sexta-feira, 14 de maio de 2010

Othello, Othelo, Otello, Отелло – Parte 1


Para Sérgio Viotti e Paulo Autran


Pródromo

A obra de Shakespeare (1564/1616) consiste na dramatização de histórias reais ou fictícias a partir de originais que já existiam. Como bom gênio, ele não tinha qualquer pejo em consultar e beber na fonte e na obra de outros, mesmo porque, o costume já vinha desde os gregos. Édipo, Medéia, Tiestes, Fedra e demais infelizes da poesia grega viraram personagens em obras de praticamente todos os tragediógrafos da época, seja na Grécia ou mais adiante em Roma. Não existia plágio, e sim a versão completamente diferente de cada um para o mesmo assunto ou o mesmo personagem. Quem saía ganhando era sempre o povo, brindado com essas maravilhas nos chamados "festivais" que envolviam as tetralogias e demais encenações teatrais. Lamentável nisso tudo é que apenas 1% daquela produção literária chegou até nós. Mas isso já é outro assunto.

Nas obras do inglês veremos escritores de todas as épocas. Plutarco está em Júlio César, Timão de Atenas e Coriolano, Sêneca está no Tito Andrônico, Ovídio está nos Sonetos, Plauto está na Comédia dos Erros, Saxo Grammaticus e Thomas Kyd estão no Hamlet, Raphael Holinshed está nos Ricardos, Henriques e no Macbeth, Matteo Bandello está em Noite de Reis, Muito Barulho por Nada e Romeu e Julieta, e o italiano Giovan Battista Giraldi (1504/1573) – professor cujo epíteto acadêmico pelo qual acabou conhecido era "Cinzio", ou, para o resto do mundo, "Cinthio" – está em Medida por Medida, e, sobretudo, em Othello, o Mouro de Veneza.

É interessante como a posteridade optou por ignorar Cinthio. Conquanto a Sofonisba (1513) de Giangiorgio Trissino (1478/1550) viesse antes e acabasse servindo mais como inspiração para o teatro melodramático francês que viria no século XVII, foi Orbecche, escrita por Cinthio em 1541, que inaugurou o moderno teatro italiano, representando o retorno aos preceitos aristotélicos da tragédia e estabelecendo as fundações da dramaturgia isabelina e elizabetana, onde brilhariam escritores como Thomas Kyd, Christopher Marlowe, Ben Johnson e Shakespeare. Não só isso; Orbecche é, talvez, a primeira "tragédia de vingança" da nova era, com base em Sêneca – caracterizada pelas mentiras e enganações e os conseqüentes horrores e banhos de sangue, geralmente em família – e que daria origem a peças como A Tragédia Espanhola e o Ur-Hamlet de Kyd, além do Hamlet e do Tito Andrônico de Shakespeare. Tudo está esquecido, assim como a obscura Canace, de 1546, escrita por Sperone Speroni degli Alvarotti (1500/1588), outra pioneira do estilo, referente a um mito grego que tratava de incesto, e por conta disso apresentada uma única vez. Tanto Orbecche quanto Canace foram sufocadas no nascedouro, e os acadêmicos idiotas da época preferiram abrir um debate sobre o "decoro" no teatro, ao invés de incensar aquele que seria o ponto de partida do que viria dali para frente, em termos de tragédia. Hoje, com efeito, Speroni e sua obra encontram-se na vala comum dos esquecidos e as tragédias de Cinthio só são conhecidas por quem vareja minuciosamente a dramaturgia do século XVI.

Speroni e Trissino

Cinthio, entretanto, teve uma vantagem fundamental sobre Speroni. Aventurou-se exitosamente pela prosa e, seguindo o modelo de Giovanni Boccacio (1313/1375) no Decameron (1350), lançou em 1565 um volume com uma centena de contos intitulado De Gli Hecatommithi ("Dos cem mitos"). O livro dividia-se em dez temas, cada um com dez contos. O terceiro tema era "A Infidelidade de Maridos e Esposas" e o sétimo conto (que ao contrário do que se diz por aí não tinha título nenhum, a não ser "Novella VII") falava de "Un capitano moro". Os personagens são um militar negro e sua esposa, um alferes e sua esposa, e um capitão. Nenhum deles têm nome exceto a esposa do militar, que se chama Disdemona. A ação passa-se em Veneza e a trama é de uma jovem, bela e virtuosa, que se casa com um militar negro respeitado e bondoso. Shakespeare situa no ressentimento e na inveja as razões de Iago para inventar a mentira sobre a infidelidade de Desdêmona com Cássio, e através dela se vingar de Othello; já Cinthio mostra um alferes que, apesar de casado, também é apaixonado pela esposa do militar. Vendo suas investidas ignoradas pela virtuosa Disdemona, seu amor se transforma em ódio e ele utiliza o militar negro e o capitão como meras ferramentas para levar a cabo sua vingança contra Disdemona. Seguem-se, com pequenas diferenças, o episódio do lenço e o atentado ao capitão, pelo próprio alferes, cujo anonimato é protegido pela escuridão da noite.

Cinthio

A morte da inocente esposa do militar é particularmente cruel: o alferes mata Disdemona a golpes de uma meia cheia de areia. O militar então a deita, morta, na cama, e faz ruir o teto sobre ela. Sai pedindo socorro e gritando que sua casa está ruindo. Nenhum dos dois é imputado pela morte, considerada acidental. Com o tempo, o militar sucumbe ao remorso e toma ódio ao alferes, expulsando-o de sua companhia. Indignado, o alferes vai às autoridades e se vinga do mouro acusando-o de ter planejado o atentado ao capitão e a morte da esposa. O militar é preso e torturado, não emitindo sequer uma palavra. É banido e pouco depois acaba assassinado por parentes de Disdemona, com’ egli meritava. O alferes volta a seu país, se mete em nova confusão e joga a culpa em alguém. Só que desta vez ele é preso e obrigado a provar a acusação. Nesse processo é torturado com tal violência que acaba morrendo. Sua esposa sobrevive e conta a história.

Talvez pela formação conservadora de Cinthio, talvez por sua vontade de não irritar mais ninguém depois da repercussão da sangrenta Orbecche, ou ainda pelo fato do Hecatommithi ter sido lançado em plena contra-reforma católica, o conto é uma pérola de moralismo. Mais do que sobre o ciúme ou a vilania humana, é uma espécie de aviso às jovens para que não se casem com pessoas de formação ou costumes diferentes, ou contra a vontade dos pais, pelo que vemos em Disdemona desabafos como este, onde sua preocupação parece menos a destruição de seu casamento do que tornar-se um mau exemplo para as jovens italianas: "Et temo molto di non essere io quella, che dia essempio alle giovani di no maritarsi contra il voler de suoi; et che da me le Donne italiane imparino, di non si acompagnare con huomo, cui la Natura, et il Cielo, et il modo della vita disgiunge da noi."

As fontes utilizadas por Cinthio para escrever o conto são nebulosas e estão no terreno da conjectura. Alguns comentam que o mote da mentira que açula o ciúme e causa as mais inimagináveis desgraças pode ter vindo de "As Três Maçãs", um dos contos do apócrifo As mil e uma noites (uma historinha sádica e horrorosa, diga-se de passagem, e se eu fosse o rei Xariar teria matado Sherazade somente por contá-la). Pode ser, embora isso implique em que Cinthio falasse o idioma árabe – o que não é nada improvável – pois não me consta que na época houvesse qualquer tradução desse livro. No século XIX surgiu a hipótese de que Cinthio tivesse baseado seu "capitano moro" em um militar chamado Christophal Moro, que perdera sua esposa em uma missão no Chipre, no início do século XVI. Embora seja ligeiramente engenhoso disfarçar a utilização do personagem real transformando-o em mouro a partir de seu sobrenome, e não seja uma coincidência totalmente descartável o fato de que a mulher do militar morreu no Chipre, não há maior comprovação para essa tese.

