terça-feira, 6 de setembro de 2011

Breakfast at Tiffany's, de Truman Capote, com Anna Friel

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Eu quero longevidade. Ainda quero estar trabalhando quando eu tiver 70 anos. Então estou ansiosa para fazer várias coisas. Quanto mais velho, mais interessante você fica.
Anna Friel (2009)

Concluídas as filmagens de The Street e Land of the Lost, agendados para estrear em meados de 2009, Anna Friel recebeu uma proposta irrecusável: voltar ao West End londrino protagonizando uma adaptação teatral do conto Breakfast at Tiffany’s, do escritor norte-americano Truman Capote (1924/1984). A pré-produção começou em maio, a partir do convite feito pelo diretor galês Sean Mathias, que na época exercia o cargo de Diretor Artístico do Theatre Royal Haymarket e gozava o êxito de Esperando Godot, de Samuel Beckett, dirigido por ele e estrelado por Ian Mackellen e Patrick Stewart. Outras de suas direções incluíam remontagens de Bent, de Martin Sherman, Design for Living de Noel Coward e Les Parents Terribles de Jean Cocteau. Mathias convidou Anna, que aceitou imediatamente, e o australiano Samuel Adamson — responsável por transformar o filme Tudo sobre minha Mãe, de Pedro Almodóvar, em grande sucesso do Old Vic em 2007 — para adaptar o texto de Capote.

O Livro de Truman Capote

Breakfast at Tiffany’s conta a história de Holly Golightly, uma alpinista social de 19 anos que freqüenta diversas rodas de grã-finos e vive no limiar da prostituição. Tem uma vida fútil, está sempre em festas, em seu apartamento ou nas casas noturnas mais badaladas de Nova York, e se sustenta com as polpudas gorjetas que recebe cada vez que vai ao toalete (na época era praxe pagar alguma coisa aos funcionários dos banheiros de lugares elegantes, que seguravam toalhas, borrifavam perfumes, etc., e Holly simplesmente ficava com o dinheiro). Na concepção do próprio Truman, “Holly Golightly não era precisamente uma prostituta. Ela não tinha emprego, mas acompanhava homens aos melhores restaurantes e casas noturnas, com o acordo de que seu acompanhante estava obrigado a dar a ela algum tipo de presente, talvez jóias ou um cheque... Se ela quisesse poderia passar a noite com seu acompanhante. Então estas garotas são as autênticas gueixas americanas, e são muito mais prevalentes agora do que em 1943 ou 1944, que era a época de Holly”.

Truman Capote

É narrada em primeira pessoa pelo vizinho de Holly, um aspirante a escritor que não tem nome, mas que se torna amigo da moça e passa a ser chamado de “Fred” por ela, que o identifica com o seu irmão, que tem esse nome. O título faz referência à adoração da moça pela joalheria Tiffany’s de Nova York, não tanto pela paixão de Holly por jóias — o que ela não tem — mas pelo sonho de ser rica o suficiente para “wake up one fine morning and have breakfast at Tiffany’s”. Com o desenrolar da trama descobre-se que Holly não é apenas uma apaixonante dublê de socialite e gueixa nova-iorquina, amada e desejada por todos mas incapaz de se apegar a quem quer que seja. Ela tem um passado doloroso, vem de uma cidadezinha de caipiras no Texas, seus pais morreram tuberculosos e tanto ela quanto os irmãos, todos ainda crianças, foram distribuídos entre famílias que só fizeram maltratá-los. Holly — ou “Lulamae”, seu verdadeiro nome — e o irmão Fred fogem e em uma casa onde roubavam “leite e ovos de peru” acabam pêgos, mas ao invés de serem punidos são adotados pelo dono da casa, que há pouco perdera a esposa e ficara sozinho com os quatro filhos. O sujeito, Doc Golightly, se apaixona por Lulamae, de apenas 14 anos, e se casa com ela, desgraçadamente um costume dos mais comuns nesse ignorantíssimo interior do sul norte-americano.

Inteligente e esperta, embora endurecida e insensibilizada pelas desgraças de sua vida, Lulamae foge da casa que dividiu com Doc durante um ano e enquanto Fred vai para o exército (a trama se passa em plena guerra, no início dos anos 40), ela vai para a Califórnia, onde, com apenas 15 anos, freqüenta corridas de cavalos e namora um jockey. Lá é descoberta por um agente cinematográfico, O. J. Berman, que vê beleza e potencial na moça, consegue um teste para ela num filme de Cecil B. Demille (The Story of Dr. Wassel, num pequeno equívoco de Truman Capote, pois esses eventos remontariam a 40 ou 41, no livro, e o filme de Demille é de 1944), mas na hora H ela simplesmente desaparece e vai para Nova York.

Um dos inúmeros admiradores de Holly é o mafioso Salvatore “Sally” Tomato, que a observava nas festas mas que só resolve contatá-la e se apresentar quando já está na cadeia. Por intermédio de um capanga que se diz “advogado” de Sally, o mafioso propõe a Holly que lhe faça uma visita semanal, pela qual ganhará sempre 100 dólares e na qual não precisará fazer nada a não ser ouvir a “previsão do tempo” que lhe é ditada por Sally — na verdade instruções cifradas para continuar movimentando seu cartel de drogas do lado de fora — e transmiti-la, ipsis literis, ao “advogado”, de nome O’Shaughnessy. Holly, pensando nos cobres e na afeição que até certo ponto desenvolve pelo velho Sally, aceita a incumbência e passa a visitá-lo, na qualidade de sobrinha do mafioso, sem dar maior importância à possibilidade de estar sendo usada como mula de informações criminosas ou estar incidindo no crime de falsidade ideológica.

A Tiffany's de Nova York, nos dias de hoje
O escritor, como era de se esperar, aos poucos se apaixona por Holly, pela sua personalidade encantadora, sua índole inconseqüente e sua intangibilidade. O contraste entre a persona festeira e boêmia, a doçura contemplativa com que ela toca violão e canta melodias de seu passado, sentada na escada de incêndio do prédio enquanto espera seu cabelo secar depois do banho, e a forma descompromissada de encarar a vida, tudo contribui para atrair o escritor e tornar Holly, de fato, uma das mais maravilhosas personagens da literatura contemporânea. Só que é justamente esse contraste que acaba azedando a vida do escritor, ao mesmo tempo em que sua paixão pela moça aumenta. A graça e o encanto vão dando lugar ao ciúme e à amargura quando ele verifica que Holly pretende se casar com um playboy milionário homossexual, gordo e asqueroso chamado Rusty Trawler. Assim que esse plano naufraga (Rusty acaba casando-se com Mag Wildwood, modelo de passarela, também escorte e amiga de Holly), ela concentra sua atenção em um ex-flerte de Mag, o brasileiro José Ybarra-Jaegar. Não cabe aqui esmiuçar o ridículo do namorado brasileiro de Holly se chamar “José Ybarra”, nome hispânico de um ex-presidente do Equador, ou entrar em detalhes sobre a tenebrosa ignorância de Truman Capote a respeito do país de onde vinha o tal José (ignorância que, verdade seja dita, o escritor compartilhava com 99% dos norte-americanos). Basta dizer que em determinado momento, Holly pega o violão e, desfiando seu frondoso conhecimento sobre o Brasil, diz que vai cantar uma fada no mais perfeito português...

