domingo, 15 de setembro de 2019

Ειρήνη Παπά, Eiríni Papás, Irene Papas — 4/7


Fotos de Ferdinando Scianna, 1973

Os filmes de Irene produzidos na Grécia foram esporádicos e espaçados por diversas razões. Na década de 50 ela filmou mais na Itália do que em qualquer outro lugar; na década seguinte ela teve seu primeiro momento de verdadeiro fastígio internacional, que infelizmente coincidiu com o período em que a ditadura ascendeu, naquele país. Por conta disso, esteve mais freqüentemente na França, na Itália, na Inglaterra e nos Estados Unidos. A década de 70 viu seu segundo período italiano e pouquíssimos trabalhos na Grécia. E as décadas de 80 e 90 assistiram um pequeno retorno a seu país, mas não mais no papel de cariátide, e sim de uma mulher madura e vivida. De uma forma ou de outra ela nunca esteve ausente. O que se lamenta, de certa forma, é que seus filmes gregos só tiveram verdadeira qualidade quando a direção esteve nas mãos de Michális Kakogiánnis. Alguns dos outros podem até não ser ruins, mas estarão distantes da excelência impressa por Kakogiánnis a seus trabalhos, além de sua incrível capacidade de extrair a melhor performance de Irene. O supra-sumo dessa colaboração está em três tragédias gregas (sobre as quais falarei em outro artigo) e em Zorba. Neste quarto artigo falaremos de Zorba e de meia-dúzia de outros filmes de Irene filmados na Grécia. Como sempre, a tônica é a diversidade. Os filmes vão de Disney ao australiano Paul Cox, passando por eventos históricos e adaptações de May Sarton e Nikos Kazantzakis.

Gostaria de ter incluído Pssit... Garotas! (Ψιτ... κορίτσια!!) e Bouboulina (Μπουμπουλίνα), ambos de 1959, nesta lista, mas não foi possível. Embora os dois filmes estejam disponíveis no Youtube, eles não têm legendas e a imagem do segundo está completamente deteriorada. É uma pena, porque mesmo sendo um filme provavelmente datado e sem grandes predicados, ele traz Papas interpretando Laskarina Bouboulina, ou seja, a junção de duas heroínas gregas. Apenas por isso ele já mereceria ser restaurado e conhecido.

Η ΛΙΜΝΗ ΤΩΝ ΣΤΕΝΑΓΜΩΝ
(O Lago dos Suspiros, 1960)


Em 1959 Irene fez três filmes na Grécia. O primeiro é uma comédia romântica, Pssit... Garotas! (Ψιτ... κορίτσια!), com direção de seu ex-marido Alkis Papas; em seguida veio o drama histórico-biográfico Bouboulina (Μπουμπουλίνα), dirigido por Kostas Andritsos e, por fim, O Lago dos Suspiros (Η Λίμνη των Στεναγμών), roteirizado e dirigido por Grigoris Grigoriou, considerado hoje o pai do neo-realismo grego.

A composição do Ali Paxá do filme foi baseada
nesse desenho de Louis Dupré, de 1819
A história é baseada num fato real: o vizir da região do Epiro era um déspota albanês ligado aos turcos, chamado Ali Paxá de Tepedelen (referência à cidade albanesa onde nasceu, entre 1740 e 1750), que exercia seu poder a partir da capital da região, a cidade de Joanina. Em 1800 ele mandou prender dezessete mulheres que teriam sido infiéis a seus maridos e, portanto, segundo a lei islâmica, deveriam ser executadas. Até aí, não chegava a ser muito diferente das atrocidades habituais cometidas por esse vizir cruel, sádico e sangüinário, desde 1788, quando se apossou de Joanina. Só que neste caso havia um problema diplomático: entra elas estava Euphrosyne Vasileiou (1773/1800), dita Frosini, sobrinha de um bispo de Joanina, casada com um rico comerciante com quem tinha dois filhos, e membro da aristocracia do Epiro. A população local ficou indignada com a prisão e exigiu sua libertação. Segundo a lenda, o próprio marido de Frosini, Dimitrios, teria afirmado que perdoava sua esposa. Temendo uma revolta popular e considerando que o império turco passava por um momento decadente (que culminaria com a revolução de 1821), Ali Paxá apressou as coisas e as dezessete foram levadas para o meio do rio Pamvotis e jogadas sem maiores cerimônias; há quem diga que elas teriam sido metidas dentro de sacos de pano, os sacos foram costurados e só então jogados no mesmo lago. A data varia entre 11 de janeiro de 1800 ou 1801.

Frosini, pintura do francês Alexandre-Gabriel
Decamps, de 1847
O fato causou grande comoção mas Ali permaneceu no mesmo posto até 1822, quando foi, finalmente, assassinado. Nas décadas seguintes surgiram inúmeras versões para o caso, sendo que uma das mais populares era de que Frosini aproveitou a constante ausência de seu marido, sempre em viagens de negócios, e teve um caso com o filho de Ali, Muhtar. A infidelidade em si não afetava Ali em nada, exceto pelo fato de que Muhtar era casado com a filha de um líder político de Souli, no Epiro. Ali teria tomado medidas extremas para proteger seu poder político, que seria ameaçado caso a nora fosse reclamar com o pai. Outra versão é a de que essas mulheres eram inimigas do império turco-otomano (como, aliás, foi o caso de Bouboulina, pouco depois) e executadas pelo seu engajamento político, razão pela qual hoje são consideradas mártires. Em 1859 surgiu o poema dramático Madame Frosini (Η Κυρά Φροσύνη), de Aristotélis Valaorítis. Infelizmente não consegui encontrá-lo em nenhuma língua que não fosse o grego, então não sei que versão foi adotada pelo poeta. Em 1868 surgiu a ópera do mesmo nome, de Pavlos Carrer (libreto de Elisavetios Martinegkos) e em 1959 - possivelmente em homenagem ao centenário do poema de Valaorítis - Grigoris Grigoriou levou o drama ao cinema.

Pintura de Sotiris Christidis (circa 1930) retratando o momento em que as adúlteras
foram jogadas no Lago Pamvotis

Frosini (Papas) e o anel da discórdia
Seu roteiro transforma Frosini em uma heroína romântica. Ela (Papas) é viúva, não tem filhos, vive reclusa por ser cristã em um país dominado pelos muçulmanos e tem a companhia apenas de sua velha criada Ayah (Eleni Zafeiriou). A posição social, entretanto, lhe dá a oportunidade de freqüentar ocasionalmente as festas dadas por Ali Paxá (Tzavalas Karousos) em seu palácio e lá ela conhece e se envolve com Muhtar (Andreas Barkoulis).

Em um desses saraus, uma escrava vê um anel de Muhtar na mão de Frosini. Corre para contar à esposa dele, Hanife (Theano Ioannidou). Arrasada, ela confronta o marido, que se recusa a lhe dar qualquer satisfação e ainda passa a noite com Frosini. No dia seguinte Muhtar tem novo diálogo áspero com a esposa e ela resolve falar com Ali. Conta ao velho que Muhtar a está traindo com Frosini. Ali acalma a nora e promete tomar uma providência. A seu conselheiro mais próximo, Tahir (Andreas Zisimatos, baseado em Tahir Abazi, que era um dos assessores de Ali Paxá), ele se mostra a um tempo irritado por ser o último a saber do caso do filho, e preocupado com as conseqüências do fato, junto ao pai de Hanife.

Andreas Barkoulis (Muhtar), Theano Ioannidou (Hanife), Roula Chrysopoulou (Zeibede),
Andreas Zisimatos (Tahir), Eleni Zafeiriou (Ayah) e Dimitris Kallivokas (Kolétis)

Ali Paxá (Tzavalas Karousos)
Entram emissários do sultão, com uma solicitação para que Ali mande tropas a Adrianópolis, na Turquia, a fim de debelar uma rebelião liderada por um vizir indócil ao poder do sultão. Tahir sugere que Ali mande Muhtar, o que facilitaria a resolução dos problemas domésticos. Ali, fascinado com Frosini e coberto de inveja da sorte do filho, aceita a idéia de Thair e Muhtar é é enviado à Turquia.

Naquela noite Frosini é levada ao palácio. O vizir comenta, com falsidade, estar preocupado com o namoro dela e de seu filho. Em seguida pede a ela que o aguarde em seu harém para não haver o perigo dela se encontrar com Hanife mas uma das mulheres de Ali conta à esposa de Muhtar que Frosini está lá. Hanife vai até o harém e insulta Frosini, que se mantém calada. Ali então aparece e pede para a nora sair. Mais uma vez a sós com Frosini, ele agora não esconde suas intenções e se insinua abertamente a ela. Frosini, horrorizada, foge do assédio. Ali se afasta e pede para ela descansar e pensar no assunto, podendo responder no dia seguinte.

