quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Minestrone Cultural XV


O PATATIVA

Mais textos deste blog sendo usados em teses de mestrado e doutorado. Neste caso, da UFU e da UFMG. O ego agradece.



COLETTE (2018)

Achei curioso que Glenn Close tenha sido indicada para o Globo de Ouro pelo filme "The Wife" e nem um pio foi dado sobre "Colette", com Keira Knightley. Não é desdouro nenhum à magnífica Glenn Close, a quem que considero a melhor atriz norte-americana viva, mas ao fato de que são dois filmes basicamente sobre o mesmo assunto: uma mulher que trabalha como ghost-writer do marido, fazendo dele um escritor consagrado. Com uma simples diferença: a história de Colette é real. É a história da escritora francesa Sidonie Gabrielle Colette (1873/1954), que começou escrevendo livrinhos picantes sobre a adolescente Claudine (para agradar a clientela vulgar e ignorante do marido), que se transformaram em verdadeira coqueluche na Paris do início do século XX. Mais tarde, livre do marido inútil e perdulário - a quem deixou por outra mulher - e escrevendo sob seu próprio nome, ela se tornou a escritora mais famosa da França, além de um ícone da liberdade sexual.

O filme é interessante e dinâmico. Keira Knightley está bem, assim como Dominic West e todo o elenco. Mas em se tratando de uma escritora tão célebre e socialmente tão avançada e progressista, eu desejaria que o trabalho tivesse sido mais profundo. Tal como é contada, a história dá uma sensação de que foi tudo preto no branco, se encaixou perfeitamente e acabou. E não foi assim. A vida de Colette foi muito mais complexa e interessante. Um roteiro menos raso e pelo menos meia hora a mais de filme teriam feito a diferença. Mas é entretenimento de primeira.

Recomendo, sobretudo nestes tempos de efervescência LGBT.

PS: Roberta, começou a temporada 2019 de prêmios cinematográficos, rs. (6/12/2018)

2x LIZZIE

A história real da norte-americana Lizzie Borden, que no fim do século XIX foi acusada de assassinar o pai e a madrasta a machadadas já foi retratada por Hollywood algumas vezes. Há duas versões mais conhecidas: a de 1975 feita para TV, dirigida por Paul Wendkos e estrelada pela linda e saudosa Elizabeth Montgomery, e uma versão que acaba de ser lançada no cinema, produzida e estrelada por Chloë Sevigny com direção de Craig William Macneill.

Também são duas as maneiras que existem de se realizar um filme sobre Lizzie (e sobre qualquer fato verídico): tomando por base a documentação existente e utilizando uma licença poética aqui e ali; ou pura e simplesmente ignorando tudo isso e enveredando pela ficção. Ambas são válidas, e a segunda tem grande potencial artístico quando se trata de um personagem que já está distante no tempo. O problema é que Lizzie não está tão distante assim e ainda que existam lacunas abismais sobre o duplo assassinato e seja, efetivamente, um caso não resolvido, os autos do inquérito e a cobertura da imprensa são copiosos e o espectador curioso vai saber quando o roteiro estiver invadindo o terreno da invencionice.

Kristen: Bridget
Conseqüentemente, são duas as formas de analisar esses filmes: leva-se em conta a fidelidade àquilo que é real e comprovado ou passa-se o largo disso e a análise se limita ao mérito artístico. Os dois filmes sobre Lizzie se enquadram perfeitamente nessa dicotomia. "Lizzie", de 2018, roteirizado por Bryce Kass, traz como fio condutor da trama o suposto romance de Lizzie com a empregada Bridget, que no filme é interpretada por Kristen Stewart. Lizzie tem uma vida infeliz; está com 32 anos e é solteira, epilética, é desprezada pela madrasta (Fiona Shaw) e seu pai (Jamey Sheridan, como sempre um ótimo bully) é um canalha insensível e abusivo. Como se isso não bastasse, por questões de segurança o velho planeja transferir a herança dele e de sua finada esposa para o ex-cunhado (Denis O'Hare), o que deixaria Lizzie e sua irmã Emma (Kim Dickens) inteiramente dependentes de um tio mau caráter com quem elas não tem qualquer relação. Bridget, por sua vez, é uma pobre imigrante irlandesa que trabalha de sol a sol e é estuprada pelo patrão todas a noites. Unidas pela desgraça, as duas se apaixonam, começam a ter um caso secreto e Lizzie a convence a tomar parte no plano de assassinar o pai e a madrasta.


Chloë Sevigny e Kristen Stewart estão excelentes. O elenco é bom, a produção é de primeira e artisticamente é um ótimo filme. Já em termos de veracidade, ele não tem qualquer valor. É uma obra quase que estritamente de ficção. O roteirista se baseou no livro de Evan Hunter, que - surpresa! - é um ROMANCE. Chama-se "Lizzie, a NOVEL". Lizzie era solteira e epilética mas os principais acontecimentos, a começar por seu romance com Bridget, seguindo pelo odioso vilão no qual é transformado o tio John, os estupros de Bridget, e etc., são invenção do escritor e do roteirista. Para quem não conhece e nem quer conhecer a história real de Lizzie, vale a pena. Mas se houver interesse em um relato minimamente fiel ao que de fato aconteceu no fatídico 4 de agosto de 1892, é melhor assistir "The Legend of Lizzie Borden", lançado em 1975.