Os acontecimentos se precipitam; Doc Golightly, que longe de ser um caipira pedófilo é um homem simplório, calmo e de bom coração, vai atrás de Holly em Nova York, mas depois de um breve encontro ela o convence que as coisas mudaram, ela não é mais a Lulamae de 14 anos que ele conheceu e que o melhor é que os dois sigam suas vidas. Ele vai embora, pouco depois Holly tem um colapso nervoso ao receber telegrama comunicando que Fred, o irmão que ela venerava, foi morto em combate, e ela descobre que está grávida de José. Planos são finalizados para que eles viajem juntos ao Brasil e no dia anterior à partida ela vai cavalgar com o escritor. Sem qualquer experiência com equitação, ao contrário de Holly, montadora exímia, o escritor sofre um acidente e ela o leva para o apartamento dele, onde cuida de seus ferimentos. No momento em que o escritor estava em sua banheira, a polícia invade a casa e leva Holly. A princípio o escritor tem a impressão de que a vizinha Saphia Spanella, que vivia queixando-se do comportamento de Holly e já tentara inclusive despejá-la com um abaixo-assinado, conseguira finalmente convencer as autoridades da periculosidade das “festas imorais” da moça. Na verdade o problema era bem pior: o esquema de Sally Tomato para dirigir seus negócios de dentro do presídio de Sing Sing fora descoberto e Holly estava sendo presa como cúmplice. Seus planos caem como um castelo de cartas; ela perde o filho naquela noite e José, temeroso de que o escândalo pudesse prejudicar sua carreira política no Brasil, rompe relações com ela através de uma carinhosa carta que o escritor lê para a moça no leito do hospital onde ela ainda se recuperava do aborto.

A 1ª edição de Breakfast at Tiffany's
Holly não se deixa desesperar. Ainda de posse da passagem aérea para o Brasil que lhe foi dada por José, ela pede ao escritor que descubra o nome dos 50 brasileiros mais ricos, e que dê um jeito de providenciar a mudança de seus principais pertences, do apartamento dela para um lugar menos conspícuo, o bar de Joe Bell (ponto de encontro obrigatório, por todo o livro), de onde ela seguirá para o aeroporto. Relutante, pelo perigo dela tentar se evadir do país quando se encontra em liberdade sob fiança, o escritor faz o que ela pede, levando a pé, debaixo de chuva torrencial, algumas roupas e o violão de Holly. A coisa talvez mais importante que o escritor leva consigo até o bar de Joe Bell é o gato de Holly, personagem inesperadamente marcante, referido simplesmente como “gato” ao longo da história, já que, segundo Holly, ela não teria o direito de dar-lhe um nome se não tivesse certeza absoluta de que pertencem um ao outro. Ele acaba simbolizando, a um tempo, o desapego quase esquizofrênico da moça com qualquer coisa e a falsidade desse desapego, que na verdade nada mais seria do que uma carapaça natural de insensibilidade para proteger uma menina profundamente sensível, mas apavorada com a possibilidade de se apegar a algo ou alguém e ser novamente decepcionada ou ferida, como deve ter acontecido incontáveis vezes em sua infância.

No caminho até o aeroporto ela expulsa o gato do carro em uma rua qualquer, dizendo-lhe que aquele será o lugar perfeito para ele, “rats galore, plenty of cat-bums to gang around with”. Seguem por algumas quadras e ela se arrepende do que fez; sai do carro, corre até a rua onde o deixou, grita por ele mas não o encontra mais. Exclama: “Oh Jesus God. We did belong to each other. He was mine”. De volta ao carro, conformada, ela confessa estar com medo: “Not knowing what’s yours until you’ve thrown it away”... e vai embora. O livro termina com o postal que o escritor recebe de Holly meses depois — primeira e última vez que ela se comunicou com ele depois de partir — e a informação dada por ele, de que voltou à rua onde Holly deixara o gato e o encontrara bem instalado em uma das casas. O escritor afirma estar seguro de que “he’d arrived somewhere he belonged”, e termina, com melancólica esperança: “I hope Holly has, too”.

George Axelrod
Como o histórico de adaptações de Breakfast at Tiffany’s é dos mais acidentados, a expectativa de crítica e público foi enorme assim que se anunciou a futura montagem do Haymarket. Vejamos:

Capote lançou Breakfast em 1958, o sucesso foi instantâneo e dois anos depois Hollywood comprou de Truman os direitos para a produção do filme. Segundo se conta por aí, o primeiro diretor envolvido com o projeto foi John Frankenheimer, que teria como roteirista George Axelrod e Marilyn Monroe no papel de Holly (escolha que trazia não apenas o beneplácito mas a preferência pessoal de Capote). Uma combinação excelente: Axelrod era o autor de The Seven Year Itch, sucesso na Broadway em 1952 e três anos depois um dos melhores filmes de Marilyn, roteirizado por ele mesmo e dirigido por Billy Wilder. Não bastasse isso, ele também roteirizou o triunfo seguinte da atriz, Bus Stop, do texto original de William Inge.

Marilyn

Marilyn Monroe

No mais, Marilyn era amiga de Capote e parecia haver em Holly traços inequívocos da própria atriz, como a infância infeliz, sua entrada no cinema e no high society e sobretudo no trecho em que Capote descreve Holly inteiramente deslocada na biblioteca pública de Nova York, procurando informações sobre o Brasil, já que está de caso com José: “She sped from one book to the next, intermittently lingering on a page, always with a frown, as if it were printed upside down. She had a pencil poised above paper — nothing seemed to catch her fancy, still now and then, as though for the hell of it, she made laborious scribblings”, em imagem que nos remete aos recém-nascidos interesses literários de Marilyn, que mergulhou nos livros quando se casou com Arthur Miller, em 1956, e foi obrigada a sair de sua roda social de banalidades hollywoodianas para o seleto e exclusivo círculo de intelectuais que rodeava Miller. A mudança de comportamento da atriz evidentemente foi visível e teve um preço. Como Capote analisa, pouco depois no mesmo trecho, Holly não poderia nunca mudar, porque desenvolvera sua personalidade muito cedo. Qualquer alteração na imagem já conhecida, “like sudden riches, leads to a lack of proportion”.

Marilyn e Truman
Marilyn pretendia aceitar o papel, mas na época se encontrava imersa na papagaiada do Actor’s Studio e inteiramente subjugada, intelectual e artisticamente, ao fundador da escola e guru do method acting, Lee Strasberg e sua filha Paula. Lee enfiou na cabeça de Marilyn que interpretar a socialite vazia e amoral poderia prejudicar sua carreira e ela acabou declinando o convite (curioso que Strasberg não moveu uma palha para impedi-la de filmar o péssimo Let’s make love, de George Cukor, que hoje só é lembrado pelo rumoroso affair de Marilyn com Yves Montand, o que seguramente não fez bem nenhum para suas pretensões de atriz séria), uma oportunidade magnífica que não mais se repetiria na vida da lendária estrela, que morreu em 1962. Para piorar, Frankenheimer caiu fora em seguida. Blake Edwards o substituiu, Axelrod foi mantido e depois de alguns testes, Audrey Hepburn ganhou o papel principal. A escolha do ator para interpretar o escritor também não foi sem percalços. Aparentemente os produtores queriam Steve Macqueen, mas o ator se encontrava sob contrato com a CBS gravando a série televisiva Wanted: Dead por Alive, e não teve como se livrar. O papel foi para o novato George Peppard. Ironicamente, tanto Macquen quanto Peppard também eram crias de Lee Strasberg e do Actor’s Studio, e nem por isso tiveram quaisquer reservas de ordem artística e criativa em relação ao filme.

Marilyn e Lee Strasberg
Desde o início da produção, ficou mais ou menos óbvio que o filme não seria fiel ao conto. Em primeiro lugar, por mais competente que fosse, George Axelrod dificilmente conseguiria transpor para um roteiro produzido no fim do governo conservador e moralista de Dwight Eisenhower — com o fantasma de Joseph Macarthy e do Código Hays ainda assombrando a indústria cinematográfica — a atmosfera sexualmente revolucionária e amplamente liberal de Holly Golightly e de praticamente todos os personagens de Breakfast at Tiffany’s. Na essência, o conto é o famoso paradoxo entre o estilo de vida vibrante e glamouroso de Holly em contraponto à sua infância miserável e trágica, as cicatrizes emocionais decorrentes dessa infância, o conseqüente vazio sentimental e a busca incessante por um amor verdadeiro que preencha esse vazio. Poderia ser apenas a história de amor entre um escritor bitolado e romântico e uma moça exuberante e interesseira, mas o diferencial de Truman Capote é rechear e decorar esse mote com todos os vícios, fraquezas e indiscrições de uma alta sociedade da qual Holly (assim como o próprio Truman) deseja tanto se servir quanto fazer parte.

