20 anos pareceu sempre mais velho do que era. Já no caso de Olivier, há uma história por trás. Em meados da década de 40, ele e Ralph Richardson gerenciavam o Old Vic, e no fim de 45 se reuniram com John Burrel (o terceiro diretor) para discutir a temporada do ano seguinte. Olivier andava louco para fazer o papel-título da obra-prima de Edmond Rostand, Cyrano de Bergerac, que lera pouco antes, e pretendia sugeri-la na reunião. Só que havia um problema. Richardson acabara de fazer a leitura dessa peça no rádio, e Olivier sabia que quando o ator interpretava um papel na BBC, era prenúncio de uma montagem teatral desse mesmo papel na temporada seguinte. Olivier resolveu se armar para a reunião. Lembrou-se que dentre todos os papéis shakespearianos, Lear era o favorito de Ralph, e seguiu para o encontro, com o argumento ensarilhado.

Aconteceu o que se imaginava; na hora de escolher os papéis para a temporada de 46, Ralph escolheu Cyrano. Olivier, então, escolheu Lear, o que neutralizaria a possibilidade de Ralph fazê-lo, pelo menos por alguns anos. Ninguém disse mais nada e a reunião foi encerrada. No dia seguinte, foram almoçar juntos. Ralph estava visivelmente agastado. Olivier, como quem não queria nada, perguntou por que não trocavam os papéis, ele ficando com Cyrano e Ralph com Lear. Depois de uma pausa azeda, veio a resposta de Ralph: “Não!” Assim, Olivier acabou ficando preso a um Lear que não queria – não naquele momento – e Ralph fez um Cyrano que não deixou qualquer lembrança, postergando seu próprio Lear, que no fim não veio, e ele morreu sem fazê-lo (Olivier, On Acting, 1986). O Lear prematuro de Olivier teve direção do próprio e foi um sucesso inesperado. Ele conseguiu agradar crítica e público, malgrado sua juventude óbvia, impossível de ocultar e inadequada para o papel, mesmo com a tonelada de maquiagem que usou. Com efeito, eram tantas linhas pintadas em seu rosto para imitar rugas, além de uma enorme peruca de cabelos compridos, brancos – daquelas que começam na nuca e terminam nas sobrancelhas – que ele se parecia mais com uma das bruxas de Macbeth do que com Lear.

Um Lear de 39 anos e um Cyrano esquecível; o resultado
de uma picuinha entre Olivier e Ralph Richardson

Não se pode dizer que pelo resto de sua vida Olivier carregou algum tipo de frustração por ter montado seu Lear na época errada, mas quando iniciou, na década de 70, uma longa e frutífera associação profissional com a Granada, emissora britânica de TV, a vontade de remontar Lear, desta vez na televisão, começou a acossá-lo.

A oportunidade veio concretamente em 1983. Olivier estava com 76 anos, idade relativamente avançada para o papel, mas contava com a disposição e a energia necessárias para a empreitada. Sobretudo porque se encontrava em um dos períodos remissivos do câncer que aniquilara sua saúde nos últimos anos. Sob a batuta do competente Michael Elliot (1931/1984), diretor com larga experiência em montagens televisivas de Shakespeare, e sabendo no fundo da alma que aquele seria o último grande papel de sua vida, Olivier fez aquilo que tão raramente se vê entre gênios como ele: juntou o que havia de melhor no teatro inglês, cercando-se de atores e atrizes do primeiríssimo time, não fez concessões de nenhum tipo que não fossem ao talento, e realizou a mais perfeita encenação do Rei Lear de todos os tempos.

Diana Rigg (esq.) e Dorothy Tutin

Não há um único nome no elenco ao qual possa ser feita qualquer restrição. Comecemos pelas três filhas; interpretar a filha mais velha de Lear coube à veterana Dorothy Tutin, que contava com extenso currículo shakespeariano em sua vitoriosa carreira. Tutin e Olivier, aliás, completavam em 1983 exatos 30 anos de sua primeira colaboração profissional, o filme The Beggar’s Opera, que curiosamente foi a estréia cinematográfica de ninguém menos do que Peter Brook. Sua Goneril é exatamente o que Shakespeare descreveu: agressiva, voluntariosa e mal-comida (por Albânia, bem-entendido, já que é amante de Edmundo e, provavelmente, de seu criado Oswald), sem um pingo de respeito ou amor pelo pai ou pelo marido. A linda e competente Diana Rigg, uma espécie de Emma Thompson dos anos 70, é páreo duríssimo para Galina Volchek, na excelência de sua performance como Regan. Só que Rigg não carrega tanto nas cores vulgares de sua sensualidade, e eleva o tom no cinismo, na dissimulação, no maquiavelismo e na mais pura maldade. Sua crueldade no interrogatório de Gloucester e na gélida indiferença com que vê seu marido morrer são inigualáveis.

Vale o registro de que este era o terceiro contato de Rigg com Lear. Fora figurante na montagem que trazia Charles Laughton no papel-título em 1959, no Shakespeare Memorial Theatre em Stratford, com direção de Glen Byam Shaw; foi Cordélia na supracitada montagem de Peter Brook em 1962, com a Royal Shakespeare Company, e agora voltava ao texto interpretando a perversa irmã do meio.

O Lear de Paul Scofield e a Cordélia de Diana Rigg

Anna Calder-Marshall
A Cordélia de Anna Calder-Marshall não é apenas a flor de meiguice e docilidade com que é retratada em praticamente todas as versões. Ela não esconde a tristeza que sente ao ser rejeitada pelo pai por tão pouco e também não se furta de demonstrar sua determinação em não bajular Lear, seu desprezo pela índole interesseira do duque de Borgonha, ou o horror que sente ao deixar o pai ao cargo das irmãs. É exemplar a maneira com que diz use well our father; to your professed bosoms I commit him. But yet, alas, stood I within his grace, I would prefer him to a better place. Entretanto, está exatamente nessa cena, da despedida de Cordélia, talvez o único equívoco de intenção nessa montagem; não vejo qualquer razão para que Cordélia abrace e beije as duas irmãs, considerando que o que diz a elas, e o que ouve das duas, nada tem de carinhoso. Pelo contrário; Cordélia afirma saber exatamente as víboras que elas são, e em troca Regan lhe diz que não se meta a dar-lhes lições, e Goneril acrescenta que a jovem deve concentrar-se em agradar o esposo, que a aceitou sem receber um centavo.

Jeremy Kemp e Robert Lang

O desfile de talentos superlativos continua. Jeremy Kemp é de longe o melhor Cornualha que já apareceu. Seu rosto de cobra, os olhos oblíquos, esbugalhados e estrábicos, a voz ardida e ofensiva, e até mesmo sua peruquinha ruiva, tudo contribui para torná-lo o mais detestável e sádico possível. Competentes no mesmo personagem, Patrick Magee infelizmente seguiu a linha de contenção de todos, no Lear de Peter Brook, e não externou plenamente sua perversidade, e Aleksandr Vokach fez o que pôde, sem possuir a mesma aparência malévola ou os dotes performáticos de Kemp. Robert Lang, por sua vez, quebra, finalmente, o molde equivocado do corno abúlico e mostra Albânia pelo que de fato é, ou seja, um caráter manso e correto, mas impotente; capaz de se revoltar diante das ignomínias da esposa, mas incapaz de agir sobre essa revolta. As ofensas que despeja sobre Goneril quando sabe da monstruosidade praticada contra Gloucester não podem ser ditas em tom de conversa, sem qualquer emoção. Aí está o erro dos outros atores e diretores de Lear. Lang grita, horrorizado, ultrajado, mas não consegue dar vazão a essa revolta e surrar a esposa, ou até matá-la, como ela bem mereceria, sendo o demônio que é.

Robert Lindsay e David Threlfall

Robert Lindsay, ator versátil, é um excelente Edmundo. Retira com sutileza e competência todos os efeitos e intenções possíveis em um vilão fundamentalmente óbvio. Há momentos em que se repara a influência que teve, por exemplo, sobre atores que na época estavam começando no teatro, como Kevin Spacey. David Threlfall não é genial como Edgar. Melhor dizendo, não é genial como Poor Tom, demasiadamente exagerado, mas como Edgar ele é de uma ternura tão crível e tão carinhosa que acaba criando um admirável negativo humano da maldade de seu irmão bastardo. São a própria personificação da vilania e da bondade.