Frosini (Papas): ouvindo calada os insultos de Hanife

Ali: um velho safado
Pela manhã ele aparece e tenta novamente agarrá-la. Ela mais uma vez se desvencilha e deixa claro que não aceita o velho. Ele fica enfurecido e manda que ela seja presa no calabouço do palácio. Tahir já o havia aconselhado a tratar o assunto com cuidado, pois os turcos tinham uma coexistência pacífica com  aristocracia grega em Joanina, e Frosini era expoente da classe.

Pouco depois de enviá-la ao calabouço, ele recebe a visita de seu médico particular, Kolétis (Dimitris Kallivokas). Este fora avisado da prisão por Maria - uma escrava grega que cuidou de Frosini no harém e ouvira a primeira tentativa de assédio - e por isso já sabia o que estava acontecendo. Sem mencionar nada disso, limita-se a reafirmar o que Tahir já dissera anteriormente, sobre a gravidade de prender Frosini, e pede que ela seja libertada imediatamente. Ali afirma com veemência que ela foi presa por adultério e ele está apenas cumprindo a lei. Quando o médico se retira Ali ordena que Tahir o observe constantemente para que ele não possa mandar um emissário a Muhtar, alertando-o do que está acontecendo (ordem que Tahir acaba ignorando e o médico consegue enviar seu emissário). O conselheiro comenta que a prisão não pode ser isolada, já que Frosini não é a única grega tendo caso com um turco. Ali responde a ele que escolha um grupo de mulheres infiéis, então, para que sejam presas junto à Frosini. Antes, porém, o vizir vai ao calabouço e tenta convencer a amante de seu filho a aceitá-lo, mas a prisão vai endurecendo-a e ela permanece irredutível. Pouco depois quem aparece por lá é Ayah, que implora para ser presa junto à Frosini. Inicialmente Ali se recusa mas é tal o escândalo da velha que ele concorda e manda prendê-la na mesma cela.

Na masmorra: "Uma palavra vinda dos seus lábios e você será rainha"...

Na masmorra, com as adúlteras
Tahir faz uma lista e prende dezesseis mulheres acusadas de adultério. Um grupo de aristocratas gregos vai até Ali para protestar. O vizir reverte a situação dizendo que aquilo será um exemplo para as esposas e as filhas de cada um deles. Logo depois Kolétis faz novo apelo ao vizir. Ele responde que se Hanife perdoar Frosini a situação poderá ser reconsiderada. O médico tenta despertar a compaixão da esposa de Muhtar mas ela é puro ódio. Até mesmo sua irmã Zeibede (Roula Chrysopoulou), casada com um irmão de Muhtar que também está em batalha, se compadece das adúlteras e procura convencer a irmã. Mas nenhum dos dois consegue. A essa altura, o emissário de Kolétis chega ao acampamento de Muhtar e avisa que a vida de Frosini está em perigo. Ele larga tudo e sai com seu cavalo, na esperança de chegar em Joanina a tempo. Naquela noite Ali manda chamar Frosini. Faz a ela um último apelo mas a resposta dela é violenta: diz que prefere morrer e que o abraço do lago será menos frio que o do velho. Ele a manda de volta ao calabouço e convoca uma festa, com mulheres e música, até o amanhecer, em homenagem debochada à alma de Frosini.

A caminho do abraço frio do Pamvotis

"Diga a Ali que Frosini sabe morrer
como uma mulher grega"...
Na manhã seguinte, as mulheres - menos Ayah, proibida de acompanhá-las - são levadas de barco ao meio do lago e jogadas. Muhtar chega tarde demais e ainda encontra Ayah chorando na beira do lago. Sua imagem inconsolável, de costas, andando pela beira do lago e afastando-se, é a última do filme.

O Lago dos Suspiros é um filme B com um elenco acima da média. Tzavalas Karousos, Theano Ioannidou e Eleni Zafeiriou estão muito bem. Já o roteiro de Grigoris Grigoriou é de uma mediocridade absoluta. O romance de Frosini e Muhtar tem duas cenas e ambas são constrangedoras, de tão piegas e mal-escritas. Os diálogos estão abaixo de uma novela mexicana e o que vemos é um sujeito fantasiado de beduíno, beijando a amante sem tirar o chapéu enorme que está usando, e a amante não faz outra coisa senão se lamuriar o tempo todo. Isso anula a presença de Irene - canastroníssima - que estava no ápice de sua beleza e, como se viu em Νεκρή πολιτεία, só precisava de um diretor competente e de um bom roteiro para encantar. A produção de Lago dos Suspiros faz lembrar o tempo da TV ao vivo: tem menos de uma hora e vinte de duração, os figurinos são exagerados, os cenários são muito bonitos, muito bem feitos e muito falsos. Tudo é de papelão, a masmorra é limpa e aconchegante, todo mundo está maquiado e bonito. Não por coincidência, a produção cinematográfica de Grigoris Grigoriou foi inteiramente esquecida e ele hoje é lembrado como um ótimo diretor de TV. Faz todo sentido. O Lago dos Suspiros estreou em fevereiro de 1960 e fez um sucesso razoável. Esteve esquecido durante décadas até que alguém teve a idéia de restaurá-lo - creio - no início deste século. Os letreiros originais foram trocados por caracteres de novela, a imagem está boa, Irene está deslumbrante e o filme continuará esquecido.

THE MOON-SPINNERS (1964)

Filha do famoso ator inglês John Mills, Hayley Mills iniciou sua carreira no cinema com pouco mais de doze anos. Tornou-se uma das mais populares estrelas da Disney em 1960, aos catorze anos, quando filmou o clássico Pollyanna. Após uma série de filmes de sucesso, veio The Moon Spinners, baseado no livro de Mary Stewart, com roteiro de Michael Dyne e direção de James Neilson. A adolescente Nikky Ferris (Hayley) acompanha sua tia Frances (Joan Greenwood) em uma viagem à praia de Agios Georgios, na Grécia, onde a tia fará uma pesquisa sobre músicas regionais. Chegando lá, elas se hospedam em um hotel-restaurante chamado "The Moon Spinners" (nome baseado na lenda de três irmãs que passam a noite girando a lua, e que pouca ou nenhuma importância terá na trama) mas são mal-tratadas pelo dono, Stratos (Ely Wallach), e recebidas com desconfiança pela irmã deste, Sophia (Papas) e o primo de ambos, Lambis (Paul Stassino). O único que fica feliz com a chegada delas é o filho de Sophia, Alexis (Michael Davis). Na primeira noite elas percebem a animosidade que existe entre Stratos e um certo turista inglês que se encontra lá há alguns dias, Mark Camford (Peter McEnery). Mark trabalhava como mensageiro de confiança em um banco de Londres, e costumava levar jóias que ficavam no cofre para clientes que as requisitassem. Em uma dessas ocasiões foi roubado no caminho e mesmo não sendo incriminado pelo roubo, seu nome ficou manchado e sua carreira foi aniquilada. Tempos depois ele descobre acidentalmente que Stratos foi quem lhe roubou a jóia, e vai a Agios Georgios para tentar impedi-lo de revendê-la.

Eli Wallach e Papas em foto promocional de The Moon Spinners

Hayley Mills
Durante a madrugada, enquanto Nikky e sua tia dormem, Mark segue Stratos e Lambis, que vão até uma determinada localidade - a Baía dos Golfinhos - inspecionar a jóia, que eles mantêm guardada no fundo do mar. Quando percebem a presença de Mark, vão atrás dele e Lambis consegue acertar-lhe um tiro no braço. O rapaz é deixado no porão de uma igreja, lá perto. No dia seguinte, Nikky procura Mark, com quem tinha combinado de ir à Baía dos Golfinhos, e não o encontrando, ela vai sozinha. Visitando a igreja deserta, ela encontra Mark ferido, volta ao hotel e busca um kit de primeiros socorros e mais algumas coisas. Quando acorda, a tia de Nikky comenta com Stratos o inusitado sumiço do kit e de outros pertences, o que o deixa desconfiado e o faz ir atrás da menina. Ele a encontra e a arrasta até a igreja mas Mark já fugiu. Ele então a prende em um moinho de vento por ali. Com a ajuda de Alexis, porém, Mark consegue libertá-la e os dois fogem e passam a noite em um templo em ruínas. Na manhã seguinte são encontrados por Anthony Gamble (John Le Mesurier), que se apresenta como cônsul inglês na Grécia e oferece sua casa em Agios Nikolaos para que possam se recuperar. Ele na verdade é quem fará a intermediação entre Stratos e a compradora do colar, e teve que se envolver porque o grego perdeu o controle da situação e estava disposto a matar dois cidadãos ingleses, sem pensar nas conseqüências disso.

