sábado, 16 de fevereiro de 2013

Menotti Del Picchia fala de Edoardo Di Guarnieri


Edoardo Di Guarnieri

Para Cecília, Flávio e Cacau

Dizer que tanto em Gianfrancesco Guarnieri quanto em Oduvaldo Vianna Filho “o talento corria nas veias” é redundância, só que enquanto Vianinha matava um leão por dia para sair da sombra de seu polivalente pai, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro e de cinema desde os anos 20, Guarnieri não adentrou a seara de seu pai, que era a música clássica. Seara, aliás, que já era de seu avô Antônio, violinista maestro.

Edoardo Di Guarnieri nasceu em Veneza, em 18 de abril de 1899. Sua carreira musical começou com o estudo de violoncelo, no conservatório da cidade. Diplomado com loas, ganhou uma bolsa para prosseguir o aprendizado na celebérrima Schola Cantorum, de Paris (onde seu pai também estudara) e lá teve professores como Vincent D’Indy e Gian Francesco Malipiero. Tomou gosto pela música de câmara e, de volta à Veneza, fundou o quarteto de cordas I Vitoriale, com o qual viajou por toda Europa, alcançando sucesso e renome. No fim dos anos 20 ampliou seus horizontes profissionais partindo para a regência de ópera e orquestra sinfônica. Influência paterna: Antônio era consagrado maestro do Scala de Milão. Demonstrando talento invulgar, logo estava regendo temporadas líricas por todo o país. Apresentou-se em Milão, Veneza, Florença, Roma, Turim, e como já fizera antes, nas principais capitais do continente. O Scala, por sinal, acabou sendo divisor de águas para Edoardo, porque lá conheceu uma famosa harpista de Pádua, Elsa Martinenghi – quase um ano mais velha que ele, nascida em 27 de maio de 1898 – com quem se casou no primeiro lustro dos anos 30. Foram morar em Veneza, mas por compromissos profissionais de ambos em Milão, essa é a cidade em que nasceu o filho único do casal, que recebeu o bombástico nome de Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi Di Guarnieri.

Os Guarnieri estavam felizes e realizados, mas havia um grande problema: Benito Mussolini e o regime fascista, que contaminava a Itália. Como tantos artistas e intelectuais dos mais variados matizes culturais, Edoardo não tinha inclinações comunistas mas era um democrata de corpo e alma e deplorava qualquer tipo de repressão. Segundo Gianfrancesco, o filho único cujos depoimentos sobre o pai permeiam este texto, “a Itália estava rachada entre fascistas e anti-fascistas, isso sim. É claro que os anti-fascistas se aproximavam mais do que hoje conhecemos como esquerda. (...) Embora meu pai não tivesse nenhum posicionamento político, era muito consciente, sempre foi um homem que não se sujeitava a nenhuma espécie de autoritarismo. Então sua carreira sofreu muito naquele período justamente quando eu nasci”.

Começaram os boicotes e as perseguições. Bem-relacionada e menos visada, Elsa recebeu como um presente dos céus o convite da Rádio Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, para se apresentar no país que se mostrava uma belíssima alternativa ao casal em apuros. O Brasil também vivia uma ditadura, iniciada em 30, mas passava pela farsa do “período constitucional”, que dava a impressão de que aos poucos o país voltaria à normalidade democrática. Em 1935, quando o pequeno Gianfrancesco contava apenas um ano de idade, Elsa arrumou as malas e veio para o Brasil, deixando marido e filho na espera de boas novas. “Assim que chegou ao Rio de Janeiro”, conta Gianfrancesco, “ela estabeleceu muitos vínculos de amizade com os músicos cariocas. Tornou-se amiga íntima da cantora Gabriella Besanzoni Lage, que promovia algumas temporadas líricas na cidade”. E foi através de Gabriella – que na verdade era italiana como Elsa e estava no Brasil desde os anos 20, quando se casou com o milionário Henrique Lage – que a esposa de Edorado pôde, ao cabo de um ano, enviar ao governo italiano um pedido protocolar para que seu marido fosse contratado como regente da S. A. Teatro Lírico Brasileiro, sediada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo Gabriella como estrela. Pediu também a transferência permanente dos Guarnieri para o Brasil. Como salienta Gianfrancesco, não se pode dizer que o alto escalão fascista tenha lamentado a partida do trio:

Para o governo italiano, era ótimo mandar embora do país todas as pessoas que fossem de esquerda. (...) Quando o convite formal para que meu pai viesse reger uma orquestra no Brasil finalmente chegou à Itália, o governo de Mussolini rapidamente autorizou a saída dele do país. Assim, seis meses após a partida da minha mãe, eu e meu pai embarcávamos no navio Conte Grande com destino ao Rio de Janeiro. Cheguei com dois anos e meio.