Influências

Christopher Isherwood
Muito se fala sobre quem teria sido a musa de Capote para compor a protagonista de Breakfast at Tiffany’s; a espinha dorsal parece vir da personagem Sally Bowles, protagonista do romance que leva seu nome, lançado por Christopher Isherwood em 1937 (inspirado na atriz inglesa Jean Ross, e que mais tarde se tornaria base do musical Cabaret, com música e letra de John Kander e Fred Ebb), e há também as inspirações colhidas no círculo pessoal de relações do próprio Truman, como Oona O’Neill (filha de Eugene O’Neill e última esposa de Chaplin) e Gloria Vanderbilt (socialite e herdeira de uma das maiores fortunas dos Estados Unidos). A musa, entretanto, declarada por ela própria e pelo autor, foi a starlet Carol Grace Saroyan (1924/2003), então esposa do escritor William Saroyan — citado jocosamente por Holly, no livro — e mais tarde casada com o ator Walter Matthau. É inútil, porém, querer cavoucar a vida de Grace em busca de semelhanças entre ela e Golightly; talvez no humor, nos maneirismos, na forma extrovertida e desabrida de se comunicar e relacionar com a alta sociedade e em demais traços externos, Truman tenha se baseado em Carol. Mas em se tratando de comportamento, opiniões, máximas e julgamentos, é o próprio autor que fala pela boca de Holly Golightly.

Carol Grace
É nisso, aliás, que começam os problemas de roteirização do filme: como colocar, na boca delicada e classuda de Audrey Hepburn em 1961 (ano de lançamento do filme), os conceitos de Truman sobre o lesbianismo, quando Holly diz “of course I like dykes themselves”, “dykes are wonderful home-makers, they love to do all the work (...). I had a roomate in Hollywood, (...) she was better than a man round the house. Of course people couldn’t help but think I must be a bit of a dyke myself. And of course I am. Everyone is a bit. So what?” Como alcançar a proeza de fazer o público norte-americano se afeiçoar à Audrey Hepburn dizendo que fumou maconha, que assistiu um “blue movie” (como na época eram chamados os filmes pornográficos), na companhia do próprio sujeito que trabalhava no filme, ou que não conseguia ficar excitada com um homem que tivesse menos do que 42 anos? O que diria o público ao ver a diáfana Audrey declarando que, aos 19 anos, já teve onze amantes, e perguntando se isso faz dela uma puta? Fazendo a ressalva de que “I haven’t anything against whores”. E o que diria a temida Legião da Decência diante do trocadilho de Holly sobre suas amigas terem contraído gonorréia tantas vezes que chegava a ser digno de aplauso (“They’ve had the old clap-yo’-hands so many times it amounts to aplause”)?

Truman Capote
E isso sem mencionar a avalanche de referências homossexuais que Truman — o que se poderia chamar de um “flaming homosexual” — não economizou ao longo do livro, desde Holly afirmando que “a person ought to be able to marry men or women”, passando pela recomendação que ela faz a Rusty Trawler, “to grow up and face the issue, settle down and play house with a nice fatherly truck driver”, até a insinuação (desnecessária e bizarra) de que o próprio escritor teria certa vez se apaixonado por um carteiro. Produtores, diretor e roteirista chegaram a um consenso que livraria o filme da censura (e jogaria no lixo o conselho cretino de Lee Strasberg, muito mais uma ameaça do que um conselho, razão pela qual calou tão fundo no coração da suscetível e manipulável Marilyn): Tudo seria cortado. O roteiro de George Axelrod seria “loosely based” no livro de Capote e qualquer diferença poderia ser debitada à essa condição. Tornou-se, como bem observaria o Telegraph anos depois, “a travesty of the original”.

O filme de Blake Edwards, com Audrey Hepburn

Audrey Hepburn como Holly Golightly
Audrey Hepburn é uma Holly morena de cabelos compridos e olhos escuros, ao contrário da Holly de Capote, de cabelos loiros e curtos e olhos que oscilam entre o azul e o prata. Hepburn sempre foi a própria definição da gamine que caracteriza a personagem mas neste caso a qualidade não se encaixa e não funciona a seu favor. Ao invés do “tomboyish charm” de Holly — e malgrado o esforço e o talento da atriz — Hepburn transpira e emana classe e elegância. É impossível imaginá-la descalça, imunda, roubando ovos em um sítio em Tulip, nos confins do Texas, como também não se concebe a belga Audrey, com sua voz meiga e seu inglês doce e britânico, falando o detestável caipirês do sul dos Estados Unidos. Quando, em que mundo, um flamingo como Audrey, de beleza escultural e aristocrática, andaria por escadas de incêndio completamente nua cobrindo o corpo com um casaco de peles, ou seria desbocada e permissiva como Holly? A gamine de Truman é um produto de sua metamorfose, de criança abusada e mendiga até a socialite amoral, nova rica e sempre deslocada, assim como ocorre, mutatis mutandi, com a Eliza Dollittle de My Fair Lady (outro papel dado equivocadamente a Audrey Hepburn). O resultado é que a Holly de Audrey é doce, sensível e bondosa, exatamente o contrário da Holly de Truman, que é dura, insensível mas cativa e atrai por ser de todos e não ser, efetivamente, de ninguém.

Um erro fundamental do filme é mostrar Holly como alguém que se apaixona pelo escritor, o seduz, passa a noite com ele e depois some, sendo mais tarde obrigada a desiludi-lo com rispidez, o que lhe causa lágrimas e uma profunda crise de consciência. Nada mais distante da realidade. Em nenhum momento do livro Holly dá qualquer sinal de ter atração pelo escritor, ou corresponder seus sentimentos, e muito menos de ter um caso com ele. Da mesma forma, a índole interesseira e gananciosa de Holly não vê sentimentos, e mal tendo demonstrado um mínimo de consideração pelo escritor, é evidente que jamais verteria uma lágrima por ele.

George Peppard e Audrey Hepburn
A ausência dos innuendos homossexuais e libertinos dos personagens do livro é compensada jogando-se sobre o escritor (George Peppard) — que no filme chama-se Paul Varjak — a pecha de mixê, pelo fato dele ser sustentado em Nova York por uma mulher mais velha e casada, a Sra. Failenson (Patrícia Neal), até o meio do filme, quando se apaixona por Holly e rompe com a madame. Ambos estão muito bem. Doc Golightly é brilhantemente retratado por Buddy Ebsen, por cujos olhos azuis e expressivos passa toda sua paixão outonal devotada à jovem que ele sabe ter perdido. Martim Balsam dá uma caracterização equivocada de bon vivant indiferente e apalermado a um O. J. Berman que, a meu ver, é na verdade apenas um bronco e bem-intencionado agente de segunda. Deus é testemunha de que Blake Edwards e George Axelrod fizeram uma tentativa honesta de corrigir as abobrinhas de Truman Capote sobre o Brasil, mas infelizmente só o que conseguiram foi mudar o nome do sujeito, do inqualificável “José Ybarra-Jaegar” para José de Silva Pereira; o ator chamado foi o espanhol José Luis de Vilallonga, que tem perfil de italiano e fala com um inexplicável sotaque francês.

No mais, personagens queridos e divertidos como Joe Bell e Saphia Spanella são impiedosamente cortados; outros como Rusty Trawler (Stanley Adams) e Mag Wildwood (Dorothy Whitney) são relegados quase que à figuração, Sally Tomato (Alan Reed), que no livro é apenas referido, tem uma única e esquecível cena, e personagens inexistentes no conto de Capote são criados sem qualquer necessidade, como é o caso do vendedor da Tiffany’s e a funcionária da biblioteca. Por outro lado, algumas das falas e reclamações da Sra. Spanella são fundidas ao personagem do Sr. Yunioshi, coadjuvância de luxo para o então famosíssimo Mickey Rooney.