O filme estrelado por Elizabeth Montgomery é uma produção da emissora ABC e teve orçamento bem mais modesto. O trunfo do filme era trazer Montgomery, que estava tentando se livrar da imagem de Feiticeira com filmes arrojados e bem feitos, e vinha se firmando como uma ótima atriz dramática. O roteirista William Bast tomou pouquíssimas liberdades e se manteve bem próximo à realidade dos fatos: Malgrado a avareza patológica do velho Andrew Borden (Fritz Weaver), a família era rica e pertencia à alta sociedade de Fall River, Massachusetts; Lizzie era mimada, prepotente e jamais teria um caso com a empregada (Fionnula Flanagan). Primeiro porque não existe uma única prova ou mesmo suspeita de que fosse lésbica (uma completa invenção de Evan Hunter), e segundo porque ela não era simpática e agradável com a criadagem, como faz crer o filme de 2018. Andrew Borden, em compensação, é mostrado como um tarado sexual, cujas perversões vão da necrofilia (um de seus comércios era de confecção de caixões e embalsamamento) à uma atração horrivelmente imprópria por Lizzie. Tudo, evidentemente, com o pudor e a decência que exigiam os filmes veiculados em TV aberta, na década de 70.

Montgomery: muito boa
Ausente o episódio fictício do romance lésbico, "The Legend of Lizzie Borden" tem a vantagem de se concentrar bem mais no inquérito e no julgamento de Lizzie. Ficamos sabendo que houve mais de uma suspeita de envenenamento na residência dos Borden; que a polícia foi de uma incompetência ímpar em todo esse processo; que Lizzie era dada à prática de pequenos furtos em sua casa e em lojas; que ela incinerou um vestido no fogão da cozinha nos dias subseqüentes ao crime; e, mais importante, que ela recebeu doses de morfina todos os dias para acalmar os nervos, desde o assassinato até o fim do julgamento. Quando a promotoria acusou Lizzie de múltiplas contradições no depoimento dado durante o inquérito, a defesa alegou, com êxito, que isso era efeito colateral do consumo de morfina. Houve quem levantasse a hipótese, tempos depois, de que a prescrição equivocada de morfina poderia ter provocado em Lizzie um surto de Fuga Dissociativa, o que transformaria o assassinato, no máximo, em homicídio culposo.

No filme de 2018 a prisão preventiva de Lizzie parece a de um preso político sendo jogado em um buraco sem ventilação. Nada mais distante da realidade; o julgamento de Lizzie se tornou ponto de honra do recém-nascido feminismo e atraiu tanta atenção que seu advogado de defesa não foi nenhum outro senão o ex-governador de Massachusetts, George Robinson (Don Porter).

Recomendo os dois filmes. O primeiro é fiel aos fatos. O segundo é uma boa ficção. (14/12/2018)

ISOLDA BOURDOT

Isolda e Roberto, em 2018

Morreu Isolda, com apenas 61 anos.

Ela compôs "Outra Vez" quando tinha 20 ANOS. A música tornou-se seu "signature piece" e sucesso eterno na voz de Roberto, a partir de 1977.

Na minha concepção "Outra Vez" é uma das melhores canções de amor do cancioneiro brasileiro em todos os tempos. Está no mesmo panteão das obras-primas de Tom, Vinícius, Lyra, Dolores, Chico, Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Moraes Moreira, e poucos outros.

Esse LP de Roberto, especificamente, tem um valor sentimental imenso para minha família. Foi lançado, como sempre, no Natal de 1977. A primeira música é "Amigo", outro sucesso eterno, que Roberto compôs para Erasmo. Meu tio (afetivo) aproveitou a canção e presenteou meu pai com esse disco, junto a uma dedicatória linda e inesquecível, celebrando a magnífica amizade dos dois por 40 anos.

Minha mãe gostava do disco. Ela e meu pai acompanharam Roberto de perto desde a época da Jovem Guarda, cujo programa assistiram várias vezes ao vivo no Teatro da Record. Mas quando meu pai morreu inesperadamente, poucos meses depois do lançamento desse LP, a música "Outra Vez" assumiu um significado real, brutal e doloroso para ela.

Essa música foi, de certa forma, banida, em nossa casa. Eu, que amava o dico, tinha que ouvi-lo praticamente escondido. Porque sabia que essa música era um gatilho para todas as lembranças do mundo.Vi minha mãe chorar ao ouvir "Outra Vez" por décadas seguidas.



Era a sensibilidade inigualável de Isolda.
Do fundo do meu ateísmo rezarei uma prece de gratidão a ela, hoje, por ter nos dado esse diamante de sentimento que é "Outra Vez". (18/12/2018)

LOVE & MERCY (2014)

Não sabia da existência deste ótimo filme sobre a grande batalha de Brian Wilson por sua sanidade mental. Pior: como nunca tive predileção maior pelos Beach Boys, a única coisa que eu sabia é que Brian teve um breakdown homérico, no estilo de Arnaldo Batista. Mas estava alheio ao fato de que teve um pai invejoso e canalha; que compôs obras-primas quando se cansou de escrever as bobagens que levaram os Beach Boys à fama; e que mais tarde esteve sob a tutela médica e legal de um médico cafajeste e depravado, que o transformou em um receptáculo de remédios controlados e quase o levou à morte.