Edoardo desembarcou no Brasil com a fama relativa que granjeara na Europa e tornou-se amigo de figuras proeminentes da música e da elite cultural. Entre elas, Heitor Villa-Lobos. Em entrevista de 1949 ao Diário da Noite, Edoardo revelaria que sua admiração pelo brasileiro era anterior à sua saída da Itália: “Conheci Villa-Lobos, como compositor, muitos anos antes de eu vir para o Brasil. Suas obras eram muito mais conhecidas na Europa do que na sua pátria. Eu, que vivi na França e Itália, conheci o Brasil através da música desse grande compositor, isto durante a primeira grande guerra”. O italiano, que em 49 já era um dos dois ou três mais respeitados maestros do Brasil, não regateia elogios ao mestre brasileiro, e exalta a profissão de fé humanista que ambos compartilhavam:

A arte neste momento passa por um período mecânico, do qual o humanismo está completamente ausente. Neste momento, Villa-Lobos tem a coragem de não aderir a essa tendência e de fazer aquilo que é realmente arte, no sentido humano. Instintivamente, Villa-Lobos sente o momento histórico que está vivendo, e faz a exaltação de todos os anseios do homem em suas magníficas peças. É por isso que eu qualifico Villa-Lobos um dos pouquíssimos compositores cujo nome, devido a essa sua arte profundamente humana, se perpetuará. Realmente, Villa-Lobos é um dos maiores compositores contemporâneos. Sinto por ele profunda admiração. (Diário da Noite, 5/8/49)

Edoardo pesquisou a fundo nossa música e seu interesse transcendeu o aspecto artístico e penetrou no social, como era de sua índole. Diz Gianfrancesco: “Quando vim com meu pai, em 1936, ele teve um trabalho muito grande, tanto para a organização de orquestras como na defesa do músico brasileiro, do compositor nacional. Ele sempre se interessou muito pelos problemas dos músicos e da música no Brasil. Foi um grande batalhador”. Teve início ali a influência de um binômio fundamental na vida futura do filho: o amor pela arte e a consciência social. Mas naquele primeiro momento o que fazia a alegria do garoto Gianfrancesco era brincar com os pincéis da mãe, que pintava quando não estava ocupada com a harpa. Só que a brincadeira do garoto nada tinha a ver com pintura: “Havia um aparelho de rádio sempre sintonizado na Rádio Ministério da Educação, que mantinha uma programação de óperas. Eles transmitiam óperas completas e minha principal diversão na época era reger aquelas óperas elo rádio, usando como batuta um dos pincéis da minha mãe. Eu regia o rádio, mas na minha cabeça, sabe o que havia? Uma orquestra inteira!”

A ópera foi, efetivamente, o veículo que introduziu Gianfrancesco ao mundo da expressão artística:

Eu tinha uns três anos e meio quando meus pais começaram a me levar à ópera. Sempre nas matinês, porque à noite a entrada de crianças era proibida. (...) Eu ficava de pé, escondido no meio da orquestra, porque não podia assistir da platéia, era muito pequeno. Então eu ficava no meio dos músicos, em cima dum tamborete... Assisti o ciclo de Wagner inteirinho. E olhe que assistir Wagner de pé não é mole, não. E eu gostei demais. Tenho grande influência da ópera. Ópera foi uma coisa que me marcou muito. (...) Fui conduzido ao teatro através da expressão lírica que foi a ópera, uma coisa que muito me impressionou. (...) Era uma coisa maravilhosa, eu ficava encantado. As óperas se estendiam por horas e horas e eu ficava ali, quieto e fascinado. Acho que a grande influência na minha carreira foi a ópera. Na época eu não compreendia muito bem, mas sentia que já havia ali uma dramaturgia, eu sabia que havia uma história com começo, meio e fim.