Papas e Joan Greenwood

Papas e Eli Wallach
A esposa de Gamble (Sheila Hancock) cuida do ferimento de Mark e a tia de Nikky é trazida de Agios Georgios. Na verdade ela drogou o rapaz com o objetivo de enviá-los a um hospital em Atenas, bem longe dali, para que não atrapalhassem a negociação. Mas Mark desconfia que foi drogado, dá um jeito de tomar um estimulante que encontra no banheiro, cortando o efeito do sonífero, e tanto ele quanto Nikky aproveitam que o automóvel que os está levando ao aeroporto fica preso em uma festa popular e escapam, sem que Frances perceba. Ele volta a Agios Georgios para encontrar Stratos e ela rouba uma lancha e vai até o navio onde está a compradora do colar, Madame Habib, que não é ninguém menos do que a grande estrela do cinema mudo, Pola Negri (aposentada desde 1943 foi convidada pessoalmente por Walt Disney). A menina conta-lhe a história toda. Enquanto isso, Frances descobre que os dois sumiram, aciona a polícia que vai a Agios Georgios onde Stratos e Mark tem nova briga na Baía dos Golfinhos e imagina-se que no desforço o inglês se afogou. Stratos vai até o Minotauro, navio de Madame Habib. Na verdade Mark apenas fingiu que estava morto para despistar Stratos e vão todos para o navio de Madame Habib. Stratos é preso, a madame promete cooperar com a polícia, a reputação de Mark é restabelecida e eles prometem a Alexis que voltarão em breve.

Pola Negri: divando uma última vez

Papas em The Moon Spinners. Foto de uma
matéria da revista brasileira Manchete, de
1967, sobre o golpe militar na Grécia
É um thriller infanto-juvenil, primeira incursão da Disney pelo gênero suspense/policial e veículo exclusivo para Hayley Mills, que era linda e talentosa. Não foi um sucesso de bilheteria, entretanto, possivelmente porque suas quase duas horas são cansativas, a história é boba e sem maiores surpresas, e Hayley, aos dezoito anos, estava bonita e adulta demais para continuar no papel de Pollyanna. Peter McEnery era um bom ator, mas seu Mark não tem carisma, assim como o Stratos de Eli Wallach é um vilão sem graça. E tudo isso sem mencionar que esta é talvez a mais medíocre das coadjuvâncias de Irene. Ela vinha do extraordinário sucesso de Elektra e sua Sophia é meramente decorativa. Tem meia dúzia de falas, como a irmã boa que tenta recuperar Stratos de uma vida de vilania, mas se não estivesse lá ninguém nem notaria. Um desperdício tenebroso. Outra coisa interessante é que mesmo tendo locações em Agios Nikolaos, há um desconhecimento flagrante da geografia grega. O hotel de Stratos fica em Agios Georgios, uma cidade em Corfu, noroeste da Grécia, ao lado da Albânia, que não tem absolutamente nada a ver com Creta. E fala-se em ir para Agios Nikolaos (que fica, efetivamente, em Creta) como se fossem cidades vizinhas, embora esta segunda praia fique no extremo sul, a mil quilômetros de Agios Georgios, e grande parte da travessia é marítima.

Papas: um desperdício

Seja como for, The Moon Spinners estreou em julho de 1964, nos Estados Unidos. Foi o último filme de Pola Negri. E nada fez pela carreira de Papas. Qualquer um de seus filmes italianos no início da década de 50 é mais importante do que esteMas ela teria gorda compensação no filme seguinte: Zorba.

ZORBA, THE GREEK (1964)


Georgios Zorbas
Georgios Zorbas nasceu em 1865 na Macedônia Central, região da Grécia que se encontrava então sob o domínio do Império Turco-Otomano. Na juventude teve inúmeros empregos, como pastor de ovelhas e cabras, lenhador, mineiro, mascate, ferreiro, operário e músico. Em quase todas essas atividades se sobressaía sua personalidade espaçosa, barulhenta, divertida e cativante. Também se caracterizou pelas bebedeiras, por gostar de dançar e por amar fervorosamente as mulheres. No início do século XX a tragédia se abateu sobre ele com violência: perdeu a esposa, perdeu alguns dos filhos e foi participante ativo das selvagerias cometidas de lado a lado nas guerras dos Bálcãs contra os turcos e os búlgaros, em 1912 e 1913. Farto de tanta desgraça, mudou-se para Monte Atos, onde pretendia tornar-se monge da igreja ortodoxa. Foi lá, em 1915, que conheceu o escritor Nikos Kazantzakis (1883/1957). Este, aos 32 anos, já era advogado e filósofo, vinha se dedicando a viajar pelo seu país e pelo mundo, ao estudo de filósofos como Nietzsche, às religiões e tudo que pudesse excitar sua mente privilegiada. Embora fossem completamente diferentes em tudo, a afinidade entre ambos foi imediata. Kazantzakis pretendia trabalhar em uma mina de lignite em Stoupa, na península de Mani, e como Zorba afirmava ter largo conhecimento na área, os dois foram juntos.

Primeira edição de Zorba, 1946
Encerraram-se ali os planos de uma vida monástica para Zorba e iniciou-se um dos mais importantes capítulos na vida de Kazantzakis. Os dois trabalharam como mineiros, dividiram uma casa na praia, viajaram juntos e apesar de terem se separado depois de pouco mais de um lustro, mantiveram contato por cartas até a morte de Zorba, em 1941. O escritor transformou essa extraordinária experiência no livro Vida e Tempos de Alexis Zorba, lançado em 1946.

Kazantzakis trocou o primeiro nome de Georgios para Alexis e retirou o S do sobrenome, tornando-o Ζορμπά, “Zormpá”, que se pronuncia “Zorbá”, razão pela qual, na transliteração e tradução do livro para o inglês, em 1952, o nome virou Zorba. Existe uma questão interessante no resto do título, que é traduzido simplesmente para “O Grego. Há quem argumente a ilegitimidade desse gentílico, levantando uma discussão referente à nacionalidade do Zorba original, que seria de fato macedônio, não da Macedônia Central, na Grécia, mas da Macedônia do Norte, o território que pertencera aos gregos, aos turcos, aos iugoslavos e hoje é um país independente. A questão permanece aberta e é discutida com inusitada convicção por determinados grupos nacionalistas gregos e macedônios. Os primeiros descartam, por absurda, qualquer possibilidade do personagem não ser grego e os segundos despejam passagens do livro em que Kazantzakis se refere a Zorba como macedônio ou como eslavo (o que realmente acontece).

Nikos Kazantzakis, circa 1915
Seja como for, o livro se tornou, com toda a justiça, um best-seller mundial e era uma questão de tempo até se transformar em filme. Isso aconteceu pouco mais de uma década depois da tradução inglesa, e o projeto não poderia ter caído em melhores mãos: o sucesso avassalador de Elektra (1962) deu a Michális Kakogiánnis carta branca para escolher seu próximo projeto. Ele escolheu levar Zorba para a telona e fechou contrato com a 20th Century Fox. Seu primeiro passo foi juntar a mesma turma que, com ele, transformara Elektra em uma marco do cinema grego: o compositor Mikis Theodorákis, Irene Papas, o Diretor de Fotografia Walter Lassally e até o ator Takis Emmanuel. Em seguida começou a escrever o roteiro, que guardava o ambicioso detalhe de não ser em grego; Kakogiánnis mirava o mercado internacional e decidiu que o filme seria falado em inglês. Para tanto, transformou o personagem do escritor (que Kazantzakis baseou em si mesmo) em um inglês - Basil - que vem de família grega e tem uma propriedade em Creta.

Michális Kakogiánnis
Considero o roteiro de Kakogiánnis primoroso. O livro de Nikos Kazantzakis, como não podia deixar de ser, é pródigo em descrições de tudo aquilo que ele estava vivendo e sentindo, e são longas as conversas, as reflexões e os comentários dele e de Zorba. Só que essas qualidades do autor - a prosa perfeita, o vernáculo pujante, o texto fluído e escorreito - seriam uma armadilha para o diretor e jogariam Zorba e o filme em um vórtex de verbosidade e parlapatice, além da tentativa permanente de interpretar cinematograficamente os inúmeros ornamentos literários do autor, que cansariam o público rapidamente. Kakogiánnis, inteligente, seguiu a mesma linha que o levou a fugir da adaptação literal de Eurípides, e acertou em cheio criando sua própria obra a partir da essência do trabalho de Kazantzakis. Seu roteiro é o extrato poético do livro, em comunhão com sua própria visão. Ele soube traduzir o texto em imagens, em música, em alegria e tristeza, em contemplação e em silêncio. Há cenas completas, algumas cruciais, que não tem uma única palavra. Não precisam, graças ao roteiro enxutíssimo, à direção precisa e superior de Kakogiánnis e um elenco que beira a perfeição. Além disso, seu Zorba está muito bem dividido em capítulos seqüenciais; temos a ansiedade de Basil no porto, o encontro com Zorba, a viagem e a chegada à Creta, o encontro com Madame Hortense, a viúva, o projeto da mina e assim por diante. Tudo bem amarrado, com início, meio e fim. Nada sobra, nada é confuso, nada é gratuito.

