De cara fiquei com uma má impressão do festival. Pretendiam homenagear Fernando - que por sinal trabalhava eventualmente com os Satyros - mas ninguém sabia nada sobre ele. Estive na sede dos Satyros um dia e verifiquei o mesmo desconhecimento por parte de uma das diretoras do grupo. Boa vontade de sobra, cultura teatral zero. Enfim, pelo valor de Fernando como diretor e sua inigualável contribuição ao teatro brasileiro, tomei para mim a responsabilidade de transformar essa homenagem em algo apreciável. Recebendo, é claro, somente experiência e o prazer de estudar a obra de Fernando como pagamento. A toque de caixa - faltava mais ou menos uma semana para começar o festival - saí à cata de informações para a preparação de um roteiro. Pra variar, na internet não encontrei quase nada. O oásis no deserto da ignorância foi o site do Itaú Cultural, que me ajudou bastante. O resto acabei tirando dos livros que tinha e de outros que comprei para enriquecer o trabalho.
A rigor minha atribuição era preparar um roteiro. Julgando que eles não poupariam esforços para fazer daquela uma homenagem memorável, escrevi um roteiro em nada menos do que oito partes, nas quais desfilariam 40 anos de carreira e mais de 20 artistas ligados a Fernando em um ou outro momento. Acreditando, também, que os Satyros teriam músicos disponíveis e preparados para uma ocasião importante como aquela, inseri números musicais que remeteriam a grandes espetáculos de Fernando, sobretudo Ponto de Partida e Calabar. Haveria entrevistas, mesas redondas, música, cenas de arquivo em telão, depoimentos em áudio, e por aí vai. Tudo em vão. Para encurtar a história, a mesma menina que me procurou me disse que estava tudo excelente, mas que eles não tinham a menor condição de fazer aquilo, não tinham estrutura, não conheciam aqueles artistas todos, não tinham os contatos, não tinham tempo, e dali para baixo. Eu estava lidando com amadores, no pior sentido da palavra.
Com Maria Thereza, Fernando e Renato Borghi
Conclusão, acabei redigindo apenas o que seria uma palestra sobre Fernando, que contou com o belíssimo depoimento em áudio de Othon Bastos, a presença de Renato Borghi e Sônia Loureiro, e a apresentação de Flávio Guarnieri. Os quatro chamados por mim. Nem o computador pertencente ao grupo, que reproduziria o arquivo que acompanhava o texto funcionou, pelo que o público presente perdeu de ver o PPS com mais de 200 fotos que preparei. Seria o suficiente para me chatear, mas na manhã do dia 5 de novembro, em um dos teatrinhos dos Satyros, foi só ver o bom Fernando entrar, calado e sério como sempre, na companhia da maravilhosa Maria Thereza Vargas, e minha irritação passou.
Este é o texto que escrevi, lido por Flávio Guarnieri em 5 de novembro de 2006, na homenagem prestada a Fernando Peixoto por ocasião das Satyrianas, na Praça Roosevelt, em São Paulo.
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HOMENAGEM A FERNANDO PEIXOTO
Fernando Amaral dos Guimarães Peixoto nasceu em Porto Alegre, em 1937. Sua entrada definitiva no teatro profissional, com menos de 20 anos, está intimamente ligada a um dos maiores homens de teatro que o Brasil importou da Itália na década de 40: Ruggero Jacobbi. O italiano de Veneza estava há pouco mais de dez anos no Brasil, e no entanto já acumulava a experiência singular de ter trabalhado exitosamente com as maiores companhias brasileiras, como as de Procópio Ferreira, Maria Della Costa, o Teatro dos 12, TBC, Sérgio Cardoso e Nídia Lícia, além de ser o mentor intelectual de uma nova geração de atores e autores que vinha surgindo no TPE, capitaneados por Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.
Terá sido por recomendação de Ruggero - professor de Fernando no Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - que Fernando teve a oportunidade de trabalhar na montagem gaúcha de O Canto da Cotovia, espetáculo antológico da Companhia de Maria Della Costa, com direção de Gianni Ratto. Foi seu primeiro grande momento no teatro.
Além de grande diretor, Ruggero era um excepcional homem de letras, e nos anos de 58 e 59 Fernando teve um intenso aprendizado. Trabalhou como ator, sob a direção de Ruggero em espetáculos como Egmont, de Goethe, O Corvo, de Goldoni e Electra, de Sófocles.