Olivier e John Hurt

John Hurt é magnífico como o Bobo. Não só pelo talento para recitar os versos shakespearianos – o que Jack MacGowan também tinha – ou pelo físico perfeito para espalhar-se com agilidade pelo cenário – o que Oleg Dal também fez muito bem – mas porque ninguém tem um rosto tão expressivo como ele.

Não é sempre que o público presta atenção às piadas do Bobo, suas musiquinhas ou suas provocações (mal de que também padece – em menor escala – o personagem Seyton, de Macbeth), mas é impossível não ouvir os comentários do Bobo sem associá-los instantaneamente às expressões de Hurt, de dolorosa tristeza ou de angustiada felicidade. Na saída do castelo de Goneril, Lear e o Bobo têm um diálogo onde sempre se louvou a sabedoria do Bobo, pela maneira crua com que descreve a desgraça do rei.

No caso de Hurt, ele é capaz de levar às lágrimas com cada uma de suas falas. Seu escárnio não é cínico, é defensivo. Ele não descreve, simplesmente, o opróbrio de forma humorística. É sua forma enviesada de confortar o rei. Quando pergunta sobre o porquê do caracol ter sua casa, e responde why, to put his head in; not to give it away to his daughters, and leave his horns without a case, ele é comovente. Não é apenas o côro grego que explica a tragédia (forma como alguns estudiosos vêem o Bobo), ou a mera consciência de Lear. Ele é o amigo fiel, que está sofrendo junto com o rei. Também deu-se, graças a John, a importância devida à fala mais genial do Bobo em toda peça: Thou shouldst not have been old till thou hadst been wise. Uma maravilha. É pena que Elliot tenha optado por sumir com o Bobo no meio da peça. No celeiro, logo antes de Lear ser conduzido por Kent, foi ignorada a fala em que ele chama o Bobo para ir junto. Ao invés disso, a cena termina com um close no Bobo tremendo de frio. É sua última aparição.

Kent é banido. Colin Blakely (de costas), Robert Lang, Olivier e Jeremy Kemp

Há dois atores que resvalam constantemente na perfeição e são jóias na coroa dessa adaptação televisiva: Colin Blakely e Leo Mckern. Difícil não cair na mesmice da adjetivação quando se quer comentar algo tão bom. Colin e Leo me fazem lembrar o que Jorge Amado disse a Fúlvio Stefanini, sobre seu Tonico Bastos na novela Gabriela: “O seu Tonico Bastos é melhor que o meu”. Da mesma forma, o Kent de Colin e o Gloucester de Leo devem estar acima de qualquer expectativa que o próprio Bardo guardava para a composição de tais personagens. O banimento de Kent, na primeira cena da peça, é um espetáculo por si só. Colin, Olivier, coadjuvados por Kemp e Lang (que seguram Lear quando este empunha sua espada) dão um show de timing. A movimentação é um balé. As vozes são uma orquestra de craques, afinadíssima e em total sincronia, desde o horrorizado what wouldst thou do, old man?, de Kent, passando pela conjuração desesperada de Apolo, até o marcial e solene hear me, recreant! On thine allegiance, hear me, de Olivier, que faz o Lear de Peter Brook parecer uma montagem de amadores pretensiosos.

Colin Blakely

É só o começo. Sem barba, fantasiando-se de homem simples para poder continuar servindo ao rei, Colin cresce e se agiganta a cada cena. Seu diálogo com Oswald na entrada do castelo de Gloucester é outro espetáculo. A maneira como responde, rindo, entre irônico e debochado, I love thee not à pergunta do mandrião, para em seguida cobri-lo dos piores xingamentos, com divertidíssima mistura de calma e provocação, cutucando-o com o dedo indicador, é uma aula de intenção e timing. A cena prossegue perfeita, o mesmo balé de talento e profissionalismo, quando a briga se transfere para dentro do castelo com a participação de Cornualha, Regan, Edmundo e Gloucester. Ninguém poderia transmitir melhor o desprezo de Kent por Oswald, com a pérola shakespeariana his countenance likes me not!, do que Colin. Outro momento que marca, por ser mínimo e assumir proporções imensas, é a chegada de Lear ao castelo, quando vê seu mensageiro preso ao cepo. Tal procedimento com um mensageiro real era, como diz o próprio Lear, worse than murder, e o faz perguntar, num misto de estupefação e incredulidade: Makest thou this shame thy pastime?, ao que Kent responde, exausto pelo castigo do cepo, e humilhado pela pergunta: No, my lord. Três palavras, e no entanto amplificadas pela intenção e pelo talento de Colin.

Leo Mckern

Leo também eleva seu Gloucester a píncaros de genialidade. A cena em que vê Edmundo lendo a carta supostamente escrita por Edgar é clássica. Ele extrai de cada uma das frases de Gloucester intenção completamente distinta, e todas corretas. Vai da satisfação quando vê o filho até o espanto inocente quando o vê esconder a carta, a preocupação com o que pode estar escrito, a irritação quando o filho recusa-se a entregar-lhe a missiva – o gimme thy letter, sir! gritado, antológico, jamais explorado ou mesmo descoberto por qualquer outro Gloucester – e por fim o choque pelo que parece ser a traição do filho, a tristeza e a resignação, no comentário sobre a influência dos astros naquela sucessão de fatos estranhos, desde a rejeição de Cordélia e o banimento de Kent, até aquela surpresa tão triste. A voz de Leo é a labareda de um velho e calejado lança-chamas, que ele dominava como poucos. Seu olho azul direito – o único que tinha – brilha e se umedece, levando o pranto à sua voz.

O desditoso Gloucester de Leo

Leo, assim como Colin em relação a Kent, é um Gloucester incomparável a qualquer um que veio antes ou depois dele. Torna críveis frases algo tolas como I would have all well betwixt you, que Gloucester diz a Lear vendo o rei indignado, e faz com que seja particularmente horrenda e aterradora a perda de seus olhos. Regan o chama de traidor e cospe em seu rosto. Ele descorçoa e, com a voz cortante, rasgada e desesperada, grita, but I shall see the winged vengeance overtake such children, referindo-se a Regan e Goneril. Tal é sua dramaticidade que frases como I stumbled when I saw e as flies to wanton boys are we to the gods, they kill us for their sport adquirem a tragicidade filosófica que quase nunca se lhes dá, pela deficiência dos atores que interpretam o desditoso Gloucester.

"I know thee well enough... thy name is Gloucester"... Gênios, Olivier e Mckern
 Por aí vamos descobrindo o texto em sua grandeza. Em sua cena com Lear nos campos de Dover, acontece o mesmo, só que desta vez pela voz de Olivier; esta é a única montagem até hoje em que se deu o valor necessário às falas poéticas de Lear, if thou wilt weep my fortunes, take my eyes, sem tratá-las como mera blablação de um louco (o que se fez à farta no Lear de Ian Mckellen, o último analisado) e sobretudo o momento em que o rei desce temporariamente de sua nuvem lunática e admite, I know thee well enough. Thy name is Gloucester, de forma doce, sofrida e comovente, provocando a catarse que o público esperava desde quando o vê perder a razão.

Geoffrey Bateman e Brian Cox
Até mesmo personagens menores da peça acabam tendo um destaque inesperado. É o caso do criado de Goneril, Oswald, interpretado à perfeição por Geoffrey Bateman. Seja por sugestão do diretor, ou concepção própria, o Oswald estúpido, arrogante e com trejeitos ridículos e afeminados de Geoffrey é impagável. O personagem, que jamais deixa qualquer lembrança em montagens teatrais ou cinematográficas, aqui assume os foros dados por Olivier e Kenneth Branagh a Osric, em seus respectivos Hamlets. No terreno da curiosidade, é divertido ver um jovem Brian Cox postado à esquerda de Olivier, interpretando o interesseiro duque de Borgonha. Cox, ao contrário do que se possa imaginar, já tinha mais de 15 anos de carreira na época, o que dá a medida do nível de atores chamados para essa adaptação, mesmo nos papéis mais curtos. É o caso também de Esmond Knight, ator com mais de 50 anos de carreira, no papel ínfimo do criado de Gloucester, primeiro a guiá-lo depois que ele perde os olhos.

