domingo, 29 de julho de 2018

Minestrone Cultural XIII


DISNEY DEIXA A ABRIL

Primeiro número de "O Pato Donald", em julho de 1950

A Editora Abril encerra a venda de revistas em quadrinhos dos personagens Disney no Brasil.

A que ponto de incompetência é preciso chegar para cancelar os gibis da Disney, considerando que a editora foi fundada há 68 anos com a publicação do número 1 do Pato Donald?? Que a Abril perdesse Maurício de Souza para a Globo na década de 80 entende-se perfeitamente bem; foi uma questão de milhões de dólares, beleza, chega um ponto em que não dá mais para competir.

Civita na década de 60, com as provas do gibi
Mas qual é a desculpa, agora? Que os personagens da Disney não sobrevivem em um mundo "marvelizado"? Que não há como deixar a Margarida e a Minnie adolescentes e gostosas, como fez Maurício com as personagens da Turma da Mônica?

O que faltou foi que a editora se dedicasse minimamente a essas publicações. Só isso. A marvelização e a sensualização dos quadrinhos é uma tendência como qualquer outra, e se por um lado torna-se popular de tempos em tempos, por outro cria um nicho de pais e adultos que vão fielmente atrás dessas publicações mais antigas e mais saudáveis. É o que mantém vivos produtos como o Chaves, o Barney, os Muppets, os Teletubies, e assim por diante. Foi sempre assim. Para um pai que compra para o filho o gibi do Batman - sombrio e revoltado - haverá dois comprando o gibi do Tio Patinhas, em busca de algo menos triste e depressivo. É costume que se cria muito cedo.

Lamento horrivelmente e espero que outra editora recolha essa herança estupenda que a Abril está jogando no lixo. Victor Civita deve estar se revirando de tristeza em sua sepultura. (10/06/2018)

Aqui a mensagem que ele escreveu quando morreu Walt Disney: "O mundo será mais feliz enquanto essa mensagem estiver presente. E sabemos que isso acontecerá, porque em cada coisa, em cada personagem, viverá o mundo encantado de Walt Disney".


CONTRATIEMPO (2016)


Espetacular.

Mais um thriller de primeiríssima categoria dirigido por Oriol Paulo, que já nos dera o excelente "El Cuerpo" em 2012. Trama intrincada, inteligente, envolvente, palindrômica, que é tudo menos previsível. É a Espanha mostrando que ainda é possível fazer um suspense de qualidade.

Obrigado por mais essa indicação, meu mano Leandro. (07/06/2018)

Идиот ("O Idiota", 1958)

Direção e roteiro de Ivan Pyryev baseado no livro de Dostoyevskiy. Não tenho muito a comentar, a não ser para dizer que se trata não só da melhor adaptação de Dostoyevskiy que já assisti, mas de uma das melhores adaptações literárias em geral. O roteiro é ótimo, a direção é excepcional e o elenco é de raríssima qualidade. Yuriy Yakovlev está muito bem como o príncipe idiota, Nikita Podgorny é um Ganya perfeitamente fraco e desprezível, e Leonid Parkhomenko é um Rogozhin irretocável; um bully por natureza.

Mas não há nada que se compare a Yuliya Borisova no papel de Nastasia Philippovna. Com o passar dos anos tenho me tornado cada vez mais chato e exigente com relação ao trabalho de atores e atrizes, e afirmo sem qualquer receio que essa é facilmente uma das melhores performances que já assisti. Um trabalho absolutamente magistral. Não consegui desgrudar meus olhos de Yuliya de sua entrada à sua saída. Me dá calafrios imaginar uma montagem hollywoodiana deste livro, assim como incluir Yuliya em uma competição como o Oscar, porque atrizes de seu quilate estão completamente fora dessa bitola. Seria uma covardia.

Yuliya Borisova: superior


Идиот é um exemplo de filme da soviética Mosfilm: sobra talento, faltam recursos. O "two-strip" technicolor - tudo vermelho e verde - que Hollywood já abandonara há uns vinte anos, ainda é usado aqui. Não deixa de ser interessante e dá uma tonalidade meio gótica, de filme colorizado a mão. Seja como for, a simples presença de Yuliya Borisova (hoje com 92 anos) vale mil vezes a experiência.

