Bibi Ferreira, aliás, como nossa maior atriz, é especialista em marcar a ferro e fogo as peças que realiza, com o selo de sua genialidade. Exemplo eloqüente disso foi o recente My Fair Lady, que passou longe da montagem de Paulo e Bibi, em 63.
Izabella Bicalho e João Fonseca acabam de provar que existe vida depois de Bibi e Gianni Ratto. Pode-se dizer que a jovem atriz – idealizadora e produtora do projeto – ajoelhou-se, fez uma reverência aos mestres, para em seguida destruir a pauladas o cadeado que impedia a Gota D’água de ser remontada. A direção de Fonseca é precisa e dá agilidade ao texto de Paulo e Chico, que é seivoso, de um vocabulário extenso e de diálogos lapidares.
As cinco amigas de Joana e os seis amigos de Jasão foram condensados em três homens e três mulheres, desfragmentando positivamente as conversas. A coreografia (de Édio Nunes) é dinâmica e as marcações são limpas e contribuem para essa agilidade. O cenário (de Nello Marrese) é vermelho e negro, cores da tragédia, do sangue, das maquinações sombrias, da corrupção, do desamor de Jasão e de toda a carga emocional que acompanha Joana. A iluminação (Luiz Paulo Nenen) é competente e despretensiosa, destacando o que deve ser destacado e mantendo na penumbra o que deve ser apenas notado e sentido. “Partido Alto” e “À flor da terra”, duas músicas de Chico que não pertencem à Gota, foram incluídas nesta encenação. A segunda música ocupa o fim do 1º ato e produz um dos momentos mais pungentes do espetáculo: depois da discussão violentíssima entre Jasão e Joana, em que ambos se xingam de tudo o que é possível e ele lhe dá dois ou três sopapos, ele sai e em meio às súplicas dela para que fique e escute o que ela tem a dizer. Entra, então, a música e a cena é repetida como se mostrada pelos olhos de Joana; ela intercala suas falas originais com os versos – inéditos, escritos exclusivamente para a montagem – da música. Terminada a canção, lindamente acompanhada pelo elenco, retoma-se o texto original, e Joana dispara: “Mas vou me vingar. Isso não fica assim, não...”. Pano rápido, prorrompem as palmas, metade do teatro aplaude e a outra enxuga as lágrimas.
O espetáculo, entretanto, pertence à Izabella Bicalho. A partir de sua primeira entrada – quase 20 minutos depois do início da peça – o público fica eletrizado, imantado, e cada cena se torna apenas uma espera para a próxima descarga elétrica de sua performance. Tudo em Izabella contribui para lapidar sua Joana; pequena como Bibi, ela se agiganta ao menor esgar, ao menor relance de seus olhos enormes e transbordantes de tragicidade, no andar lento e compassado, na postura carregada e tensa. Discutindo com Jasão ela se assemelha a uma pantera aprisionada numa jaula e nas explosões de fúria, vê-se plena demência e caos em seu olhar.
A voz de Izabella é um capítulo à parte. Embora seja atriz de carreira teatral sólida, experimentada em musicais os mais variados, interpretar um papel que já foi de Bibi – e que Bibi declara sem rebuços ter sido o melhor papel de sua vida – é tarefa ingente, e ninguém lá ignorava o fato de Izabella estar sendo comparada à grande dama a cada passo que dava. O público da Gota D’água, pelo menos no que tange a São Paulo, é um público maduro, dividido basicamente entre freqüentadores de teatro, conhecedores do texto e pessoas que viram a montagem original e estavam lá para avaliar a remontagem. Ninguém estava lá por passatempo ou por mero acidente. A expectativa, portanto, era enorme quando ecoaram os primeiros acordes de “Bem-querer”, assim como foi enorme a satisfação de se ouvir a voz de Izabella, dramática, chorosa, e não obstante, perfeitamente límpida, desfiando os versos de Chico. O público deleitou-se e aplaudiu generosamente, repetindo as palmas na bela interpretação de “Mais um dia”. Mas o clímax do espetáculo ocorreu na admirável rendição de Izabella para “Gota D’água”, logo após o último diálogo de Joana e Jasão.
Sob o impacto da conversa, em que supostamente fazem as pazes, ela canta a música com a voz cortada, rouca, em jatos curtos, quase chorando. Finda a canção, depois de construir uma atmosfera de profunda emoção ela recomeça, desta vez despejando sobre o público emocionado, os versos em toda a plenitude de sua voz poderosa, encorpada, doce e violenta, triste e vigorosa, com toda a força de sua dramaticidade, num crescendo envolvente, estarrecedor que fez tremer o teatro, até o fim arrepiante, catártico, seguido por uma explosão de aplausos que demorou a arrefecer.
O sucesso da temporada paulista de Gota D’água – com ingressos esgotados para todas as sessões – é mais do que merecido e o mérito se deve inteiramente à Izabella. Sua performance é das mais brilhantes que já vi em toda a minha vida. Só espero que Bibi Ferreira consiga uma folga do seu Às favas com os escrúpulos para ver a maravilha de interpretação que vem recebendo o personagem criado por ela, na antológica Gota D’água de 1975. (16/6/2008)
eu concordo com tudo que foi dito sobre Isabella e este espetaculo magnífico.Fico orgulhosa do talento e força dessa mulher que conheci tão pequenina fazendo uma narizinho engraçada e adoravel,na historia de Monteiro Lobato.
ResponderExcluirAssino em baixo que este espetáculo deveria viajar o mundo representando o Brasil.
Amo Isabella Bicalho e desejo que mais coisas lindas venham ao seu alcance.
Bjos Tamara taxman
Bernardo:
ResponderExcluirParabéns pelo seu trabalho minucioso e pela paixão à cultura teatral que você demonstra. Uma página impressionane e de inestimável contribuição aos que amam o teatro brasileiro e os seres artistas que o habitam. Cordial abraço, Carlos Guimarães Coelho - jornalista e produtor cultural (Uberlândia - MG)
Que arquivo maravilhoso...A história do teatro ao nosso alcance...Amei e vou sempre pesquisá-lo sempre(Maria Lucia/Mongagua/SP)
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