Kakogiánnis e Quinn no set de Zorba
A escolha do elenco guarda algumas curiosidades. O que me consta é que Kakogiánnis tinha Anthony Quinn em mente para o papel-título desde a concepção do projeto. Segundo o IMDB, porém, Burt Lancaster e Burl Ives teriam recusado o papel. Chega a ser cômico; Ives era um bom ator e talvez até fizesse um trabalho razoável, embora não podendo jamais comparar-se a Anthony Quinn. Quanto a Lancaster, não exagero quando digo que teria arruinado o filme. Não consigo imaginar miscasting mais flagrante. Aliás, é ameaça que rondou seriamente o papel de Madame Hortense. Por alguma razão, quem chegou a filmar algumas cenas no papel foi Simone Signoret. Passados alguns dias, Kakogiánnis foi a Darryl Zannuck e pediu a substituição de Signoret por Lila Kedrova. A russa tinha pouco mais de dez anos de carreira no cinema e na televisão franceses mas seguia desconhecida em Hollywood. Zannuck confiou no diretor e aprovou a mudança. A posteridade agradece. Gosto de Simone Signoret mas a considero inteiramente equivocada para o papel. Ainda segundo o IMDB, os jovens Ian McKellen e Oliver Reed teriam tentado obter o papel de Basil, mas Kakogiánnis já fechara questão em torno de Alan Bates.

Alan Bates
Mais uma vez, o diretor acertou. McKellen tinha vinte e cinco anos, era magro demais, parecia um fauno e não creio que estivesse maduro para o papel. Já Oliver Reed, com vinte e seis, era um poço de masculinidade e jamais se acreditaria que Zorba precisasse passar dias tentando convencê-lo a transar com a viúva. Seria mais fácil imaginá-lo como um Zorba mais jovem, mais bonito e triplamente mais alcoólatra. Os dois iam secar todos os bares de Creta e comer todas as viúvas da Grécia. Alan Bates, com trinta anos, trazia a perfeita mistura de uma beleza física e de um charme que acabam esmagados pela timidez e por uma inadequação fundamental. Ele está se afogando na admiração que tem por Zorba. Admira sua temeridade, sua personalidade meio kamikase, sua desenvoltura com as mulheres, e isso o deixa intimidado e retraído. Não se estranha que esconda os presentes da viúva e que só consume o caso quando Zorba está viajando. Basil é um straight man para Zorba. É seu enabler e seu espectador. Na verdade é um espectador do drama de todos. Tem sua entrada no segundo ato, no drama da viúva, mas seu próprio drama é coadjuvante. Bates entendeu isso e realizou um trabalho exemplar.

Alan Bates e Anthony Quinn em cena de Zorba

Anthony Quinn tem o papel de sua vida encarnando o intempestivo, turbulento, irresponsável e adorável Alexis Zorba. O mexicano Quinn nasceu para interpretá-lo. Era moreno, tinha os olhos puxados e um visual rústico que se coadunava perfeitamente com o personagem. Seus traços faciais, entretanto, não eram notadamente latinos e lhe davam uma aparência mais universal (assim como Papas, aliás), o que o recomendava a papéis étnicos de todas as partes do mundo. E como era alto e forte, possuía, por assim dizer, a máquina interpretativa necessária para um personagem que vive nos extremos. Tudo em Zorba é exagerado. Sua felicidade vai da cabeça aos pés, do queixo aos cabelos. Sua tristeza é igualmente intensa, violenta. Ele bebe demais, fala demais, gasta demais, vive demais. Quinn e sua gargalhada asmática - incomparável - passeiam por Zorba e o resultado é uma verdadeira celebração da vida, assim como o próprio personagem.

Lila Kedrova
Lila Kedrova tinha apenas quarenta e cinco anos quando interpretou Madame Hortense, mas aparentava mais. E com a caracterização que recebeu, a maquiagem, as roupas, o cabelo e etc., personifica com exatidão a cortesã de sessenta anos, com fumaças de atriz, que encantou militares nos conventilhos da vida, décadas antes. É notável como ela parece velha e doente, sucumbindo de algum mal cardíaco, ou provavelmente à tísica, e no entanto mantém uma chama tênue e bruxuleante nos olhos cansados. As recordações a mantêm viva. Sua cena inicial, rindo sua risada estridente de fada, dançando mal e jogando seu charme esgotado e decadente sobre Zorba e Basil, é comovente. Ela desafina horrivelmente e pigarreia no meio do número. Está aniquilada e sabe que Zorba é sua última chance de não morrer sozinha. Mais do que patético, Madame Hortense é um personagem trágico. No fim de sua vida ela já não esperava mais um príncipe, ou, em seu caso, um militar graduado e condecorado; aceitou de bom grado um velho aventureiro, beberrão e cafajeste. A cena de sua morte é chocante. Ela nem sequer morreu ainda e um bando de velhas encarquilhadas, como se fossem parcas, já se reúnem dentro de seu quarto, sem qualquer compaixão ou cerimônia, só esperando que ela morra para poderem roubar seus badulaques.

Kedrova, assim como Quinn, teve a performance de sua vida. Quinn, porém, ainda conseguiu espraiar seu talento por outros personagens. Kedrova estacionou em Madame Hortense. Fez outros filmes, continuou trabalhando mas nunca saiu da sombra de um trabalho tão extraordinário. Tão extraordinário, por sinal, que ela voltaria a ele mais à frente.

Antológico: o olhar de Irene no papel da viúva Sourmelina

Papas, em foto promocional de Zorba
Quanto à Irene Papas, não é exagero dizer que ela estava em seu primeiro auge. A década de cinqüenta, com tantos filmes na Itália e uma pequena viagem de reconhecimento aos Estados Unidos (que deixou um faroeste menor de James Cagney como lembrança), não a transformou em uma estrela. Nos três primeiros anos da década de 60, entretanto, ela já trabalhara no excelente Canhões de Navarone e em duas tragédias gregas que fizeram o mundo voltar seus olhos para ela. E Zorba representava o veículo perfeito para que ela continuasse se mostrando para um público cada vez maior. É mérito de Kakogiánnis, aliás, porque a viúva Sourmelina (que no filme não tem nome) é gordinha, chamada de "égua reprodutora" - provavelmente pelo tamanho da bunda ou pela largura dos quadris - e, enfim, referida como uma mulher que gostava de atiçar os homens. Vejamos a descrição da primeira vez que Basil vê a viúva; se eu não soubesse a quem ele se refere, a descrição poderia ser utilizada para Hortense, quando jovem:

Naquele exato momento, uma mulher passou correndo por ali, com a cabeleira pendurada sobre os ombros e segurando a saia preta até os joelhos. Ela tinha uma figura bela e roliça, as roupas grudadas nela, revelando um corpo firme e atraente. Eu olhei. Que animal de rapina é esse?, pensei. Ela me pareceu ágil e perigosa, uma devoradora de homens. A mulher virou a cabeça por um instante e lançou um olhar rápido e deslumbrante para dentro do café. 'Virgem Santa!' murmurou um jovem com uma barba macia e felpuda, sentado perto da janela. 'Uma maldição sobre essa vamp!' rugiu Manolakas, o policial da vila. 'Uma maldição sobre você; você incendeia um homem e depois o deixa queimar!'

Zorba (Quinn), a viúva (Papas) e Manolakas (Takis Emmanuel)

As alterações de Kakogiánnis são profundas e certeiras. Em primeiro lugar ele silenciou os habitantes da vila. Não há conversas ou diálogos e eles passam o filme todo praticamente mudos. Assim como Papas, falarão pouco e só quando a situação não puder ser mostrada unicamente com expressões, imagens ou ação. Em segundo, ao contrário do que descreve Nikos Kazantzakis, a viúva de Papas é alta e classuda. É bela e sensual sem querer e sem fazer qualquer esforço. Seu corpo é tão bem feito e tão harmonioso que a indumentária de viúva lhe cai muito bem e só intensifica sua beleza. Mas ela está longe de ser uma vamp. Sua atitude em relação aos homens não é de desdém, e sim de desprezo. No livro consta que a viúva passa pelo café, lança um olhar e segue seu caminho. Pouco depois, através de Mimiko (o personagem semi-retardado que no filme se chama Mimithos) ficamos sabendo que ela perdeu seu cabrito e instituiu a recompensa de um galão de vinho para quem o encontrar. Kakogiánnis aproveita apenas a olhada da viúva - que consiste em um dos momentos mais marcantes da história do cinema, com Papas fulminando os homens em frente ao café com seu olhar, sob a chuva torrencial - e cria toda a magnífica cena que vem a seguir.

O cabrito foi seqüestrado pelos sujeitos da vila, por maldade, apenas para que a viúva tenha que ir até lá buscá-lo. Ela aparece procurando o animal e quando passa em frente ao café se dá conta do que aconteceu. Olha com ódio e desprezo e caminha até a porta. Lá dentro o que temos é uma cena tão excepcionalmente bem acabada que poderia ser um curta metragem, ou quiçá um balé. A entrada da viúva provoca uma mistura de sentimentos. Manolakas (Takis Emmanuel) a deseja de forma desavergonhada, quase criminosa; Mavrandoni (Giorgos Foundas) é puro ressentimento; deseja a viúva, não é desejado por ela e não pode sequer dar sinal disso porque seu filho Pavlo (Yorgo Voyagis) também a ama e também é rejeitado. Papas, por sua vez, é vinte Monalisas trágicas, em diferentes gradações. Ela pinta quadros cada vez que nos brinda com as poderosas expressões que transmite com os olhos coruscantes e a obra de arte que é, por si só, seu rosto. Enquanto todos a observam em silêncio, com uma espécie de respeito acintoso, tenso e amargo, Zorba faz o único - e melhor - comentário: Boss, it's a big, beautiful, wild widow. É descrição que, na perfeição de sua simplicidade, nem Kazantzakis pensou.