Recomendo. (11/06/2018)

SNOWY THE MOUSE MAN

"Snowy the Mouse Man", de Don McCullin (1973)

No início da década de 90, quando fiz minha primeira visita ao teatro da Aliança Francesa, na General Jardim, fiquei profundamente impactado com uma imagem: entre os vários cartazes de montagens teatrais do mundo inteiro que adornavam o saguão, havia um, em particular, de uma montagem francesa do Lear, de Shakespeare, que trazia a foto de um velho cercado de camundongos, sendo que um deles estava entrando conspicuamente em sua boca. Sempre que ia ao Aliança eu admirava a foto do cartaz. Imaginava que maravilha de ator era aquele velho de olhos esbugalhados, e quão realista e assustadora devia ser a cena da loucura de Lear nos campos de Dover.

A propaganda que vi no Teatro
Aliança Francesa
O tempo passou e nunca esqueci a imagem. Só recentemente encontrei a mesma foto e desvendei o mistério todo. A foto foi usada pelo Théâtre National de Strasbourg, companhia de Estrasburgo, na França, para a temporada de 1985/86, cujo grande destaque era uma montagem do Rei Lear com direção de Matthias Langhoff e Serge Merlin no papel título. Só que foi com profunda decepção que verifiquei não ser Merlin o velho da foto.

A foto chama-se "Snowy the Mouse Man", e foi tirada em Cambridge, em 1973, pelo fotógrafo inglês Don McCullin. Quando um postal com essa foto começou a vender aos milhares na Austrália, em 1987, McCullin deu uma entrevista ao The Sydney Morning Herald. Disse que encontrou o sujeito no meio da estrada ao lado de um barril de sorvete: This extraordinary character, who collects for charity, is well-known in Cambridge as Snowy ... He wanted to be photographed ... he looked at me with cheeky blue eyes, opened his mouth and put the live mouse in. He leaned his head back and laughed. The mouse was licking the roof of his mouth and his tongue, putting its head in and out, and at the same time another was all over his beard. (17/06/2018)

GOTTI (1996 e 2018)

Dois filmes sobre o chefão novaiorquino John Gotti. Acabo de assistir a versão lançada este ano, com Travolta no papel-título, mas não pude deixar de lembrar constantemente da versão de 1996, com Armand Assante, que me impressionou muito, na época: o roteiro de Steve Shagan, baseado em um livro de Jerry Capeci e Gene Mustain sobre Gotti (ainda vivo e na cadeia, mas não devastado pelo câncer), é enxuto, bem escrito e se concentrava na relação de Gotti com seus capangas Sammy Gravano (William Forsythe), Frank DeCicco (Robert Miranda), Robert DiBe (Frank Vincent) e a Cosa Nostra. O elenco era brilhantíssimo e o velho chefão Neil Dellacroce foi interpretado por ninguém menos do que Anthony Quinn. Armand Assante está fantástico! É simplesmente a melhor performance de sua carreira. Concorreu ao Globo de Ouro e ao SAG, e levou o Emmy. Um trabalho riquíssimo, completo, uma jóia de criação, porque Assante não tem rigorosamente nada a ver com Gotti fisicamente, mas criou um Gotti que transcende o real. É um personagem à parte, com vida própria. Robert Harmon dirigiu e seu trabalho foi impecável. É um filme notável sob todos os aspectos, e nada fica a dever aos épicos de Scorsese sobre a máfia.

Já a versão de Travolta peca fundamentalmente nesses dois quesitos principais: direção e roteiro. A primeira foi para Kevin Connolly, um rapaz inexperiente que trabalhou como ator a vida inteira. Seu trabalho é inexpressivo e não memorável. O roteiro não vem de nenhum livro e foi escrito pelo bissexto Lem Dobbs, que não tem quaisquer créditos mais significativos em seu currículo, e por Leo Rossi, competentíssimo como ator mas virtualmente desconhecido como roteirista. O texto não é ruim, mas também não é bom. Pincela, apenas, a vida criminosa de Gotti e desenvolve um pouco mais sua relação com o filho John Jr. Imagina-se, portanto, que o filho do mafioso tenha colaborado com o roteiro e justamente por isso esperava-se algo muito melhor e inédito. E o que se vê é quadrado e sem novidades. O papel da mulher de Gotti (Kelly Preston, esposa de Travolta na vida real) ganha um pouco mais de relevo mas sem maior profundidade. Travolta também não superou a expectativa que se tinha do que seria seu trabalho; é bom, mas assim como o Robert Shapiro que interpretou na minissérie sobre OJ, seu trabalho aqui está mais na área da curiosidade do que no da excelência interpretativa.