O fim do filme é um golpe final no livro; ao invés de expulsar o gato, ter a epifania da inevitabilidade de pertencer a alguém e a fuga melancólica para o Brasil, a Holly de Audrey Hepburn e George Axelrod expulsa o gato, leva uma carraspana do escritor, vai atrás dos dois, encontra o gato e o filme termina com o beijo de Holly e o escritor, sinalizando que ela resolveu ficar e casar-se com ele. Ou seja, um final plenamente hollywoodiano, oposto ao livro. O saldo positivo foi a beleza antológica e eterna de Audrey Hepburn — não importando que ela nada tivesse a ver com Holly — e a magnífica Moon River, composta por Henry Mancini e Johnny Mercer especialmente para Audrey cantar ao violão. No Oscar de 1962 o filme recebeu cinco indicações: melhor atriz (Audrey), roteiro (Axelrod), direção de arte (Hal Pereira, Roland Anderson e cenários de Sam Comer e Ray Moyer), música (Mancini e Mercer por Moon River) e trilha sonora (Mancini, pela orquestração de Moon River). Ganhou os dois últimos.

O jovem Norman Mailer

Há duas análises que podem ser feitas sobre o filme de Blake Edwards: aqueles que não leram o livro de Capote foram brindados com uma comédia romântica leve e meio piegas, no estilo dos filmes estrelados por Tom Hanks e Meg Ryan (com a inenarrável vantagem de trazer Audrey e não Meg). Quem leu o livro pode até ter gostado de ver Audrey Hepburn espalhando sua beleza e carisma ao som de Moon River, mas fica uma sensação incômoda de que a adaptação está a anos-luz do conto original e não fez jus à prosa de Truman, a quem Norman Mailer considerava “o mais perfeito escritor da minha geração”.

Truman Capote
Se o público em geral gostou do filme — que no Brasil recebeu o título de “Bonequinha de Luxo” — e ajudou a torná-lo o clássico que é hoje, o mesmo não se pode dizer de Truman, que desde antes da estréia até sua morte não perdeu vaza para criticá-lo acerbamente e expressar sua absoluta insatisfação com o produto final. Segundo o autor, “eu tinha várias ofertas para aquele livro, de praticamente todo mundo e eu o vendi para um grupo da Paramount, porque eles me fizeram promessas, fizeram uma lista com todas elas e não cumpriram nem uma, sequer”. Sobre o elenco e a atmosfera do filme o comentário é ainda mais ácido: “É o filme com o elenco mais mal-escalado que eu já vi. O livro realmente era bastante amargo, e Holly era real; uma personagem durona, nem de longe o tipo de Audrey Hepburn. O filme virou uma declaração melosa de amor à Nova York e à Holly, e como resultado, ficou magro e bonitinho quando deveria ter ficado substancioso e feio. Tinha tanta semelhança com o meu trabalho quanto as Roquettes [dançarinas do Radio City Music Hall] têm com [Galina] Ulanova”.

O Musical da Broadway, com Mary Tyler Moore

 Capote continuaria ganhando milhões em royalties pelas adaptações de sua obra, o que não significa que elas seriam melhores ou mais fiéis que a de George Axelrod. Em 1966, o excêntrico e competentíssimo produtor teatral David Merrick fechou uma parceria com o escritor Abe Burrows — libretista dos mega-sucessos Guys and Dolls e How to succeed in business without really trying — para transformar Breakfast at Tiffany’s em um musical da Broadway. A equipe envolvida parecia ser propositalmente à prova de fracassos: Burrows seria o libretista e o diretor; no papel de Holly, Mary Tyler Moore, no auge de seu sucesso televisivo no programa de Dick Van Dyke; músicas e letras seriam compostas por Bob Merril, ainda colhendo os louros da fama pelo sucesso que emplacara com Barbra Streisend em Funny Girl; na coreografia o grande Michael Kidd, ganhador de dezenas de Tonys, e o escritor seria feito por Richard Chamberlain, que assim como Mary, era figura das mais queridas dos Estados Unidos, pelo seu papel protagonista na série de TV Dr. Kildare.

Mary Tyler Moore e Richard Chamberlain
Não seria exagero dizer que na junção de pessoas tão competentes, trabalhando matéria-prima da melhor qualidade, absolutamente tudo deu errado. O espetáculo, que tinha quase quatro horas de duração, começou suas pré-estréias no segundo semestre de 66. A repercussão foi desastrosa. Ninguém gostou da música, do libreto, dos cenários, e o público ficou particularmente chocado ao ver a então namoradinha da América interpretando uma prostituta. Apavorado com a perspectiva de um flop milionário, Merrick dispensou Abe Burrows. Para substituí-lo na direção do musical chamou o experiente Joseph Anthony, e para reescrever o libreto de Burrows — que continha anacronismos patéticos como o fato de Holly ser uma prostituta virgem — entrou em cena ninguém menos do que o afamado dramaturgo Edward Albee. Não adiantou. O libreto foi reescrito, músicas foram trocadas, o elenco recebia alterações de manhã para incorporá-las à performance da noite, e a reação continuava sendo de total reprovação por parte do público, que, segundo Richard Chamberlain, por vezes chegou a xingar o elenco em cena.

Edward Albee
Depois de passar por Filadélfia e Boston, o espetáculo chegou a Nova York para uma mini-temporada de pré-estréias em dezembro daquele ano. Depois de apenas quatro apresentações, David Merrick cancelou a produção, antes mesmo da estréia. E, somando à fama que sempre teve (e que ele mesmo alimentava), de ser um produtor excêntrico e não muito equilibrado, fez publicar uma matéria paga no New York Times declarando, com terrível sinceridade, que “ao invés de submeter os críticos de teatro e o público a uma noite excruciantemente chata, decidi encerrar o espetáculo”. Embora indiscreta e desleal com seus próprios colegas, a matéria paga de Merrick era a expressão da verdade. Recentemente, perguntado sobre essa infeliz experiência, Edward Albee disse o seguinte: “Eles o fizeram totalmente previsível, pseudo-intelectual, medíocre e, no meu ponto de vista, um musical extremamente chato, que teria ficado provavelmente um ano em cartaz na Broadway. E eu consegui transformá-lo em um desastre que não chegou nem a estrear na Broadway”. Sobre aquilo que aprendeu com a malfadada montagem, a resposta foi peremptória: “Medo e ódio”.

O fracasso estrepitoso do musical não foi suficiente para desestimular a rede de televisão ABC, que em 1969 chegou a gravar o piloto de um futuro sitcom intitulado Holly Golightly, que mostraria Holly mudando-se para um novo apartamento onde viveria vida tão glamourosa quanto no livro, e seria baseado na relação de Holly com Joe Bell. No papel de Holly estaria a linda e jovem Stefanie Powers e o ator canadense Jack Kruschen interpretaria Bell. O piloto acabou engavetado para sempre.

A Montagem de Anna Friel e Sean Mathias



As primeiras fotos promocionais de Anna
como Holly, ainda em maio

Diante de tudo isso, era natural que tanto Anna quanto Mathias deixassem claro para a imprensa, no período de ensaios que antecedeu as pré-estréias, que a adaptação de Samuel Adamson viria do conto de Capote e nada teria a ver com o filme. Mathias foi taxativo: “Precisamos refazer no palco algo que teve tanto sucesso no cinema? Meu primeiro instinto foi ‘não, não precisamos!’ Por melhor que tenha sido o filme, porém, há muitos elementos do romance que são diferentes”. Dito isso, era hora da propaganda: “Tenho sido um ávido fã de Capote e espero que minha produção de seu deslumbrante conto Breakfast at Tiffany’s seja uma noite despudorada e glamourosa de inteligência, estilo, ternura e música, com a dinâmica de Nova York dos anos 40 como pano de fundo. E estou  maravilhado de trabalhar com a linda e talentosa Anna Friel em seu retorno aos palcos londrinos”.