Papas: vinte Monalisas trágicas

E pouco depois se inicia o pega-pega de crueldade infantil com o cabrito, só para ver a viúva sofrer. Ela se desespera, outros gargalham, Pavlo tem que ser contido pelo pai, em seu ímpeto de ajudar a viúva, e por fim é Zorba, mais uma vez, que se apieda dela e leva o cabrito para fora. Ela cospe no chão, para consignar seu nojo de todos ali, e na saída recebe o guarda-chuva de Basil, a quem agradece com um olhar lindo e doce, selando a partir daquele momento a atração que existe entre eles.

Kakogiánnis, como já foi dito, forjou sua própria obra a partir do Zorba de Kazantzakis, então pode tanto criar - como no caso desta cena e também a cena em que Basil passa a noite com a viúva, sugerida por alto no livro, em paroxismo de sutileza - como pode desbastar o que já existe. Um bom exemplo disso é a cena em que Basil e a viúva se encontram na estrada. Kazantzakis, pra variar, faz escorrer sua prosa perfeita e cria um momento sublime de paixão e romance, utilizando o cabelo da viúva como elemento de extrema sensualidade. Vejamos a narração de Basil:

Paixão e timidez
De repente meus joelhos bambearam. Sob as oliveiras, caminhando com um passo saltitante pela estrada da vila, apareceu em vermelho, com um lenço preto na cabeça, a figura graciosa e de cintura fina da viúva! Sua marcha sinuosa era realmente a de uma pantera negra, e me pareceu que um aroma acre e almiscarado fora destilado no ar. Se eu pelo menos pudesse escapar! Senti que, quando enfurecida, esta fera não teria piedade e que a única coisa a fazer era fugir. Mas como? A viúva se aproximava aos poucos. O cascalho parecia estar sendo esmagando como se um exército estivesse marchando sobre ele. Ela me viu, acenou com a cabeça, seu lenço escorregou e seus cabelos apareceram, brilhando e pretos como azeviche. Ela me lançou um olhar lânguido e sorriu. Os olhos dela tinham uma doçura selvagem. Apressadamente ajeitou o lenço, como se tivesse vergonha de ter me deixado ver um dos segredos mais recônditos da mulher: o cabelo. Eu queria falar com ela, desejar-lhe um feliz ano novo, mas minha garganta estava presa, como no dia em que a galeria ruiu e minha vida esteve em perigo. (...) A viúva parou, esticou o braço e abriu o portão. Eu estava passando por ela naquele momento. Ela olhou em volta e, erguendo as sobrancelhas, direcionou seu olhar para mim. Deixou o portão aberto e eu a vi desaparecer atrás das laranjeiras, balançando os quadris enquanto seguia.

Sofrimento, esperança e medo/pânico

O diretor substitui o lirismo da prosa por poesia em movimento. Não há oliveiras, não há portões, o lenço ou a cor de sua roupa não têm relevância, o cabelo não se desprende com o aceno de cabeça e, mais uma vez, ignora-se esse elemento de fera, de predadora, de mulher perigosa e fatal. O que vemos é um casal de adolescentes, explodindo de paixão e sem coragem de fazer qualquer coisa. A mulher não tomará a inciativa mas responderá imediatamente se for abordada. O homem está com o coração pulsando, na ponta da língua, mas é tímido e inseguro demais para agir. Kakogiánnis mostra o rosto dos dois enquanto caminham; suas expressões são um primor de emoção e sentimento. Mas não dessa subjugação sexual implícita da pantera que vai devorar um coelho, ou qualquer coisa do tipo; ele está trêmulo de paixão, transpira, desvia o olhar, tenta fumar seu cigarro e não consegue, joga-o fora, a boca se move mas as palavras não saem. É o retrato perfeito do adolescente diante da mulher por quem está perdidamente apaixonado. Ela, por sua vez, é mais experiente e mantém a serenidade. Tem um passo constante, certeiro, que pode até lembrar uma marcha mas nada tem de marcial; ela também está nervosa e seu olhar é, de fato, lânguido. É onde trai seu sofrimento e sua intensa esperança. Ela entrega seu amor no olhar iluminado, cálido, estival. Absolutamente maravilhoso.

Outro bom exemplo de adaptação é a morte da viúva; no livro ela é literalmente decapitada por Mavrandoni e sua cabeça é jogada por ele na porta da igreja. Kakogiánnis teve o bom gosto de evitar algo tão grotesco e no filme ela é apunhalada pelas costas.

Charge do ilustrador britânico Michael Ffolkes

Kakogiánnis, Papas e Theodorákis
Há duas cerejas no bolo de Zorba: a primeira é a trilha sonora de Mikis Theodorákis. A composição, bem popular, doce, simples e divertida, tocou tão fundo o coração dos gregos que transformou-se em uma espécie de segundo hino nacional daquele país. A segunda é o syrtaki, a celebérrima dança que Zorba ensina a Basil, no filme. E aqui há infelizmente uma nota triste. Ao contrário do que o resto do mundo pudesse pensar, o syrtaki não era uma dança típica da Grécia; o que aconteceu foi que um produtor do filme estava em uma boate de Atenas e viu um trio de dançarinos executando a curiosa dança, criada por um deles, o coreógrafo Giorgos Provias. O produtor então levou Provias para Chania, em Creta, a fim de ensinar o syrtaki a Anthony Quinn e Alan Bates. O coreógrafo iniciou o trabalho e tudo ia às mil maravilhas até que o empresário do trio, com quem Provias tinha contrato, exigiu da produção de Zorba uma quantia exorbitante para que o coreógrafo continuasse faltando a seus compromissos profissionais e ficasse em Creta.

Quinn dança o syrtaki
O sujeito obviamente estava tentando espremer uma boa grana dos produtores do filme, crente de que eles não poderiam prescindir de Provias. Se enganou redondamente: Provias foi dispensado, voltou para Atenas e o elenco se virou com aquilo que já tinha aprendido. Mas o pior de tudo é que por conta disso o nome do coreógrafo não foi incluído nos créditos do filme e quando o syrtaki viralizou pelo mundo inteiro, como a mais importante dança grega, Provias foi ignorado. Ele viveu para conhecer o sucesso do syrtaki, mas não desfrutou nem do dinheiro e nem da fama a que faria jus, como o criador da dança. Ele foi eventualmente descoberto décadas depois e em algumas entrevistas bastante raras não demonstrou qualquer amargor ou ressentimento com aquela situação. Estava simplesmente feliz de ver o mundo dançando a sua dança. Morreu esquecido e não há sequer um verbete sobre ele na Wikipedia grega.

Quinn, Lila Kedrova, Papas e Kakogiánnis na estréia de Zorba no
Theatre des Champs Elysees em Paris, 4 de março de 1965

Lila Kedrova na noite em que venceu o Oscar
Zorba estreou na Grécia em 14 de dezembro de 1964 e nos Estados Unidos três dias depois. Foi bem recebido e deu relativo lucro à Fox, mas demorou um pouco para se tornar o sucesso estrondoso que é até hoje. A temporada de prêmios do ano seguinte foi pra lá de decepcionante; Quinn já recebera dois Oscar de Ator Coadjuvante (em 54 e em 57) mas sua performance em Zorba é tão antológica que um terceiro prêmio da Academia parecia certo. A verdade, porém, é que justamente naquele ano ele não foi o único a realizar um trabalho esplêndido. O ator teve que enfrentar concorrentes com quem estava em pé de igualdade, e isso quando não o superavam, como Peter Sellers, em Dr. Strangelove, e especialmente Peter O'Toole, pelo majestoso Beckett. Como estamos falando do Oscar, é claro que nenhum deles ganhou e o prêmio foi para Rex Harrison, por My Fair Lady. Desnecessário ressaltar que o trabalho de Harrison é bom, blá, blá, blá, mas é ridículo que tenha vencido em uma competição com esses três.

Cartaz da temporada de Zorba
em Chicago
Kakogiánnis também foi derrotado em suas três indicações (Melhor Filme, Direção e Roteiro Adaptado). A trilha de Mikis Theodorákis sequer foi indicada. Mais sorte tiveram Lila Kedrova (Melhor Atriz Coadjuvante), Vassilis Photopoulos (Melhor Direção de Arte) e Walter Lassally (Melhor Direção de Fotografia em PB), todos vencedores. No Globo de Ouro, quatro indicações, zero prêmios. E em Cannes o filme deve ter sido hors concours porque não foi indicado a nada.