John Gotti
A trilha sonora é desencontrada e irritante e não há imagens marcantes da Nova York dos anos 80 e 90. A cidade certamente não é um fator, no filme. A bem da verdade a versão de Travolta não glamouriza a máfia como geralmente é feito em Hollywood. É digno de nota porque Gotti se notabilizou pelo vestuário caro e sofisticado, o que se encaixa no paradigma criado por Coppola e Scorsese, de mafiosos sempre bem vestidos, com os ternos reluzentes e recém-saídos do alfaiate. O filme de Assante mostra isso na medida certa, mas talvez o diretor tenha tomado uma certa liberdade poética, emprestado ao grupo uma aura de elegância que nem todos possuíam ou mereciam. O filme de Travolta é mais seco e mais real nesse aspecto. O elenco em geral é bom. Os destaques são para Pruitt Taylor Vince no papel de Angelo Ruggiero. Vincent Pastore já fizera muito bem o papel de Angelo mas Pruitt lhe deu coloração mais dramática; e o velho e bom Stacy Keach, no papel de Neil. Leo Rossi (um dos roteiristas, como se viu) está muito bem mas o sempre ótimo Chris Mulkey é subaproveitado.

Recomendo o filme com Assante, de 1996, para quem quer conhecer a história de Gotti, e o atual, pela curiosidade de ver Travolta no papel do mafioso. (29/06/2018)

NETFLIX

Os filmes de ficção científica produzidos (ou distribuídos) pela Netflix são tão rasos que deveriam deixar de ser filmes e se tornar episódios da série "Black Mirror", de uma vez. Conquanto seja impossível não admirar a quantidade de produções concomitantes, entre séries e filmes, e o extraordinário apuro técnico delas, a qualidade artística e criativa foi posta em segundo plano. Só neste primeiro semestre - até onde eu sei - a Netflix já lançou quatro filmes do gênero: "Annihilation", "The Titan", "Tau" e "The Cloverfield Paradox". Todos muito bem feitos. Produção, nota dez. Criatividade e desenvolvimento (com exceção o último), nota dois.

"Annihilation" é sobre uma bióloga cujo marido desaparece e ela então aceita fazer parte de uma expedição por um território misterioso e cheio de perigos, a fim de descobrir o que aconteceu com ele. O filme é calcado no magnífico "Stalker", de Tarkovsky. Só que com os valores artísticos invertidos: o filme russo tem uma produção relativamente tosca mas a história é tão boa que nem reparamos. Já o filme com Natalie Portman é um primor de computação gráfica e efeitos especiais, que acaba suprindo a inanição do resto. Se me perguntarem o que achei, tenho apenas uma resposta: Assista "Stalker". Não há por que perder tempo vendo um genérico hi-tech.

"The Titan" é sobre uma experiência que consiste em "anfibizar" seres humanos para que eles possam viver em uma das luas de Saturno. A premissa de viver em outro planeta porque a Terra já deu o que tinha que dar teve seu ápice no maravilhoso "Interstellar" e está hoje um pouco gasta. Quanto a humanos virarem anfíbios, a idéia é interessante mas aqui o tema é tão mal-desenvolvido e o roteiro é tão idiota que no meio do filme já se tem uma sensação concreta de "wtf". Aquilo que em "Avatar" é feito de forma sensível e empolgante - um ser humano que se transforma em uma espécie alternativa, diferente e evoluída - aqui me trouxe à lembrança "O Homem Cobra", um dos filmes mais trash dos anos 70. Sam Worthington basicamente vira um sapo-humano e a história termina sem pé nem cabeça.

"Tau" é o nome dado por um cientista a seu computador, assim como Tony Stark tem o Jarvis e em "2001" havia o Hal 9000. Mesmíssima coisa.

Em "Tau", o cientista sequestra pessoas e faz experiências neurológicas para enriquecer um algoritmo de inteligência artificial com que alimenta o seu computador, e com o qual espera fazer uma descoberta sensacional que lhe valerá um contrato de um bilhão de dólares. Mas, assim como acontece no épico de Kubrick (e "Ex Machina", e "A.I." e dez outros filmes do mesmo tema), a inteligência artificial acaba ficando muito curiosa e desenvolvendo interesses que não devia. Daí para se rebelar contra o criador é um pulo.

Todos funcionariam melhor como episódios de quarenta ou cinquenta minutos. Tal como foram feitos, são balões. Voam muito bem por vinte minutos e esvaziam, seja por não terem maior conteúdo, ou pela pressa com que a Netflix precisa colocar esses produtos no mercado. Com todo essa produção, elencos milionários e distribuição mundial, são cinema de segunda categoria.