Lembro-me vagamente de suas primeiras entrevistas depois do longo e tenebroso inverno de anos e anos que passou, tendo Gene Landy como guardião legal. Ele parecia um autômato. Os remédios para sua mal-diagnosticada esquizofrenia haviam devastado sua mente. O filme acompanha em flashback a curva descendente de sua sanidade - mostrando o processo criativo dos últimos discos de Brian com os Beach Boys - ao mesmo tempo em que o mostra maduro, tendo que lidar com o parasita que se instalou de mala e cuia em sua vida, aproveitando-se do distanciamento de Brian com seus irmãos e filhas. Paul Dano e Joan Cusak interpretam Brian muito bem, nas diferentes épocas. Elizabeth Banks está ótima como a gentil e compreensiva Melinda, e Paul Giamatti dá um show de talento e de canalhice.

Recomendo. (29/12/2018)

ETTY


Etty Fraser... tão amada, tão querida, tão gentil, tão generosa...

Quem, da classe teatral não conheceu Etty por todos os teatros de São Paulo, vendendo os broches com as musas da comédia e da tragédia, em uma campanha pioneira e exitosa do F.A.C.T., Fundo de Assistência à Classe Teatral, de arrecadação de fundos para os artistas com HIV? Quem de nós comprou aqueles broches pelo menos uma vez? Ou dez? Tenho um dourado, outro prateado, um menor, um maior...

Ela já era uma artista consagrada e respeitada, fizera parte da fase áurea do Oficina, participara de novelas antológicas como Beto Rockfeller, era nome de proa de nosso meio artístico (até programa de culinária ela teve) e e ao invés de deitar sobre esse louros e não fazer nada, ela trabalhou incansavelmente por seus colegas. Mesmo quando perdeu seu marido, o ator Chico Martins (figura tão adorável quanto Etty), ela sequer fez uma pausa em seu trabalho com o F.A.C.T.

Além de seu talento e sua perene gentileza, não esqueço seu humor e sua gargalhada impagável.

Etty passou a vida sorrindo. E é sorrindo, com a máxima gratidão, que ela deve ser sempre lembrada.

(Foto de 2003) (3/1/2019)

MINI-MARATONA DE FILMES LANÇADOS EM 2018

WILDLIFE (2018)

Antes de assistir "Love & Mercy", há poucos dias, eu não sabia nem quem era Paul Dano, mesmo que o rapaz seja ator coadjuvante de vários filmes de nomeada, como "Sangue Negro", "Little Miss Sunshine" e "12 anos de escravidão". E acabo de descobrir que em janeiro deste ano foi exibido em Sundance o seu filme de estréia como diretor, "Wildlife", roteiro do próprio Dano baseado no romance de Richard Ford. Passa-se no início da década de 60 e é sobre um casal - Jerry (Jake Gyllenhaal) e Jeanette (Carey Mulligan) - que tem um filho de catorze anos, Joe (Ed Oxenbould). Jerry é um idealista, orgulhoso e ingênuo, e seu fracasso profissional fará com que ele aceite um trabalho junto aos bombeiros que lutam contra os incêndios anuais que ocorrem nas florestas daquela região. Isso significa que ganhará pouco e ainda ficará longe da família. Jeanette não aprova a ida do marido e a separação temporária de ambos, juntamente às decisões que serão tomadas a partir de então por ela, terão que ser absorvidas e compreendidas pelo filho adolescente.

Jake está muito bem em papel relativamente quadrado, e quem brilha sem restrições é Carey, absolutamente perfeita em transmitir os anseios e angústias da esposa/mãe de trinta anos, transbordando sua sexualidade reprimida, e frustrada com sua vida tediosa e suburbana. É plenamente oscarizável. Ed Oxenbould faz um bom trabalho mas estava com dezesseis quando interpretou Joe e não é preciso ser um gênio para compreender que entre um menino de 14 e um de 16 existe um abismo. É, sem embargo, uma belíssima estréia de Paul Dano na direção.

THE OLD MAN & THE GUN (2018)

Filme baseado na história real do ladrão Forrest Tucker (1920/2004), que passou a vida cometendo furtos e assaltando bancos, e depois realizando fugas espetaculares das prisões para onde era mandado. Dirigido e roteirizado por David Lowery (a partir de um artigo de David Grann), a produção se concentra nos últimos anos de Tucker, sua relação com os parceiros de crime Teddy (Danny Glover) e Waller (Tom Waits) e uma mulher que conhece acidentalmente depois de um assalto (Sissy Spacek).

Mais do que qualquer outra coisa, este filme é uma homenagem a Robert Redford. É aquele filme que se permite desvestir, por fim, o mito, o grande diretor, o inigualável galã, o lendário Sundance Kid, e mostrá-lo, ainda que com sutileza e carinho, na vulnerabilidade de seus inacreditáveis 82 anos. E para não levar a coisa longe demais, ele o faz encarnando um ladrão que era conhecido pela simpatia e pela educação. Redford não é Tucker. É o Redford de sempre, na melhor tradição dos astros da primeira metade do século passado. E não poderia estar em melhor companhia do que com Sissy Spacek. Ela está simplesmente maravilhosa.