No fim do século XIX surgiu ainda outra tese, a de que Shakespeare teria misturado todos esses elementos com a história de outro notável militar, um tal San Pietro di Bastelica, que matara sua mulher por uma de duas razões: 1) em viagem ao oriente médio recebeu a notícia de que sua esposa – na França – andava em termos mais íntimos do que o desejável com um secretário. 2) ficou ultrajado pelo fato da esposa interceder em seu favor junto a seus inimigos genoveses. De uma forma ou de outra, seja por ciúme ou pela disciplina psicótica, que via na interferência da mulher em seu favor mácula indelével em sua existência, ele voltou e a matou de forma mais ou menos semelhante à de Othello.

Se as fontes são nebulosas, a escolha dos nomes é ainda pior. Cássio, Emília e Bianca são comuns. Brabâncio e Ludovico também. Desdêmona já veio pronta e Iago não é um nome totalmente estranho, sendo mera variação de Jago, apelido dado ao nome James no idioma córnico, falado à época na Cornualha. Quanto a Othello, a coisa se complica. Fala-se na italianização de Otho, o antigo rei dos otomanos, fala-se da "misteriosa" presença de "hell" no nome de Othello, assim como de "demon" no nome de Desdêmona, cita-se um livro de John Reynolds sobre o ciúme onde aparecem os nomes Othello e Iago, quando hoje sabemos que o livro é posterior à edição da peça, menciona-se a existência de um tal "Otelli del Moro", nobre veneziano originalmente da Moréia, com quem Shakespeare teria utilizado expediente semelhante ao de Cinthio com Christophal Moro, mas a simples verdade é que o assunto está em aberto até hoje.

Ben Johnson

Eu, sinceramente, subscrevo à teoria de Russ Macdonald (1979) de que Shakespeare nada mais fez do que um anagrama com o nome do personagem Thorello, o marido ciumento da peça Every Man in His Humour, escrita por Ben Johnson em 1598, na qual o bardo participou como ator. Pode não ser coincidência, aliás, que por muitos anos a peça esteve registrada – erroneamente, imagina-se – como "Orthello", o que seria um anagrama perfeito.

Shakespeare era uma usina de diamantes e colecionou obras-primas, saídas de sua pena superior. Othello está entre aquelas que são convencionalmente consideradas as quatro melhores peças do dramaturgo. As outras são Hamlet (1600), Rei Lear (1605) e Macbeth (1606). A matéria prima utilizada podia até ser engenhosa e razoavelmente bem concatenada, mas o produto final shakespeariano transforma em lixo o que veio antes. Shakespeare constrói um palácio a partir de um tijolo árabe e de uma porta italiana. A concepção moralista de Cinthio é totalmente ignorada e de seu modesto conto nasce uma tragédia épica sobre o caráter, vingança, ciúmes, vilanias, traições, mentiras e arrependimento.

O mote já não é mais a reles paixão adulterina de um alferes casado pela esposa de um militar, e sim o fato de que esse militar, Othello, promove Cássio ao invés de Iago, cuja posição hierárquica era superior à de Cássio. A preterição desencadeia o oceano de podridão que Iago reprimia em sua alma até aquele momento. À sua mente vêm a desonra e a humilhação de ser preterido, a suspeita de que sua esposa Emília o traiu com Othello e até com Cássio e a necessidade de vingar-se. Iago transforma-se no vilão psicologicamente mais rico de Shakespeare. Justamente porque não é um vilão demoníaco e irracional como o Aarão do Tito Andrônico, impulsivo e fundamentalmente fraco como Lady Macbeth, ou um homem horroroso que deseja expiar seus complexos pela mera usurpação do trono, como Ricardo III. Iago, como Ricardo, é inteligente, articulado, calculista e irrefreável. Mas não é um usurpador; ele realmente acredita que merecia aquela promoção e não recebendo-a, sucumbiu a todas as rachaduras de sua ama. Sua vilania é psicopatia pura. Ele causa uma primeira boa impressão mas é manipulador, egoísta, não tem afeto por nada ou ninguém, não se arrepende, imputa aos outros suas desgraças e não teme a punição. Iago é um tratado sobre a psicopatia três séculos antes dela ser catalogada e batizada.

Emília arruma o cabelo de Desdêmona no quadro "Desdemona's Death Song", de Dante Gabriel Rossetti (circa 1878/1881)

Desdêmona é mantida no mesmo patamar de virtude, bondade e submissão, mas Emília, que não passa de uma figurante no conto, é transformada em uma mulher moderníssima, astuta e sincera. Cinthio ressalta que ela sabia das maquinações do marido, com as quais não concordava, mas mantinha-se calada sobre elas por medo dele. Shakespeare deu uma volta de 180° na situação. Emília torna-se cúmplice involuntária, cujo único erro é roubar o lenço de Desdêmona para agradar o marido, na suposição ingênua de que Iago não faria nada de errado com ele. Infeliz no casamento, Emília encarna uma feminista avant-garde, que não deseja corrigir o caráter prevaricador dos homens, mas antes ter o direito de incorporar esses mesmos defeitos às mulheres. Sua conversa com Desdêmona na cena três do quarto ato poderia ser a epígrafe da bíblia feminista: "Let husbands know their wives have sense like them; they see and smell and have their palates both for sweet and sour, as husbands have. What is it that they do when they change us for others? Is it sport? I think it is; and doth affection breed it? I think it doth; is't frailty that thus errs? It is so too; and have not we affections, desires for sport, and frailty, as men have? Then let them use us well: else let them know, the ills we do, their ills instruct us so."

E quanto a Othello, alguns dizem que seu personagem acaba ofuscado pela riqueza psicológica de Iago. É no máximo uma questão de gosto. Acho inútil querer teorizar a reação instintiva e emocional do público em relação a um personagem e acredito que por mais rico que seja o vilão, a gama dramática de Othello ainda é maior. O medo de ser suplantado pelo humor intrínseco às falas de Iago e seu conseqüente carisma junto ao público me parece mais uma questão de vaidade do que de qualquer outra coisa. De um ponto de vista estritamente teatral, Othello é o ser humano do início ao fim. Calmo e equilibrado no começo, romântico e disciplinador na chegada a Chipre, influenciável e inseguro quando inoculado com o veneno de Iago, sensível, frágil e deprimido quando processa o veneno, histérico e furioso na seqüência, resoluto e arrependido no final. Suas cenas e seus monólogos são o mais extraordinário teste pelo qual pode passar um ator. Se obtiver êxito (como poucos, até hoje), terá transmitido mais emoções do que Hamlet à platéia.

Othello conta a história de sua vida à Desdêmona na presença de Brabâncio, pai dela (quadro de Henri Jean-Baptist Fradelle, 1824)

Shakespeare foi tão brilhante na composição poética e dramatúrgica da tragédia que um de seus grandes destaques futuros, o fato de Othello ser negro, não me parece ter toda essa importância. Ao contrário da judeidade de Shylock, pedra angular de O Mercador de Veneza – peça considerada anti-semita – o racismo não seria mais do que um subtexto da peça. Brabâncio pode não ter gostado de ver a filha casada com um negro, mas seu racismo é o único. Quando relata ao Dodge o absurdo de sua filha "run from her guardage to the sooty bosom of such a thing as thou" ou se apaixonar por "what she fear'd to look on" seu tom é mais de grosseria e de incontrolável ciúme paterno do que de ultraje pelo casamento inter-racial. Poderia também ser uma referência à idade de Othello, que já passou dos 50. E o comentário de Iago a Brabâncio, de que "even now, now, very now, an old black ram is tupping your white ewe" são menos demonstração do racismo de Iago do que do alferes provocando o racismo do pai de Desdêmona.