"The Cloverfield Paradox" é um pouco diferente. Foi o primeiro a ser lançado, este ano, e é também o melhor deles. Mas existe toda uma pré-história; este é o terceiro filme de uma franquia que começou em 2008 com o filme "Cloverfield", escrito por Drew Goddard, dirigido por Matt Reeves e produzido sob os auspícios de J.J. Abrams. Pertence ao gênero "documentário de terror" - em que depois de alguma tragédia é encontrada uma câmera com material filmado pelas vítimas - inaugurado com "A Bruxa de Blair" em 1999 e ressuscitado em 2007 com "Atividade Paranormal". "Cloverfield" conta a história de um rapaz que ganha uma festa de despedida antes de ir trabalhar no Japão e durante essa festa Nova York é atacada por um monstro no estilo de Godzilla. Ao invés de tentar se proteger, como o resto da população, o rapaz resolve resgatar a menina por quem está apaixonado, e que está presa nos escombros de seu próprio apartamento. Um grupo de amigos vai com ele e eles registram a desgraceira causada pelo monstro.

O filme é muito bom e fez um grande sucesso mas provavelmente com medo de "Cloverfield" se tornar uma franquia idiota que tisnasse o brilho do primeiro filme (a exemplo do que aconteceu com "Atividade Paranormal"), J.J. Abrams esperou oito anos para voltar ao tema. E quando voltou, como produtor, não se tratava de uma continuação, mas de um filme completamente diferente, tendo um ataque de monstros como distante pano de fundo. Desta vez a direção e roteiro são de um bando de outras pessoas e Drew Goddard e Matt Reeves constam como produtores executivos.

Mary Elizabeth Winstead e John Goodman
É um thriller psicológico sobre Michelle (Mary Elizabeth Winstead), que se separa do marido e sofre um acidente no meio da estrada. Quando acorda verifica que foi raptada e está em uma espécie de abrigo nuclear. O sujeito que a raptou (John Goodman) lhe diz que é para seu bem pois a região sofreu um ataque ainda desconhecido e o ar se encontra contaminado. Aos poucos ela vai descobrindo que as razões do sujeito estão longe de ser humanitárias. É outro filme perfeitamente assistível, sobretudo pelo trabalho de John Goodman e da sempre subestimada Mary Elizabeth Winstead. E assim como o primeiro, foi muito bem na bilheteria.

Chegamos, por fim, a "The Cloverfield Paradox". A mesma fórmula do segundo filme é utilizada, ou seja: Abrams na produção, Goddard e Reeves na produção executiva e um grupo diferente na direção e no roteiro. E mais uma vez, não se repetem estilos; se o primeiro foi um documentário de terror e o segundo foi um suspense psicológico, este praticamente deixa os monstros de lado e mergulha na ficção científica. "The Cloverfield Paradox" fala sobre a tentativa de fazer funcionar uma gigantesca estação espacial cuja tecnologia permitirá a descoberta de novas fontes de energia, já que as da Terra andam no talo. E - é claro - de suas conseqüências funestas.

Gugu Mbatha-Raw
Não pude deixar de me perguntar, assim que morreu o primeiro dos integrantes da equipe (uma morte a la John Hurt em "Alien", aliás): por que é que sempre tem que dar merda quando esse povo vai para o espaço? Por que as descobertas não podem ser bonitinhas, de planetas legais, paradisíacos onde tudo dá certo? Enfim, o procedimento dá errado e o overload de energia liberada causa uma rachadura dimensional; o chamado "entrelaçamento quântico", em que duas realidades separadas mas semelhantes se encontram. A estação e sua equipe somem dos radares e vão parar em uma dimensão paralela. De quebra ainda encontram uma pessoa dessa realidade alternativa na estação. Alguns comentários sobre esse filme dão a entender que esse seria o link para os filmes anteriores: é a utilização dessa tecnologia que teria tirado o universo dos eixos e trazido variados Godzillas para nossa dimensão, assim como para outras.

Gugu Mbatha-Raw: ótima
Em termos dos filmes de ficção científica da Netflix, este aqui está bem acima da média. Efeitos especiais, como sempre, nota dez. O elenco é muito bom e especialmente valorizado pela presença da linda e ótima Gugu Mbatha-Raw, da desperdiçada chinesa Ziyi Zhang e do competente (e onipresente) Daniel Brühl. Quanto à história e o roteiro, são as grandes fraquezas da Netflix; neste caso a história é até boa e bem desenvolvida, mas nos deixa sempre com aquela sensação de que nas mãos de Spielberg ou de Christopher Nolan - e não de um time designado pela Netflix para realizar um, entre dezenas de outros filmes - poderíamos ter algo verdadeiramente memorável.