Folha da Noite, 23/10/48
À parte toda essa fascinação, vale registro um comentário de Gianfrancesco que nos leva ao cerne do temperamento abrasivo e exigente de Edoardo: “Ele se cuspia no espelho. (...) Eu vi meu pai, depois de um concerto, no camarim, se olhando por uns dois minutos ao espelho. Em seguida, cuspir na imagem e berrar: ‘Che merda! Che merda! Che merda!!!’ (risos)”

Também é interessante verificar até que ponto o fascismo feriu a alma de Edoardo; ele, que quase tivera um ataque apoplético quando viu, pouco depois de chegar ao Brasil, a marcha de um grupo de integralistas – que macaquearam não só a ideologia fascista mas seu patético uniforme verde – naturalizou-se brasileiro em 1941 e tomou uma atitude de inusitada coragem, com o ingresso brasileiro no segundo conflito mundial, no ano seguinte:

Quando o Brasil resolveu entrar na Segunda Guerra Mundial, ele escreveu uma carta para o Getúlio Vargas, dizendo que estava disposto a pegar em armas para combater os alemães e italianos. Alguns dias depois recebeu um comunicado vindo das Forças Expedicionárias Brasileiras, que agradecia sua iniciativa, mas afirmava que não era o caso dele se alistar. Ele não foi para a guerra, mas começou a se envolver em política aqui mesmo. Melhor dizendo, em uma batalha pessoal da qual não se afastaria até seu último dia de vida. Havia naquela época, no Rio de Janeiro, uma base pequena ligada ao Partido Comunista que se empenhava em fazer pichações. Ele se uniu a este grupo e, após os concertos do Municipal, ainda vestindo a casaca de regente, saía para pichar os muros da cidade.

Edoardo na regência, Souza Lima no
Piano da PRA-6 da Rádio Gazeta
Dispensado honrosamente de servir no front italiano junto à FEB, Edoardo não recusou as ofertas que recebeu, na ocasião, de reger temporadas líricas tanto no OSSODRE (Orquestra Sinfónica del Sodre) de Montevidéu quanto no Teatro Colón, de Buenos Aires, o que fez durante os dois últimos anos da segunda guerra.

A rotina do casal Martinenghi Di Guarnieri – corrida e constante – torna plenamente compreensível o sentimento do filho Gianfrancesco, que anos depois diria que “não tive uma educação muito rigorosa mas também não fui paparicado. Tive quase tudo, mas nem sempre carinho”. Elsa e Edoardo não podiam parar. Trabalhavam para sobreviver. “Eles não me forçavam absolutamente a nada e procuravam sempre me satisfazer. Porém o trabalho exigia demais deles, então eu não tinha um convívio diário. Às vezes eu passava dias sem vê-los; eram ensaios, apresentações”...

Terminada a ditadura getulista, as ofertas profissionais no Rio escassearam. “Meus pais, durante algum tempo, ficaram fazendo ponte-aérea Rio-São Paulo, aqueles aviões da Panair, que eram terríveis”, conta Gianfrancesco. No fim dos anos 40 o casal foi definitivamente para a Paulicéia. “Meu pai já regia alguns concertos no Teatro Municipal de São Paulo e também os Concertos Dominicais da Rádio Gazeta”. O filho foi modesto; entre 1948 e 1950, Edoardo tornou-se diretor artístico da ALBA – Artistas Líricos Brasileiros Associados – criada sob os auspícios da primeira dama do Estado, Leonor Mendes de Barros – passou a fazer parte do corpo estável de maestros do Municipal e além dos tais “concertos dominicais” havia o “Roteiro Coral e Sinfônico”, “Noite na Ópera”, “Grandes Concertos” e o que aparecesse pela frente. Edoardo virou uma espécie de pau pra toda obra na popularíssima “orquestra PRA-6”, da Gazeta. No início de 1950 estava no ar pela emissora praticamente cinco dias por semana, fosse na “Cortina Lírica”, no “Soirée de Gala”, na “Sala de Concerto Schwartzmann”, nos programas patrocinados pelo Banco Francisco Amato e assim por diante.