Anna foi igualmente cuidadosa, repisando o que já dissera Mathias sobre a admiração de todos pelo livro que, segundo ela, “foi sempre um dos meus romances favoritos”. Sobre o prazer de interpretar Holly, o curioso é que Anna não se refere a ela como uma personagem trágica, sofrida ou controversa; primeiramente definindo-a de maneira hilária como uma bad little good little girl (qualquer coisa como "menininha malvadinha boazinha") a atriz prefere ressaltar as qualidades da socialite — “ela é a mulher mais valente e corajosa que já vi escrita” — e pensar nela como uma “heroína”, parafraseando-a: “Holly é a heroína de todas as mulheres. Ela nunca tem pena de si mesma. Ela simplesmente diz, ‘uh, se você tem merde no seu sapato, é só limpá-lo’. Ela sabe exatamente o que quer e, o mais importante, sempre consegue tirar o melhor dos homens”. Lembrando, como sempre, que “a inspiração para a peça é o livro original, e não o filme”, ela acrescenta: “Creio que esta Holly será uma personagem muito mais dura e complexa do que a da versão cinematográfica. Ela é uma escorte que recebe 50 dólares por sua companhia. É o público que deverá imaginar até onde ela vai com esse dinheiro”. Anna teve medo da sombra de sua lendária antecessora: “Uma das coisas assustadoras para mim, no começo, foi pensar ‘meu Deus! As pessoas vão pensar que estão vindo assistir uma imitação de Audrey Hepburn’, e isso não vai acontecer”. Seus comentários sobre Hepburn vêm repassados em humildade e admiração: “Ninguém poderia fazê-la [Holly] como Hepburn. Ela interpretou aquele papel à perfeição. Ninguém pode copiar aquilo e eu jamais sequer pensaria em fazer tal coisa”. Anna conclui: “Ela era uma líder mundial em moda e beleza. Eu ficaria parecendo uma cópia mal-feita”.

Parte do elenco de Breakfast, em sentido horário: James Bradshaw (Rusty Trawler), Gwendoline Christie (Mag Wildwood),
Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), o adaptador Samuel Adamson, David Phelan (Sid Arbuck) e Nicholas Goh (Mr. Yunioshi)

Esgotado esse tópico e fazendo questão de não assistir novamente o filme para não se deixar influenciar por Audrey, Anna atirou-se nos ensaios, que incluíam não só o mergulho na profundeza psicológica de Holly, mas aulas de canto, violão, números de dança e toda a imensa estrutura de um espetáculo centralizado nela, e na qual está presente em 99,9% das cenas. Fiel ao livro, o diretor decidiu que Holly seria loira e alternaria o cabelo comprido do começo com o curto e discreto da segunda metade da peça, quando se junta com o brasileiro. Mas tudo seria feito através de perucas, para não prejudicar os compromissos cinematográficos de Anna, até porque muitos deles ocorreram ao mesmo tempo que os ensaios. “É um desafio massivo, massivo”, comentou Anna, “e estou trabalhando uma hora por dia para fortalecer minha voz e alcançar o sotaque correto. Holly é de Tulip, no Texas, mas quando chega a Nova York seu sotaque já se tornou meio-atlântico (“mid-atlantic”, referente às cidades costeiras do leste norte-americano). Junto à Anna estava Joseph Cross, ator jovem com carreira cinematográfica incipiente, no papel do escritor, que na adaptação de Adamson recebeu o nome de William Parsons. O resto do elenco era composto por Dermot Crowley (Joe Bell), James Dreyfus (O. J. Berman), Gwendoline Christie (Mag Wildwood), James Bradshaw (Rusty Trawler), John Ramm (Doc Golightly), Suzanne Bertish (Saphia Spanella), Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), Nicholas Goh (Mr. Yunioshi) e David Phelan (Sid Arbuck). Na figuração estavam também Paul Courtney Hyu, Annie Hemingway, Sam Hoare e Natalie Klamar.

As pré-estréias no Haymarket começaram no dia 9 de setembro de 2009, um burburinho correu Londres como uma corrente elétrica e na segunda semana o tablóide News of the World (que provavelmente jamais publicara uma notícia sobre teatro) publicou uma reportagem com direito a fotos, revelando que a montagem de Breakfast trazia uma cena de nu frontal com Anna. O furo foi noticiado em todos os jornais, expressões como “theatrical viagra” foram vistas aqui e ali, e a produção da peça começou a confiscar câmeras e celulares na entrada do teatro, apavorada com a possibilidade de se repetir o desastre de The Blue Room, peça de David Hare protagonizada por Nicole Kidman na Broadway, dez anos antes; havia erotismo por todo o espetáculo, e em uma das cenas Nicole ficava nua e o público via sua bunda por alguns segundos. Foi o suficiente para que os jornais em uníssono dissessem coisas como “não estou 100% certo, mas esta pode ser a primeira vez na história da Broadway em que os espectadores pagavam 60 dólares cada para ver a bunda de uma estrela de cinema” e “The Blue Room, uma peça cujo grande atrativo é uma olhada de relance no bumbum nu de Nicole Kidman”.

Anna e Joseph Cross, na polêmica cena que está há 50 anos no livro de Truman
Nicole Kidman em cena de The Blue Room
No meio de tudo havia até quem elogiasse a performance de Kidman, mas a coisa virou piada: “Se o teatro é um templo”, disse Frank Rich, do The New York Times, “não é surpresa que a religião mais popular da Broadway nesta temporada de festas [dezembro de 1998] seja The Blue Room, ao qual peregrinos têm vindo de todas as partes para idolatrar a bundinha de Nicole Kidman”. O artigo, intitulado “O Traseiro de Nicole Kidman”, observou que as razões que levavam atores de cinema ou TV ao teatro geralmente eram o fim de suas carreiras nas telinhas ou telonas, voltas triunfais depois de internações por vício em drogas ou álcool, a necessidade pura e simples do dinheiro da bilheteria ou, no caso de Nicole, a “gananciosa máquina promocional da Sra. Kidman e de seu marido Tom Cruise”, cujo objetivo seria dar uma turbinada na carreira de Kidman, cujos últimos dois filmes (The Peacemaker e Practical Magic) haviam sido fracassos. Não se poderia inquinar a nudez na montagem de Mathias com nenhuma dessas razões, primeiro porque a carreira de Anna passava pelo seu melhor momento em muitos anos, ainda no gozo pleno de sua fama por Pushing Daisies, e segundo, e mais importante, porque a nudez de Holly está descrita no livro. Não foi gratuita e não foi inventada. Mesmo assim a segurança do Haymarket triplicou sua atenção nos possíveis fotógrafos tentando se infiltrar nas apresentações.


Por sorte, o vazamento das fotos mostrando Anna nua na peça (uma única cena, assim como no livro) não provocou o “efeito The Blue Room”. No dia 29 de setembro, diante de uma casa lotada de amigos, artistas e celebridades, Anna estreou como Holly Golightly dando início a uma temporada de quatro meses, e desencadeando uma verdadeira catarata de elogios e críticas positivas. Kelly Pentland, do site Show and Stay UK admitiu que a experiência era inédita pois não lera o livro de Capote e não vira o filme com Audrey. Segundo ela, “a protagonista Friel teve uma performance impressionante como Golightly. Trazendo o estilo glamouroso da garota despreocupada e charmosa, Friel estava fabulosa. Adicionando um viés picante ao espetáculo, Friel até apareceu nua. Seus doces vocais acompanhados ao violão foram encantadores e entendia-se claramente porquê os homens se jogavam aos seus pés”. Michael Billington, do The Guardian, diz que Anna compõe Holly “com uma graça delicada e charme displicente. Ela dá duro, atua bem e até posa confortavelmente nua em pêlo, em uma espreguiçadeira. É um prazer assistir Friel”.

O adjetivo “elfin”, aliás — relativo a “pequeno e delicado” (como um elfo) ou “mignon” no Brasil — , parecia ser a palavra de ordem para caracterizar a beleza de Anna em Breakfast. Em comentário no qual criticou diversos aspectos do espetáculo, Henry Hitchings, do London Evening Standard diz que “a graça salvadora foi Friel. Brincalhona e cativante, ela lida muito bem com a contingência de ter que se vestir e despir continuamente. Ela traz aos atos mais comezinhos um charme delicado e travesso, e é honestamente poderosa quando o papel requer”. Alice Jones, do The Independent, também diz que Anna, “nossa delicada atriz”, “é uma gamine divinamente embrulhada, como um mimo da Tiffany’s, em um desfile cada vez mais extravagante de vestidos curtos. Ela tem uma presença de palco que enfeitiça, a um tempo perigosamente provocante e infantil”.