E o que dizer de Olivier, o maior ator shakespeariano do século XX, sem despencar no óbvio? Seu Lear é o resultado de uma carreira inigualável de 55 anos no teatro e no cinema. É um Lear para ser assistido, analisado, esquadrinhado e imitado em cada um dos seus gestos e em cada uma de suas falas. Olivier não era só um estudante aplicado e meticuloso de seus papéis; neste caso ele guardava a experiência de anos e anos de palco e, ainda por cima, um Lear montado na juventude. Podemos traçar um mapa emocional meridianamente claro de sua interpretação, em que se ressalta com naturalidade o viés psicológico utilizado por ele. Era característica do ator; tal era a compreensão que obtinha de seus personagens, que no fim cada um deles se transformava em arquétipo a ser estudado e debatido. Com Lear foi igual. Ele entra em cena com a empáfia e confiança dos populistas, demagogos, daqueles que chegam ao poder por hereditariedade ou sorte, emanando um respeito que vem da idade ou do carisma, e nunca da inteligência ou das qualidades de estadista. Ilustra essa condição o artifício de obrigar os súditos a se deitarem de bruços quando ele entra, em sinal de reverência total, e a expressão de satisfação superior do rei.

Segundo Olivier, Lear "é completamente egoísta e totalmente sem consideração. Nunca, nem por um momento, pensa nas conseqüências do que diz. É pura arrogância mal-humorada com uma coroa empoleirada na cabeça. Obviamente não apanhou o suficiente da mãe".

Na conversa com as duas filhas mais velhas e no embate com Cordélia, vemos a fragilidade de sua psique. O rosto de Olivier se quebra com a negativa da filha mais nova e ele desce de sua prepotente determinação à condição de criancinha chata e mimada. Fica bravo, faz bico e responde a um simples desentendimento com a punição mais absurdamente exagerada. É um perfeito bipolar. Chegou feliz da vida para a festinha, mas quando as coisas não são feitas exatamente a seu gosto e talante, ele amua, briga com todos os amigos e acaba com a festa. Responde com a pior das grosserias aos bons conselhos do amigo Kent, ignora a observação do rei da França e sai de braços dados com o duque de Borgonha, um interesseiro desprezível.

É assim que Olivier descreve o velho rei: “Ele é, como todos nós, na verdade, apenas um velho bocó peidorrento. Tem um temperamento pavoroso. É completamente egoísta e totalmente sem consideração. Nunca, nem por um momento, pensa nas conseqüências do que diz. É pura arrogância mal-humorada com uma coroa empoleirada na cabeça. Obviamente não apanhou o suficiente da mãe. O que o governa é uma estupidez crassa. Para afastar-se de sua filha favorita daquele jeito, que espécie de idiota é ele?” (On Acting, 1986)

"O, let me not be mad, not mad, sweet heaven... Keep me in temper... I would not be mad!"

Nas cenas seguintes, em que o rei vai sendo fustigado e agredido pelas duas filhas que aproveitam para se vingar por não terem nunca contado com sua preferência sentimental, vemos três emoções fundamentais: a irritação infantil por não ver seus gostos serem atendidos, o ataque histérico em que roga as pragas mais funestas às duas filhas que minutos antes ele próprio transformara em depositárias dele e de seus bens, e a depressão, chorosa e cheia de lamentações, por ser vítima de tão cruel destino. Em qualquer ator, essas emoções se confundem e a sensação do público fica entre o desprezo pelo rei irresponsável e a comiseração por se deixar um velho desamparado no meio de uma tempestade. Não há real afeto. Em Olivier, embora energético e forte, é tão evidente a criança dentro do velho que não se consegue sopitar a pena e o carinho por ele. Em um momento ele vai ao paroxismo da maldade, desejando esterilidade a Goneril, para em seguida bater em sua própria cabeça, em auto-flagelação (Oh, Lear, Lear, Lear!), arrependido pelo que fez com Cordélia. Na saída do castelo, ajoelha-se com o Bobo, para rezar e pedir a Deus que não lhe prive da sanidade mental. Os soluços de Olivier são de uma criança. Impossível não se emocionar, mesmo sabendo que ele é merecedor daquilo. Também comove o how now! are the horses ready?, em que a voz de Olivier se corta com a lágrima na garganta.

“I will have such revenges on you both, that all the world shall... I will do such things, what they are, yet I know not, but they shall be the terrors of the earth”.

O maior momento de sua interpretação, é, a meu ver, o embate com Regan e Goneril no castelo de Gloucester. Olivier parece prosperar onde todos os outros falharam: no crescendo de sua interpretação e na sintonia perfeita, de altos, médios, baixos e altíssimos, entre texto, emoção e voz.

Chega cansado e já se exaspera ao ver Kent no cepo; sobe à incredulidade e à irritação quando Gloucester lhe fala da tal fiery quality of the duke, da qual Lear debocha (tell the hot duke...), entra pela melancolia quando relata à Regan seu episódio com Goneril, começa a sentir que o chão lhe falta ao perceber que também não conta com a lealdade irrestrita desta filha, é jogado de um lado para o outro como um joão-bobo pelas duas até que disfarça o coração partido, e o que interpreta como a pior das traições, com uma explosão de raiva em que promete as mais terríveis vinganças contra as duas.

A maneira como Olivier gesticula, rugindo como um leão, ascendendo ao prolongado te-e-errors of the earth com o dedo em riste – seguramente um desafio à voz já combalida do ator – para despencar como um balão de ar que se estoura e dizer, com a voz embargada, you think I'll weep, no, I'll not weep, I have full cause of weeping, but this heart shall break into a hundred thousand flaws, or ere I'll weep, e terminar sobre os braços do Bobo dizendo aos prantos, em falsete, o, fool, I shall go mad, é o zênite. É genial. Impossível conter as lágrimas e ouvem-se, ensurdecedores embora inexistentes, os aplausos extasiados, em cena aberta, a esse rei do teatro.

Na tempestade a ação tem uma queda previsível. Olivier dribla sua limitação de voz com a experiência e a exploração do texto. Na juventude, comenta que berrou o monólogo de Lear a fim de que o ouvissem até “em Trafalgar Square”. Em 83, os tempos eram outros e ele optou por encher de sentimento aquilo que já não podia mais preencher com sua conhecida e retumbante voz (ele e Yuri Yarvet, aliás, se desincumbem divinamente dessa missão). Por alguma razão, a fala em que Lear pergunta a Poor Tom se ele está naquela condição por ter dado tudo a suas filhas – piadinha de efeito certeiro nos teatros – se perdeu com Olivier, que não lhe deu o sarcasmo necessário. Seria o único defeito da seqüência toda. Mais tarde, já sozinho nos campos de Dover, Olivier também se permitiu todas as caretas, fungadas e cacoetes pelos quais era conhecido, e que utilizava sem cerimônia caso não fosse impedido pelo diretor. Como trata-se de uma cena para demonstrar a demência do rei, é coerente e funciona bem. O coelho que tem a barriga aberta por Lear, e cujos intestinos são devorados pelo rei também é uma boa sacada de Michael Elliot, chocante sem ser repulsiva.


O Lear de 1983 não foi o último grande trabalho só de Olivier; foi o adeus de praticamente toda uma geração. Michael Elliot morreu no ano seguinte, com 53 anos. Colin Blakely morreu em 1987, aos 57 anos. Dorothy Tutin e Leo Mckern morreram no início do novo século, mas tiveram no Lear de Olivier seus últimos grandes personagens. Depois de uma apresentação exclusiva desse Lear na Casa Branca, Ronald Reagan virou-se para Olivier e comentou: “Depois dessa atuação, acho que nunca mais vou dizer que sou ator”... Essa extraordinária obra-prima foi ao ar em abril de 1983 na TV inglesa. Olivier ganhou o Emmy de melhor ator.