 

Março de 1950 foi um mês fundamental. Primeiro porque o Departamento Municipal de Cultura, que estivera às moscas durante os primeiros três anos do governo estadual de Adhemar – que era quem fazia e desfazia na cidade e no Estado – mas agora engrenara sob a direção de José de Barros Martins, promoveu uma verdadeira maratona de concertos e sinfonias de Beethoven a ser realizada no Municipal, inteiramente sob a regência de Edoardo, acompanhado pela orquestra do teatro e tendo como solista o alemão naturalizado brasileiro Fritz Jank (1910/1970). O evento teve início no dia 3 e foi um sucesso retumbante.

Pau pra toda obra... Edoardo estava no ar praticamente todas as noites pela Gazeta...

Fritz Jank
E segundo porque no dia 10, o recém-empossado prefeito Linneu Prestes desengavetou e sancionou o Projeto de Lei 39 – 49, apresentado um ano antes pelo vereador Miguel Franchini, que instituía de uma vez por todas a Orquestra Sinfônica Municipal, o que significava dobrar o subsídio destinado à orquestra, aumentar os salários dos 90 músicos que a compunham e efetivar esses mesmos músicos, que até o momento trabalhavam por contrato e podiam ser dispensados de uma hora para outra.

A vitória era completa para Edoardo, porque além de ver melhorar a situação de seus colegas, a chamada “Lei Franchini” nomeou cinco diretores efetivos para a orquestra: João de Souza Lima, Mozart Camargo Guarnieri, Armando Belardi, Zacarias Autuori e o próprio Edoardo. Na sexta-feira, 24 de março, Edoardo subiu ao palco do Municipal para reger duas peças de Beethoven: a abertura de Coriolano, o Concerto n°3, op. 37 em dó menor e a 6ª Sinfonia, chamada “Pastoral”, com Jank e a Orquestra Sinfônica Municipal.

Na platéia, o escritor modernista Menotti Del Picchia (1892/1988), que na época era colunista do jornal A Gazeta e escrevia sobre teatro, literatura e demais assuntos ligados à arte. Embevecido com o que presenciou naquela noite, o célebre homem de letras eternizou suas impressões em uma coluna que trazemos ao lume depois de 63 anos.
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O REGENTE

Especial para A GAZETA, por MENOTTI DEL PICCHIA, da Academia Brasileira de Letras

Os músicos entraram com seus instrumentos, sentaram-se junto das estantes semeando de manchas pretas e de violentas cintilações de metal sob os focos das luzes o palco enorme. Uma inquietação de estranhos besouros serrando com seus ferrões pedaços de madeira agita o bando: são os violinistas que movem os arcos afinando os instrumentos. Uns músicos voltam as páginas da partitura e os caracóis metálicos dos trombones e das trompas se engancham nos smokings negros como anéis de serpentes de prata em troncos requeimados. Sons desarmônicos – miados de gatos, urros cavos de leões em grutas, pios de pássaros de par com pigarrear de gargantas gripadas – colore de uma pitoresca mistura acústica o ambiente onde a platéia, como um grande monstro, respira e tosse, aguardando com ânsia reprimida o início do concerto.

Baixam as luzes do recinto. Entra o regente!

Essa entrada é sempre espetacular. Lembra a aparição do toureiro que vai trabalhar a fulva fera. A fera é a platéia, que ele terá que dominar, entreter, bandarilhar com emoções e ferir mortalmente com os finais patéticos. Ele sabe qual a responsabilidade da batalha. Entra preocupado, com as maxilas apertadas, o que faz franzir seus lábios como se sorrisse forçadamente. É alto, magro, elegante. A casaca de abas compridas esvoaça ao seu passo nervoso e rápido, e ele lembra uma longa “tesoura” negra, dessas que mexem as duas móbeis penas da cauda quando pousam num beiral. As palmas explodem. E ele é o dominador! Voltou-se, do seu estrado para a platéia, tem a fronte pensativa, larga, onde a luz de um farolete aceso bem no alto da cena se desintegra, polarizando ali halo como se fora a fosforescente expressão do seu pensamento.

O bando dos músicos ficou como que congelado nos seus bancos. Estão todos eles imóveis, estatuados com seus instrumentos em posição de dar início à sinfonia. Todos os violinistas têm o violino sob o queixo, a mão a segurar o arco e todos os arcos juntos fazem um desenho simétrico, a dar a impressão de que aqueles músicos foram fabricados em série. Atrás, as colunas coríntias dos braços altos dos contrabaixos. Mais para trás, ainda, o bombo, os pratos, as timbales, os trombones, as trompas. Tudo está pronto. No silêncio que se fez, se ouviria o tic-tac de um reloginho de pulso.