Charles Spencer, do The Telegraph, era o mais empolgado de todos. Começa perguntando “como poderia qualquer peça querer se igualar ao texto de Capote ou ao brilho de Hepburn?”, e responde, logo em seguida: “Ainda assim, contrariando as chances, esta provou ser uma noite explosiva”. E prosseguiu:

A performance de Anna Friel como Golightly vai capturar até os corações mais duros. Ela pode não ser tão linda quanto Hepburn, mas alcança maior profundidade dramática, capturando o medo e a solidão que jazem por trás da imagem cintilante de Holly, a mistura fascinante de calor e calculismo em seus relacionamentos, assim como o puro encanto da personagem. E apesar de seu sotaque ir do Texas até o subúrbio de Surrey, até isso parece se encaixar em uma personagem que essencialmente foi inventada por si mesma.

Esta também é a performance mais sexy que já vi num palco desde Nicole Kidman em The Blue Room. Com seu cabelo curto, franca sensualidade e um script que a obriga a passar grande parte da peça só de lingerie, e, em uma cena, sem nada, Friel cria um arrepiante frisson de erotismo.

Como que penitenciando-se pelo elogio anterior, que engrossa o coro da legião de onanistas que cultiva a atriz únicamente por cenas gratuitas de nudez em seus filmes mais esquecíveis, o jornalista retifica:

Mas a sua nudez emocional é ainda mais contagiante, no que ela permite ao público descobrir a grande dor das mágoas e a vulnerabilidade que se esconde por baixo da alegria cada vez mais desesperada de Holly. Não tenho vergonha de dizer que o coração partido de Friel em sua última cena me comoveu às lágrimas.

Anna e Joseph Cross no papel de William "Fred" Parsons, ela e Dermot Crowley, que interpretou o barman Joe Bell e abaixo com o marido Doc Golightly, feito por John Ramm

Mais moderado, Quentin Letts, do Daily Mail, analisa a personalidade de Holly para explicar seu elogio à atriz:

Anna friel está desconcertantemente adorável como Holly Golightly. Digo “desconcertantemente” porque Holly é uma tal cabeça de vento, com seu cérebro de borboleta e cílios. Ela personifica tudo o que não podemos ter, a provocação, a lasca quebradiça que penetra nossos corações. Se fôssemos sensatos, não teríamos nada com essa farsante com tendências criminais. A Srta. Friel, para seu crédito, torna isso impossível. Com suas noções mínimas de francês, despejadas aos sussurros, dando fragilmente de ombros, há um pouco de Audrey Hepburn nesta performance. Almas superficiais vão derivar excitação do fato de que a linda Sra. Friel aparece como veio ao mundo em uma cena, mas o trunfo de sua performance é a de que ela veste Holly com todas as camadas de ficção que a forçam a levar uma vida transitória.

Também houve críticas que não continham apenas elogios. Natasha Tripney, do site Theater Mania, por exemplo, considerou que na peça, Anna tinha “a língua afiada e era astuta, e ainda assim infantil e desavergonhadamente manipuladora. Por vezes ela também é visceralmente vulnerável, despedaçando-se convincentemente quando descobre que seu amado irmão morreu na Europa. Ela certamente é carismática e tem uma encantadora voz para cantar quando se senta em sua janela e dedilha o violão, mas também pode parecer que lhe falta confiança. Na tentativa de humanizar Holly, Friel quase parece se aninhar dentro da personagem”. Já Benedict Nightingale, do The Times, devia estar de particular mau humor na noite em que assistiu o espetáculo, porque não gostou nem um pouco: “A Holly de Anna Friel não tem o carisma de Hepburn ou a qualidade anárquica, selvagem, que levou Capote a compará-la a um pássaro ou animal que não consegue nem encontrar um lar e nem ser totalmente livre”. Dada a paulada inicial, vem um afagozinho para compensar: “Mas Friel tem seus momentos, sobretudo quando está guinchando de dor pela morte  de seu irmão soldado”. E mais uma paulada para concluir: “Mas ela não tem a qualidade emocionalmente perigosa, caprichosa, volátil que Holly precisa, então não é uma porta-voz convincente para a liberação sexual e a tolerância, que ela pode ser”.


A crítica em geral foi azeda com o trabalho de Samuel Adamson, que se manteve fiel a Capote mas teria falhado em reproduzir em dramaturgia o que o escritor imortalizou em romance. Ainda assim, sente-se, em várias ocasiões, que essa crítica se deve muito mais a um apego deste ou daquele jornalista pela Holly de Audrey do que propriamente por algum tropeço do adaptador. Na mesma linha, várias críticas foram feitas aos cenários econômicos de Anthony Ward, que consistiam em duas escadas de incêndio que se moviam conforme a mudança de locais, e a mesa e cadeira do bar de Joe Bell. A tônica é a de que não se transmitiu de maneira adequada “o exotismo picante” nova-iorquino dos anos 40, mais uma noção equivocada deixada pelo filme, que valorizou demais a cidade, quando no conto ela é coadjuvante, quase incidental. Joseph Cross não deixou maior impressão mas houve certo consenso de que, mesmo não tendo carisma ou força para contracenar com Anna, ele não chegou a prejudicar a produção. O resto do elenco foi muito elogiado, principalmente o Joe Bell de Dermot Crowley, a Saphia Spanella de Suzanne Bertish e o O. J. Berman de James Dreyfus.

Anna, acima com o O. J. Berman de James Dreyfus e abaixo com a Saphia Spanella de Suzanne Bertish

A temporada foi vitoriosa, a produção teve lucro e viagens à Nova York e Tóquio chegaram a ser cogitadas, quando a peça saísse do Haymarket, em 9 de janeiro de 2010. Infelizmente as temporadas internacionais não vingaram, o que não impediu que Anna e o elenco de Breakfast at Tiffany’s vivessem algumas experiências bizarras no velho teatro fundado em 1720 e funcionando exatamente no mesmo prédio desde 1821. E o mais cômico de tudo é a reação de total simplicidade da atriz, com os absurdos ocorrendo no meio do público ou nos bastidores. Em uma das apresentações, durante a cena em que ela está nua e o escritor lhe aplica bronzeador nas costas, um sujeito teve um colapso e caiu duro no meio do público. A peça continuou mas Anna percebeu o que estava acontecendo: “Foi durante a cena de nudez e eu não sabia se tinha feito algo muito errado ou apenas aconteceu do sujeito ter um colapso naquele momento. Me lembro dele sendo carregado para fora em uma maca, o que me distraiu um pouco”. Em outra ocasião Anna estava no meio de uma das três músicas que cantava ao violão quando um sujeito no mezanino do teatro se levantou e, sem tempo de chegar ao banheiro, acabou vomitando sobre vários pobres infelizes que assistiam o espetáculo nas poltronas mais caras, abaixo. “Achei que eram espectadores atrasados que não deveriam ter sido permitidos de entrar”, disse Anna, “mas pelo que se viu, alguém tinha vomitado, no mezanino, em cima de seis pessoas e estavam todos sendo levados para fora, para se limpar”. Anna não saiu da personagem: “Eu continuei cantando mas quase me perdi porque tinha muito barulho vindo das poltronas. Quase, mas fico feliz de ter mantido minha concentração”.

O velho Haymarket, de tantas lembranças
e tantas histórias

A melhor história de todas foi a suspeita do Haymarket ser assombrado por fantasmas do mundo artístico: “Todo mundo fica falando sobre esse fantasma”, contou Anna. “Supostamente, Capote está num canto ou Audrey Hepburn está lá assistindo, mas nunca a vi. Patrick Stewart, que estava antes em Godot, disse que o viu no palco e que ele saiu de uma caixa. Agora eu fico olhando!” Não se pode dizer que as provas da existência de um fantasma no Haymarket fossem conclusivas: “A música no meu camarim aumentou algumas vezes”, disse Anna, “mas acho que é só uma falha elétrica”.