Em 1968 Zorba virou musical da Broadway com libreto de Joseph Stein, músicas da prestigiosíssima dupla John Kander/Fred Ebb e direção de Harold Prince. O elenco não trazia ninguém do filme e os papéis foram interpretados por Herschel Bernardi (Zorba), Maria Karnilova (Hortense) e Carmen Alvarez (a viúva), entre outros. As críticas foram mornas e o consenso é de que embora o espetáculo tivesse qualidade e Zorba fosse um personagem divertido, a trama trazia desdobramentos trágicos demais para que virasse um musical. Não obstante, houve algumas remontagens nos anos seguintes.

Kakogiánnis, Quinn e Lila Kedrova no palco de Zorba, 1983

Em 1983 o musical teve um revival histórico: a direção foi de Michális Kakogiánnis e a dupla protagonista foi interpretada por ninguém menos do que Anthony Quinn e Lila Kedrova. Foi uma temporada consagradora e esgotadíssima. Ouvi a trilha sonora dessa montagem; não há realmente nenhuma música excepcional e minha opinião é mais ou menos a mesma dos críticos de 1968. Entretanto, admito que pagaria qualquer quantia para poder ver Quinn e Kedrova reprisando seus papéis ao vivo. O filme e o musical foram as únicas vezes em que Kakogiánnis trabalhou com eles dois.

Kakogiánnis dirige Owen Teale, Charlotte Rampling
e Alan Bates em The Cherry Orchard,
seu último filme, 1999
Zorba foi a segunda colaboração de Kakogiánnis e Irene, de seis filmes e um punhado de peças que fariam juntos. Com Alan Bates o diretor trabalhou mais duas vezes: em The Story of Jacob and Joseph (1974), filme para TV que teve a narração do ator, e em The Cherry Orchard, de 1999, adaptação esquecível da peça de Tchekhov na qual Bates fez o papel de Gayev, o irmão da Madame Ranyevskaya. Acabou sendo o último filme do diretor. Com Mikis Theodorákis também houve seis colaborações: depois de Elektra e Zorba eles uniram esforços em The day the fish came out (1967), The Trojan Women (1971), The Story of Jacob and Joseph (1974) e Ifigeneia (1977). Estiveram juntos em um evento pouco antes da morte do grande diretor, em 2011.

Último encontro dos gênios, 2011

STEPS (1966)

Baseado no livro "Joanna and Ulysses", da escritora May Sarton (1912/1995), lançado em 1963, Steps tem direção de Leonard Hirschfield (1928/2008). Joanna (Papas) tem uma vida pacata e sem graça em Atenas. Trabalha em uma loja de roupas sem auferir disso qualquer prazer e está há anos em um casamento sem amor com Mikhail Mavrides (Umberto Orsini), marido que a trata como uma empregada doméstica, não respeita sua inteligência, suas vontades ou seus anseios. Ele, por sinal, não tem uma vida profissional muito melhor; é advogado mas não consegue galgar os degraus do sucesso nessa profissão e é obrigado a complementar o orçamento com um trabalho braçal, carregando caixas. Seu patrão o humilha e ele desconta em Joanna. Ela, porém, esconde muita coisa. Sendo Mikhail um idiota insensível e frustrado, mal sabe que Joanna é artista, pinta quadros e deseja se lançar no mercado, embora ainda não tenha encontrado um marchand que lhe reconheça o talento.

Joanna (Papas) e Mikhail (Orsini): maltratada pelo marido inútil

Mais grave do que isso é sua história familiar: ela nasceu e viveu sua infância na ilha de Santorini, mas durante a 2ª Guerra seus pais foram surpreendidos por soldados do Eixo durante um piquenique em família. No filme não está claro, mas imagina-se que pertencessem a um grupo de partisans que fazia resistência às ocupações sofridas por Santorini no período, primeiro pelos italianos e depois pelos alemães. Os soldados exigiram informações que o casal se recusou a dar. Eles então se voltaram para Joanna e disseram que se ela não desse as informações eles seriam torturados. A mãe ordenou à filha que não dissesse nada e ela teve que assistir os pais e o irmão sendo supliciados e mortos.

A caminho de Santorini

O desafio de 600 degraus
Joanna carrega o trauma pelo resto de sua vida e ocasionalmente tem pesadelos. Certo dia sofre um ataque de ansiedade no meio da rua e entra em uma agência de viagens. Quando vê um poster de Santorini ela tem a epifania moral de que deve voltar à ilha para livrar-se do marido, exercitar sua pintura e confrontar o passado. O marido a condena com veemência e ridiculariza sua idéia de viajar. Ela não lhe dá mais ouvidos e embarca para a ilha sem maiores planos. Sua idéia inicial é ficar um mês. Chegando lá ela vê um sujeito (Spyros Fokas) batendo em seu burrico, por ele ter derrubado uma melancia. Horrorizada ela pede para ele parar e se oferece para comprar o burrico; por pura maldade o sujeito lhe cobra 800 dracmas, um valor absurdamente mais alto do que seria o justo, pelo animal. Ela aceita, o que causa estarrecimento ao público que assiste a cena, e ela começa a subir junto ao burrico a escadaria de 600 degraus que leva do porto ao centro turístico de Santorini. O ex-dono do burrico diz, com escárnio, que ela deve montá-lo ou não agüentará a subida, naquele calor. O desafio faz com que Joanna decida ir a pé. E ela faz, andando, o difícil trajeto, recebendo o incentivo dos locais, que resolvem acompanhá-la, sobretudo de Hristo (Takis Emmanuel) e seu filho Nikolas (Costas Mastofos). Os degraus dão nome ao filme e são uma analogia bastante evidente do árduo caminho que ela deve percorrer para organizar sua vida.

Uma cena marcante: o povo acompanha Joanna e o burrico
e torce para ela completar o trajeto

O ar da liberdade
Ela passa a noite em uma casa abandonada com o burrico, a quem batiza de Ulysses e de cujas feridas ela cuida. No dia seguinte aluga uma casinha mais próxima ao povoado. Sozinha na praia com Ulysses, pela manhã do outro dia, ela é surpreendida pelo ex-dono do burrico, que pretende violentá-la. O menino Nikolas os observa de longe, sem ser notado, e, para proteger Joanna, derruba a cesta de tomates - os magníficos tomates de Santorini - do sujeito. Ele sai correndo para recolhê-los e Joanna consegue fugir com Ulysses. Dali a pouco ela encontra Nikolas e os dois formam uma inusitada amizade. Gratidão por parte dela, e uma carência materna por parte dele, já que sua mãe morrera no que se imagina ser o terremoto de 1956, em Santorini. À noite, no bar freqüentado pelos locais, o sujeito é humilhado por todos pelo ridículo de ter importunado a mulher e saído às carreiras catando seus tomates. Ele pára de importuná-la.

Joanna segue tentando exercitar seu talento artístico, tendo Ulysses e Nikolas consigo o tempo todo. Hristo, entretanto, não vê com bons olhos a amizade, já que ela é considerada simplesmente uma mulher rica e desequilibrada, que largou o marido em Atenas e foi gastar seu dinheiro na ilha. Nada podia estar mais distante da realidade, como pai e filho constatarão logo depois, quando ela visita o lugar onde a família teve seu último piquenique e, em prantos, revela a Hristo o que aconteceu. E o apego a Ulysses, considerado mera excentricidade, é outra analogia, desta vez à maneira como as mulheres são tratadas, em contraponto à maneira como gostariam de ser tratadas. À noite, no bar, ela pede a Hristo que fique com Ulysses quando ela for embora. Ele se sente mal, a princípio, quando os locais - que assistem a conversa - zombam do apego de Joanna pelo burrico. O ex-dono, então, se oferece para comprá-lo de volta com o que sobrou do dinheiro dado por ela, o que deixa Hristo indignado e ele aceita o pedido de Joanna, selando a amizade entre os dois. No dia seguinte ela tenta ir embora mas muda de idéia no último momento e fica em Santorini. Hristo a convida para jantar com ele sua família, o que permite a Joanna experimentar a felicidade simples de estar entre familiares, coisa que ela nunca possuiu com o marido. Ela passa a noite com Hristo.

Vivendo a vida, com Hristo (Takis Emmanuel) e Nikolas (Costas Mastofos)

Exercitando o lado artístico
A essa altura quem começa a se dar conta do que perdeu é Mikhail, sozinho em Atenas e descobrindo finalmente o quanto a vida é pior sem Joanna. Instado pelo amigo Stavros (Vasílis Vasilikós, em cameo que me parece ter ocorrido precisamente quando Z - seu livro sobre o assassinato de Lambrakis - era lançado na Grécia) ele vai até Santorini e confronta Joanna, ao invés de abordá-la com carinho. Os dois tem um diálogo azedo, ela diz tudo o que tem entalado em sua garganta e avisa que ficará lá permanentemente. Ele responde com um desaforo e vai embora. Como só pode pegar o barco de volta no dia seguinte, Mikhail vai ao bar dos locais à noite. O ex-dono do burrico percebe que ele é o marido de Joanna e o provoca, fazendo-lhe sinais de chifres, sinalizando que ele foi traído pela mulher. Mikhail tenta agredi-lo mas já bebeu demais e apanha. Joanna aparece quando ele está no chão, humilhado por todos, e o leva dali. Eles dormem no mesmo quarto, mas em camas separadas, e durante a madrugada ele pede desculpas a ela. Pela manhã ele lhe deixa um envelope com dinheiro e vai embora. Joanna acorda pouco depois, vê o envelope e vai atrás dele, chegando ao porto a tempo de voltar com o marido a Atenas.