Atenção! O regente ergue a batuta. Parece um mágico levantando sua varinha de condão e que vai realizar um prodígio. Todos estão suspensos – músicos e platéia – naquela varinha. Uma ânsia anelante está no ar, as respirações param. Subitamente, como um estrondo, a orquestra rompe, triunfal, a sinfonia.

Começa o milagre. O regente, com a máscara de quem está em transe mediúnico, transfigura-se. Está longe, no mundo maravilhoso das harmonias. Não se sabe se aquele rosto convulso, cataléptico, sofre ou goza: há uma ausência nele como se a alma lhe houvesse passado toda para as mãos, para os dedos nervosos, sensíveis como antenas, inquietas como borboletas. Eles começam a plasmar a música, a modelá-la como se fossem dedos de escultor e os sons material dócil e plástico, moldável aos seus movimentos. Pega essa massa acústica e afina-a num fio longo, torcido numa espiral luminosa, como se se tratasse de um pingo de vidro mole, desses que os mestres vidreiros de Murano filigranam em arabescos encantadores. Bruscamente lhe dá corpo, torna-a espessa, imponente, poderosa e elétrica, como o bojo negro de uma nuvem de tempestade. A varinha mágica continua a realizar prodígios. O regente multiplica-se em gestos, se estorce como um faquir em espasmos, agride a orquestra com gestos violentos de espadachim que quer atravessar algo com sua espada, ou se acalma, beatífico, embolado por um ritmo celeste, na ondulação lírica de um pianíssimo... Coisas prodigiosas nascem desses sons: flores, Campinas, pastores tocando cornamusas, amantes se beijando entre moitas de violetas, nuvens se estriando em céus irisados, gotas de chuva pingando das copas, águas de riachos cantando entre rebanhos belantes... A Pastoral de Beethoven!

Menotti Del Picchia
Aí está no que pensei vendo o grande regente Edoardo de Guarnieri nos dar uma das suas magistrais edições de Beethoven, tendo como companheiros de aventura o meu caro amigo Fritz Jank e a querida Orquestra Sinfônica, hoje oficializada, com cinco maestros, como se fosse uma composição de oitenta vagões com cinco máquinas puxando. No Brasil é assim: oito ou oitenta!
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Gianfrancesco e seu pai Edoardo
Pelos dez anos seguintes Edoardo viveu o fastígio de sua profissão. Preparou e regeu as primeiras apresentações mundiais das óperas como Izaht e A Menina das Nuvens, de Villa-Lobos, e Maria Petrowna, de João Gomes de Araújo. Depois de mais de 15 anos voltou a trabalhar na Europa, regeu na Polônia, na Tchecoslováquia e realizou extensa agenda de apresentações na União Soviética. Dirigiu Renata Tebaldi, Fedora Barbieri, Tito Schipa, Bidu Sayão, músicos como Arnaldo Estrella, Anna Stella Sehie e Rostropovich. Recebeu o prêmio das Associações de Críticos Teatrais de São Paulo e Rio inúmeras vezes, deu aula de música e além de maestro do Municipal, tornou-se assessor técnico do Departamento de Cultura. No meio de tudo isso, o filho único saiu sorrateiramente de sua asa e virou ator. Pouco depois escreveu uma peça – Eles não usam Black-Tie, em 58 – e emplacou um sucesso que o levou ao olimpo do teatro brasileiro. O pai acompanhou de perto o namoro do menino com a dramaturgia, desde a infância, quando chegou até a ser expulso de uma escola por escrever um texto que os padrecos do educandário consideraram subversivo, mas não havia nada que o preparasse para o que aconteceria com seu filho. Eis o que ficou na lembrança de Gianfrancesco, anos quase 50 anos depois:


Miriam Mehler e
Gianfrancesco Guarnieri
em cena de Eles não usam Black-Tie

Meus pais ficaram muito orgulhosos com o sucesso da peça. Meu pai, principalmente, com quem eu compartilhava um objetivo de vida: o de lutar contra as injustiças sociais. Ele gostava do que eu fazia, bem antes do Black-Tie, até o teatro do colégio no Rio, das pecinhas que eu escrevia por lá. Meu pai sabia que, de alguma maneira, ele tinha me tirado da música, mas não sabia que rumo minha vida tomaria. Quando ele viu o êxito da montagem, é como se dissesse que eu estava preparado para fazer outras coisas. No fundo, acho que ele sentia um orgulho tamanho do Black-Tie que é como se a peça tivesse sido escrita por ele.