Perguntada na ocasião qual o segredo de tanta energia para o trabalho, ela foi sincera: “Não é tanto trabalho quanto parece. Meu cabelo está todo preso em cachos com grampos por baixo da peruca então ele se solta em ondas perfeitas, e só deixo o esmalte e o batom de Holly. É isso que as atrizes costumavam fazer; o esforço para que você não pudesse ver por trás da máscara. Acho que combina com toda a atmosfera da peça. Eu poderia simplesmente tirar minha maquiagem e me enfiar num jeans, mas essa sensação de glamour dos anos 40 ajuda com o meu personagem”.

Na mesma entrevista declarou: “Talvez minhas escolhas tenham sido melhores com as peças que fiz do que com alguns dos filmes”. Não resta dúvida. E Breakfast at Tiffany’s foi um triunfo para ela. “Quando meu empresário me perguntou o que eu queria fazer depois disto”, contou Anna, “respondi: ‘Eu quero continuar fazendo teatro’. Nunca pensei que diria isso no meio de uma temporada tão difícil, mas eu estou amando isto. É quase chocante para mim que haja tantas facetas para Holly. Todas as noites pode haver performances completamente diferentes. Por vezes ela pode ser avoada, em outras ela é risonha ou mais frágil. Essa é a empolgação do teatro”.
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  • A maioria das fotos de Breakfast at Tiffany's no Haymarket vem do site oficial da montagem.
BIBLIOGRAFIA:

Todos os sites foram consultados entre julho e agosto de 2011
  1. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1181770/BAZ-BAMIGBOYE-Anna-Friel-serves-sexy-treat-new-Breakfast-Tiffanys-stage-role.html
  2. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/reviews/article-1217034/Anna-Friel-pierces-heart-Breakfast-Tiffanys.html
  3. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1225691/Anna-Friels-performance-interrupted-ill-spectator.html
  4. http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/theatre-reviews/6245887/Breakfast-at-Tiffanys-at-the-Theatre-Royal-Haymarket-review.html
  5. http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/theatre-features/6194609/Sean-Mathias-interview-for-Breakfast-at-Tiffanys.html
  6. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/theatre-dance/features/friel-the-force-anna-friels-stage-incarnation-as-holly-golightly-proves-to-be-a-high-point-in-her-career-1792123.html
  7. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/theatre-dance/reviews/first-night-breakfast-at-tiffanys-theatre-royal-haymarket-london-1795269.html
  8. http://en.wikipedia.org/wiki/Truman_Capote
  9. http://en.wikipedia.org/wiki/Breakfast_at_Tiffany%27s_%28musical%29
  10. http://www.dailyrecord.co.uk/showbiz/showbiz-news/showbiz-news/2009/09/06/anna-friel-to-go-blonde-for-breakfast-at-tiffany-s-78057-21651710/
  11. http://www.newyorker.com/online/blogs/books/2009/09/was-holly-golightly-really-a-prostitute.html
  12. http://www.tcm.com/this-month/article/156635%7C0/Trivia.html
  13. http://www.tbd.com/blogs/tbd-arts/2011/03/edward-albee-s-breakfast-at-tiffany-s-was-the-spider-man-turn-off-the-dark-of-the-60s-9321.html
  14. http://www.trh.co.uk/press-releases.php?date=2009-05-15
  15. http://www.entertainmentwise.com/news/50075/anna-friel-im-not-
  16. http://www.thisislondon.co.uk/lifestyle/article-23779739-anna-friel-from-holly-to-hollywood.do
  17. http://www.thisislondon.co.uk/theatre/review-23750504-breakfast-goes-far-too-lightly-at-tiffanys.do
  18. http://www.contactmusic.com/news.nsf/story/man-collapses-over-naked-friel_1120525
  19. http://www.contactmusic.com/news.nsf/story/friels-backstage-ghost-hunt_1120432
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  21. http://www.theatermania.com/london/reviews/09-2009/breakfast-at-tiffanys_21523.html
  22. http://entertainment.timesonline.co.uk/tol/arts_and_entertainment/stage/theatre/article6854691.ece
  23. http://www.leisuresuit.net/Webzine/articles/blue_room.shtml
  24. http://www.nytimes.com/keyword/blue-room
  25. http://www.show-and-stay.co.uk/theatre-news/review-breakfast-at-tiffanys-anna-friel-20606.html

Anna Friel: o desperdício de uma atriz — Parte 4


Gosto do trabalho que fiz nestes últimos filmes. Gosto do meu trabalho em Pushing Daisies. Acho que nos últimos três anos eu melhorei bastante. Tenho estado bem mais concentrada. Encontrei um tipo diferente de confiança e crença em mim mesma. Você é tão bom quanto sua crença; se não tiver isso por si mesmo, ninguém terá por você. 
Anna Friel, 2009

O início da “terceira fase” na carreira de Anna (considerando que a primeira foi com a novelinha Brookside em 93 e a segunda com a peça Closer em 99) não aconteceu, como se poderia imaginar, pelo sucesso conseqüente do ótimo Báthory, que demorou séculos para ser lançado e nunca recebeu a distribuição que merecia. Na verdade, Anna fez parte de um “êxodo de atores ingleses”, que, segundo a própria atriz, “são atraídos por esse maravilhoso estilo de vida” de Hollywood. “Isso e o trabalho. Simplesmente não há trabalho suficiente aqui”, concluiu ela, referindo-se à Inglaterra. Por essa razão aceitou, entre 2005 e 2006, qualquer lixo que viesse em sua direção, como os dois filmes da série Goal, que se não se notabilizavam pela qualidade, pelo menos a tornaram conhecida de uma grande parte do público mais jovem e uma atriz relativamente cotada em testes de elenco, o que se provou de extrema utilidade quando o escritor Bryan Fuller começou a escalar o elenco de sua nova série dramática, Pushing Daisies (literalmente “empurrando margaridas”; expressão que denota alguém que está morto, debaixo da terra, empurrando para a superfície aquilo que tem por cima de seu caixão).

Bryan Fuller
O norte-americano Bryan Fuller nasceu em 1969 e passou boa parte da década de 90 trabalhando como roteirista de diversos seriados de TV. Em 2003 ficou famoso criando a série dramática Dead Like Me, produzida pela MGM para o canal Showtime. A trama era sensacional: uma moça morre mas ao invés de ir para o pós-vida (seja qual for) ela passa a integrar um grupo de pessoas que volta à Terra com nova aparência e identidade para trabalhar como "ceifadores" (grim reapers), coletando a alma daqueles que estão prestes a morrer e guiá-las até que façam sua “passagem”. Seguindo esse mote há implicações de todos os tipos, personagens que compõem o círculo de relações de cada um, as conseqüências da morte de todos nas famílias, etc. Protagonizada por Ellen Muth e Mandy Patinkin, Dead Like Me foi o maior sucesso de audiência que o Showtime teve até aquele momento, e já trazia elementos que mais tarde seriam vistos em Pushing Daisies, não só pela trama voltada à morte e à ressurreição mas no gosto por nomes femininos esquisitos; a protagonista de Dead Like Me, por exemplo, chama-se Georgia Lass (o que por si só já é uma brincadeira, pois dito rapidamente se ouve como Georgialess, que significa “sem Georgia”), mas é chamada pelo nome masculino de “George”, assim como Charlotte, em Pushing Daisies é chamada de “Chuck”, que é um apelido para o nome “Charles”. Georgia também é chamada de “toilet seat girl” (garota do assento da privada) por seus colegas grim reapers, pela maneira bizarra através da qual ela morreu (o assento de uma privada da estação espacial russa Mir caiu em sua cabeça, matando-a), assim como Chuck era tranqüilamente referida como “dead girl” (garota morta) por Emerson Cod.