Primeira edução de Joanna and Ulysses
É um filme estranhíssimo. Leonard Hirschfield e Edwin T. Kasper (o produtor) eram figuras desconhecidas, tendo o primeiro um ou outro crédito no circuito independente, e sabe-se lá por qual razão o livro de May Sarton lhes caiu às mãos. Não li o conto então não tenho como comentar mas acho no mínimo decepcionante que uma escritora lésbica, respeitada pela inteligência e pelo vanguardismo de seus pontos de vista, escrevesse estória tão rasa e tão machista. Ou o livro teve uma adaptação porca e conservadora de Glenn P. Wolfe (outror ilustre desconhecido), ou May Sarton não quis cutucar a ferida dos valores tradicionais do patriarcado. Joanna é jovem, linda, talentosa e sua vida só não decola porque carrega nas costas o marido fracassado e estúpido. Com grande esforço ela se liberta e conhece uma existência pacata e gratificante em Santorini. Mas basta o sujeito aparecer com um pedido pífio de desculpas (mesmo depois de insultá-la mais uma vez, no dia anterior) e ela volta como se tudo tivesse sido resolvido. O desfecho é frustrante e revela que Joanna não aprendeu nada e segue presa às piores convenções de sua época. Poderia ser um libelo feminista - e precursor de peças como Shirley Valentine, que repisam o mote da mulher infeliz que utiliza uma praia paradisíaca na Grécia para reconstruir seu casamento de merda - mas acaba tendo o efeito contrário: a conclusão é que a mulher só pode ser feliz com o marido, mesmo num relacionamento evidentemente abusivo. De uma forma ou de outra, o roteiro é ruim. E a vantagem do elenco grego (com exceção de Umberto Orsini) se perde no fato de que nenhum deles falava bem o idioma.

Takis Emmanuel (Hristo), Umberto Orsini (Mikhail),
Spyros Fokas e o cameo inusitado de
Vasílis Vasilikós (Stavros)
Pelo lado positivo, são todos bons atores. Papas, como sempre, está linda e mesmo chegando aos 40 anos parece uma aluna do Ensino Médio. Repete-se o efeito de Gorke Trave: mesmo medíocre, Steps é tolerável por trazer a atriz em quase todas as cenas. E algumas delas conseguem ser memoráveis graças a ela. A seqüência inicial de sua caminhada por Atenas, enquanto lêem-se os créditos ao som da balada cantada por Vida Bendix, é bonita. Da mesma forma é marcante sua penosa subida pelos degraus da escadaria de Santorini. E sua cena dançando sozinha no quarto penumbroso, acompanhando a gostosa bulha a que os homens se entregam no bar, é o único momento verdadeiramente comovente do filme. A fotografia de Peaslee Bond para Santorini é linda e por vezes me pegunto se o governo grego não pagou aos norte-americanos para que o projeto fosse uma propaganda da ilha, que ainda sofria as conseqüências do terremoto de 1956. Outro ponto inusitadamente positivo é a ótima trilha composta pelo grande Manos Hadjidakis (1925/1994), cuja qualidade é muito superior ao filme.

O timing da produção não poderia ter sido pior. A produção é de 1966 mas, com o golpe militar na Grécia, Steps acabou engavetado até 1970, quando foi finalizado. Não me consta sequer que tenha sido lançado comercialmente. Nunca vi seu cartaz e no IMDB consta o nome grego - Ta Skalopatia (Τα σκαλοπάτια) - embora seja uma produção primordialmente norte-americana, falada em inglês. E pra coroar seu obscurantismo, Steps não existe nem em VHS, nem em DVD.

HIGH SEASON (1987)

Dói na alma ter que comentar algo tão ruim. Clara Peploe e seu irmão Mark - respectivamente esposa e cunhado de Bernardo Bertolucci - escreveram esta bosta. Clara dirigiu. A ação se passa na praia de Lindos, em Rodes. Yanni (Paris Tselios) muda o nome tradicional grego de sua loja de souvenirs, para "Lord Byron", a fim de agradar os visitantes ingleses e atrair mais turistas. O nome da loja era uma homenagem a seu falecido pai, e a mudança enfurece sua mãe, Penelope (Papas). Como se isso não bastasse Yanni tem a idéia de mandar construir uma estátua em frente à loja, para homenagear "o turista desconhecido". Encomenda o monumento a um artista inglês, Patrick (James Fox). Katherine (Jacqueline Bisset), ex-esposa de Patrick, é fotógrafa e mora há anos em Lindos com a filha de ambos. Ela acaba de lançar um livro com fotografias da Grécia mas sua situação financeira não é boa. Ela recebe a visita de seu amigo antiquário, Sharpey (Sebastian Shaw), e comunica a ele que um americano demonstrou interesse em comprar um vaso que foi presente de Sharpey. Ele afirma que o vaso não tem real valor e logo se dá conta de que Konstantinis (Robert Stephens), o antiquário responsável pelo negócio, está armando uma mutreta para vender gato por lebre. E como Katherine ganhará uma pequena fortuna com o negócio, tirando-a de seu apuro financeiro, Sharpey decide ajudar. Só que a coisa vai por água abaixo por culpa de um casal de turistas idiotas, Rick (Kenneth Branagh) e Carol (Lesley Manville), que na festa de comemoração pela venda do vaso, acabam quebrando-o.

Bisset e Papas

Brannagh e Papas
Bisset, bêbada, tem um affairzinho de uma noite com Rick (pensando tratar-se de Patrick) e Carol, que é fã da poesia de Byron, terá um crush em Yanni. No dia da inauguração do monumento (uma estátua ridícula de um boneco segurando uma câmera), Penélope se veste com o que parecem ser os paramentos de Laskarina Bouboulina (quiçá uma brincadeira com a heroína grega do século XIX, interpretada por Papas em filme de 1959), monta em um burrico, munida de uma espingarda, e enquanto Carol tenta ler versos de Byron para o pequeno público que acompanha o evento, ela passa com o burrico e dá um tiro na cabeça da estátua. No fim, descobre-se que Sharpey havia sido um espião a serviço da URSS durante a segunda guerra e que Rick é da Scotland Yard e está lá para prendê-lo. Mas o governo inglês não quer reabrir essa ferida e ao invés da prisão, decide pela deportação de Sharpey para a Bulgária. Antes de ir ele dá o vaso verdadeiro para Katherine e o próprio Konstantinis acaba gerenciando o negócio, só que desta vez com o vaso que é realmente valioso. O filme termina com Yanni iniciando a construção de uma estátua que, segundo ele, será maior do que o lendário Colosso de Rodes (o nome da vila - Lindos - por sinal, homenageia o artista Carés de Lindos, que construiu a famosa estátua de Hélios, com trinta e três metros de altura, aniquilada por um terremoto dois séculos a.C.). Mas só fez o pé, e a última cena é de Penélope às gargalhadas em frente ao pé gigante.

Papas: talento, beleza, classe e dramaticidade jogados no lixo

Penélope (Papas) a caminho de destruir a estátua,
em foto promocional de High Season
Um dos pontos mais baixos da carreira de Irene. A história é confusa e cretina. As piadas não tem um pingo de graça. Nem Lindos ajuda na digestão deste tijolo. Em 1987 Irene trabalhou com Kakogiánnis (Sweet Country), com Francesco Rosi (Cronaca di una morte anunciatta) e na boa produção da TV italiana Un bambino di nome Gesù. Me foge a razão para que ela manchasse seu currículo anual com esta chanchada deplorável. Kenneth Branagh tinha vinte e sete anos e este foi seu primeiro filme no cinema. Está perdoado pelo mico. Mas Irene não precisava. Em todo caso, ela sempre trabalhou sem parar e essa foi provavelmente a razão para aceitar algo tão péssimo. Ela faz pela undécima vez o papel de mãe sofredora e deve ter meia dúzia de falas o filme inteiro. Suas cenas são constrangedoras. James Fox faz o papel de um conquistador de meia idade. Com quase cinqüenta anos, baggie pants, tênis verdes com cadarços vermelhos e camisas folgadas e abertas, ele parece um velho afeminado, com o figurino mais cafona e lamentável da década de 80. Resta Jacqueline Bisset, protagonista única, que esbanjava beleza e sensualidade aos quarenta e três anos. E era o que se esperava dela. Mas não é o suficiente para tornar aceitável esta merda dos irmãos Peploe. Difícil acreditar que no ano seguinte Mark dividiria com Bertolucci o Oscar de Melhor Roteiro, por The Last Emperor.