Mas recomendo por Gugu Mbatha-Raw e Daniel Brühl. (01/07/2018 e adendo do texto sobre "The Cloverfield Paradox" em 25/09/2018)

DANCING LADY (1933)


Quando a Warner lançou com grande sucesso os musicais "42nd Street" em março de 1933, "Gold Diggers of 1933" em maio e "Footlight Parade" em dezembro do mesmo ano - todos sobre as dificuldades e agruras enfrentadas por um diretor e sua companhia na produção de um espetáculo da Broadway - sendo os três estrelados por Ruby Keeler com coreografias de Busby Berkeley, os demais estúdios foram obrigados a rever suas próprias técnicas de produzir musicais. A MGM, sobretudo, que pensava ter os melhores compositores, artistas e o know-how de pioneira no gênero, foi pega de surpresa. E assim, às pressas, surgiu "Dancing Lady", com direção de Robert Z. Leonard. O pano de fundo, a exemplo dos outros filmes, é a montagem de um musical da Broadway.

Joan e Clark em "Dancing Lady"
O diferencial é o elenco. Enquanto a Warner usava estrelas de seu segundo time - como Ruby Keller, Joan Blondell e a jovem Ginger Rogers, apenas ocasionalmente usando astros como James Cagney - a MGM usou de cara sua artilharia de elite: Janie Barlow (Joan Crawford) é uma dançarina de vaudeville que consegue uma chance na Broadway com o diretor Patch Gallagher (Clark Gable), graças a Tod Newton (Franchot Tone, com quem Crawford se casaria em 1935), um milionário que se apaixona por ela. Provavelmente com medo de que Crawford, Gable e Tone não conseguissem vender sozinhos um musical e perdessem no quesito comédia - que Joan Blondell, Guy Kibbee, Frank McHugh e Hugh Herbert tiravam de letra na Warner - a MGM contratou ninguém menos do que Os Três Patetas, em início de carreira, para coadjuvar um dos números de Crawford. Como se não bastasse, Fred Astaire fez sua estréia cinematográfica nesse filme (o que faz de Joan Crawford sua primeira parceira de dança), e o número final é cantado por Nelson Eddy, outro artista que brilharia intensamente na década de 30.


Foto promocional de Fred e Joan
para "Dancing Lady"
Com tudo isso, "Dancing Lady" é um filme apenas regular. Crawford era uma boa atriz, muito bonita e carismática, mas seu talento de dançarina é limitado e números musicais burocráticos e longos não são sua praia. Sua parceria com Fred Astaire é risível perto do que ele faria com dançarinas de verdade, como Ginger Rogers ou Rita Hayworth. A verdade é que a MGM embarcou numa canoa furada, porque os musicais de Busby Berkeley são algo que impressiona durante cinco minutos e perde a graça. Ruby Keeler não tinha um pingo de talento. Era canastrona, não cantava e não dançava nada, só entrou no cinema porque era casada com Al Jolson, e dos três filmes mencionados no início, "42nd Street" se salva por Ginger Rogers e os outros dois só existem graças à beleza e o talento de Joan Blondell. Com efeito, não havia qualquer mérito em imitar a Warner em um estilo que a Warner aperfeiçoou e fazia melhor. É como a Globo tentando superar a Manchete em erotismo ou o SBT em baixaria. Era necessário superá-los em qualidade. E a MGM só conseguiu fazer isso em 1935, com "The Broadway Melody of 1936". Abandonou-se a escalação equivocada de atrizes dramáticas (ou sem qualquer talento, como Keller, no caso da Warner) para protagonistas de comédias musicais românticas, e entregou-se a incumbência a Eleanor Powell, que engoliu todas elas e cuspiu o caroço.

Não obstante, "Dancing Lady" é um musical agradável. Crawford e Gable tinham uma bela química juntos, Tone também é ótimo e o filme se assiste com prazer. (10/07/2018)

OUR BIG LOVE SCENE
com Bing Crosby (1933)


"Going Hollywood" é a história despretensiosa de uma professora de um colégio de freiras (Marion Davies) que decide abandonar essa carreira para seguir o cantor por quem é apaixonada (Bing Crosby) até Hollywood. A complicação vem pelo fato de que eles sequer se conhecem, ela é uma "groupie" e está mais para "stalker" do que para fã. No meio do caminho revela talentos que desconhecia e consegue um emprego como atriz, o que lhe facilita acesso ao ídolo.