Como era de se esperar, depois de Olivier interpretar Lear, nenhum outro ator se atreveu a interpretá-lo na TV por muitos anos. Ian Holm fez uma boa tentativa em 1998, mas sem grande repercussão. Infelizmente, em 2007 Ian Mckellen (1939) montou seu Lear em Stratford com direção de Trevor Nunn (1940). No ano seguinte, a peça foi filmada pela PBS.

Não tenho muito a comentar. Na minha concepção, absolutamente tudo deu errado. Cada uma das tiradas de gênio que aplaudimos no Lear de Olivier, vaiamos no Lear de Mckellen. Mckellen é um bom ator e vem interpretando Shakespeare há muitos anos, mas seu Lear é pura e simplesmente ruim. É situado na Rússia, o rei se veste de czar e sua entourage é de cossacos, com direito a danças típicas. Isso dá ensejo para uma das poucas coisas razoáveis da montagem, ou seja, o Bobo que canta suas musiquinhas acompanhado de uma sanfona, dando, pela primeira vez, algum valor musical às cantigas geralmente entoadas à capela pelo personagem. Fora isso, é tudo um desastre. Mckellen estava com 68 anos quando interpretou o velho rei – oito a menos que Olivier – mas está rouco, afônico, cansado, parece resfriado, vive assoando o nariz. Ou Mckellen estava doente quando a peça foi filmada ou não compreendeu a diferença entre interpretar um personagem idoso e interpretar um velho doente.

Para piorar, perde todas as intenções, dá as falas sem qualquer cuidado, desperdiça pérolas, os grãos que Olivier transforma em diamantes são jogados ao vento, tudo é dito ou em tom monocórdio, sem força, ou aos gritos. O ator parece incapaz de inflexionar a voz mesmo em discursos pequenos, sendo, portanto, lamentável nos grandes monólogos e nas grandes explosões. Ele briga com as filhas sem conseguir estampar na voz a emoção do momento, não importando quão violenta. Na cena da tempestade Mckellen parece um amador que perdeu a voz por não saber colocá-la e resolve partir para o berro, mesmo, sem nenhuma técnica. Como se isso não bastasse, o ator conseguiu a proeza de juntar-se com alguns dos atores mais medíocres que já vi em minha vida. A Goneril de Frances Barber é chorona; a atriz seguramente tentou seguir os passos de Dorothy Tutin, que chorou com sutileza, discrição e – sobretudo – raiva, quando Lear a amaldiçoa e sai de seu castelo, mas errou completamente na mão. Romola Garai tem aqui possivelmente o momento mais baixo de sua curta carreira cinematográfica e teatral, e joga Cordélia – que mais parece uma modelo de passarela – no lixo.

Monica Dolan, Mckellen, Sylvester MacCoy e Frances Barber

Monica Dolan é a melhor das três, com uma Regan original, perua e estúpida. Jonathan Hyde é um Kent razoável, como também é apenas razoável o Bobo de Sylvester McCoy. E voltamos às nulidades; Philip Winchester é um Edmundo saído diretamente da Malhação, com direito a corpo bombadinho e corte de cabelo moderníssimo, pronto para a balada. Do Edgar de Ben Meyjes eu sinceramente não consigo nem lembrar, como também mal me lembro dos atores que interpretam Albânia e Cornualha. William Gaunt está na mesma linha de Karlis Sebris no desperdício total de seu Gloucester. Não há nada que se possa salvar nesta adaptação de Lear. Nem mesmo o fato de que o diretor resolveu nadar contra a maré e não só adotou a solução de que o Bobo é quem foi enforcado, mesmo, como ainda criou uma cena para seu enforcamento. É pouco. De Mckellen acredito que todos esperavam mais. Este Lear foi ao ar pela TV americana em março de 2009. Mckellen concorreu ao Emmy de melhor ator. Perdeu para o excelente Brendan Gleason, conhecido mundialmente como o "Mad-Eye" Moody dos filmes de Harry Potter, que concorria por Into the Storm, filme onde interpretou Winston Churchill.
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Ver também:

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Anna Friel: o desperdício de uma atriz – Parte 1


O processo pelo qual um ator ou uma atriz se tornam queridos do público é misterioso. Por que notórios canastrões protagonizam filmes extraordinários, que nem a falta de talento deles consegue estragar? Por que um sensaborão como Daniel Day Lewis conta com dois oscars e verdadeiros gênios morreram sem recebê-lo? Por que gente insignificante recebe mais de 20 milhões de dólares por filme? Por que nulidades são chamadas para protagonizar filmes de diretores como Oliver Stone e Martin Scorsese?

Ao mesmo tempo, atores e atrizes extraordinários vêm e vão, deixando no ar, perceptível a poucos, o grito silencioso de quem está sendo mal-aproveitado e desperdiçando um talento sólido em bobagens das quais o público foge. Pior: por vezes empregam todo seu talento em trabalhos excelentes, largamente aplaudidos pela crítica, e ainda assim o sucesso profissional e a fama popular os eludem.

Algumas vezes é o azar, outras é a escolha equivocada de papéis, aqui e ali vemos artistas que têm sua reputação tisnada por uma vida pessoal errática e, por fim, aqueles que têm os piores e mais obtusos empresários. A atriz inglesa Anna Friel é vítima de todos os exemplos acima. Há uns dez anos assisti algumas cenas da adaptação de Michael Hoffman para o Sonho de Uma Noite de Verão, e o detestável “americanês” de Michelle Pfeiffer me irritou tanto que eu nem reparei na linda atriz que interpretava Hérmia. Era Anna, com 23 anos, em uma de suas tentativas de galgar os degraus da fama hollywoodiana. Não foi até 2007, entretanto, quando ela recebeu o papel principal no seriado da ABC, Pushin Daisies, que descobri sua existência.

Anna nasceu em Rochdale, Lancashire, em 1976. Com 15 anos começou a fazer papéis pequenos em séries da TV inglesa, como G. B. H., Coronation Street, Emmerdale Farm e Medics. Em 93, aos 17 anos, veio sua primeira grande oportunidade: o papel de Beth Jordache na novelinha Brookside – uma idiotice extremamente popular entre os adolescentes, espécie de Malhação inglesa – que entrava em seu décimo-primeiro ano de existência.

O beijo lésbico de Anna
na novelinha inglesa Brookside, em 93

Sua personagem era o cerne da lesbian teen que Manoel Carlos transformaria em coqueluche no Brasil, anos mais tarde, em uma de suas novelas (nem lembro qual, pois são todas iguais) sobre a fútil burguesada carioca. O fato criou sensação na Inglaterra thatcheriana do início dos anos 90, e quando Beth Jordache deu o primeiro beijo lésbico da televisão inglesa, naquele ano de 93, Anna ficou instantaneamente famosa. Pode-se dizer que já começou com o pé esquerdo, pois sua fama acabou chegando pela controvérsia do beijo lésbico, e não por seu talento de atriz.

Filmografia Comentada

Ela continuou no papel até o fim de 1995, quando se cansou e foi tentar outras coisas. Seus primeiros trabalhos pós-Brookside foram até alvissareiros. Em 96, aos 20 anos, a fim de exorcizar a imagem de lésbica-mirim, Anna recebeu e aceitou o convite para protagonizar um dos episódios da série de terror produzida pela HBO, Tales from the crypt.

Tales From the Crypt (1996)

O seriado existia desde 1989, era baseado nas histórias de terror de um gibi com o mesmo nome, publicado na década de 50, e tinha episódios de meia hora apresentados por um divertido corpo em decomposição chamado Crypt Keeper. A série ficou famosíssima e ao longo dos anos chegou a contar com a participação especialíssima de gente como Patricia Arquette, Timothy Dalton, Kirk Douglas, Whoopi Goldberg, Teri Hatcher, Demi Moore, Brad Pitt, Christopher Reeve, Martin Sheen, Michael J. Fox, Tom Hanks, Kyle MacLachlan e Arnold Schwarzenegger. Também na direção e produção estiveram incluídos ocasionalmente nomes como Richard Donner, Robert Zemeckis, Joel Silver, David Giler and Walter Hill.