A mesma cena, desta vez em quadro de Carl Ludwig Friedrich Becker (1820/1900)

Em todo caso, o Dodge de Veneza estima o mouro e o mantém entre seus conselheiros, ele é admirado e benquisto entre seus soldados e o máximo que veremos, em termos de sua negritude é quando diz "haply, for I am black and have not those soft parts of conversation that chamberers have", o que nada tem de racista e é apenas uma confissão de sua origem humilde, ou quando afirma que o nome de Desdêmona, "that was as fresh as Dian's visage, is now begrimed and black as mine own face", o que não significa nada. Laurence Olivier (Confessions of an actor, 1982), por exemplo, debita a ação de Iago ao racismo e à sua preterição, motivada pelo fato de que aos olhos de Othello, Cássio "era um cavalheiro e Iago não era". Me parece um contra-senso; se Iago se indignou por ver Othello privilegiar alguém de melhor estirpe, não seria racismo, mas rejeição ao preconceito de Othello, por beneficiar Cássio em detrimento de alguém que veio de baixo, como ele. Ao fim e ao cabo, o racismo não está no texto, e sim em quem o assiste. Quando muito, há racistas. Veremos racismo mais à frente, quando chegou o momento de atores negros interpretarem Othello em países onde realmente havia racismo.


Richard Burbage

A estréia se deu em 1° de novembro de 1604 no Palácio de Whitehall, residência da monarquia inglesa em Londres entre os séculos XVI e XVII, se bem que, como já se viu em tudo relacionado a Shakespeare, há controvérsias e não faltam testemunhos (e inclusive documentos) que registrem a estréia em 1602. O que se sabe é que o ator principal da companhia de Shakespeare, Richard Burbage, foi o primeiro Othello. É possível que tenha se valido das então recentes xilogravuras do italiano Vecellio para compor externamente o personagem mas infelizmente não há ilustrações de seu Othello.

A primeira edição de Othello, de 1622

A edição do texto só se deu em 1622, quando Shakespeare já estava morto. No ano seguinte a peça entrou na primeira edição de suas obras completas (o conhecido “Folio 1”). Há algumas diferenças significativas entre um texto e outro e com o tempo os experts têm chegado a um denominador comum, juntando o que os dois têm de melhor. Um dos comentários, inclusive, é de que a excelência que o autor demonstra na delineação psicológica e filosófica dos personagens teria sido graças a uma revisão posterior, quando já estava mais velho e mais maduro.

Ralph Richardson, John Gielgud e Laurence Olivier

Ao longo dos anos a indumentária de Othello foi se tornando híbrida e conservadora ao gosto da época. Grandes atores shakespearianos dos séculos XVII e XVIII como Thomas Betterton (1635/1710), James Quin (1693/1766) e Spranger Barry (1719/1777) passaram a vestir o personagem com o uniforme de um general inglês, por vezes chegando ao ridículo de usar luvas brancas e a peruca empoada dos nobres e dos advogados, por cima da pesada maquiagem negra. O popularíssimo David Garrick (1717/1779) tentou romper essa tradição ridícula mas errou na mão; seu Othello de turbante foi apedrejado pela crítica e pelo público e quase acabou com sua carreira. Já no século XIX o também popularíssimo Edmund Kean (1787/1833) "orientalizou" completamente seu Othello (1814), clareando a maquiagem e criando o chamado tawny moor (mouro mulato), em caracterização que os pósteros compararam à do marujo árabe Simbad. Não obstante, sua interpretação de Othello é considerada magnífica - possivelmente a melhor do século - porque deu início à quebra do estilo grandiloqüente e declamatório que caracterizava a interpretação shakespeariana, mantida viva por contemporâneos como Charles Macready (1793/1873). E o tawny moor se tornaria um modelo para os atores shakespearianos por mais de 100 anos.

Edmund Kean e um de seus Othellos

Kean teve uma morte semelhante à de Cacilda Becker. Ele reprisava o papel de Othello em 1833, no Convent Garden, em Londres, contracenando com o Iago de seu filho, Charles Kean, quando iniciou a cena do ato III, em que desafia Iago, "Villain, be sure thou prove my love a whore". Acometido de um mal súbito, tombou no palco, gemendo de dor, e só conseguiu dizer a seu filho: "Meu Deus, estou morrendo... fale com eles, Charles". Morreu dois meses depois, com apenas 46 anos. Segundo se conta, graças ao alcoolismo. No ano de sua morte, nasceu nos Estados Unidos Edwin Thomas Booth (1833/1893), que viria se tornar um dos primeiros grandes atores shakespearianos do novo continente.

Outra das facetas do Othello de Kean

Seu pai era o afamado ator inglês Junius Brutus Booth (1796/1852), que interpretou Iago para o Othello de Kean em várias ocasiões. Em 1821 ele fugiu para os Estados Unidos deixando mulher e um filho na Inglaterra. Os outros filhos de Junius foram os também atores Junius Brutus Booth, Jr. (1821/1883) e John Wilkes Booth (1838/1865). Embora chegassem a trabalhar juntos em um Julio César em 1864, havia uma disparidade gigantesca entre os três irmãos. Edwin era genial e melhorava a cada trabalho; Junius Jr. não tinha talento e acabou ofuscado pelo irmão e pelo pai; e John Wilkes ficou famoso mundialmente, só que não por seu trabalho como ator, e sim por assassinar o presidente americano Abraham Lincoln em 1865.

Os Booth, uma família irregular de atores. Em sentido horário: Junius Booth, o patriarca, Junius Junior, o sem talento, John Wilkes, o assassino de Lincoln, e Edwin, o genial

A tragédia não interrompeu a carreira de Edwin, que seguiu até o fim de sua vida interpretando com grande talento os personagens de Shakespeare. Admirador do estilo de Kean, teve sua (relativa) participação no processo de modernização por que passavam os espetáculos de Shakespeare. Já interpretara Iago com sucesso diversas vezes e em 1881 dividiu o palco em Londres com um dos mais famosos atores ingleses da época, Henry Irving (1838/1905), ambos alternando Othello e Iago, tendo ao lado um elenco estelar que incluía a Desdêmona de Ellen Terry (1847/1928). A temporada foi concorrida embora nenhum dos dois atores tivesse nascido para fazer Othello, sobretudo o empolado e aristocrático Irving.

Edwin Booth, sempre mal-encarado, como Othello e como Iago

A chegada do século XX ajudou a trazer uma certa sobriedade a Othello. No primeiro decênio do novo século nasceram os três atores que mudariam a interpretação shakespeariana para sempre: Ralph Richardson (1902/1983), John Gielgud (1904/1990) e Laurence Olivier (1907/1989). Os três eram colegas, amigos e rivais. Para ser mais exato, Olivier e Gielgud eram rivais e ambos amavam Ralph. O mais velho dos três era também o mais tranqüilo e não tinha qualquer paciência para a guerra de egos nutrida pelos dois. Olivier e Gielgud eram amigos, se freqüentavam, trabalhavam juntos, mas tinham o que se pode chamar de uma "admiração cheia de desprezo", um pelo outro.

Olivier, Richardson e Gielgud

Uma rivalidade que geralmente se mantinha num patamar de carinho e camaradagem mas por vezes se acidulava, como no Romeu e Julieta que fizeram com Peggy Ashcroft (1907/1991) em 1935, alternando os papéis de Romeu e Mercúcio para a Julieta de Peggy e a ama de Edith Evans (1888/1976). Foi literalmente uma competição, arbitrada pela crítica especializada; no placar, embora fossem ambos elogiados como Mercúcio, havia um certo consenso de que Olivier fôra um pouco melhor. Mas seu Romeu foi destruído pela crítica, enquanto o Romeu de Gielgud recebeu uma chuva de pétalas de rosas. A amizade dos dois não foi alterada, mas Olivier jamais conseguiu esquecer que levou a pior no primeiro embate com seu amigo e rival.