Me permito uma colocação quiçá polêmica: o papel do delegado que o persegue é feito por Casey Afleck. Não vou entrar nos méritos de seu trabalho, até porque o considero um ator razoável. Mas ele está sendo acusado de assédio sexual por duas mulheres. Em um ano em que o #metoo foi tão intenso e tão avassalador, me pergunto se não haveria em Hollywood pelo menos 500 outros atores para esse papel. Mas enfim, apesar disso, recomendo.

WHERE HANDS TOUCH (2018)

Baseada em fatos reais, é a história da relação entre uma garota negra alemã e um rapaz ariano. No começo eu pensei que ia ser apenas mais um romancezinho meloso de segunda guerra, coberto dos clichês de sempre, mas é mais profundo do que isso. A perseguição àqueles que foram chamados de "bastardos da Renânia" (Rheinland) - filhos e filhas de mulheres alemãs com soldados negros franceses lotados nessa região que cerca o Reno durante a ocupação francesa depois da primeira guerra mundial - foi tão implacável quanto aos judeus.

Não é um super-produção e está longe de ser um épico, mas é um filme pequeno e bem-feito. Lamenta-se que o roteiro não seja melhor. Amandla Stenberg e George MacKay fazem um bom trabalho e são convincentes como o casal inter-racial amoroso na Alemanha nazista. Abbie Cornish não está mal, embora seu sotaque seja artificial e ela pareça uma albina. Recomendo pela presença de Amandla, a menininha do Hunger Games que agora está com 20 anos.

TIME FREAK (2018)

Em 2011 o diretor e roteirista Andrew Bowler foi indicado ao Oscar de melhor curta pelo filme “Time Freak”. Não assisti mas imagino que a premissa seja exatamente a mesma do longa lançado este ano com o mesmo nome, por Andrew. Stillman (Asa Butterfield) é um nerd super dotado em física e quando vê seu relacionamento com a linda Debbie (Sophie Turner) soçobrar, ele constrói uma máquina do tempo que lhe permite reviver e corrigir as situações que minaram sua relação. E é evidente que haverá um preço para cada evento alterado.

Eu adorei. É uma comédia romântica adolescente e há que assistir desarmado, sem esperar teoremas, paradoxos e explicações lógicas. É só diversão. O elenco está afinado e Evan (Skyler Gisondo), o melhor amigo de Stillman, realiza a proeza de ser engraçado e carismático, e não um idiota insuportável como ocorre em 99% das comédias norte-americanas. E ajuda bastante o fato de que Sophie Turner, no papel de Debbie, é Doppelgänger da Marilia. (3/1/2019)

BAD TIMES AT THE EL ROYALE (2018) - Inesperadamente EXCELENTE. Assisti única e exclusivamente pela presença de Jeff Bridges e acabei brindado com um visceral coquetel tarantinesco. A história é envolvente, divertida, bizarra e imprevisível; e o elenco não poderia ser melhor.

Recomendo. (19/12/2018)

BANDERSNATCH (2018) - Mistura anárquica de Groundhog Day (1993) com The Butterfly Effect (2004) com Edge of Tomorrow (2014), e o recheio do velho Você decide, que passava na Globo na década de 90.

Me perdoem por ser a voz da dissensão, mas o Black Mirror tem 40 minutos, e 40 minutos é exatamente o quanto ele deve ter. Bandersnatch é intoleravelmente longo e chato. (30/12/2019)

MINI-MARATONA ALEATÓRIA DE ANIMAÇÕES

ANOMALISA (2015)

Eu coloquei Charlie Kauffman no vinagre há alguns anos, desde o super-estimado e super-soporífero "Sinédoque, Nova York" (2008). A obra do escritor, inicialmente original e inteligente, transicionara rapidamente para absurda e pretensiosa. Sobre "Sinédoque", basta dizer que foram feitos comentários do tipo "ser uma decepção é um elogio"... No momento em que ser chamado de "incompreensível" ou "ruim" começa a ser uma qualidade, é porque o autor se perdeu em sua própria maluquice. Não por coincidência, Kauffman ficou seis anos sem trabalhar depois disso. Em 2014 ele roteirizou e dirigiu um filme para TV. E em 2015 veio "Anomalisa".

É um filme completamente adulto e a princípio imaginei que a decisão de realizá-lo como animação, ao invés de um filme normal, seria mais uma das idiossincrasias de Kauffman. Não é. A idéia, tal como foi concebida, funciona melhor dessa forma. Não darei spoilers: Michael Stone é um guru do atendimento ao cliente e essa é a grande contradição de sua vida; enquanto aperfeiçoou todas as técnicas de agradar clientes, ele é infeliz em suas interações humanas e trata suas próprias relações de forma mecânica e insensível. O filme mostra o que acontece quando ele vai a uma viagem de negócios e conhece uma mulher capaz de quebrar esse ciclo de mesmice.

Espetacular. Jennifer Jason Leigh, no papel de Lisa, está magnífica. Concorreu ao Oscar e ao Globo de Ouro mas perdeu para "Divertida Mente".