Anna, Imelda Staunton
 e Anthony Andrews

O episódio do qual ela participou foi o décimo, da sétima e última temporada da série. Chama-se About Face (expressão que denomina uma mudança diametral de atitude, também significando a movimentação de 180° de um soldado, da direita para a esquerda ou vice-versa, em uma marcha, e é compreendida somente no fim do episódio) e trata de um padre devasso – o ótimo Anthony Andrews – que engravida uma empregada. Ela morre dando à luz gêmeas que 16 anos depois vão atrás do padre, em busca do reconhecimento. Anna interpreta as duas e embora estivesse com 20 anos, está com a mais adorável cara de adolescente. Faz um trabalho excepcional como as gêmeas antípodas Angelica e Leah. A primeira é doce, compreensiva e deseja esquecer o passado e estabelecer uma ligação sincera com o pai.

Anna, como a horrenda gêmea Leah

A segunda é uma fanática religiosa, revoltada, e, como se não bastasse, é horrenda e parece ter seu corpo todo em carne viva. A maneira como o padre vai conseguir equilibrar sua atividade religiosa e suas bandalheiras, agora que mora com as duas filhas é o mote do episódio, que tem 25 minutos e foi ao ar em junho de 1996.

Um detalhe interessante é a participação, sempre competente, de Imelda Staunton – no papel da companheira que faz vista grossa ao mau caráter do padre – que já era uma atriz reconhecida na Inglaterra desde a década de 80, mas alcançou fama mundial interpretando a grotesca Dolores Umbridge no filme Harry Potter e a Ordem da Fênix.

Cadfael (1996)

No mesmo ano (e ao mesmo tempo, ao que parece), Anna foi convidada a participar de um episódio da série inglesa Cadfael. Cadfael é o protagonista de 20 livros escritos pela inglesa Edith Pargeter (1913/1995, que como autora de Cadfael, se assinava com o pseudônimo de Ellis Peters). Monge galês da ordem dos beneditinos, o Brother Cadfael tem um quê de detetive e empenha-se em resolver os mistérios que assolam o mundo espiritual da Inglaterra de sua época, o século XII. Em 1995, assim que Pargeter concluiu o vigésimo livro sobre o monge (tendo lamentavelmente morrido em seguida), a ITV inglesa resolveu produzir uma série televisiva com base nos livros. A escolha do protagonista – Derek Jacobi – não poderia ter sido mais feliz. Ator shakespeariano com mais de 40 anos de experiência, Jacobi é um artista exemplar, consumado, e dá brilho singular ao personagem Cadfael.

Anna participou do terceiro episódio da segunda temporada, intitulado A Morbid Taste for Bones ("Um gosto mórbido por ossos"). Na história, um dos fanáticos do mosteiro de Cadfael começa a ter visões da Santa Winifred, o que leva os monges a procurar a vilazinha de Gwytherin – onde a santa nasceu, viveu, e se encontrava enterrada – na esperança de transladar os ossos dela para o mosteiro beneditino. Lá, entretanto, encontram a oposição ferrenha dos locais, liderados pelo Lord Rhysart, que não admite que a santa saia de lá. Rhysart é também o pai de Anna – Sioned – a quem sonha ver casada com um bobalhão qualquer da vila, contra a vontade dela, que é apaixonada por outro bobalhão.

Anna e Derek Jacobi

A trama de Anna não sairia disso se o seu pai não fosse assassinado logo na primeira noite dos beneditinos em Gwytherin. E é a partir daí que Cadfael põe em prática seus dotes de detetive. Em sua inexperiência, Anna se sai razoavelmente bem e o episódio foi ao ar em agosto de 1996, dois meses depois de Tales from the crypt. Ao contrário das séries dramáticas tradicionais, Cadfael não tinha 22 ou 24 episódios por temporada; a primeira teve 4 episódios, e as três temporadas seguintes tiveram apenas três, cada. Também não tinham a duração tradicional; as séries de drama, em geral têm 45 minutos por episódio. Cada episódio de Cadfael tinha um hora e quinze minutos.


Talvez por isso – ou porque, como sempre, aquilo que é inteligente demais não é bem deglutido pelo intelecto limitadíssimo do público de televisão – a série não foi até o vigésimo livro, estacionando no décimo-terceiro. Críticos da série observam que 75 minutos ainda não eram suficientes para encapsular o universo criado por Pargeter, e que a adaptação da ITV acabava "superficializando" as tramas. Seja como for, a série era boa e seus adeptos ressentem-se de seu fim abrupto até hoje. Sensação com a qual, como se vê, os admiradores de Anna tiveram que aprender a lidar desde logo. A carreira dela poderia ter decolado já naquele momento, aliás, não tivesse ela tomado tantas decisões erradas, pouco depois.

The Stringer (1998)

O fim de 96 e o início de 97 Anna passou trabalhando incansavelmente. Crua, a fim de aumentar sua experiência e diversificar seus canais de divulgação profissional, ela embarcou em dois projetos capitaneados por diretores independentes.

O primeiro foi a obscura produção anglo-russa The Stringer, do diretor polonês Pawel Pawlikovski. Filmado em Moscou e em Varsóvia, o filme conta a história do jovem russo Vadik (Sergei Bodrov Jr.) que gosta de filmar ocorrências cotidianas como casamentos e festas, e um dia filma um grupo de rebeldes incendiando um troleibus. Crente de que aquilo teria algum valor jornalístico, leva a fita à agência da Reuters que existe por lá, e a submete à editora de jornalismo, Helen (Anna), que descarta a fita mas lhe dá um cartão para que a procure, se filmar algo importante.

Sergei Bodrov e Anna

Apaixonado pela editora, o rapaz começa a correr atrás de notícias para poder vê-la novamente (daí o título Stringer, que na gíria inglesa significa alguém que trabalha como free-lancer para uma empresa jornalística) e acaba travando contato com um candidato à presidência, Yavorsky (Vladimir Ilyin), um político excêntrico, agressivo e louco por notoriedade. Segundo se diz por aí, o filme capta com alguma competência o clima relativamente anárquico da Rússia pós-debacle da URSS, em plena era Yeltsin. Porém, conquanto fosse um diretor razoável de documentários, Pawlikowski na época ainda não tinha qualquer domínio na direção de um longa de ficção, e essa falta de traquejo fica patente no filme. Começa pela escolha do protagonista, o superlativamente péssimo Bodrov Jr. (quase me sinto mal falando assim do garoto, que morreu quatro anos depois, aos 31 anos, em uma avalanche, quando dirigia seu segundo filme), que tem cara e voz de um perfeito retardado mental. Continua com a sub-utilização de Anna, cujo papel é mínimo, sem graça e só serve para mostrá-la semi-nua ou em cenas eróticas insossas com Brodrov.

O filme ficou mais de um ano na prateleira e só teve sua estréia em Cannes em maio de 98. A reação foi morna e o filme se perdeu para o grande público em meio à burocracia da distribuição. Hoje está esquecido e não creio que foi sequer lançado em DVD. Anos depois, Anna disse o seguinte sobre filmar na Rússia: “Tive que me virar completamente sozinha por oito semanas vivendo em um daqueles blocos stalinistas de Moscou, com caras da Máfia ligando pra mim, me pedindo sexo”. Infelizmente, é só o que se poderia pedir dela, num papel tão medíocre. Uma das críticas ao filme no IMDB vai direto ao ponto e revela a fama que Friel infelizmente granjeara entre os telespectadores, quando afirma que “talvez isto [o filme] seja uma vingança de Friel contra todos os adolescentes que a têm assistido em coisas como esta só para vê-la nua/ beijar uma garota/ mostrar a bunda e etc., fazendo-os assistir um pobre filme russo só para ver um pouco de nudez!”


Com um protagonista decente, um ritmo mais dinâmico e um desenvolvimento melhor do papel de Anna, onde seu oportunismo na sedução do rapaz, para conseguir mais notícias sobre Yavorsky, fosse bem explorado, The Stringer não seria um filme ruim. A história é interessante e tanto Anna quanto Ilyin são ótimos atores. Também merece destaque a ótima trilha sonora do polonês Zdzislaw Szostak.