Os Romeus de Gielgud e Olivier para a Julieta de Peggy Ashcroft

Esse embate de 1935 apenas ressaltou algo que era bastante óbvio: em termos de estilo os três eram completamente diferentes. Ralph era bonachão e tinha uma voz característica, de pouca modulação mas de intensa expressividade, bem como seu rosto, que também transmitia muito apesar da contenção. Gielgud tinha uma voz magnífica de declamador que caía como luva ao gosto oitocentista ainda em voga, e a agilidade de um bailarino. Olivier era a mistura de um atleta olímpico com um trator em cena, tanto no palco quanto no cinema, e foram necessários vários anos até que aprendesse a controlar a intensidade de suas performances. Seu malgrado como Romeu não o fez repensar sua interpretação, mas levá-la adiante de maneira ainda a mais arrojada. E tinha razão; Gielgud recebera sua aclamação como Romeu pela maneira tradicional (e quiçá antiquada) com que recitava os versos shakespearianos. Olivier estava disposto a enterrar esse tipo de interpretação e substituí-la por outra mais naturalista, menos sincopada. Ainda plenamente teatral, só que menos etérea e mais visceral.

Elenco do Othello de Paul Robeson, em 1930, no qual Richardson interpretou Roderigo

Como atores proeminentes que se tornaram desde muito jovens, esperava-se que fizessem tanto Iago quanto Othello, costume dos mais comuns entre os atores ingleses. Richardson foi o primeiro dos três a ser escalado para uma montagem da peça, mas em nenhum dos dois papéis. Com 28 anos (a idade de Iago, por sinal) recebeu o papel de Roderigo na antológica montagem estrelada pelo americano negro Paul Robeson, no Savoy Theatre de Londres, em 1930. Como o espetáculo trouxesse o primeiro negro no papel de Othello desde Ira Aldridge, 100 anos antes (se não contarmos Samuel Morgan Smith a partir de 1866, literalmente ofuscado, engolido e esquecido, por conta da fama de Aldridge), além de Sybil Thorndike no papel de Emilia, ninguém deu a mínima a Roderigo, a não ser para dizer que Ralph o interpretou abertamente como o idiota da peça, artifício que os diretores utilizavam timidamente, "no interesse da originalidade" (Punch, 28/5/1930). Considerando Ralph, e seu sólido talento cômico, acredito que deve ter sido muito divertido. Não conheço outro comentário sobre esse seu primeiro contato com Othello. Para piorar, seus dois amigos, em biografias e memórias, nem sequer citaram essa montagem. Sobre ela falaremos na quarta parte deste trabalho, quando tratarmos de Robeson.

O Iago de Ralph contracena com a Emília de Edith Evans, em 1932

Gielgud e Richardson encontraram-se com Iago no mesmo ano, em 1932. Infelizmente Gielgud – que aliás era sobrinho-neto de Ellen Terry e muito aprendeu com ela – não o fez no teatro, e sim no rádio. O rádio-teatro era muito concorrido e tinha grande audiência. Seu Othello radiofônico foi Henry Ainsley. Já Richardson fez seu Iago no celebérrimo Old Vic com direção de Harcourt Williams. O elenco era mediano; o Othello de Wilfrid Walter e a Desdêmona de Phyllis Thomas não empolgaram ninguém. O afamado crítico James Agate (1877/1947) observou, entre outras coisas, que Walter parecia o "bedel de uma escola de garotos bem-comportados", dizendo suas falas sem a alternação múltipla de emoções que caracteriza Othello. A Emília de Edith Evans parece ter roubado o espetáculo, o que não surpreendeu, considerando o poder do personagem e a competência da grande atriz, e um petardo envenenado foi guardado para Ralph.

James Agate

Segundo Agate, para ser crível, Iago precisava manter a aparência de um homem honesto guardando a serpente por dentro. Ao tentar essa abordagem, o crítico comenta que Richardson, "tornando-se mais e mais honesto com o andamento da peça nos convenceu de que não faria mal a uma mosca, o que é um bom Richardson, mas um Shakespeare indiferente". (Sunday Times, 9/3/1932) É a crítica que Richardson sofreria por toda a vida: um excesso de bonacherice que o impedia de encarnar crivelmente vilões ou personagens excessivamente trágicos. Em 1938, o diretor Tyrone Guthrie (1900/1971) o escalou para encarnar Othello, tendo Laurence Olivier como Iago, Curigwen Lewis como Desdêmona e Martita Hunt como Emília. Mais um grande equívoco, já que Richardson tinha tanto de Othello, fisicamente, quanto Zé Trindade ou Ronald Golias. E com um agravante: a utilização de um absurdo subtexto de homossexualismo por parte de Iago.

Tyrone Guthrie

A história é a seguinte: a classe teatral inglesa estava abalada com o lançamento, pouco antes, do livro What Happens in Hamlet, escrito pelo intelectual inglês John Dover Wilson (1881/1969). O estudo, que influenciou gerações e tornou-se célebre, fez com que alguns atores – Olivier entre eles – seguissem uma trilha de pesquisa que desembocava em uma velha tese acadêmica chamada The Oedipus Complex as an Explanation of Hamlet's Mystery, lançada em 1910 pelo neurologista galês Alfred Ernest Jones (1879/1958). Por um certo tempo o médico fez parte do seleto grupo de colegas de Sigmund Freud, mas o rompimento entre o pai da psicanálise e Jones deve ter sido amargo, pois mais tarde Freud se referiria a ele como um "galês mentiroso" cujo nível intelectual mantinha-se "no nível de um ginasiano".

O "comitê" de Freud. Ernest Jones está em pé, na extrema direita

Em 1937, quando Guthrie dirigiu o primeiro Hamlet de Olivier, os dois, juntamente a Peggy Ashcroft (que faria Ofélia mas acabou substituída por Cherry Cottrell na última hora) foram visitar Jones, empolgados com a possibilidade de encontrar novas facetas para os personagens da peça. O médico basicamente debitava todos os males do príncipe dinamarquês ao complexo de Édipo. No Hamlet de 37, no Old Vic, Olivier manteve a influência de Jones no subconsciente. Já na versão cinematográfica que dirigiu e estrelou, em 1948, ele jogou essa papagaiada toda no ventilador, elevando ao cubo a afeição entre Hamlet e Gertrudes e transformando-a praticamente em sua amante (absurdo reprisado por Franco Zeffirelli, que idolatrava Olivier, em seu malfadado Hamlet com Mel Gibson). Para piorar, na mesma visita Jones comentou que o comportamento de Iago se devia a uma atração homossexual mal-resolvida que sentia por Othello.

O Iago de Olivier

Guthrie e Olivier resolveram utilizar a idéia de Jones na montagem de 38, mas esconderam tudo de Richardson. Os resultados foram bizarros. Em um dos ensaios, na cena em que Othello diz a Iago, "Now art thou my lieutenant" e este lhe responde "I am your own for ever", Olivier beijou Richardson na boca. Richardson lhe deu um empurrão e disse um "Steady on, old cock!" (Calma aí, meu velho!) bem londrino. Não parou por aí; em uma das primeiras apresentações da peça, Olivier resolveu aproveitar a cena do ataque epilético de Othello e enquanto o general estrebuchava, ele caiu junto e simulou um orgasmo. Graças a Deus, a atriz Athene Seyler foi visitá-lo no camarim e lhe disse que não fazia a menor idéia do que significara aquilo. Para o bem do público, da carreira de Olivier e da memória de Shakespeare, foi o fim da utilização da teoria de Jones naquele Othello.

O Othello de Richardson
Recentemente, perguntado sobre esse episódio, o ator homossexual Ian Mckellen, que interpretou Iago no Old Vic em 1989, foi bastante objetivo em sua resposta: "Iago, que fala a verdade sobre seus motivos ao público, é claramente uma vítima do ciúme heterossexual, que então transfere para seu chefe. Ele suspeita que Othello se deitou com Emília, a srta. Iago. Iago admira as proezas militares de Othello, mas eu não diria que há um sentimento mais íntimo do que esse".