Aprendeu sobre dialética, política, sociologia, poesia, e aprendeu sobretudo quem era Bertolt Brecht. Foi um caso de amor que perdura até hoje. Mas Fernando há muito deixou de ser o estudante, porque se tornou provavelmente o maior divulgador e conhecedor da vida e da obra desse extraordinário alemão.
O que aprendeu com Jacobbi, Fernando pôde aplicar em 1960, como ator na montagem gaúcha do TBC para Mãe Coragem, de Brecht, com direção de Alberto D'Aversa, outro mestre italiano radicado no Brasil. Em muitos aspectos, 1960 marcou a formatura teatral de Fernando. Com 23 anos, já havia trabalhado com 3 italianos maravilhosos, Gianni Ratto, Ruggero e D'Aversa, e naquele ano ainda trabalharia novamente com D'Aversa em Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller, Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias, com direção do querido e saudoso Flávio Rangel, e em Anjo de Pedra, de Tenesee Williams, com direção de Benedito Corsi.
1960 marcou também o ano em que Ruggero Jacobbi voltou para a Itália. Para o amigo e aluno Fernando, deixou livros de Marx e "A Estética", de Hegel. Sobre Jacobi, Antunes Filho foi taxativo: "Era a cabeça, o intelectual. Ninguém sabia de Brecht na Europa, e ele estava falando de Brecht aqui". Sobre sua associação com Jacobbi na época do Teatro Paulista do estudante, Gianfrancesco Guarnieri disse que "foi com ele que criei o meu grande entrosamento profissional. Ele era um homem de uma cultura vastíssima, e ainda tinha a vantagem de não dormir. Em vez de dormir ele lia assustadoramente, tinha umas olheiras terríveis. O mais fantástico nele era a capacidade de memorizar. Ele lia como se estivesse gravando, ou tomando nota e depois se lembrava de absolutamente tudo".
Décio de Almeida Prado definia Ruggero como um "verdadeiro polo emanador de cultura no Brasil". Mas foi Fernando quem talvez melhor o descreveu: "Ruggero, sem nada impor, me abriu os olhos para tudo e me fez compreender o significado do teatro nacional como integrado dialeticamente no processo mais amplo da sociedade brasileira em sua batalha pela emancipação socio-econômica".
Em sua carta de despedida aos alunos, que entregou datilografada a Fernando, Ruggero dizia: "Se eu voltar, até breve. Se não voltar, até sempre. E trabalhem!" Fernando seguiu à letra a indicação do mestre.
Vem para São Paulo em 62, com a então esposa Íttala Nandi. Trava conhecimento com ex-alunos da faculdade de direito do Largo São Francisco que montaram um grupo, o grupo Oficina. Os ex-alunos são José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi. Mas antes de trabalhar no Oficina ele continua exercendo a função de crítico de teatro que já exercia no Rio Grande do Sul, e por conta disso torna-se amigo do elenco do Teatro de Arena de São Paulo. A identificação com Gianfrancesco Guarnieri foi imediata e Fernando começou a freqüentar as noitadas na casa de Guarnieri, por onde passavam figuras como Carlos Lyra, Juca de Oliveira e tantos outros. A gravação que vocês vão ouvir é de uma dessas noitadas, em 1963. Quem canta e toca violão é Carlos Lyra e quem faz os comentários seguintes é Guarnieri. (áudio)
Seu primeiro espetáculo no Oficina é Quatro num quarto, de Valentin Kataev, e a direção fica a cargo do belga Maurice Vaneau. No elenco, Fernando contracena com a esposa Íttala, Renato Borghi, Etty Fraser, Miriam Mehler e o ator russo Eugênio Kusnet, outro grande teórico teatral, e segundo se diz, o primeiro a popularizar Stanislavsky no Brasil.
Renato Borghi, Liana Duval e Fernando em Pequenos Burgueses
Foi apenas um aquecimento para o que viria em 63, quando o Oficina decide montar Os Pequenos Burgueses, de Maximo Gorki. Fernando traduziu o texto com Zé Celso, que assumiu a direção. A peça estreou em 30 de agosto e foi um sucesso sem precendentes. Zé recebeu todos os prêmios da crítica. O elenco, que misturava cobras criadas como Kusnet com jovens talentos como os de Fernando, Célia Helena e Raul Cortez, foi igualmente premiado. A abordagem realista de Zé Celso, que adequava a realidade russa à realidade do Brasil naquele momento pré-revolucionário é antológica. A responsável pela continuidade desse sucesso foi Miriam Mehler. De ascendência judaica, a atriz havia comprado os direitos da peça Andorra, de Max Frisch, que tratava da perseguição dos judeus. Na primeira leitura, Fernando, Borghi e Zé Celso não viram maior relevância em se montar um espetáculo sobre a perseguição de judeus.