ISLAND (1989)

Island se passa em Astypalaia, uma das ilhotas no Dodecaneso, sudeste do Mar Egeu, próximo à Turquia. Conta a história da tcheca Eva (Eva Sitteová), que largou seu marido e sua vida confortável na Austrália, foi para a Grécia e decidiu passar um tempo ali, refletindo sobre sua infelicidade. Lá encontra Sahana (Anoja Weerasinghe), jovem natural do Sri Lanka. A bengali tem uma história complicada: é casada com um político de seu país mas ele vinha sendo ameaçado de morte se não largasse a política. Eles então saem de seu país e vão para essa ilha, a fim de espairecer e pensar no rumo a tomar. Só que depois de três dias ele volta a seu país em segredo e deixa Sahana sozinha, com a recomendação única de que fique na ilha até ele vir buscá-la. E isso ocorreu quase um mês antes de Eva chegar. Por fim temos Marquise (Papas), uma mulher experiente, calejada pelos golpes da vida, e que apesar de momentos de tristeza e de uma postura por vezes dessensibilizada diante das dificuldades, é generosa, solidária, mantém sua personalidade espalhafatosa (característica que se amplifica quando ela bebe), seu bom humor contagiante, e ganha a vida pintando quadros. Além delas há os locais, com destaque para os irmãos surdos e mudos Michalis (Michael Psaris), dono do bar freqüentado por todos, e Yannis (Chris Haywood), o faz-tudo que ajuda Eva a se instalar e desenvolve um singelo crush pela moça.

Marquise (Papas), Eva (Eva Sitteová) e Sahana (Anoja Weerasinghe)

Eva (Eva Sitteová) e Marquise (Papas)
Uma vez apresentadas elas ficam amigas e em suas conversas vamos conhecendo os dramas de cada uma, utilizando as bonitas reentrâncias da ilha como cenário; Eva é esposa de um médico bem-sucedido mas o sucesso fez com que ele se afastasse dela. Infeliz, ela se retrai, fica deprimida e começa a procurar a satisfação momentânea das drogas. Na ilha se aproximará imediatamente de um francês (François Bernard) que é o responsável pela venda de tóxicos por lá, ainda que Marquise a tenha alertado anteriormente de que ele é um "lixo". Na extrema dificuldade de fazer ligações telefônicas para o Sri Lanka, Sahana passa os dias rezando e pedindo a volta de seu marido. Tem a amizade ocasional de um turista, Henry (Norman Kaye), que se apieda de sua situação e procura estar presente quando ela precisa de alguma coisa. E Marquise lamenta o destino de Sahana, pois - tendo perdido inúmeros parentes da pior maneira, durante a segunda guerra - ela já não aceita mais que alguém dê a vida por seu país. Perguntada por Eva se tem filhos, ela responde que "teve", no pretérito, como se ele já estivesse morto ou não tivesse mais qualquer contato com ela. E de fato o assunto morre ali. Só o que importa, segundo Marquise, é o amor, e nada mais. Seus quadros são feios, mas retratam aquilo que ela vê, a sua visão particular do mundo e das pessoas. E ela consegue mascarar sua solidão com uma positividade permanente, que faz bem a ela e aos outros. Michalis a descreve de forma correta à Eva, através de sinais, dando a entender que seu coração é enorme mas seu cérebro é pequeno. 

Marquise: afastando a depressão com perene bom humor

Marquise (Papas) e Sahana (Anoja Weerasinghe)
Na primeira vez em que se injeta com o que lhe foi vendido pelo francês, Eva não aparece em sua porta, pela manhã e Yannis, que chegara para pintar a casa, preocupa-se com o sumiço da moça. Ele resolve entrar na casa pela janela superior e encontra Eva desacordada. Ele a cuida até que esteja melhor. Nos dias seguintes Eva procura endireitar a vida e se afastar das drogas, com recaídas aqui e ali. O traficante francês vai se tornando cada vez mais abusivo e ganancioso. Em uma das ocasiões em que perturba Eva por dinheiro, Yannis encontra o local onde o traficante esconde suas drogas, pega o pacote e o joga no mar. O francês tem um ataque histérico, vai até a casa de Eva, revira tudo, acreditando ter sido ela que lhe roubou a droga, e quando não acha nada, é obrigado a ir embora. Por um período Eva fica entre a calma e a fissura. O conforto vem de Marquise e Sahana, dos irmãos surdos e mudos e de nativos que ela encontra acidentalmente, como a família de idosos da mulher que a salva naquilo que parecia ser uma tentativa de suicídio, quando Eva observa o mar na ponta de um despenhadeiro. A tranqüilidade acaba quando o francês volta durante a noite e vai direto até a casa de Eva. A cena não está totalmente clara mas o que parece é que ele tenta agarrar e subjugar Eva mas no desforço ele acaba caindo pela janela e morre na queda. Yannis e o barqueiro do local se encarregam de jogar o corpo no fundo do mar.

Papas: expressiva

Quando imaginamos que o pior já passou, Sahana recebe um telefonema do Sri Lanka avisando-lhe que seu marido foi assassinado. Arrasada e em prantos, ela decide voltar a seu país. Eva resolve ficar e toda a seqüência final é a partida de Sahana no Nereus, navio que a levará da ilha.

Há um paralelo pequeno e distante entre Island e o antigo Steps, no sentido de que são histórias relativamente simples de superação que tem uma ilha grega como pano de fundo (sem falar que Marquise, assim como Joanna, é pintora). E neste caso o filme de Leonard Hirschfield leva a melhor. Porque embora bobo e machista, o enredo de Steps é a micro-odisséia de uma única mulher, e as pessoas com quem ela vai conviver nesse período, então por pior que seja, é mais fácil espremê-la em uma hora e meia. Já no caso de Island, personagens e situações se atropelam e são inúmeras as tramas que não se resolvem. Levando em conta o teor novelesco dos problemas enfrentados pelas mulheres, é possível que uma série de dois ou três capítulos funcionasse melhor. Tal como se apresentam no filme, as conversas entre as três, que deveriam revelar traços da personalidade de cada uma delas, são superficiais e não revelam nada. Marquise, sobretudo, é um personagem que imaginamos riquíssimo, cheio de alegrias e tristezas. Aquela mulher que viu tudo, viveu tudo, foi ao inferno e voltou. E no entanto pouco sabemos sobre ela e o filme termina sem que nada seja explicado.

Pintora, novamente

Cuidando de Eva
Sahana é monodimensional; está sofrendo pela ausência do marido e só. Pouquíssimo se fala do Sri Lanka ou de suas mulheres - tema riquíssimo que podia e devia ter sido explorado - e portanto não vejo a necessidade de que Maajhe maajhe tabo dekha paai, de Rabindranath Tagore, seja martelado como um mantra por vários minutos, tanto na seqüência inicial quanto na final. É outro ponto a favor de Steps, que não ficou meramente na contemplação das belezas naturais de Santorini e adicionou a estupenda trilha de Manos Hadjidakis (a título de curiosidade, quem se encontra nos créditos como produtor associado de Island é ninguém menos do que o velho Takis Emmanuel).

E quanto à Eva, sentimos seu desespero mas não nos conectamos com ele. Sua história é rasa demais. Ela é uma jovem cujo casamento naufragou. Crise existencial de uma mulher com trinta anos, branca, bonita e rica. É muito pouco. Seria necessária mais meia dúzia de desgraças para que começássemos a nos identificar com sua depressão. Até o breakdown de Yannis é mais crível, quando consideramos suas limitações e a circunstância de ser - como bem observa Marquise - um vulcão reprimido de energia afetiva e sexual.

Marquise (Papas) e Yannis (Chris Haywood)

Dançando, como não poderia deixar de ser
O elenco está acima da média, com destaque para Chris Haywood - parceiro criativo constante de Paul Cox - que realmente faz um ótimo trabalho e concorreu a prêmios em diversos festivais europeus. Irene Papas também está muito bem e seu rosto, aos 62 anos, está mais expressivo do que nunca. Ela dança, é claro - porque o que seria de um filme de Irene passado na Grécia se ela não dançasse - brinca, dá gargalhadas e malgrado alguns exageros aqui e ali, é um prazer vê-la. Lamenta-se apenas que seu papel - bem como todo o filme - não chegue a lugar nenhum. Talvez essa tenha sido a intenção de Paul Cox (1946/2006), chamado de "Pai do Cinema Independente Australiano" e considerado um tesouro nacional, naquele país.

Island foi lançado na Austrália em outubro de 1989 e em um punhado de outros países nos meses seguintes. Hoje está esquecido. Foi lançado em VHS em cópia ruinzinha e desbotada, o que é um crime, considerando a beleza de Astypalaia e a presença de Irene Papas. Há um DVD por aí, comercializado por alguma empresa que detém os direitos sobre a obra de Paul Cox, mas o preço é ridiculamente alto e a qualidade é a mesma. Melhor encontrar o VHS.

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Bibliografia:

Agradecimento especial à Larissa Maragno, Tom Anderson e Alejandro Valverde García


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Ειρήνη Παπά, Eiríni Papás, Irene Papas — 3/7





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