Sem as idiotices de Jones, o que Olivier fez foi tentar tirar o máximo de humor do papel de Iago: "Pobre Ralph, ele não havia nascido para fazer o Mouro. Seu Othello foi tão entediante quanto possível e, a seu lado, eu parecia uma gralha, roubando todos os petiscos. Eu queria as risadas. Sem risco, sem nenhum perigo. Achei que seria muito mais aceitável e interessante se, em vez de interpretá-lo como um vilão do século XVI, eu o fizesse extremamente terno, tão cativante quanto possível. Seria uma personagem mais plausível e perigosa assim, e todos reconheceriam nela o honesto Iago. Desincumbi-me muito bem. Acredito que fui o que as pessoas pensavam que eu fosse – honesto. E aí, quando chegava no monólogo, estava com a seringa pronta para espetar direto no traseiro da platéia. Não funcionou, em termos de crítica, mas funcionou para mim. E, é claro, não funcionou para o pobre e querido Ralph". (On Acting, 1986)

"I bleed, sir, but not killed"...

Gielgud adorou o humor instilado por Olivier a Iago. Reconheceu que o mouro de Richardson era um fracasso, "mas na mesma produção, no Old Vic, Olivier interpretou Iago e deu uma de suas mais brilhantes e inteligentes performances. Nunca mais vi outro Iago que também fosse realmente engraçado. Estou seguro de que Shakespeare deseja que Iago divirta a platéia, especialmente porque Othello, assim como Macbeth, não tem senso de humor" (Acting Shakespeare, 1991). James Agate, (Sunday Times, 8/2/1938) entretanto, discordou da abordagem abertamente voltada para a comédia no Iago e ao meu ver tem razão quando critica Olivier. O jornalista o acusou de fazer um Iago exuberante, mas invertebrado, e citou a crítica feita por William Hazlitt (1778/1830, escritor e ensaísta inglês do século XIX) à interpretação de Kean, que também privilegiava a comédia no personagem.

    Ralph Richardson e a Desdêmona
de Curigwen Lewis

Disse Hazlitt: "Embora não desejemos vê-lo [Iago] representado como um monstro ou um demônio, não vemos razão para que ele seja instantaneamente convertido em um paradigma de gaiatice cômica e bom humor".

Sobre Richardson, Agate foi particularmente cáustico: "A verdade é que a natureza, que despejou generosamente sobre este ator os atributos de comediante, foi egoísta não lhe dando nenhum tipo de capacidade trágica. Sua voz não tem uma única nota trágica em toda sua gama, sendo todos os tons da mais doce moderação. Ele não consegue inflamar". Era verdade. O que não impediria, contudo, que Ralph se aventurasse novamente por papéis trágicos, ainda que a repercussão fosse sempre mais ou menos a mesma. A Othello, porém, ele não voltaria mais.

O Falstaff de Richardson contracenando com
o Shallow de Olivier, na 2ª parte do Henrique IV
Nenhum deles, por sinal, voltaria ao mouro nos 20 anos seguintes. Em 1944 Richardson e Olivier tornaram-se diretores do Old Vic e entre 44 e 45 Richardson teria um dos maiores sucessos de toda sua carreira, como Falstaff nas duas partes de Henrique IV. Olivier estaria presente nos Henriques como Hotspur e Shallow. O Falstaff de Richardson seria considerado "imbatível", tanto pela crítica quanto pelo público (isso, cá entre nós, até que Orson Welles destruísse a forma em 1966 e fizesse o melhor Falstaff de todos os tempos em Chimes at Midnight). Mesmo assim, seu prestígio nunca mais iria se comparar ao de seus dois colegas mais jovens. Nas duas décadas seguintes Gielgud se firmou como o maior Hamlet do século, além encarnar quase todos os papéis shakespearianos. Personagens aos quais Olivier não dava a menor importância, como Leontes, Benedik, Ângelo, Oberon ou Wolsey foram interpretados por Gielgud em montagens elogiadas que iam e voltavam. Gielgud parece ser o campeão nas repetições, aliás. Enquanto Olivier fez no máximo dois Coriolanos, dois Macbeths, dois Hamlets no teatro e um no cinema, um Lear no teatro e outro na televisão, um Ricardo III no teatro e outro no cinema, Gielgud fez quatro Hamlets, quatro Prósperos, quatro Lears (sendo o primeiro aos 27 anos) e não sei quantos outros.

O Hamlet cinematográfico de Olivier, em 1948

No teatro, Olivier fez um sucesso bombástico com seu Ricardo III em 1944 (e em sucessivas remontagens do mesmo espetáculo até 49) e transcendeu definitivamente a ribalta do Old Vic, transformando-se em uma estrela mundial do cinema. Em 1945 levou o Henrique V para as telas, o que lhe valeu um Oscar especial da academia, visto que na época os filmes estrangeiros ainda não eram agraciados em uma categoria individual. Em 1948 dirigiu e estrelou a versão cinematográfica de Hamlet (John Gielgud fez a voz do fantasma do pai de Hamlet). Levou o Oscar de melhor ator. Em 1954 dirigiu e estrelou a versão cinematográfica de Ricardo III e reuniu a turma; fez o papel título, deu o Clarence a Gielgud e o Buckingham a Ralph. A seqüência inicial do filme é antológica, uma espécie de retrato em movimento da realeza teatral britânica, com o close em Olivier, que olha para Ralph, que por sua vez se vira para Gielgud, que por fim olha para Olivier.

A antológica seqüência inicial de Ricardo III, em que Olivier, Richardson e Gielgud se encaram

O filme infelizmente deixou a desejar. Olivier estava completamente perdido no deslumbramento de sua celebridade e acabou realizando uma espécie de festa para promover a si mesmo, em primeiro lugar, e depois seus amigos. Para piorar, quem se saiu melhor no cômputo geral foi Gielgud, espetacular como Clarence. Richardson, para variar, estava demasiadamente bonachão para ser o maquiavélico Buckingham, mas o grande problema foi o próprio Olivier, que procurou reprisar seu papel feito no teatro anos antes mas o carregou tanto nos vícios, nos cacoetes e nas caretas que acabou transformando o filme quase numa alegoria de duas horas e quarenta. Ele pagou o preço. Foi indicado ao Oscar de melhor ator (a única indicação do filme) mas perdeu para Yul Brinner por O Rei e eu. Ricardo III fracassou comercialmente e em 1955, quando Olivier pretendeu fazer um filme de seu extraordinário Macbeth, encenado no Memorial Theatre de Stratfor-Upon-Avon com Vivien Leigh, o prejuízo de Ricardo o impediu de conseguir um financiamento. A posteridade lamenta com lágrimas de sangue.

"Não tenho nem a voz nem a força para interpretar Othello, e nunca deveria tê-lo tentado". Gielgud falando de seu Othello

Em 1961, foi a vez de Gielgud tentar Othello. Ele fizera grande sucesso como Leontes durante a década de 50 e caiu na armadilha de pensar que a premissa das duas peças seria basicamente a mesma: ciúme. Só que Leontes é um idiota, um ciumento patológico e doentio, enquanto que Othello, no máximo, é um inseguro no qual a semente da desconfiança floresce, mesmo com evidências tênues e improváveis. Como diz Iago, "trifles light as air are to the jealous confirmations strong as proofs of holy writ". Pensando em Leontes, o ator parece ter esquecido que Othello é negro, um soldado rústico treinado em guerras, numa caracterização física que ia contra tudo, em Gielgud. A mesma questão de physique du role que já minara o Othello de Richardson no embrião.