MA VIE DE COURGETTE (2016)

Baseado no romance de Gilles Paris, com direção de Claude Barras. Ícaro, cujo apelido é Courgette (Abobrinha) mata a mãe alcoólatra por acidente e acaba em um orfanato, onde fará amizades com outras crianças que também tiveram experiências traumáticas com a família. Ele chegará, aos poucos, a termos com as tristezas que atravessou.

Por ser uma animação e ter nas crianças o seu público-alvo, o filme trata suas tragédias de forma muito leve e carrega uma mensagem fundamental de esperança. É uma linda animação e concorreu ao Oscar e ao Globo de Ouro, entre pesos-pesados como "Moana" e "Kubo and the Two Strings". Perdeu em ambos para "Zootopia".

LE PETIT PRINCE (2015)

1 - Fiquei impressionado quando encontrei esta animação porque nunca tinha sequer ouvido falar dela. Imagino que isso se deva ao fato de que a distribuição mundial está sendo feita pela Netflix, então o filme acabou alijado dos grandes prêmios de Hollywood (posso estar enganado). Infelizmente não encontrei o audio original, sempre preferível. O audio norte-americano, porém, é bom e não compromete.

2 - Não se trata literalmente da história de Antoine de Saint-Exupéry, mas de uma adaptação de Irena Brignull e Bob Persichetti (direção de Mark Osborne) sobre uma garotinha excessivamente organizada, de vida quadrada e metódica. Em meio ao tédio de sua rotina ela conhece o vizinho, um velho aviador que lhe conta, de forma colorida, divertida e lúdica, a história de seu encontro, anos antes, com o Pequeno Príncipe. E isso virará do avesso a vida da menina.

Recomendo.

BALLERINA (2016)

No fim do século XIX duas crianças - Felicie e Victor - fogem de um orfanato e vão a Paris para realizar seus sonhos: o dela de ser bailarina e o dele de se tornar inventor. Por meio de um ardil em que se faz passar por uma menina rica com a ajuda de uma ex-bailarina, Felicie consegue um teste para O Quebra-Nozes, na Ópera de Paris. Mas ela terá que se disciplinar, treinar e enfrentar várias dificuldades para seu sonho virar realidade.

Sem ser nenhuma obra-prima, Ballerina é um ótimo passatempo e entretenimento de primeira, sobretudo para aficionados de dança. Recomendo. (13/1/2019)

PONYO x SONG OF THE SEA


"Selkies" existem na mitologia irlandesa-escocesa e são focas que viram seres humanos à noite. Seria a versão celta-gaélica do mito da sereia. O diretor irlandês Tomm Moore utilizou-se dessa fábula e de um sortido de histórias de sua própria infância para roteirizar e dirigir "Song of the Sea". A selkie Bronach se casa com o humano Connor e eles tem um filho humano. Já a filha Saoirse é um híbrido e tem uma missão a cumprir. Não darei spoilers porque quem não assistiu deve fazê-lo o quanto antes.

Mas não me furto de comentar a influência rematada e óbvia da magnífica Ponyo, de Miyazaki na Saoirse de Moore. Não só na elaboração da personagem mas em toda a história. É Miyazaki fazendo escola, como sempre. Em litros de lágrimas, entretanto, o japonês ainda leva pronunciada vantagem.

Recomendo. (15/1/2019)

SUSPIRIA (1977 e 2018)

Segundo entrevista citada no IMDB, foi Daria Nicolodi que teve a idéia e a concepção toda de “Suspiria” (1977), a partir de uma história contada por sua vó, que teve aulas em um conservatório europeu onde os professores, além de artes, também praticavam a magia negra. Transmitiu a idéia ao marido e cineasta Dario Argento, ambos escreveram o roteiro do filme e a direção ficou a cargo de Argento: a norte-americana Suzy Bannion (Jessica Harper) vai estudar dança em um conservatório em Friburgo, na Alemanha. Fatos estranhos ocorrem desde o primeiro dia; uma mulher é assassinada, esfaqueada e enforcada, outra tem uma queda antológica em uma espécie de piscina de arame farpado, uma praga de larvas é encontrada na escola, um pianista cego é assassinado e devorado pelo seu próprio cão-guia, e por fim a norte-americana descobre que em uma ala secreta da mansão havia um verdadeiro sabá de adoração da Mater Suspiriorum, um bruxa vetusta que controlava toda essa maldade.

O filme - hoje um clássico - é uma sinfonia psicodélica de cores e de terror gráfico e psicológico como poucas vezes se vira, antes. Na tentativa de repetir o sucesso de “Suspiria”, Argento decidiu aumentar a história sozinho: a Mater Suspiriorum então tornou-se apenas uma de três irmãs macabras que pretendiam dominar o mundo. As outras eram a Mater Lachrymarum e a Mater Tenebrarum. Em 1980 veio a continuação de “Suspiria”, sugestivamente intitulada “Inferno”. O filme começa com uma moça lendo um livro chamado As Três Mães, onde explicava-se que além da Mater de Friburgo, ainda havia outras duas, vivendo em mansões em Roma e Nova York. A moça descobre que o prédio onde mora, em NY, é precisamente o endereço da Mater Tenebrarum, que se torna o tema do filme. Assustada, ela escreve para seu irmão, em Roma, a fim de que ele venha encontrá-la e ambos investiguem o caso juntos. É quando a seqüência habitual de desgraças começa a acontecer.