The Tribe (1998)

De volta da Rússia, no início de 97, e ainda desejosa de trabalhar com diretores alternativos, sem nomeada, mas respeitados no meio, Anna começou a trabalhar em The Tribe, roteirizado e dirigido pelo inglês Stephen Poliakoff. Ao contrário de The Stringer, porém, onde Anna representava o único elemento ocidental do filme, The Tribe tinha um elenco de estrelas inglesas de médio-porte. O filme parte de uma premissa interessante: é a história de Jamie, um executivo mauricinho (Jeremy Northam) que recebe a incumbência de despejar um estranho grupo de pessoas que mora em uma área destinada à construção de um condomínio de luxo. No processo, ele descobre que os habitantes do local estão longe de ser uma seita de fanáticos religiosos ou uma reles turba de desocupados, e são, de fato, uma "tribo" de hippies pós-modernos, meio góticos, todos lindíssimos e sexualmente livres, que se sustentam com a venda de artigos eletrônicos de última geração, contrabandeados.

Anna e Jeremy Northan

E é lógico que Jamie também fica deslumbrado com a líder do grupo, Emily (Joely Richardson) e com a inquieta Lizzie (Anna), que em seus momentos de laser divide os lençóis com outro membro da tribo, Adam (Jonathan Rhys-Meyers, que aos 21 anos, tinha ainda mais cara de mixê do que hoje). Aliás, assisti esse filme esperando o tão comentado menage a trois de Anna com Northam e Meyers. Foi grande minha surpresa, portanto, quando percebi que a cena é boba, curta, brochante e poderia ter sido simplesmente sugerida, sem a necessidade de mostrar os três espremidos em uma caminha.

O insulso menage a trois de Anna, Northan
 e Rhys-Meyers em The Tribe

Apesar de tudo, e por incrível que pareça, eu gostei do filme. Ele é pretensioso, assim como o diretor, e a trama é fundamentalmente tola, mas em muitos aspectos essa temática da tribo gótica – em que as mulheres são lindas e liberadas, e imagina-se que as cenas de sexo serão explicitas e no fim são bobinhas e poderiam passar tranqüilamente em horário nobre – faz lembrar um pouco a estética cinematográfica dos anos 80, e não se pode assistir como se fosse algo cru e realista. O trio de protagonistas – Northam, Joely e Anna – está muito bem afinado e as duas, particularmente, estão extraordinárias e têm um embate pra lá de memorável no fim.

Anna e à direita, Joely Richardson e Jeremy Northan

É uma pena que Poliakoff tenha sido tão burro e sem qualquer visão de sua própria obra, para não compreender que o filme como um todo seria ofuscado, e lembrado eternamente apenas por aquele insulso menage a trois de dois minutos.

Como alguém disse brilhantemente no fórum de discussão do filme, no IMDB, "se o roteiro e/ou o diretor fossem um pouco melhores, talvez não precisássemos ter seguido por esse caminho...". Hoje o filme é visto sob uma lente mais complacente do que aquela com que foi julgado na ocasião em que foi transmitido pela primeira vez na TV, em junho de 1998. Não se pode dizer, porém, que tenha trazido qualquer benefício à carreira dos protagonistas. Pelo contrário; apenas ajudou a fortalecer a imagem de Anna como uma atriz para papéis picantes, onde há nudez ou sexo. E quanto a Poliakoff, ele me faz lembrar alguns diretores brasileiros de cinema; são respeitadíssimos mas ninguém sabe ao certo porquê.

The Land Girls (1998)

Em meados de 97 houve um salto apreciável de qualidade e Anna foi da tribo gótica para a Segunda Guerra. The Land Girls é baseado no livro homônimo da escritora inglesa Ângela Huth e conta a história de três mulheres alistadas voluntariamente no que se denominava The Women Land Army, grupo de mulheres que se oferecia para trabalhar em fazendas, em todo tipo de serviço, enquanto os homens estivessem na guerra. Stella (Catherine McCormack, ainda gozando da curta fama que lhe rendeu a participação em Brave Heart, de Mel Gibson, três anos antes) é a mais ajuizada e está noiva de um soldado em combate; Rachel Weisz, que se tornou conhecida dois anos antes por coadjuvar Liv Tyler no Stealing Beauty de Bernardo Bertolucci, é a romântica e puritana Ag, ainda virgem aos 26 anos, e Prue (Anna) é seu exato oposto; espevitada, atrevida, engraçada e liberada sexualmente. As três vão para a mesma fazenda, onde moram um casal de meia-idade e o filho (Steven Mackintosh, ator mediano que gozou de prestígio durante cinco minutos, na Inglaterra), frustrado e infeliz por ter um problema cardíaco que o impede de ser piloto da Força Aérea Britânica e lutar por seu país.

Não conheço o livro (relativamente famoso na Inglaterra), mas acredito que o filme tem duas grandes falhas: em primeiro lugar o roteiro idiota e superficial de Keith Dewhurst e David Leland, este último, também diretor do filme. Em segundo, a escolha do anti-galã Mackintosh para o papel de Joe.

Catherine McCormack e Steven Mackintosh

(spoilers) Pálido e raquítico, ele tem uma noiva, mas é seduzido por Prue logo no começo. Até aí não há grande absurdo, considerando a tendência de Prue para casos inconseqüentes. Em seguida, vendo que Ag começa a namorar um sujeito mas está em pânico sobre o que pode acontecer entre os dois, já que é inteiramente ignorante em relação a sexo, Prue recomenda que ela transe com Joe. Difícil engolir a lindíssima Rachel Weisz com uma lombriga como Mackintosh, além do que se poderia questionar a inconveniência dela perder a virgindade antes do casamento, sendo recatada como é. Em todo caso, como anti-galã, aceita-se que ele tenha uma noiva insípida, um caso com a promíscua Prue e uma transa didática com Ag.

McCormack, Anna e Weisz em cenas de The Land Girls

O que realmente não convence é a paixão fulminante que Stella desenvolve por ele. Tudo acontece aos trancos e barrancos, sem maior aprofundamento, e de uma hora para outra ela deixa de amar seu noivo e se apaixona por Joe. Os diálogos românticos entre ambos (sobretudo o da escada) não são apenas cretinos; são inteiramente falsos, não há química entre eles, não há uma única faísca de atração. Une-se a pobreza do roteiro com o imenso equívoco de escalar Mackintosh.para esse papel.

O filme era veículo para McCormack, na época a atriz que detinha maior fama entre as três. A cena mais dramática, entretanto, é de Anna, quando recebe a notícia de que seu marido morreu no dia seguinte ao casamento deles. Na banheira, quando chora e lamenta a morte do marido junto às companheiras, o que poderia ser uma chance para que ela e as outras duas brilhassem, transforma-se em uma choradeira sem graça ornada de frases piegas e manjadas. Uma pena. Ainda assim, mesmo que o declive trágico faça com que o filme se perca, do meio para o fim, The Land Girls é perfeitamente assistível. Estreou no festival de Sundance em janeiro de 98 e na Inglaterra em setembro. O que não se pode deixar de comentar é o destino dos quatro: McCormack e Mackintosh, os dois protagonistas, estão hoje praticamente esquecidos; aos 38 e 43 anos respectivamente, trabalham quase que exclusivamente em filmes e séries menores, na TV inglesa.


Rachel Weisz, a mais apagada do filme, recebeu sua grande chance no ano seguinte, com A Múmia, e hoje, aos 40 anos, é uma atriz do primeiro time hollywoodiano. Ganhou o Oscar de atriz coadjuvante pelo Jardineiro Fiel, de Fernando Meirelles, e mais uma lista infindável de prêmios por esse e outros filmes.

Outra curiosidade é que em fevereiro de 2010, 16 anos depois de escrever The Land Girls, Ângela Huth lançou uma continuação, chamada Once a Land Girl. Desta vez, a protagonista é Prue. Teria a autora carinho especial pela fogosa coadjuvante do primeiro livro ou estaria ela simplesmente vislumbrando mais uma adaptação cinematográfica? De uma forma ou de outra, é difícil imaginar Anna, hoje com 34 anos, voltando ao personagem. Especialmente porque a partir de The Stringer e The Tribe, e na seqüência, com The Land Girls, a jovem linda, carente e sexualmente liberada passaria a ser um desagradável estereótipo em sua carreira. E que ela, como sempre desavisada na escolha de seus papéis, nada faria para impedir.