O Othello de Gielgud e o Iago de Ian Bannen

O diretor chamado foi o italiano Franco Zeffirelli (1923), que vinha se notabilizando por seu excelente trabalho como cenógrafo e diretor de óperas. O talento do italiano provou-se um tiro no pé. Uma das primeiras críticas à montagem foi a suntuosidade excessiva do cenário, que engolia os atores e tornava a acústica defeituosa, impedindo o público de ouvir os atores. Não por coincidência, o Iago de Ian Bannen foi chamado de "inaudível", o que parece ser uma crítica à acústica e não à interpretação, e de "psicótico" (no sentido de que suas caretas de perverso chegavam a assustar). Um exemplo é este comentário algo maldoso do crítico Bernard Levin: "Há bandeiras e flâmulas, pilhas de livros, baús e arcas, rolos de carpete, caixas de jóias, documentos e mapas, mais degraus do que [a escadaria de] Odessa jamais sonhou, paredes de pedra com as quais certamente são feitas as prisões, carimbos de lacre, um pano de fundo baseado em [Paolo] Veronese e portas de bronze baseadas no longínquo [Lorenzo] Ghiberti; e 70 vezes os 7 pilares sem uma gota de sabedoria". (Daily Express 11/10/1961)

A Emília de Peggy Ashcroft e a Desdêmona de Dorothy Tuttin

Houve quem dissesse, porém, que a montagem de Zeffirelli era visionária e os atores é que deram uma performance antiquada (o que, sinceramente, não exime Zeffirelli, que de um jeito ou de outro continuava sendo o diretor da peça). Sobre a Desdêmona de Dorothy Tutin nada se comentou, mas independente dos defeitos desse Othello, deve ter sido maravilhoso ver a Emília de Peggy Ashcroft. Quanto ao Othello de Gielgud, vamos ao próprio falando sobre o assunto: "Embora para um ator seja importante ser ambicioso e querer aumentar seu alcance, é igualmente importante saber quais são as limitações físicas que impedirão esse aumento. (...) Não tenho nem a voz nem a força para interpretar Othello, e nunca deveria tê-lo tentado. (...) Os críticos disseram que eu devia ter sabido que minha escalação fôra equivocada, e que talvez devesse ter feito Iago quando era jovem". O que ficou foi apenas o arrependimento de não ter feito o vilão antes: "Teria sido um papel maravilhoso para fazer quando eu era um jovem, mas não me ocorreu escolhê-lo na época". (Acting Shakespeare, 1991)

Há comentários sobre a tal ausência de força na interpretação de Gielgud, e alguns são hilários. A escritora Penelope Gilliat assistiu a peça e teve a impressão de que "longe de sugerir que ele poderia comer Desdêmona crua no café da manhã, ele nos faz sentir que realmente a prefere servida em uma bandeja, na biblioteca". Gielgud, que era homossexual, também não tinha rios de traquejo quando se tratava da parte física do espetáculo, em que Othello por vezes tem que ser violento. Segundo Dorothy Tuttin, "John não era uma pessoa física... eu praticamente tinha que estrangular a mim mesma".

Em 1962, Olivier assumiu a direção artística do National Theatre, uma companhia nacional inglesa de teatro que estava no papel há mais de 100 anos. Começaram funcionando provisoriamente no Old Vic e um belo dia Olivier recebeu uma carta do crítico Kenneth Tynan (1927/1980), onde este afirmava que abandonaria a crítica teatral se Olivier lhe desse um posto de consultor de dramaturgia na equipe do National.


Kenneth Tynan

Olivier estranhou, já que Tynan sempre beirara a perversidade em suas críticas a Vivien Leigh (ex-mulher do ator), mas por influência de sua nova esposa, a atriz Joan Plowright, ele aceitou. A única condição que Tynan impunha era que dentro do repertório nos próximos cinco anos, Olivier incluísse Othello, o único dos grandes papéis shakespearianos que ainda não tinha feito. O ator, que já passara pela traumática experiência de se ver como Iago, roubando a cena ao protagonista em 1938, não acalentava o desejo de repetir a dose sob a perspectiva de Othello. "A peça é de Iago", diria Olivier mais tarde (On Acting, 1986), "lá está ele, a fera, empoleirada no seu ombro e piscando em silêncio para a platéia. Mas, tendo dito tudo isso, o desafio estava colocado. Tynan havia insistido e, convenhamos, não há nada que agrade mais a um ator do que isso, por mais êxito que já tenha obtido na vida".

Olivier (Othello), Maggie Smith (Desdêmona), Joyce Redman (Emília) e Frank Finlay (Iago)

Olivier aceitou o desafio, mas não sem antes impor sua própria condição, que na verdade era uma armadilha para qualquer ator que fosse fazer o Iago. Como ele próprio confessou, "seu eu o fizer, disse a Ken, não quero um Iago espertinho, maquiavélico. Quero um alferes honesto e temente a Deus". Ou seja, o contrário do que ele próprio foi? Uma maneira de anular o personagem que além do potencial carismático, tem quase 200 versos a mais do que o mouro? Seja lá qual for a resposta, o papel de Iago recaiu sobre um novato, Frank Finley, que não possuía um único grama de carisma ou bom humor. A Desdêmona escalada foi a belíssima Maggie Smith (hoje mundialmente conhecida como a personagem Minerva, dos filmes de Harry Potter), que já tinha alguns anos de carreira mas teve no Othello sua primeira grande oportunidade, e o Cássio foi para o competente Derek Jacobi, que vinha de interpretar Laertes no Hamlet de Peter O’Toole, em 63, primeira peça do National, com direção de Olvier.

F. R. Leavis

Desta vez a personalidade de Othello não foi mais moldada a partir das taras do velho Ernest Jones, que até processos por sedução de menores enfrentou em sua tumultuada vida, e cujas ridículas teorias já haviam mergulhado em merecido oblívio, e sim em um abalizado e interessante estudo do crítico literário F. R. Leavis (1895/1978). Em 1952 ele publicou o artigo Diabolic Intellect and the noble hero, no qual procurava desmistificar a imagem de que Othello era o herói virtuoso de Shakespeare. No cerne, sua propensão à desconfiança e ao ciúme, mesmo a partir dos rumores menos prováveis e facilmente explicáveis, vai ao outro lado da insegurança: o orgulho. Othello, em sua busca pela integração e pela aceitação do universo nobre (e branco) de Veneza, torna-se um general competentíssimo, mas com traços inegáveis de arrogância e despotismo. Nas palavras de John Dexter (chamado para dirigir a peça), citadas por Ken Tynan, "ele não é apenas um homem honesto que foi enganado. Ele é um homem orgulhoso demais para pensar que seria capaz de algo tão baixo quanto o ciúme. Quando descobre que pode ser ciumento, sua personalidade muda. A consciência disso o destrói e ele enlouquece".

Kenneth Tynan

Era uma premissa boa, realista, que retirava um pouco de Iago a culpa integral pelos males do mundo e fazia lembrar que um mínimo de tolerância e bom senso teriam sido suficientes para desmentir o alferes. Olivier também comentou a vaidade e o que seria esse defeito fundamental de Othello: "Concluí que Othello falava de maneira bem diferente do que qualquer outra personagem de Shakespeare: ele fala como um estrangeiro que aprendeu a língua meticulosamente. Sua atitude moral também é de alguém que se esforça por impressionar. O Senado o vê límpido, puro, cheio de fria coragem. Othello forjou o perfeito casulo externo: ele é a estátua do homem perfeito. Mas a estátua tem um defeito: Shakespeare lhe deu uma fissura. Essa rachadura se expande até que a estátua se quebra. Ele é ciumento demais; e o motivo disso é que ele próprio se engana. Ele é o maior exemplo de auto-ilusão que existe. A dramatização consciente que Othello faz de si mesmo como o nobre guerreiro o leva a ignorar a realidade". (On Acting, 1986)