“Inferno”, por diversas razões - sobretudo o raquitismo do roteiro e o péssimo Leigh McCloskey - é muito inferior a “Suspiria” e esteve longe de repetir seu sucesso. Fãs de Argento, porém, ficaram satisfeitos e começaram a esperar pela terceira e última parte, que versaria sobre a Mater Lachrymarum e encerraria a trilogia. Argento fez o público esperar nada menos do que 27 anos pela conclusão. “La terza madre” foi lançado em 2007 e é protagonizado por Asia Argento, a filha de Argento e Nicolodi, que contava apenas dois anos quando “Suspiria” chegou aos cinemas. O filme é um desastre. Uma bobagem que se inicia com uma urna que é aberta e começa a provocar assassinatos e toda a sorte de desgraças. Mas é tudo tão idiota e tão amadorístico que causa tristeza; os filmes de Argento sempre tiveram um estilo meio B, meio alternativo, mas o que vemos aqui é apenas ruim. A Mater Lachrymarum, tão esperada, é uma modelo qualquer, semi-nua, com maquiagem preta ao redor dos olhos. Um grande anti-clímax. Mesmo trazendo a sempre boa Asia Argento. Com “La terza madre” o diretor destruiu sua própria franquia.

Sabe-se lá por que razão, no ano passado o diretor italiano Lucas Guadagnino resolveu requentar “Suspiria”, utilizando alguns elementos da história da Três Mães. Infelizmente, o que poderia ser uma bela e moderna recauchutagem do giallo de Argento, virou um filme chatérrimo e pretensioso. Características, aliás, do único filme pelo qual Guadagnino é conhecido: o romancezinho babaca e medíocre “Call me by your name”. A superioridade do filme de 1977 começa por um detalhe muito simples: ele tem uma hora e trinta e oito minutos, ao passo de que o remake tem duas horas e trinta e dois minutos. Toda a simplicidade do terror kitsch de Argento vira uma panacéia político-psicológica intolerável, no remake. Suzy é Dakota Johnson e ela consegue uma vaga no conservatório onde terá aulas com Madame Blanc, interpretada por Tilda Swinton. Mas além de uma pilha de referências à política alemã do fim da década de 70 o diretor ainda encasquetou de meter uma subtrama relativa à segunda guerra, então temos um velho psicólogo que sonha em reencontrar sua mulher, desaparecida em 1944. O psicólogo também é Tilda Swinton, com uma tonelada de maquiagem, verdadeiro ladrão de cena sem qualquer razão de ser, já que seu papel como um todo poderia ser eliminado. A única coisa interessante é que sua mulher, Anke, é interpretada por Jessica Harper, em aparição sentimental que homenageia o “Suspiria” original.

Plasticamente o filme tem cara de cortina de ferro. Há uma espécie de ferrugem da decadência comunista no conservatório e em demais locações, que cairia muito bem ao filme, se a história não tivesse sido tão contaminada pela pretensão de parecer complexa e politizada. É tudo tão chato e demorado que quando chegamos ao clímax, o leitmotif das três mães, e mais especificamente da Mater Suspiriorum, praticamente se perdeu. E o máximo que se consegue é uma conclusão tão ruim quanto o fim de “La terza madre”.

Um desperdício. Para quem ainda não viu, recomendo o primeiro
“Suspiria”.  (23/1/2019)

THE CROWN

Foi de tal forma positiva a impressão deixada por Claire Foy quando assisti o insosso First Man, que resolvi assistir outros trabalhos dela. Acabei chegando a The Crown, série da Netflix que a popularizou no mundo inteiro. São duas temporadas que dramatizam o reinado de Elizabeth II a partir de seu casamento, em 1947 (até 1963, no fim da segunda temporada). Gostei bastante. A produção é fantástica. O elenco é superlativo e não tenho adjetivos suficientes para qualificar o trabalho de Claire, embora não haja licença poética neste mundo que permita a comparação entre a lindíssima Claire e a simpática Elizabeth, de beleza insípida e inodora. Neste caso a escalação de Vanessa Kirby, no papel da hellraiser Margaret, foi mais feliz. E temos ainda a curiosa circunstância do jovem Philip ser efetivamente mais bonito que o ator que o interpreta, o esquisito Matt Smith, que parece estar usando uma máscara. Mas vamos a alguns comentários pontuais:

1 - Considerando que o (bom) roteiro de Peter Morgan tem alguma relevância histórica, é chocante verificar a superficialidade dos problemas enfrentados pela rainha. Com exceção do grande nevoeiro de 1952 e a crise do Canal de Suez em 1956 - nos quais ela se limitou a apoiar o Primeiro Ministro, fosse Churchill (John Lithgow) ou Anthony Eden (Jeremy Norham) - a única coisa com a qual Elizabeth se preocupou no meio tempo foram questiúnculas protocolares da realeza, picuinhas familiares e a idiotice fundamental de seu marido. Uma terrível demonstração de que os detratores da monarquia estavam certos: a rainha só estava lá para resolver problemas que não existiriam caso a monarquia sumisse. E nisso, anos foram gastos para que se resolvesse o imbróglio matrimonial da pobre Margaret; a situação de David, o tio sibarita que abdicou ao trono; as aulas de vôo de Philip e outras minudências sem qualquer importância para o povo britânico. É ponto positivo da série, que não faz segredo disso e nos apresenta o trono de forma imparcial, com seus defeitos e qualidades.