Antes que pudessem decidir se montavam ou não Andorra, ocorreu o golpe de 64. Os três se esconderam num sítio da atriz Célia Helena, e foi naquele primeiro momento de repressão e medo que os três perceberam claramente a conveniência de Andorra para o Brasil. É o próprio Fernando que conta:
Se a gente voltar para São Paulo, vamos montar Andorra! Não é a perseguição aos judeus que interessa, e sim a perseguição! É quando um setor, um pedaço da sociedade persegue um outro e a conseqüente violência disso na realidade social. Se a gente montar isso agora, todo mundo na platéia vai ler não a perseguição aos judeus, mas a perseguição à esquerda, a perseguição à democracia, que estava acontecendo com a ditadura militar. Estivemos um tempo fora do país e depois voltamos e montamos Andorra, que foi um êxito extraordinário. A gente conseguia fazer a publicidade do espetáculo com uma frase que dizia "Judeu é igual a qualquer bode expiatório".
Andorra foi mais um desses espetáculos de elenco inacreditável, que unia a experiência de Eugênio Kusnet e Henriette Morineau com a juventude assomada e intensa de Fernando, Beatriz Segall, Fauzi Arap, Célia Helena, Mauro Mendonça e tantos outros.
Com o cerco da ditadura sobre o Oficina, Fernando diversifica suas atividades e aos poucos vai delineando seu caminho como diretor. As primeiras experiências ele vive em Porto Alegre, mas já em 64 ele dirige o texto O Cimento, de Guarnieri, para a TV Excelsior. Em 65 dirige o show "Canto Livre de Nara", com Nara Leão, em Porto Alegre, e em 66 ele divide com Zé Celso a direção de Os Inimigos, de Gorki, no Oficina.
Nesse mesmo ano o Oficina sofre um incêndio que o destrói. Para angariar fundos dedicados às obras de reconstrução, remontam espetáculos de sucesso do grupo. Ao mesmo tempo, sob a influência do tropicalismo e da inovação cinematográfica de Glauber Rocha, surge a idéia de montar O Rei da Vela, escrita em 1933 por Oswald de Andrade e inédita desde então, considerada "imontável". Segundo Zé Celso:Até que uma leitura em voz alta do “Rei da Vela” feita por Renato Borghi num apartamento da Vieira Souto em Ipanema para um grupo resumido de amigos, revelou a potência inclusive retórica do texto que procurávamos. Estava ali. Havia sido escrito de 1933 a 1937, nunca tinha sido montado e iluminava todo momento que estávamos passando. Eu fui para a casa do filho de Oswald, Nonê, com sua primeira mulher, uma francesa, e me atirei no Baú onde estava toda a obra do pai. Li tudo. Virei. Em um mês e meio montamos a peça, ela já estava em nós. E foi a maior revolução cultural que o teatro fez na história do Brasil pelo menos. Pois não ficou só no Teatro, se alastrou como peste no movimento tropicalista que hoje se alastra no movimento mix, no mundo inteiro.
Com música de Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Caetano Veloso, o espetáculo estréia em 29 de setembro de 67. Sucesso absoluto. Quando a peça excursionou pela Europa, a critica francesa comentou que "o espetáculo do Teatro Oficina procura reencontrar as formas de expressão popular do Brasil para comunicar a grosseira e vulgar realidade nacional e exprimir toda a podridão do imenso cadáver gangrenado que é o Brasil de hoje, onde a classe operária e camponesa é mantida, da mesma forma que nos anos 30, à margem da evolução política. A história não se fará senão pela Revolução; esta é a lição implícita em O rei da vela".
Para Fernando, mais importante do que o espetáculo, sua repercussão ou seu papel de Abelardo 2°, foi o fato de que Edgar Gurgel, no papel de Totó Fruta do Conde, saiu do espetáculo e em seu lugar entrou um ator baiano que acabava de chegar de Salvador: Othon José de Almeida Bastos.
1968 foi um ano decisivo para Fernando. Politicamente o Brasil caminhava para a repressão total. Artísticamente, ele realizava sua primeira direção de peso, com O Poder Negro, de Leroy Jones, e reencontrava Brecht em mais uma das antológicas montagens de Zé Celso, com Galileu Galilei. O Galileu de Cláudio Corrêa e Castro é considerado o melhor de todos os tempos, e a temporada foi de grande sucesso, mas foi por essa época que Fernando foi amadurecendo seu talento como diretor e começava seu processo de afastamento do Oficina.