Marion Davies em foto promocional
de "Going Hollywood"
É sabido que Marion foi amante do magnata da imprensa norte-americana, William Randolph Hearst, por praticamente toda sua vida. Também não é segredo que a Cosmopolitan Productions, que produziu o filme com a Metro, era bancada por Hearst. O que acabou em segundo plano, abafado pelas fofocas, pelas intrigas e pelo retrato deplorável e injusto com que Orson Welles depinta a atriz em seu clássico "Citizen Kane", é que Davies tinha talento. Talvez não fosse tão talentosa quanto Hepburn, não cantasse tão bem quanto Jeanette MacDonald e não dançasse tão bem quanto Eleanor Powell, mas estava bem acima da média; era dramática, quando necessário, sabia demonstrar emoção sem afetações ou exageros, e era uma exímia comediante, até na opinião de seus detratores. Dizem os contemporâneos - e há prova disso em alguns de seus filmes - que ela era a melhor imitadora de suas colegas de cinema, como Garbo e outras. Em "Going Hollywood" há um exemplo eloqüente disso, já que a cena em que Marion imita Fifi D'Orsay cantando, com sua voz e seus trejeitos exagerados, é possivelmente seu ponto alto em todo o filme.

Marion e Bing na cena final
Tudo isso acabou esquecido e a carreira da atriz feneceu. Hoje ela certamente teria um sitcom de sucesso e faria filmes ocasionalmente, como tantas atrizes em Hollywood. Em última análise, não resta dúvida de que o patrocínio forçado de Hearst mais atrapalhou do que ajudou. De uma forma ou de outra, "Going Hollywood" é produto de grande qualidade. Em primeiro lugar não se trata de um musical, propriamente, gênero que Marion - assim como Joan Blondell, outra maravilhosa comediante sem talento para o canto ou a dança - não poderia estrelar sozinha, pois seria necessário uma parceira para o cantor ou dançarino protagonista. O filme é uma comédia romântica musical, onde brilham o talento cômico de Marion e a esplêndida voz de Bing Crosby.

A história é de Frances Marion, que vinha de receber dois Oscars por roteiros originais, em 30 e em 32. O roteiro é do não menos célebre Donald Ogden Stewart, mais tarde oscarizado por seu roteiro de "The Philadelphia Story", com Kate Hepburn e Cary Grant. A direção ficou nas mãos do talentoso e tarimbado Raoul Walsh; o protagonista, Bing Crosby, estava em início de carreira e prestes a tornar-se o maior cantor norte-americano. Foi escolhido a dedo por Marion (para desgosto de Hearst, que não gostava do cantor e teve que aceitá-lo por instância não apenas da amante mas dos compositores da trilha sonora), emprestado pela Paramount, que vinha desperdiçando-o em comédias menores. "Going Hollywood" catapultou a carreira de Bing e ele passou a fazer parte do primeiro time de astros da Paramount.

Partitura de "Our Big Love Scene"
A cereja do bolo, entretanto, é a magnífica trilha sonora de Nacio Herb Brown (com letras de Arthur Freed). O compositor tinha o toque de Midas e foram raríssimos os filmes com suas canções que não se tornaram grandes sucessos. Este não é exceção. Aliás, este figura no topo, com uma das mais lindas canções compostas por Brown; é "Our Big Love Scene". É curioso questionar a razão pela qual essa magnífica canção ficou de fora de "Singin in the Rain", sentida homenagem de Gene Kelly a Brown e Freed. Talvez porque a versão de "Going Hollywood" seja definitiva. Aqui vai a cena final do filme, a canção e o número musical em destaque. Cantada por Bing, com a belíssima cenografia que mostra a orquestra conduzida por Lennie Hayton em um espaço estilizado e futurista, é o que de melhor se produziu em Hollywood naquele ano, e uma das cenas mais lindas desse gênero ainda tão pouco explorado, da comédia musical romântica. (23/07/2018)



WESTWORLD (1973/2016)

Publiquei recentemente um pequeno comentário sobre três filmes escritos por Michael Crichton, dois deles dirigidos pelo próprio. Deixei de fora "Westworld", escrito e dirigido por ele, justamente pela oportunidade de mais tarde comentar o filme de 1973 e a série que começou a ser produzida em 2016.

1 - Sobre o filme - O escritor teve a inspiração do parque de diversões com personagens "humanos" na atração "Piratas do Caribe", da Disney, que utilizava robôs muito bem-feitos para a época. Desenvolveu então o conceito pelo qual a pessoa que vai a um parque de diversões não se limita a assistir, apenas, mas a interagir com os personagens. Essa interação inclui desde conversar com os robôs, até sexo e violência. O parque tem três ambientes: Velho Oeste, Idade Média e Roma Antiga. O filme, entretanto, concentra-se no Velho Oeste, onde chegam dois amigos, Richard Benjamin e James Brolin, sendo que James está vindo pela segunda vez.