Dado o pontapé inicial, Tynan contou a Orson Welles – um ex-Othello no teatro e no cinema – que Olivier ia fazer o mouro. Welles feriu uma questão delicada: o ator era um tenor natural e o mouro era um barítono natural. Tynan levou o comentário de Welles a Olivier, que não teve dúvidas e começou um treino de voz intenso e difícil com o objetivo específico de baixar seu registro vocal: "Decidi chegar cedo à sala de ensaio na Aquinas Street e berrar à vontade antes que os escritórios começassem a funcionar. (...) Eu tinha certeza de que sua voz era mais grave do que a minha. Baixo, voz de baixo, um som que devia ser violeta-escuro – aveludado. (...) Comecei a trabalhar nela todos os dias. Precisava torná-la mais grave e, aos poucos acabei conseguindo. Após três ou quatro semanas a coisa parecia ter melhorado e (...) voltei aos meus exercícios com renovado ânimo, pedindo ajuda a Barry Smith, aluno da Central e professor de impostação de voz no RADA. Desconfiei que limitar-me a urrar como um touro, tentando urrar um semitom mais baixo a cada semana não era só o que eu precisava, e que necessitaria uma abordagem mais clássica". (Confessions of an actor, 1982 e On Acting, 1986)

A seguir veio a aparência, depois de discussões com John Dexter, o diretor da peça. O tawny moor de Edmund Kean foi descartado in limine: "Havia rejeitado a tendência atual, uma tonalidade de pele café com leite, o aristocrata natural; a meu ver isso era uma saída resultando do sentimento de que o Mouro não podia ser considerado um Mouro verdadeiramente nobre se fosse escuro demais, contrastando em excesso com os fidalgos brancos, um caso chocante de puro esnobismo. Segundo a descrição, ele tem lábios grossos e peito cabeludo; ele próprio se descreve como negro" (Confessions of an actor, 1982). Começava, então, o processo demorado e estóico de encontrar a maquiagem correta, que não desmanchasse com o suor e que não ficasse inteiro em Desdêmona a cada abraço: "O corpo todo negro, Max Factor n° 2,880, depois um marrom mais claro, depois Negro n° 2, um marrom mais forte. Marrom sobre negro para obter um magnífico tom acaju. Depois o grande truque: aquele sublime meio metro de chiffon que usei para me polir todo, até brilhar. O pancake é farinhento e, com a transpiração, é preciso muito cuidado para que não rache todo, mas se você usar este maravilhoso pedacinho de chiffon a maquiagem brilha como ébano. Os lábios roxos, a peruca encaracolada, o branco dos olhos mais branco que nunca e o lustre do negro recobrindo minha carne e meus ossos, rebrilhando sob as luzes do camarim". (On Acting, 1986)

O figurino do Othello de Olivier na chegada a Chipre

Quanto a figurinos e cenários, Dexter parece ter procurado ir na direção oposta a Zeffirelli: roupas simples e cenários escassos e quase inexistentes. Já nas leituras de mesa e nos ensaios a equipe ficou absolutamente embasbacada com a interpretação de Olivier. Segundo Ken Tynan, "Nos picos de sua voz, as janelas tremiam e o meu escalpo vibrava. Uma força natural havia entrado naquela sala, inflexível e áspera (...) e o elenco ouvia, como que ferido por um machado. (...) E então veio o farewell the plummed troops e novamente os pelos de minha nuca se arrepiaram. Era como o gemido mortal de um touro". Mais adiante Ken afirma que, "como o elenco, eu estava estarrecido. Estávamos aprendendo o que significava estar face-a-face com um grande ator clássico em plena ebulição. Um ator cuja extensão vocal era tão imensa que através de uma única inflexão ele podia indicar um caminho totalmente diferente de interpretação. Cada monólogo, para Olivier, é como um bloco de mármore que o escultor vai lascando até que sejam revelados sua forma essencial e seu significado. Não importa quão ignóbil é o personagem que ele interpreta, o resultado será tão nobre quanto uma obra de arte".

Othello estreou em 6 de abril de 1964 e ficou o resto do ano em cartaz, entrando em turnê no ano seguinte. As críticas foram positivas, mas desde logo a sensação foi a mesma de Ken Tynan: estarrecimento. O que se via era, de fato, a mais extraordinária composição de um personagem em todos os tempos. Olivier chegou ao clímax da interpretação teatral. Aumentou a extensão de sua voz, entrou em uma forma física esplêndida nos seus 56 anos, vasculhou, investigou e averiguou cada centelha de emoção e intenção do personagem, saía da placidez, do equilíbrio silencioso e comedido ao mais intenso e paranóico ataque histérico, ia da gargalhada ao choro convulsivo, do romance à violência, e tudo dentro de um esquema perfeitamente engendrado e meditado. É, a meu ver, a mais perfeita e mais rica interpretação de um personagem em todos os tempos.

Foi o próprio Zeffirelli quem deu o tom, não aos elogios, mas à certeza de que daquele ponto em diante, seria provavelmente impossível superar aquilo: "É uma antologia de tudo que tem sido descoberto sobre a atuação nos últimos três séculos. É grandioso e majestoso, mas é também moderno e realista. Eu diria que é uma lição para todos nós". Nas palavras do ator Simon Callow (Olivier in celebration, 1987), "a maneira como realizou essa interpretação demanda completa admiração. Ele preparou para esse trabalho o maior instrumento que jamais algum ator teve à sua disposição. A flexibilidade física, vocal e emocional de seu Othello estabeleceu novos padrões para todos nós, atores". Se Olivier passou as décadas de 30 e 40 tentando superar Gielgud e provar-se o maior, o momento havia acabado de chegar. Ainda segundo Simon: "Francamente, ele tinha também a intenção de eliminar a competição. Ganhou. O victor ludorum, o garoto vitorioso do mundo do teatro, tornou-se, indiscutivelmente, o maior ator vivo." O texto é de 1987, um ano antes da morte de Olivier e 13 anos antes da morte de Gielgud.

O Brabâncio de Anthony Nicholls, entre Olivier e Maggie Smith

Como as rosas também têm seus espinhos, a temporada de Othello não poderia ter sido só de alegrias. Olivier, depois de quase 40 anos de carreira, desenvolveu por aquela época um caso medonho de stage fright, medo do palco, pelo que obrigava o estreante Frank Finley a permanecer visível, nas coxias, a cada monólogo de Othello. Gagueiras, brancos, tremedeiras e outros achaques o acometiam cada vez que a peça começava. Olivier brincou, anos depois, dizendo que temia aproximar-se do proscênio e ouvir o comentário em voz baixa, nas primeiras fileiras: "Sabíamos que um dia ele ia aparecer bêbado em cena!"


Olivier e Frank Finley

Longe de ser brincadeira, ele chegou a ter um colapso durante uma das representações. Médicos lhe receitaram um remédio para labirintite, ele melhorou e seguiu a temporada.

Graças ao bom Deus – e provavelmente ao diretor Stuart Burge – foi feita uma versão cinematográfica da montagem de Olivier em 1965. Não se trata de uma obra de cinema, propriamente, e sim da performance teatral filmada com várias câmeras, utilizando os mesmos cenários da peça, ampliados. Não temos infelizmente o prazer indescritível de estarmos presentes no momento em que acontece a catarse entre elenco e público, mas a possibilidade de assistir Olivier encarnar Othello, mesmo que através da televisão, mídia que inevitavelmente sufoca a cachoeira performática do mestre, é preciosa.
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As lições de Leavis estão todas ali; a entrada de Olivier, com roupão branco, uma rosa na mão, em pose superior, o monólogo meticulosamente articulado para impressionar o Dodge e os senadores; quando Iago fala sobre a possível infidelidade de Desdêmona sentimos a fissura se abrindo, na falsa segurança com que Othello responde "exchange me for a goat, when I shall turn the business of my soul to such exsufflicate and blown surmises, matching thy inference". O histérico "ha! ha! False to me!", que tanto impressionou Anthony Hopkins – substituto de Derek Jacobi no fim da turnê da peça, em 1966 – é o início do processo pelo qual Iago consegue, por fim, derrubar Othello de seu pedestal de superioridade.