Claire Foy
2 - A série me deu a oportunidade de conhecer melhor a atual família real britânica, mesmo sabendo que aqui e ali fatos foram romanceados, exponencializados ou sanitizados para efeito dramático (e pela paz entre a realeza e o departamento jurídico da Netflix). Não obstante, o retrato parece fiel. Elizabeth é candidamente exposta como uma mulher ignorante, que desde criança foi basicamente adestrada como um cavalo de corrida para uma única função, ficando alheia a todas as outras. Isso vai assombrá-la no futuro, quando se sente diminuída diante de intelectuais, homens de letras e representantes de outros governos (o que não deixa de nos trazer uma ponta de orgulho por Dom Pedro II, considerado mundialmente o mais erudito de todos os monarcas do século XIX). Margaret é de fato a irmã linda e rebelde, dona dos predicados artísticos e performáticos necessários para ser a rainha, ao contrário de sua tímida e retraída irmã. Causa raiva observar a insensibilidade com que Elizabeth rompe promessas e volta atrás em sua palavra para decidir o destino de sua irmã, valendo-se de um respeito chocho e medroso a cânones embolorados que poderiam ter sido abolidos já naquela época.

Claire e Elizabeth

Margaret (Vanessa Kirby)
Philip, considerado eternamente aquele apêndice incômodo e dispensável da rainha - e que já fora retratado como um velho escroto e de maus-bofes pelo ator James Cromwell no filme "The Queen", de 2006 - aparece com as mesmas cores, só que mais jovem. O Duque de Edimburgo, tal qual a série o apresenta, nunca soube ou compreendeu qual era o papel do consorte, e quando entendeu, finalmente, não o aceitou. Incapaz de brilhar por qualquer coisa que não fosse sua linhagem, de granjear o respeito da realeza e de transcender sua função de "procriador real", ele arranca a fórceps da rainha um título de "príncipe". No mais, passa os anos espalhando sua inutilidade e dando problemas à Elizabeth, não como marido mas como um filho burguesinho e tresloucado. Suas infidelidades, suas reclamações intermináveis, seu despreparo ou deslumbramento em ocasiões formais do trono, sua obstinação em fazer o filho Charles estudar na mesma escola onde ele próprio estudou e foi vítima de bullyings de todos os tipos, ou suas tropelias com o amigo Mike Parker, tudo é razão para desprezarmos Philip. Nem mesmo seu passado de tristezas provoca qualquer simpatia. Os episódios, aliás, que se concentram em sua infância - conquanto muito bem feitos - são supérfluos. No fim somos obrigados a concordar com a vã e preconceituosa rainha mãe (Victoria Hamilton, ótima), sobre a péssima escolha de marido feita por Elizabeth.

David (Alex Jennings)
Fogo pesado é reservado para David, o Duque de Windsor (Alex Jennings), que sucedeu o Rei George V e reinou durante o ano de 1936 até sua abdicação, em dezembro, quando passou o trono ao irmão, pai de Elizabeth. No imaginário popular cristalizou-se a imagem de um homem que renunciou em nome do amor que sentia por Wallis Simpson (Lia Williams), uma norte-americana divorciada duas vezes. A série deixará bem claro que ele podia até amar a volúvel Wallis - uma reles cortesã - mas sua abdicação esteve muito mais próxima da covardia do que do heroísmo romântico que se propagou. A série não o mostra como um personagem sofrido, incompreendido e que abriu mão de todas as honrarias possíveis para poder se dedicar ao casamento, mas como um dândi decadente, afrescalhado e vagabundo. Um grã-finozinho venenoso, prepotente e metido à besta, que torcia o nariz para a realeza que o pariu mas não se furtava de sustentar sua vadiagem parisiense com uma mesada vergonhosa que vinha do palácio de Buckingham. O golpe de misericórdia chega quando ele volta à Inglaterra, em busca de alguma sinecura bem-remunerada e a rainha o põe para correr a pontapés, esfregando-lhe na cara sua associação indecorosa e sórdida com os nazistas durante a segunda guerra, mesmo depois de já ter abdicado.

Lithgow e Foy no SAG Awards de 2017,
de onde ambos saíram vencedores
3 - John Lithgow é um ótimo ator e admiro sua carreira há quase 40 anos. O que tenho a dizer de sua performance como Churchill - premiada com um Emmy, aliás - é que ele conseguiu criar seu próprio Churchill, como uma espécie de entidade independente do original. Ele não tem a mais ínfima semelhança com Churchill, a idade que o personagem exige nesse período, aquele rosto característico de bebê alcoólatra, mas por alguma razão está mais próximo do velho Primeiro Ministro do que estiveram os inúmeros atores que o interpretaram nestes últimos anos, entre eles, verdadeiros titãs como Brian Cox e Gary Oldman. É uma bela performance. Já Michael C. Hall e Jodi Balfour estão tristemente equivocados nos papéis de John e Jackie Kennedy. Michael até caprichou no bizarro sotaque de Boston, mas Jodi está mais para uma princesa hawaiana do que para Jackie, uma branquela sem graça e inexplicavelmente festejada pela realeza britânica.