Conforme consignei no comentário anterior, Crichton tinha o mesmo problema de 90% dos escritores/diretores em Hollywood: escrevia muito bem, dirigia muito mal. "Westworld" é brilhantíssimo como idéia, mas peca horrivelmente como execução cinematográfica. O roteiro, que deveria valorizar e explorar a fundo o excelente elemento de ficção científica contido na idéia, não só se mantém na superfície, como ainda pende, detestavelmente, para a comédia. Crichton não tinha talento para misturar as duas coisas, então veremos o humor norte-americano mais idiota em uma cena, e um assassinato sangrento na cena seguinte. O resultado é que temos 88 minutos rasos e que não prendem a atenção o tempo todo. Basta dizer que a versão original era mais longa e foi editada a pedido de Crichton, que ficou entediado com seu próprio trabalho.

Yul Brynner
A ação se passa em dois ou três dias e a trama é de que um belo dia os robôs dão defeito, não respondem ao comando dos cientistas e começam a atacar os visitantes até que a bateria deles acaba. Ou, no caso de Yul Brynner - o maravilhoso vilão do parque - até ele ser baleado, banhado com ácido e incendiado por Richard Benjamin, em morte espetacular que James Cameron basicamente copiou/homenageou no "Exterminador do Futuro". Fim. Não há maiores explicações, ninguém sabe o que causou os problemas, por que a segurança do parque era tão ruim, não se fala do dono, de nada. É o mais complicado dos paradoxos de Crichton: por sua execução, "Westworld" não passa de um filme B. Só que a idéia é tão boa e a performance de Yul Brynner é tão marcante que, tanto quanto é um filme ruinzinho e esquecível pela ausência de méritos cinematográficos, ele é pedra angular de filmes como "O Exterminador do Futuro", de personagens como Michael Myers em "Halloween", um sem-número de filmes sobre Inteligência Artificial e o reboot do tema feito pelo seu próprio autor, em "Jurassic Park".

2 - A série é BEM diferente. Baseia-se na idéia e mais nada. A história foi largamente aumentada, introduzindo-se o personagem do criador, do seu sócio, fundador do parque, dos cientistas responsáveis pela criação das histórias e da personalidade dos robôs, os executivos da Delos, e assim por diante. Existe e se sobressai, na série, o questionamento moral que sequer é aventado no filme. O conflito "máquinas x humanos x alma" é o mote da série. É um enredo bem amarrado e suscita o interesse pelo que vem na semana seguinte. Não sei se é material para uma série longa, de fôlego. Acredito que não, mas em Hollywood tudo é possível.

Há barriga, como em qualquer série, e ela talvez até comprometesse o produto final, se os produtores não tivessem dado duas cartadas certeiras: a primeira foi colocar Anthony Hopkins como ator convidado. O velho mestre continua charmoso, talentoso e carismático como sempre, embora suas performances nos últimos anos tenham acusado um certo cansaço. E a segunda, e principal, é a ressurreição de Evan Rachel Wood.

Evan Rachel Wood: como sempre, uma visão celestial

A loira, que maravilhou o mundo televisivo há dezenove anos com "Once and Again", considerada a mais linda e talentosa atriz jovem dos Estados Unidos em muitos anos, jogou no lixo pouco depois uma carreira que prometia ser das mais brilhantes e exitosas, mergulhando de cabeça no lado negro da força. Até namorar aquela aberração com corpo de ave aquática e rosto de boneco dos Jogos Mortais, chamada Marilyn Manson ela namorou. Queimada, sumiu do radar hollywoodiano por mais de uma década e reapareceu agora, aos trinta anos, aparentemente curada de sua sandice juvenil, ainda esbanjando talento e beleza como se nada tivesse acontecido.

Evan Rachel é o trunfo de "Westworld". Enquanto ela for protagonista, valerá a pena assistir a série. (26/07/2018)

THE DEVILS (1971)

"The Devils", dirigido por Ken Russel, conta a história de Urbain Grandier, padre francês do século XVII, que é acusado de ter um pacto com o demônio e de aterrorizar sexualmente as freiras de um convento ursulino da região. Embora falsa, a acusação poderia passar por verdadeira pelo fato de que Grandier era um homem bonito, devasso, e a batina não o impediu de ser um dos mais contumazes mulherengos da cidade de Loudun. Mas suas inúmeras conquistas, e até o fato dele ter se casado extra-oficialmente com uma moça séria e virtuosa jamais incomodaram o clero ou o rei. Seu pecado foi político: ele era a figura mais prestigiosa da cidade e sendo um local de grande contingente de huguenotes, o cardeal Richelieu resolveu botá-la abaixo, a fim de aumentar seu próprio poder no sudoeste da França. Grandier se opôs e a milícia que tinha a seu dispor botou os soldados de Richelieu para correr. Foi onde se iniciou seu calvário.