"Prithee, no more; let him come when he will, I will deny thee nothing..."

A perfeição recende de cada fala de Olivier, desde o monólogo aludido por Ken Tynan até o "death and damnation! Oh!", que Olivier grita, aos prantos, comovendo por ser tão patético e genial, ou o arrepiante "oh, blood! Blood! Blood!". Cenas geralmente tratadas às pressas em montagens teatrais ou cinematográficas tornam-se pequenas obras-primas, como o diálogo de Othello e Desdêmona em que esta pede, romântica e carinhosa, que Othello perdoe Cássio ("I will deny thee nothing"), ou a verdadeira troca de farpas entre Emília e Othello, quando ele conta que foi Iago quem lhe revelou a infidelidade da esposa e se irrita quando ela repete "my husband?" três vezes ("What needs this iteration, woman? I say thy husband, dost understand the word?").

A cena da chegada de Lodovico e a bofetada em Desdêmona dispensa adjetivos. É o píncaro da função do ator. Olivier parece uma panela de pressão, suando, completamente desequilibrado, carregando toda a ansiedade, a angústia e o ódio do ser humano. Ao contrário de todos os outros Othellos, o seu "fire and brimstone!", seguido pelo "are you wise?" não são ditos com ódio ou fúria; são, antes, súplicas, é como se ele implorasse a Desdêmona que não fanfarroneasse sua infidelidade em público. Quando seu tapa quase derruba Magie Smith, ele diz "Oh, devil! Devil!" chorando e explode com o "out of my sight!". O que vem a seguir é o que diferenciava Olivier de todos os outros: uma capacidade inigualável de misturar o patético com o trágico, exatamente o que Shakespeare pretendia quando deu ao mouro as falas desconexas com que ele a um tempo responde a Lodovico e debocha de Desdêmona, dizendo-lhe "well painted passion!" No fim corta Desdêmona ao meio com um "hence, avaunt!" que deve ter ecoado até a França, e olha para o incrédulo Lodovico. Coberto de vergonha, como que saindo momentaneamente de seu transe, estende-lhe os braços e diz, comovido: "You are welcome, sir... to Cyprus", para logo em seguida sair gritando como um alucinado, "Goats! And monkeys!" O silêncio depois de sua saída faz com que possamos escutar claramente a salva ensurdecedora de aplausos em cena aberta que o momento deve ter rendido a Olivier, no palco.

"The royal banner, and all quality, pride, pomp, and circumstance of glorious war!"

Aqui e ali vemos também seus exageros, mas diante de tantos acertos, ele acaba merecendo o direito de ser over de vez em quando. Não empana nem por um segundo a perfeição de sua performance. Como acontece quando temos um protagonista poderoso demais, o resto do elenco some. Maggie Smith está linda e até certo ponto convence naturalmente como Desdêmona, embora lhe falte voz para encarar o ultrajado "by heaven, you do me wrong" da discussão com Othello. Frank Finlay não existe. Olivier conseguiu o prodígio de anular não só a performance, como a própria existência de Iago. Joyce Redman é uma ótima Emília, embora também um pouco over. O filme teve uma distribuição modestíssima e não obteve maior repercussão, embora seja o único filme baseado em Shakespeare no qual os quatro protagonistas foram indicados ao Oscar. Quem ganhou foi Lee Marvin por um filme qualquer que ninguém mais lembra, o que nos faz entender mais ou menos o (inexistente) critério nas escolhas da academia.

O assassinato de Desdêmona, com Olivier e Maggie Smith

O Othello de 1965 foi, sem dúvida, a razão pela qual Olivier acabou convidado, meses depois, para dar vida ao líder sudanês Muhammad Ahmad, dito "Mahdi", no excelente Khartoum, filme de Basil Dearden, escrito por Robert Ardrey. É bem verdade que a escolha foi no mínimo esquisita; o Othello de Olivier era uma coisa, e funcionava de maneira perfeita tanto no teatro quanto no cinema, mas teria sido melhor que um ator de perfil minimamente africano-oriental tivesse recebido o papel. Olivier, contudo, deu conta do recado admiravelmente.

A possibilidade de caracterizar-se como um africano rende a Olivier o papel de Muhammad Ahmad, no filme "Khartoum", de 1966, que também contou com a participação de Ralph Richardson, idêntico a seu personagem, o Primeiro Ministro britânico William Gladstone

Como sempre, não faltaram na época os tontos que o atacaram pelo exagero do sotaque e dos trejeitos (e até mesmo hoje, como é o caso de uma idiotazinha pretensiosa do Guardian londrino chamada Alex Tunzelmann), como se o próprio Ahmad não fosse, ele próprio, personagem dos mais exagerados da história. No mais, o filme traz Ralph Richardson divertidíssimo no papel do pusilânime Primeiro Ministro inglês William Gladstone, responsável pelo fracasso absoluto da missão britânica no Sudão e pela morte do general Charles Gordon, que no filme é interpretado por Charlton Heston.

Richardson e Gielgud em "No Man's Land", de Pinter

Nos 20 anos seguintes, só restou ao triunvirato do teatro inglês envelhecer e partir. Nos palcos Gielgud e Richardson trabalharam juntos em Home, de David Storey, em 1970, e em No Man’s Land, de Harold Pinter, em 1976, com imenso sucesso para ambos. No cinema Richardson foi o narrador de Chimes at Midnight de Orson Welles, em 65, enquanto Gielgud interpretava Henrique IV. Na televisão trabalharam um punhado de vezes em programas e filmes de pouca importância. Com Olivier, contracenando ou não, Gielgud esteve no filme The shoes of the fisherman, dirigido por Michael Anderson em 1968, e na minissérie televisiva Brideshead Revisited. Richardson e Olivier também estiveram juntos, contracenando ou não, em diversos filmes como Battle of Britain e a minissérie de Franco Zeffirelli Jesus de Nazaré, de 1977.

Richardson, Olivier e Gielgud em "Wagner"

Quem conseguiu reuni-los foi Richard Attenborough, em Oh, what a lovely war em 1969, mas o encontro mais memorável dos três – talvez por ser o último – foi na minissérie Wagner, dirigida por Tony Palmer em 1983. Richardson morreu em 10 de outubro daquele ano, quando Olivier encerrava a gravação de seu Rei Lear televisivo, seu último grande papel, que lhe valeu um Emmy, seis anos antes que sucumbisse definitivamente ao câncer e morresse, em 11 de julho de 1989. Gielgud seguiria como o único remanescente dessa extraordinária trinca, protagonizando Prospero’s Books em 1991, uma intragável versão cinematográfica de Peter Greenway para A Tempestade, e fazendo uma ponta de luxo como Príamo, no Hamlet de Kenneth Branagh, em 1996. Morreu aos 96 anos, em 21 de maio de 2000.

Eram os três "cavaleiros" do teatro inglês. Richardson e Olivier se tornaram "Sir" em 1947. Gielgud em 53. Em 1970 Olivier se tornou "Lord" e em 1981, recebeu a Ordem de Mérito do Império Britânico. Morreu com o direito de ser chamado "Baron Olivier of Brighton". Ele via isso com bom humor, assim como as parcerias, juntos e separados, do trio: "Hollywood mandava nos buscar, os três pares, na esperança de que nossos nomes ajudassem a receita dos magnatas do celulóide. Não sei se ajudou. Suponho que sim. Dá até pra ouvi-los conversando no escritório, em algum arranha-céu californiano. 'O que nós estamos precisando é de um pouco de classe... vê se arranja aí um desses caras britânicos com boa cancha. Melhor ainda, me arranja logo três'. E lá íamos nós, o trio: Ralph, John e Larry".
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