Our Mutual Friend (1998)

Seu último trabalho de 1997, porém, foi muito bom. A BBC e a CBC (Canadian Broadcasting Company) se uniram para produzir uma minissérie baseada no romance Our Mutual Friend, de Charles Dickens. Para transformar o livro em roteiro convocaram a relativamente desconhecida Sandy Welch, e a direção foi entregue a outro nome pouco familiar, Julian Farino (hoje dirigindo séries como The Office, Entourage e etc.). A minissérie tem seis horas, divididas em quatro capítulos, e foi ao ar pela BBC em janeiro de 1998.

Our Mutual Friend parece ser uma crítica de Dickens às convenções da sociedade inglesa mais purista e preconceituosa do século XIX. Uma das primeiras cenas da minissérie mostra as conseqüências de uma união meramente oportunista, na festa de casamento de um homem e de uma mulher que só se casaram porque acreditavam que o outro era rico. Horas depois de casados descobrem que ambos são paupérrimos e que caíram na conversa fiada de um amigo. A história, porém, só começa mesmo quando um pescador encontra num rio o corpo que se supõe ser de John Harmon, jovem que viajava a Londres para receber a imensa fortuna deixada por seu pai. Além da fortuna, o jovem também receberia uma esposa, que o pai escolhera para ele. Morto o jovem Harmon – como se crê, a princípio – a fortuna vai para Nicodemus Boffin (Peter Vaugham), um modesto e antigo funcionário da pedreira que pertencia ao velho Harmon. Eis a segunda crítica, nos comentários desairosos e condenatórios que são feitos quando corre pela sociedade a notícia de que um sujeito sem qualquer posição social enriquecera da noite para o dia.

Anna, Peter Vaugham e Pam Ferris
(spoilers) Boffin se mostra generoso e resolve procurar a moça que estava prometida a John Harmon, e que ficara a ver navios com a morte do jovem. Oferece à moça – Bella Wilfer (Anna) – que vá, como sua protegida, viver com ele e com a esposa (Pam Ferris). Ela, que odiava sua pobreza e era obcecada por o dinheiro, aceita e vai morar na opulenta mansão dos Boffin, onde passa a freqüentar as mais ricas e badaladas festas da sociedade. Também desenvolve um convívio com o secretário dos Boffin, um jovem chamado John Rokesmith (Steven Mackintosh). O secretário, como se vê logo no segundo capítulo, é na verdade John Harmon, e o rapaz que morreu com seus documentos era um companheiro de viagem. Juntos, haviam bolado um plano (pra lá de rocambolesco) de que chegando a Londres, aproveitariam a semelhança física de ambos e trocariam de identidade, o que daria ao verdadeiro Harmon algum tempo, que ele utilizaria espionando sua futura esposa, Bella, a fim de descobrir se ela era virtuosa ou não. O companheiro de viagem, no entanto, trai Harmon e se mancomuna com vigaristas do navio com quem acaba se desentendendo pouco depois. Ambos são espancados e jogados para fora do navio. Harmon se salva e o companheiro morre, carregando sua identidade. Passando-se por Rokesmith, Harmon arranja um emprego com os Boffin, podendo, dessa forma, seguir seu plano original de ficar por perto para observar Bella.

Anna e Keeley Hawes

No meio tempo, Mortimer (Dominic Mafham), procurador do velho Harmon, e seu amigo Eugene (Paul Macgann), se interessam pelo caso e conversam com o pescador, Gaffer Hexam (David Schofield), que encontrou o corpo do suposto Harmon. Este tem um casal de filhos e a moça, Lizzie (Keeley Hawes), fascina Eugene, que resolve providenciar um tutor particular para ela. Só que a moça manda o irmão Charley (Paul Bailey) estudar em um internato e em uma das visitas que ele lhe faz, tempos depois, leva seu professor, que desenvolve uma paixão fulminante por Lizzie. É o terceiro vértice da crítica de Dickens; Lizzie é uma moça pobre e sem qualquer perspectiva de subir na vida pelo casamento. Seus pretendentes são Eugene, que tem berço mas não tem dinheiro, e o professor Headstone, que tem uma posição social respeitável mas é desequilibrado e não conquista a moça. Neste caso é brilhantemente desenhado o personagem do irmão Charley, que deixa de ser um reles ignorante e se torna um rapaz instruído, graças à irmã, ao mesmo tempo em que é contaminado por todo o moralismo da sociedade e acaba rejeitando a irmã por ela não aceitar a proposta nupcial do professor.


A trama se desenvolve na mudança que a riqueza vai operando no caráter da frívola Bella, so trivial, so capricious, so mercenary, and yet, so beautiful, nas palavras de Harmon. Inicialmente deslumbrada com a riqueza e determinada a se casar com o pretendente mais abonado, ela aos poucos vai percebendo o absoluto vazio daquela vida e passa a desejar um amor verdadeiro. Boffin, por sua vez, vai vivendo distinta e generosamente, embora tenha que enfrentar chantagens de dois vigaristas – Silas Wegg (Kenneth Cranham) e Venus (Timothy Spall) – que encontram enterrado na pedreira um segundo testamento do velho Harmon, onde toda sua fortuna é deixada para a Coroa. E Lizzie vive seu inferno particular, contemplando a impossibilidade de casar-se com Eugene, que possui um status social incompatível com o dela, e tendo que rejeitar as investidas psicóticas do professor Headstone, que não se conforma em ser rejeitado por uma plebéia e conta com a ajuda do mau-caráter Rogue Riderhood (David Bradley) para sabotar quaisquer planos amorosos que a moça possa cultivar com Eugene.


Our Mutual Friend é um trabalho excepcionalmente bem feito pela BBC, e tem seu valor ampliado por um elenco excelente. Peter Vaugham e Pam Ferris estão ótimos no simples e benevolente casal Boffin. Paul Macgann empresta o desapego necessário ao entediado Eugene, assim como Keeley Hawes estampa fragilidade e perseverança na medida certa à sua Lizzie. Steven Mackintosh tem aqui a oportunidade de expiar seus pecados de The Land Girls. O retraído e circunspecto Rokesmith lhe cai como uma luva e transforma todas as suas deficiências em artifícios para a composição de seu personagem. Bella não cai de amores por ele porque sim, como ocorre com Stella e Joe em The Land Girls; ela atravessa um processo árduo de realização e arrependimento até se dar conta de que Rokesmith é o homem que procura. O público acompanha essa transição e torce pelos dois no fim.

David Bradley, David Morrisey e Kenneth Cranham
A minissérie, entretanto, pertence a quatro personagens: primeiramente Bella, soberbamente interpretada por Anna. Não há excessos, não há obviedade; sua personalidade ao mesmo tempo mimada e ajuizada é cativante e vai do cômico ao dramático com facilidade. Ela é mercenária apenas da boca para fora; sua sanha pelo dinheiro é somente o ímpeto adolescente de experimentar aquilo que nunca esteve a seu alcance e a obsessão com o dinheiro arrefece naturalmente, depois de saciado seu desejo de sair da pobreza. Em segundo vem David Morrisey, como o atormentado professor Headstone. Nunca vi talento em Morrisey (que por sinal enterrou sua própria carreira na dantesca seqüência de Basic Instinct) mas não resta dúvida de que este foi um grande trabalho. Sua tensão chega a ser palpável, de tão real, a cada conversa que tem com Lizzie, e embora ele não passe de um pobre diabo cujo poder se encontra inteiramente nas aparências, não há como não sentir uma certa pena vendo a profundidade da miséria emocional que se apodera dele com a rejeição da moça.

Timothy Spall, Kenneth Cranham, Anna, Steven Mackintosh, Martin Hancock,
 Pam Ferris e Peter Vaughan

Anna e Steven Mackintosh

Por fim, os dois vilões: David Bradley (hoje mundialmente conhecido como o carrancudo Argus Filch dos filmes de Harry Potter) perfeito como Rogue, comparsa nas maldades de Headstone, e Kenneth Cranham, o perneta Wegg, que tenta chantagear Boffin de todas as maneiras. A minissérie teve nove indicações ao Bafta. Ganhou em quatro categorias menores e perdeu na categoria de melhor ator, Timothy Spall, que trabalha efetivamente em quatro ou cinco cenas, tem atuação apagada e não precisava ser indicado. É lamentável. Como ensemble, todo o elenco merecia ter sido premiado. Anna adentraria o ano de 1998 em uma nova co-produção da BBC, desta vez pulando de Dickens para Stevenson.