Eu não conhecia esse episódio, que se confunde com tantos outros da mesma época, em diferentes lugares do mundo, em que a igreja católica espalhou o terror da possessão demoníaca para atingir objetivos políticos ou de qualquer outra natureza, menos religiosos ou cristãos. E também não sabia que o grande Aldous Huxley se debruçou sobre o tema no livro "The Devils of Loudun", de 1952. Foi a partir do trabalho de Huxley que surgiu, em 1960, a peça de John Whiting (comissionada por Peter Hall para a RSC), e o roteiro de Ken Russel para o filme de 1971.

Gemma Jones (de costas), Oliver Reed e Ken
Russell em cena de "The Devils"
É uma maravilha de filme e como já foi dito por aí, uma obra-prima de Russel. Mas ela só é conhecida por um punhado de pessoas devido ao teor explosivo, anti-religioso do texto (o que também faz do livro um dos menos populares de Huxley), e das cenas que envolvem tortura, nudez, bacanais e outras coisas que se até hoje são consideradas fortes no cinema, é de se imaginar o que pensaram público, crítica e os censores há quarenta e sete anos. Não é, entretanto, de forma alguma, um trabalho apelativo. É moderno, provocativo e contestador. É, em muitos aspectos, vivo e pulsante como uma montagem teatral de qualidade. Não há limites ou convenções a serem respeitados. Especialmente quando o texto é, em sua essência, sobre o desrespeito a direitos fundamentais e à imposição tirânica, hipócrita e covarde do mais forte sobre o mais fraco. As cenas de nudez e violência são intensas mas se enquadram perfeitamente em um contexto artístico e dramático. Nada é gratuito. A alucinação da Irmã Jeanne, lambendo libidinosamente as feridas do Cristo/Grandier, a tortura de Grandier ou a esbórnia em que se transforma o convento das freiras ursulinas, são todas peças da desagregação e da degradação filosófica e moral em que vive um povo sob os grilhões do fanatismo. É um povo subjugado, que não sabe a quem obedecer porque não aprendeu a pensar por si só. E daí para a anarquia e o caos é um pulo. São cenas marcantes, por vezes dolorosas, mas acima de qualquer mal-estar ou restrição está a excelência artística e criativa de Ken Russel.

Vanessa Redgrave, na alucinação em que vê Cristo crucificado se transformar em Grandier
Cena polêmica de "The Devils"

Oliver Reed
Oliver Reed estava no auge de seu talento e de sua beleza, e ninguém poderia ter feito o papel de Grandier melhor do que ele. A formação teatral e a voz cortante e poderosa emprestam efeito extraordinário a seus monólogos ao povo de Loudun. No mais, ele sequer se afastava muito de seu próprio temperamento, interpretando o galã rude que emana agressivamente sua virilidade sem o mais mínimo esforço. Dessa forma, compreende-se perfeitamente o estado de descompensação sexual em que ficam as freiras, cada vez que ele passa, e Vanessa Redgrave (Irmã Jeanne) é a personificação desse desequilíbrio: corcunda, frustrada, orgulhosa, invejosa, infeliz e com a imaginação e o desejo indo em dez direções ao mesmo tempo. Gemma Jones estava jovem e linda, e também faz muito bem seu papel de Madeleine, a devotada esposa de Grandier. Valem registro as ótimas performances de Michael Gothard, Dudley Sutton, Georgina Hale e Max Adrian (este último no papel do barbeiro-cirurgião Ibert, mas ator da montagem original da peça, no papel do padre Barre, feito aqui por Michael Gothard).

É uma bela e arrojada composição de Russel, que a academia e os demais festivais (com exceção de Veneza) ignoraram olimpicamente. O filme acabou recebendo a indicação "X" dos cinemas (utilizada geralmente em filmes pornográficos), foi varrido para debaixo do tapete, banido em alguns países e só em meados da década passada começou a ser reabilitado. Versões com o mínimo possível de cortes (trechos mais polêmicos acabaram perdidos pela incúria dos estúdios) foram mostradas em universidades e festivais, quase sempre com a presença de Ken Russell. Um pedido de desculpas algo tardio mas ainda oportuno, porque foi recebido por Russell em vida. O cineasta morreu em 2011.

Recomendo muito aos fãs de cinema. Os ratos de sacristia possivelmente vão ficar chocados e devem evitar. (29/07/2018)
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