Em 69 veio um outro grande Brecht com direção de Zé Celso, contando com Fernando e Othon no elenco, Na Selva das Cidades. O último da "fase histórica" segundo a Enciclopédia Itaú Cultural. A mesma Enciclopédia relata um episódio terrível ocorrido em Belo Horizonte:
Apresentado em São Paulo e Rio de Janeiro, Na Selva das Cidades tem sua carreira interrompida em Belo Horizonte, com um significativo incidente. Na cena da curra, quando os capangas giram Ítala Nandi nua, ela é lançada a metros de distância sobre a platéia, sofrendo escoriações em todo o corpo. O incidente encerra a temporada e marca o aguçamento da crise de um elenco que já não mais pode contracenar. Na Selva das Cidades, limite entre a ficção e a realidade, faz o sangue do Oficina jorrar; sinal de que os rumos da equipe deveriam urgentemente ser repensados.
Fui viajar com o Arena pela América Latina e os Estados Unidos inteiros e foi uma viagem extraordinária para mim, onde tudo foi abalado. Entrei em contato com todo movimento latino-americano, com as diversas correntes políticas e propostas culturais. Por outro lado, entrei em contato com a contestação americana, vivia no Village como hippie, aquela loucura toda, sentindo aquela explosão num momento privilegiado.
De volta ao Brasil, em 70, Fernando volta ao Oficina pra dirigir um último espetáculo. Don Juan, de Molière. Talvez até mesmo para mostrar que já não conseguia mais compactuar com a proposta quase irracional de teatro que o Oficina vinha adotando cada vez mais, Fernando chamou Gianfrancesco Guarnieri, símbolo maior do Teatro de Arena, ao mesmo tempo ventre e antípoda criativo do Oficina, para protagonizar o espetáculo. Fernando falou extensamente desse espetáculo em uma entrevista:
Eu voltei dos Estados Unidos com tudo isso na cabeça de uma forma muito violenta, confusa, e joguei tudo num espetáculo que foi o Don Juan em 70, que acho extremamente importante para repensar o que eu fiz. Era um espetáculo onde eu rompia com a estrutura do Oficina e ao mesmo tempo pagava minha dívida com o Oficina. O espetáculo tinha todas as influências possíveis e impossíveis do Zé Celso. Eu inventei um coro que ficava andando pela platéia, simulando puxar fumo, era um delírio total. Havia no espetáculo, um lado profundamente irracionalista, desenvolvido às últimas conseqüências, e um lado racionalista também desenvolvido até as últimas conseqüências.
Era uma tensão dialética entre os dois lados, e só tive consciência disso depois. Enfim, o Don Juan foi um balanço com o legado do Zé Celso que era muito forte pra mim, que foi toda minha formação teatral, era uma necessidade de utilizar e trabalhar a própria imagem do Oficina. Agora, a decisão de convidar o Guarnieri define a minha idéia: eu queria pegar o Arena e botar dentro dessa imagem do Oficina, jogar uma coisa contra a outra. Eu fiz isso e deu certo no que eu queria. É claro, foi minha despedida do Oficina. Sem brigas. Desquite amigável, com abandono de lar.
O desquite pode até ter sido amigável, mas aquilo que se convencionou chamar de "o assassinato do Arena" e "o suicídio do Oficina" deixou toda uma geração de atores e diretores órfãos. Fernando abandonou o teatro por dois anos, indo trabalhar com Ruy Guerra e Mauricio Capovilla no cinema, e só voltou em 72, quando se juntou a Carlos Queirós Telles na tentativa de popularizar o teatro São Pedro, de Maurício Segall. Era a morte anunciada do ator Fernando Peixoto e a emancipação definitiva do Fernando diretor. Para explicar tal fato, Fernando disse: "Com o exílio de José Celso e Augusto Boal, o único diretor com que eu quero trabalhar sou eu mesmo. E como diretor não me quero como ator".