Não é exagero dizer que o golpe de 64 foi mortal para Edoardo. Não só porque ia contra tudo que ele acreditava e era a verdadeira negação de um sacerdócio democrático e humanista que ele e o filho haviam abraçado fervorosamente, mas porque consistia na reprise odiosa de um estado ditatorial que o fez abandonar seu país, que ele encontrou em pleno vapor no Brasil (embora aplacado momentaneamente pela participação brasileira junto aos aliados) e que agora tentava se reinstalar. Era o recomeço de um pesadelo de perseguições e ameaças. Gianfrancesco fugiu para a Bolívia com Juca de Oliveira. Voltou quando ouviu, numa rádio de La Paz, que o pai fora preso e levado ao DOPS. A prisão ocorreu mesmo, mas durou apenas algumas horas. Pai e filho não tiveram outra alternativa senão continuar trabalhando. O desgosto, contudo, de ver o Brasil mergulhar novamente nas trevas de uma ditadura, minou a saúde do velho maestro.

Regina Duarte e Gianfrancesco em
"O Terceiro Pecado"
Em 25 maio de 1968, Edoardo foi ao Municipal para presidir uma banca que examinaria candidatos ao preenchimento de algumas vagas na orquestra sinfônica, em especial a do maestro russo Leon Kanievsky, que teria de se ausentar do país. Era tarefa a que Edoardo se entregava com afinco e dedicação, pois gostava de incentivar os novos músicos e homenagear os mais velhos, seus contemporâneos e companheiros que iam deixando a orquestra. Ao subir as escadarias do teatro, sofreu um aneurisma e caiu. Foi imediatamente acudido por pessoas próximas e levado ao pronto-socorro municipal, no Pátio do Colégio. Não resistiu. Morreu momentos depois. Completara 69 anos pouco mais de um mês antes. Sucedeu, então, a mais agridoce das coincidências; seu filho Gianfrancesco, na época, protagonizava com Regina Duarte a novela O Terceiro Pecado, de Ivani Ribeiro, na qual fazia o papel do Professor Alexandre, que era, na verdade, o mensageiro da morte. Ele recebeu a notícia em meio a uma gravação e não teve tempo de se trocar. O resultado é que não só foi paramentado de mensageiro da morte ao pronto-socorro, como ainda precisou, por um desencontro qualquer da funerária, dirigir o féretro até a Biblioteca Municipal, em cujo saguão o corpo de Edoardo foi velado, por todo aquele sábado. Na década de 90 Gianfrancesco contou ao programa Vídeo Show, com um sorriso de saudade, os olhares de pânico e estupefação que provocou em transeuntes que não reconheciam a ele, mas ao personagem, dentro do automóvel fúnebre.


Mozart Camargo Guarnieri
Edoardo deve ter sido um piadista incorrigível, porque essa não foi a única das situações de inesperada hilariedade provocadas por sua morte. Eis mais um fato, este pela primeira vez contado ao público paulista: por uma ironia do destino, Edoardo Di Guarnieri e Mozart Camargo Guarnieri tinham o mesmo sobrenome, basicamente a mesma formação artística, eram maestros, estabeleceram suas carreiras nos anos 30 e trabalhavam nos mesmos lugares, ou seja, os teatros municipais de São Paulo e Rio. Natural, portanto, que o público julgasse que eram aparentados, o que não o eram. Havia, porém, a mais sólida das amizades entre o veneziano Edoardo e taubateano Mozart. Em novembro de 1962, por exemplo, o governo carioca promoveu a divertida reunião dos Guarnieri na récita única da ópera Um Homem Só, que teve música de Camargo Guarnieri, libreto de Gianfrancesco Guarnieri e regência de Edoardo Di Guarnieri. Só quem estava lá (como Cecilia Thompson, na época esposa de Gianfrancesco), sabe a confusão em que estava o público, certo de que via uma ópera composta pelo pai, escrita pelo sobrinho e regida pelo primo, e variações de toda sorte. A questão é que quando morreu Edoardo, o lendário Correio da Manhã carioca – fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt e que contara, um dia, com totens como Ruy Barbosa em seu time de redatores – já no triste processo de decadência que levaria à sua extinção, seis anos depois, não teve dúvidas e matou Camargo Guarnieri!