Há outras coisas a comentar mas não me ocorrem no momento. Lamento saber que a terceira temporada mostrará os personagens mais velhos e Claire será substituída. Meu coração está imaturamente partido. (23/1/2019)

WOLF HALL (2015)

Seguindo a lista de trabalhos de Claire Foy cheguei agora à "Wolf Hall" (2015), minissérie de seis capítulos da BBC baseada em dois dos romances de Hilary Mantel, "Wolf Hall" e "Bring Up the Bodies". Trata do período em que Henrique VIII foi casado com Ana Bolena, visto sob a ótica de Thomas Cromwell. Existem dois trabalhos definitivos sobre esse tema, que são os filmes "A Man for All Seasons" (1966) e "Anne of a Thousand Days" (1969). O primeiro traz Leo Mackern em uma interpretação de Cromwell que é praticamente insuperável. Isso sem mencionar o Henrique espetacular de Robert Shaw e o Thomas More exemplar de Paul Scofield. O segundo tem uma Ana Bolena perfeita em Genevieve Bujold, além do Henrique de Richard Burton e a comovente Catarina de Irene Papas. A minissérie opta - corretamente - em não referenciar nem de longe tais obras-primas e desenvolve um mote até então não explorado: a participação de Thomas Cromwell em todo o episódio.

Rylance e Foy
Ele era conselheiro do Cardeal Wolsey e acabou sendo absorvido por Henrique quando o cardeal falhou em conseguir o apoio do papa para o divórcio do rei e caiu em desgraça. Mark Rylance faz um Cromwell inteiramente oposto ao de Mackern; este era um poço de energia e parecia um porco do mato, agressivo e acanalhado, com sua voz potente e os olhos estrábicos e ofuscantes (pelo fato, aliás, de que um dos olhos de Mackern era de vidro). Era abertamente o vilão que orquestrou o ocaso de Thomas More. Rylance é um Cromwell ofídio, reptiliano, lerdo e meticuloso como um crocodilo. Ao contrário de Mackern, que transbordava recursos teatrais, Rylance é absolutamente contido e utiliza seu extraordinário leque de expressões faciais para transmitir toda e qualquer intenção, com raríssimas alterações de voz. E é menos óbvio em sua vilania. Ou, por outra, é apenas um entre uma côrte de vilões, sob o comando de um rei vilão. Um trabalho admirável e que provavelmente o credenciou para "Bridge of Spies", de Spielberg.

Claire Foy

Existe um elemento de licença poética que deve ser notado: sendo uma minissérie sobre Cromwell, os autores acharam por bem diminuir seus mal-feitos (além de estender sobre ele o manto da comiseração, mostrando a morte, no mesmo dia, de sua esposa e suas duas filhas, vítimas de uma praga), transferir para outros (como Norfolk) maldades realizadas por ele, e transformar Ana Bolena na verdadeira vilã. Considerando que as fontes primárias sobre Ana são poucas e contraditórias, que Henrique era um imaturo e um desequilibrado cuja única preocupação era ter um filho homem, e que o julgamento que levou Ana à morte foi uma farsa asquerosa que mancha a história da Inglaterra, a personagem vinha sendo tratada com relativa simpatia, pelo cinema. Merle Oberon comoveu com sua beleza e seu sofrimento, no velho clássico "The Private Life of Henry VIII" (1933), e Genevieve Bujold interpretou uma mulher forte, voluntariosa e inteligente, que no fim acaba sendo vítima de um destino que não pôde conter, por ser incapaz de dar um filho a Henrique; Wolf Hall mudou isso. Claire Foy - sempre excelente - é uma putinha mimada, perversa e calculista. Gaba-se de ter "criado" Thomas Cromwell - ou "Cremuell", como ela jocosamente se refere a ele, com sotaque francês - instiga agressivamente a morte de quaisquer amigos de Henrique que se oponham a seu casamento, tem um verdadeiro orgasmo quando fica sabendo que Catarina morreu e flerta tranqüilamente com os homens de seu séquito.

Merle Oberon e Geneviéve Bujold no papel de Bolena

Entretanto, o pequeno discurso que fez antes de ser decapitada - e uma de suas poucas falas efetivamente comprovadas e reais - foi tão eloqüente, tão generoso e tão correto que a história tem tido problemas em colocá-la num pelourinho por falsidade e oportunismo. E neste caso a Bolena de Genevieve estaria mais próxima à realidade. Nunca saberemos.

No caso de "Wolf Hall", o que temos é uma minissérie de produção imbatível e de um elenco quase ideal. Digo "quase" porque não considerei ideal o trabalho de Damian Lewis (Henrique) ou de Joanne Whalley (Catarina). Bons, mas não excepcionais como o resto. E minha única ressalva seria sobre o ritmo excessivamente lento. A importância de Cromwell é muito aumentada e no fim veremos a história de "Anne of a Thousand Days" esticada por seis episódios de uma hora. Melhor seria que a minissérie englobasse esse período e fosse até a morte de Cromwell, que caiu em desgraça com o rei apenas quatro anos depois, quando foi responsável pela desastrada orquestração do casamento com Anne of Cleeves, quarta esposa de Henrique (logo depois de Jane Seymour). Talvez os produtores pretendessem transformar a minissérie em uma série, de fato, mas tal não ocorreu.

Recomendo.

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