Othon Bastos e Fernando chegaram a trabalhar juntos no São Pedro, mas o grande momento dessa parceria aconteceria a partir de 73, quando Guarnieri chamou os dois para integrarem seu novo espetáculo, Um Grito Parado no Ar. Atarefadíssimo com o trabalho de ator nas novelas de Ivany Ribeiro na Tupi, Guarnieri entregou a direção a Fernando e escreveu o papel principal sob medida para Othon. No elenco feminino estavam Sônia Loureiro, Assunta Perez e a esposa de Othon, Martha Overbeck. O exercício dramático escrito por Guarnieri em uma única noite, onde se denunciava a repressão e o cerceamento de todas as liberdades, através de uma companhia teatral que discutia os problemas da peça e seus próprios problemas existenciais, enquanto ia perdendo todos os seus apetrechos até o ponto de ficar sem luz, no teatro, encontrou seu condutor perfeito em Fernando, e o sucesso foi absoluto.
Guarnieri se referiu a esse período de sua criação como "Teatro de Ocasião". Fernando definiu como "Espetáculos de Resistência". Ambos seguem na mesma direção, que é a de não parar o trabalho, mesmo que seja necessário recorrer às metáforas para expressar a verdade do momento.
O sucesso de Um Grito Parado no Ar levou Fernando a ser contratado por Fernando Torres, no Rio de Janeiro, que pretendia montar o musical Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, com a companhia que mantinha com a esposa, Fernanda Montenegro. O elenco foi escalado, dinheiro foi aplicado, o espetáculo começou a ser ensaiado para entrar em cartaz em novembro, a peça prometia ser um grande sucesso, só que poucos dias antes da estréia a censura interditou a produção. Fernando Peixoto e Ruy Guerra começaram a planejar a documentação dos ensaios, e até mesmo uma produção em Buenos Aires, caso a proibição fosse efetivada. Fernando Torres estava em Brasília, batalhando a liberação no SNI, e a interdição sem qualquer resposta ou esclarecimento levou-os a ponto de querer impetrar um mandado de segurança para efetuar a censura de uma vez, o que pelo menos os tiraria daquele impasse ridículo, onde se podia interditar sem censurar, provocando a falência do produtor, que mantinha a produção em pé guardando até o último minuto a esperança de que a liberação ocorresse. Em meados de novembro, Calabar foi censurado.
Fernando não se abateu. Voltou a São Paulo em 74 e montou com Othon Bastos O Caminho de Volta, de Consuelo de Castro. E passou o ano de 75 trabalhando como ator em cinema, onde contracenou com Othon em dois filmes.
1976 marcou um reencontro duplo com Guarnieri. Primeiro na remontagem de Arena Conta Zumbi, que Fernando agora dirigiria, no lugar de Boal, e substituindo os arranjos de Carlos Castilho pelos arranjos de Dori Caymmi. E segundo em Ponto de Partida, que Guarnieri escreveu sob o impacto do assassinato de Wladimir Herzog, em outubro de 75. O espetáculo, que tinha a audácia de já começar com o espectro de um homem pendendo, enforcado, no centro do palco, tinha tudo para ser censurado.
Fernando Peixoto e Herzog
Guarnieri disfarçava dizendo tratar-se de uma "fábula medieval". No programa da peça, Fernando Peixoto procurou desviar a atenção ao enforcamento em si destacando o fato de que desde Arena Conta Zumbi Guarnieri se valia do passado - neste caso medieval e sem qualquer relação com o Brasil - para discutir o presente. Mas as alusões à repressão, ao assassinato de Birdo, ao poder armado e ao poder estratégico eram tão evidentes que por mais parvos e estultos que fossem os censores, era impossível não se dar conta imediatamente a quem e a quê Guarnieri aludia. Os ensaios transcorreram sob tensão, com Mário Masetti, assistente de Fernando, chamando amigos para que se postassem armados dentro do teatro, diante da ameaça de um atentado da polícia política.
No fim a peça foi liberada sem cortes. Guarnieri mais tarde diria que a ditadura preferiu não fustigar ainda mais o povo naquele momento em que todos já se encontravam horrorizados com o monstruoso assassinato de Herzog. Que era melhor liberar a peça e deixar que o povo mais incauto acreditasse ser de fato uma fábula medieval, do que proibi-la e iniciar uma série de discussões em torno do texto censurado.
O espetáculo trazia Guarnieri de volta aos palcos, contracenando com Othon Bastos, Sônia Loureiro, Sérgio Ricardo e Martha Overbeck. Sérgio, autor da música "Ponto de Partida", com a qual Guarnieri batizou o espetáculo, e parceiro dele nas outras músicas da peça, sentia-se na copa do mundo. Sobre Fernando, diria mais tarde: "Um excelente profissional". Mais tarde Antônio Petrin substituiu Sérgio.