O esplêndido quiproquó com os Guarnieri: o Correio da Manhã anuncia a morte de Camargo Guarnieri, e o próprio segura uma das alças do caixão de seu amigo Edoardo...

Em sua edição de 26 de maio o jornal noticiou a morte de Camargo Guarnieri, com direito à biografia e tudo mais. O público carioca, além da tristeza pelo passamento do competente maestro e compositor, deve ter perguntado por que cargas d’água o taubateano seria enterrado em Guarulhos. Mas o susto mesmo teria vindo se morassem na Paulicéia e pudessem ler o Diário de S. Paulo do dia 28, que mostrou a saída do caixão do saguão da Biblioteca Municipal para o cemitério de Guarulhos – cidade onde Edoardo residia há alguns anos – tendo a primeira de suas alças carregadas por ninguém menos do que o “defunto” Camargo Guarnieri, que para o bem da música e do Brasil, viveu bem e saudável até 1993. Já do Correio da Manhã não veio sequer uma errata, dias depois.

Gianfrancesco vela o pai (Diário Popular, 26/5/68)
Em sessão da Câmara Municipal de São Paulo, de 4 de junho de 1968, o vereador Benedicto Rocha, do MDB, fez um bonito elogio de Edoardo, e concluiu, dizendo:

A sua vida e a sua obra serão exemplos a estimular e a orientar os novos artistas. Elas valem por grandes serviços prestados à cultura nacional que terão continuidade, não apenas nos seus exemplos, mas nas atividades artísticas de seu filho, o jovem teatrólogo Gianfrancesco Guarnieri, que de seu pai herdou não somente a vocação, mas um grande e devotado espírito público.

A Sérgio Roveri Gianfrancesco foi taxativo: “Meu pai morreu um pouco de tristeza. Ele não agüentava ver a repressão que se instalou após o golpe militar de 64. Minha mãe se deixou levar quatro anos mais tarde, é como se tivesse optado por ir aos poucos”.

Sobre os pais de Gianfrancesco, eis o que disse Roveri, na introdução do livro que contém sua longa conversa com ele:

Artistas renomados, libertários e inimigos de qualquer regime que fizesse vistas grossas às desigualdades sociais, Edoardo e Elsa exerceram uma influência arrebatadora sobre a vida e a dramaturgia de Guarnieri. Transmitiram a ele não só o amor pela arte – primeiro a música, e depois o teatro – mas também uma semente de inquietação social, uma obsessão quase que genética pela defesa das liberdades individuais.

No encerramento, nada de apologias. Não era o estilo de Edoardo. Deixemos o próprio encerrar, com palavras que transbordam sua filosofia de vida e tudo aquilo no que ele sempre acreditou:

A música não deve atingir apenas a um pequeno grupo de iniciados. Sendo uma linguagem que evolui, inspira-se ela na vida dos homens. Deve falar a todos das alegrias, das dores, das angústias, enfim, de tudo o que diz respeito à sensibilidade humana e à realidade do período histórico na qual é transmitida, proporcionando beleza, serenidade, amor e o otimismo tão necessário à humanidade que luta, que sofre, que se debate. Obtém, assim, a música, o que é fundamental para todos os homens: paz e serenidade. (Diário de S. Paulo, 26/5/68)
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BIBLIOGRAFIA:

  • Khoury, Simon. Atrás da Máscara 1 – Segredos Pessoais e Profissionais dos Grandes Atores Brasileiros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984.
  • Roveri, Sérgio. Gianfrancesco Guarnieri. Um Grito Solto no Ar. São Paulo, Imprensa Oficial, 2004.
  • Correio da Manhã
  • Diário da Noite
  • Diário Popular
  • Folha da Noite
  • O Estado de S. Paulo
  • Última Hora
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Ver também:

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