St. Ives – All for Love (1998)

Embora tenha sido produzido pela Miramax, em parceria com a BBC e mais um punhado de pequenos estúdios ingleses e franceses, não saberia dizer se St. Ives (também referido como All for Love) alguma vez foi exibido na telona. Pode ser que sim, já que o elenco traz craques que não fariam um filme para televisão simplesmente pelo prazer. Seja como for, não chegou a marcar época, no cinema ou na TV.

A história é livremente baseada no livro St. Ives: being the Adventures of a French Prisoner in England, do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850/1894). Como o célebre criador de Jekyll e Hyde morreu sem terminá-lo, o texto foi concluído três anos mais tarde por seu colega inglês Arthur Quiller-Couch. Trata-se de um livro de memórias narrado em primeira pessoa pelo soldado do exército napoleônico Jaques Keroual de St. Ives, e conta suas peripécias como prisioneiro na Inglaterra, sua fuga da cadeia, seu romance com a inglesa Flora Gilchrist e desvenda seu misterioso passado aristocrático.

O filme é razoável, mas tem-se fortemente a sensação de uma bela oportunidade perdida. O grande ponto negativo é a direção, quadrada e simplista, quase incompetente. O diretor Harry Hook tinha apenas 37 anos na época e trazia no currículo um ou dois filmes de repercussão nula, estando, portanto, totalmente despreparado para encarar o que poderia ter sido um épico romântico e engraçado, no estilo de qualquer um dos filmes baseados em livros de Jane Austen.


A escolha do francês Jean Marc Barr para interpretar o protagonista foi um daqueles erros que comprometem a produção como um todo. St. Ives é um personagem maravilhoso porque mistura o seu heroísmo de soldado, seu charme e um poder nato de sedução, com o fato de que é desajeitado, meio palhaço, divertido e irônico. Há uns 20 anos, esse papel teria caído como luva em Mel Gibson ou em Tom Selleck. Jean Marc Barr não transmite nenhuma dessas qualidades, além de ficar dolorosamente claro que seu cabelo é, de fato, uma peruquinha muito safada.

Jean Marc Barr: um homem e sua peruca

Lamentavelmente, o extraordinário elenco é desperdiçado. O timing da comédia é falho e a dupla cômica formada pelos competentíssimos Richard E. Grant e Miranda Richardson acaba não tendo espaço para brilhar como deveria. Jason Isaacs (outro que o mundo inteiro hoje conhece como Lucius Malfoy, dos filmes de Harry Potter) é irmão de St. Ives, e também poderia ter desfrutado de grandes momentos na disputa pela herança do avô, que não é ninguém menos do que o velho Michael Gough – o mordomo Alfred dos filmes do Batman – em prazeroso refrigério de suas inúteis pontas hollywoodianas.

Anna interpreta Flora, o interesse amoroso de St. Ives. Sua escalação, ao contrário do que ocorre com Barr, foi perfeita. Eis, a título de curiosidade, a magnífica descrição feita por Stevenson (St. Ives na primeira pessoa), para a entrada de Flora na cadeia inglesa, onde os presos se reuniam semanalmente em uma espécie de mercado, vendendo pequenas peças de carpintaria feitas por eles mesmos, a fim de angariar alguns trocados:

There was one young lady in particular, about eighteen or nineteen, tall, of a gallant carriage, and with a profusion of hair in which the sun found threads of gold. (...) She had an air of angelic candour, yet of a high spirit; she stepped like a Diana, every movement was noble and free. (...) Her hair blew in the wind with changes of colour; her garments moulded her with the accuracy of sculpture; the ends of her shawl fluttered about her ear and were caught in again with an inimitable deftness. You have seen a pool on a gusty day, how it suddenly sparkles and flashes like a thing alive? So this lady’s face had become animated and coloured; and as I saw her standing, somewhat inclined, her lips parted, a divine trouble in her eyes, I could have clapped my hands in applause, and was ready to acclaim her a genuine daughter of the winds.

Anna, Richard E. Grant
 e Miranda Richardson

Em qualquer momento, poderíamos imaginar que Stevenson está descrevendo a própria Anna. Ela realmente resplandece a cada entrada, e os 30 segundos em que canta para St. Ives valem pelo filme todo. A estréia foi na França, em outubro de 98 e na Inglaterra em junho de 99. St. Ives é entretenimento leve e assiste-se com algum prazer pela presença de Anna, Miranda, Richard Grant, Jason Isaacs e Michael Gough. Mas imagina-se com a maior tristeza o que teria sido este filme nas mãos de uma dupla como Ismael Merchant e James Ivory, ou Ang Lee e Emma Thompson.

O ano de 1998 pode não ter sido o mais profícuo, mas foi o mais prolífico, profissionalmente, para Anna, até hoje. Ela foi da União Soviética contemporânea, com The Stringer, até uma tribo gótica em The Tribe, fez um pit stop na segunda guerra, com The Land Girls, e varejou o século XIX com Our Mutual Friend e St. Ives.

A Midsummer Night's Dream (1999)

Em 1999 o diretor americano (nascido no Hawai) Michael Hoffman decidiu levar a peça Sonho de uma noite de verão para o cinema, o que não acontecia, efetivamente, desde a montagem clássica de 1935, dirigida por William Dieterle e Max Reinhardt.

Sendo Shakespeare objeto de minha veneração há muitos anos, fugi desse filme desde sua estréia, assistindo-o apenas recentemente, quando soube que Anna fazia parte do elenco. E confesso que não desgostei. A mistura de atores ingleses - experimentados em Shakespeare, conhecedores de sua obra e à vontade com seus famigerados pentâmetros iâmbicos - com americanos e seu inglês anasalado e de erres incompatíveis com o léxico do bardo, costuma ser desastrosa, e foi uma das razões para eu ter evitado assistir antes, mas neste caso o resultado não chega a ser ruim. O elenco é extremamente irregular, não resta dúvida. O filme, porém, não sendo nenhuma maravilha, é melhor do que eu pensava.

Calista Flockhart, Christian Bale, Dominic West e Anna

O atores às voltas com a montagem de Píramo e Tisbe não têm um timing dinâmico de comédia (armadilha habitual para peças cômicas levadas à telona), mas estão razoavelmente divertidos. Kevin Kline é um bom Nick Bottom, Roger Rees traz seu conhecido talento para Peter Quince, e o então jovem Sam Rockwell se sai bastante bem como Flute. Entre os casais românticos, David Strathairn e Sophie Marceau estão deslocadíssimos e sem a mínima graça como Teseu e Hipólita. Anna está maravilhosa e perfeita como Hérmia; também competente é o Lisandro de Dominic West. Já Christian Bale só impressiona por sua acidentadíssima dicção e não convence como Demétrio. Não esperava dizer isso, mas Calista Flockhart foi uma ótima Helena e suas cenas com Anna são a melhor coisa do filme.


Michelle Pfeiffer, Kevin Kline (acima), Stanley Tucci e Rupert Everett

Na floresta, o nível cai dramaticamente. Stanley Tucci é um bom ator, mas seu Puck não tem absolutamente nada a ver com o personagem da peça, seja no físico ou na personalidade. Rupert Everett também está completamente perdido como Oberon. Juntos, parecem dois gogo boys e estão mais para um filme sobre Sodoma e Gomorra do que para Shakespeare. Resta Michelle Pfeiffer, péssima como Titânia. Seu inglês é o mais americano de todos, sua familiaridade com os versos shakespearianos é nenhuma e ela recita as falas como uma aluna canastrona de teatro. Não bastasse isso, a química – interpretativa e sexual – entre ela e Rupert Everett é zero, além dela parecer bem mais velha do que ele.


De qualquer forma, é um filme agradável, um texto de Shakespeare e um excelente trabalho de Anna, que pelos dois anos seguintes não faria nada memorável, até voltar à tona com Me Without You, em 2001.
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