Ponto de Partida só teve platéias lotadas do dia de sua estréia até o fim de sua temporada. Sucesso absoluto, maciço, de cambistas se acumulando nas bilheterias. Em diversas entrevistas, Paulo Autran qualificaria a performance de Guarnieri nesse espetáculo como o melhor trabalho de um ator em todos os tempos.
Um Grito Parado no Ar, Calabar e Ponto de Partida foram caracterizadas por Fernando como sendo "desafios do ponto de vista da encenação". E ele continua: "Porque considero que esse processo de encontrar imagens, soluções cênicas, que travam um diálogo crítico com a platéia, que integrem a platéia numa reflexão crítica, tudo isso sob censura, foi um desafio muito importante". (entra o áudio)
Fico triste de não poder estar presente nesta homenagem a Fernando Peixoto. Ele merece não só essa homenagem, mas muitas outras. Diretor, ator, escritor, um homem de teatro sempre fiel à sua arte. Fernando tem contribuído de maneira especial e brilhante para o teatro brasileiro. Tenho orgulho de já ter trabalhado tantos anos com ele, e orgulho de ser seu amigo.
Fernando, beijo no seu coração,
Othon Bastos
Em 77 Fernando ainda montou Mortos sem Sepultura, de Sartre, com Othon Bastos, mas a produção começou a diminuir. A distensão progressiva das arbitrariedades, ou como diria Geisel, "a abertura lenta e gradual" provocou uma queda na produção de todos aqueles que se empenhavam de corpo e alma no combate à repressão. Não ocorreu uma explosão de criatividade como se esperava, mas uma ressaca profunda. Era o momento de guardar as armas, recolher os mortos e reanalisar todo o quadro político e social.Em 79 Fernando dirigiu os formandos do Macunaíma na peça Terror e Miséria no III Reich, de Brecht, e no ano seguinte voltou a Calabar, finalmente liberado. A produção agora não era mais de Fernando Torres e sim de uma parceria entre a companhia de Othon Bastos e a de Renato Borghi. O espetáculo foi interessante mas a frustração pelo primeiro Calabar, abortado pela censura, foi mais forte e deixou uma marca indelével em Fernando, como ele mesmo consignou em entrevista:
Eu acho que a peça perdeu alguma coisa, perdeu a oportunidade, não agüentou o tempo. Eu não fiz o espetáculo que queria fazer, em parte por culpa minha. Fui levado, pouco a pouco, a fazer, quem sabe até por uma dolorida inércia, um espetáculo que não queria fazer e que tinha excelentes instantes, mas que ficou indiferente para mim.
Mais do que qualquer coisa, Fernando julgou que aquele era o momento perfeito para começar a colocar no papel as experiências extraordinárias que vivera naqueles últimos 20 anos. Junto à produção de Terror e Miséria no III Reich, que Fernando dirigiu com os formandos do Macunaíma, se iniciou uma produção literária que atualmente é pedra fundamental para todo e qualquer estudante de teatro e de toda a conjuntura social em que se desenvolveu o teatro desde 1950. Sobre suas próprias experiências Fernando escreveu "Teatro em Pedaços", "Teatro em Movimento", "Teatro em Questão", "Teatro em Aberto", "Um Teatro Fora do Eixo".
Sobre Bertolt Brecht ele escreveu "Brecht, Vida e Obra", em 1968; "Brecht: Uma Introdução ao Teatro Dialético", em 1981 e "Brecht no Brasil", em 1987, além de ser tradutor de seus textos e coordenar a edição de suas obras completas em português. Escreveu também "Maiakóvski, Vida e Obra", em 1969; "O Que É Teatro", em 1980; "Teatro Oficina; Trajetória de uma Rebeldia", 1982; "Vianinha: Teatro, Televisão, Política", em 1983; "Ópera e Encenação", em 1986 e coligiu "O Melhor Teatro do CPC da UNE", em 1990.
Fernando não parou e nem vai parar jamais de trabalhar com teatro, que é sua paixão eterna. Seu pensamento se resume no que disse a Maria Cesarino e José Mário, que o entrevistaram para o semanário "O Tempo", em 1980. As palavras ditas há 26 anos poderiam tranqüilamente ser repetidas hoje, dada sua atemporalidade:
Fernando Peixoto fala ao público, depois da homenagem
Bernardo, que baita acerveo que tu tens aí. Certamente fruto de trabalho árduo. Tem mais é que ser divulgado. Parabéns.
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