Apesar da série ter sido aclamada por público e crítica em seu lançamento (e talvez justamente por isso), Bryan Fuller começou a ter brigas violentas com a MGM pelo controle artístico e intelectual de sua série, e acabou deixando a produção de Dead Like Me ainda no 5º episódio da primeira temporada. Uma das idéias que levou com ele quando foi embora era a de um spin off (série nova que se desgruda de uma série que já existe, para desenvolver individualmente a trama de um dos personagens da série original) de Dead Like Me, a partir de um personagem novo que mudaria a vida de George: ninguém menos do que Ned, o fazedor de tortas. É o próprio Fuller quem relata este curioso fato, que poucos sabem:

George ia saber que alguém lhe estava surrupiando as almas e que ela não conseguia controlá-las. Ela então descobriria que havia um sujeito que estava tocando pessoas mortas e trazendo-as de volta à vida, e teria com ele um tipo de relação meio romântica/antagonista. Então ele ia tocá-la, ela voltaria à vida e se reuniria à sua família por alguns episódios. George eventualmente se daria conta de que deixara seu trabalho e que precisava voltar e ser responsável; precisava crescer e fazer aquilo que lhe cabia fazer. O sujeito então a tocaria novamente e ela voltaria a ser uma grim reaper. E ele iria embora e teria sua própria série. Esse era o conceito original.

Barry Sonnenfeld
A saída de Fuller e os conflitos na produção provocaram o cancelamento de Dead Like Me depois de apenas duas temporadas e 29 episódios. O escritor voltou a trabalhar como roteirista e fez algumas tentativas frustradas de vender o novo seriado. Quase três anos se passaram até que uma executiva da Warner demonstrou interesse e permitiu a produção de um piloto de Pushing Daisies. Para dirigi-lo foi chamado o diretor Barry Sonnenfeld (conhecido no cinema por trabalhos como The Addams Family, Get Shorty e Men in Black). Vale contar que o próprio nome do piloto é uma das piadas de Fuller: "Pie-Lette", que fonéticamente se ouve "pilot" e não tem maior sentido, a não ser que pie é "torta" (e lette é "letão" em francês ou alemão).

O elenco principal ficou dividido entre o protagonista Lee Pace, de apenas 29 anos — que já trabalhara com Fuller no efêmero seriado Wonderfalls, criado pelo escritor quando saiu de Dead Like Me — no papel de Ned, Anna no papel de Chuck, Kristin Chenoweth, cantora e atriz da Broadway (onde chegou a ganhar um Tony, em 1999), no papel de Olive Snook e Chi Mcbride, nascido em 1961, mas que só começou a trabalhar como ator aos 30 anos, depois de longos períodos como cantor e compositor da Igreja Adventista de Chicago, onde nasceu, no papel de Emerson Cod.

Uma curiosidade na esclação de Anna foi que a princípio ela se recusou a fazer um clareamento de seus dentes sugerido por seu empresário. "Na verdade fiquei bastante ofendida", disse ela. "Eu escovo muito bem os meus dentes. Todos deram de ombros e disseram que fariam um teste filmado. Quando assisti, não consegui acreditar na minha própria imagem na tela. Não estou brincando, comparados aos dos outros, meus dentes estavam verdes! Fiquei horrivelmente constrangida". Com os dentes da protagonista devidamente clareados (além de um pequeno aparelho corretivo que ela também decidiu usar), passou-se à produção do novo seriado.

Pushing Daisies (2007/2009)

Pushing Daisies começou a tomar forma pelas mãos de Fuller, os diretores de arte Michael Wylie e Michael Weaver — que criaram aquela cenografia fantástica, multi-colorida e simétrica para a cidade imaginária de Coeur de Coeurs — cujo objetivo era transformar a série em uma experiência que nos remetesse à Amèlie Poulain e a Tim Burton; e o compositor Jim Dooley, que também se inspirou no clima de “conto de fadas adulto” da trilha sonora de Yann Tiersen para Amèlie. A ABC aprovou o projeto de Fuller e em maio de 2007 Pushing Daisies recebeu uma encomenda de treze episódios. Junto a Sonnenfeld, escalado para dirigir o piloto e mais dois episódios havia Lawrence Trilling, Adam Kane, Peter O’Fallow, Allan Kroeker e Peter Lauer. Na equipe de roteiristas encabeçada por Fuller estavam Lisa Joy, Peter Ocko, Gretchen J. Berg, Aaron Harberts, Abby Geewanter, Chad Gomez Creasey, Kath Lingerfelter, Scott Nimerfro, Dara Resnick Creasey e Jim D. Gray. Com grande campanha publicitária e curiosidade por parte do público, Pushing Daisies estreou no dia 3 de outubro de 2007. Teve a maior audiência entre as séries que estreavam naquela temporada.

Field Cate, o jovem Ned
A trama gira em torno de Ned (Field Cate), que aos 9 anos de idade presencia o atropelamento e morte de seu cachorro Digby. Triste, ele se aproxima do cão morto e quando encosta sua mão no animal para fazer-lhe um carinho o cachorro ressuscita e sai andando novamente como se nada tivesse acontecido. Em sua casa ressuscita uma mosca com um toque e compreende que tem o extraordinário poder de ressuscitar os mortos. Pouco depois, sua mãe (Tina Gloss) tem um aneurisma cerebral e cai dura em sua frente. Ned não perde tempo e bota em ação seu recém-descoberto dom. A mãe levanta, suspeitando que apenas cochilou e a vida segue. Só que naquele mesmo dia ele descobre duas dolorosas conseqüências de seu dom: na hora de dormir a mãe dá um beijo no filho e morre novamente. Ned a toca diversas vezes mas ela não ressuscita. Ele se dá conta de que o primeiro toque devolve a vida e o segundo mata a pessoa definitivamente, ou seja, ele não pode nunca mais tocar a quem ressuscitou. A segunda conseqüência é que cada pessoa — ou ser vivo — que Ned ressuscita e não toca novamente num prazo de um minuto, provoca a morte aleatória de alguém ou algo. Em uma espécie de compensação cósmica por seu talento, se Ned ressuscita uma pessoa e essa pessoa continua viva depois de um minuto, outra pessoa morre, se for um animal, outro morrerá, e assim por diante.

Ned e Chuck jovens e adultos
Ned percebe isso quando vê o pai de sua vizinha (Josh Randall) morrer sem qualquer razão, momentos após ele ter ressuscitado a mãe. A dupla morte, naquele dia, muda drasticamente o destino de ambos: Ned é posto num internato pelo pai (Jon Eric Price) e a vizinha, de nome Charlotte Charles (Sammi Hanratty) mas chamada por ele de “Chuck” vai viver com as duas tias, Vivian (Ellen Greene) e Lily (Swoosie Kurtz), que formavam a dupla Darling Mermaid Darlings, de nado artístico sincronizado, mas se aposentaram quando Lily foi limpar a areia do gato certa vez, teve um acidente com a areia e acabou ficando cega de um olho. No enterro da mãe de Ned e do pai de Chuck (que até então acreditava ter perdido a mãe no próprio parto) os dois dão seu primeiro beijo e se separam. Nos anos seguintes, Chuck adota o sedentarismo das tias e vive para cuidar delas. Não descuida, entretanto, de sua própria educação e devora centenas de livros, aprende múltiplos idiomas e se torna apicultora. O rapaz, por sua vez, vive uma juventude triste e solitária no internato, tem pouquíssimos amigos, leva incontáveis sustos por ainda não saber lidar com seu dom sobrenatural e depois de alguns anos é abandonado lá pelo pai.


Lee Pace
Procurando se confortar com a lembrança da mãe através da memória olfativa, o garoto começa a fazer tortas no internato, de madrugada. Com o passar do tempo vai aperfeiçoando a técnica culinária e quando deixa o internato ele abre uma loja de tortas, The Pie Hole (“o buraco da torta”, literalmente, mas usado apenas na expressão “shut your pie hole”, em que “pie hole” quer dizer o buraco — a boca — por onde se come a torta). O negócio é lucrativo, especialmente porque Ned (Lee Pace, quando adulto) não precisa de frutas frescas para fazer suas tortas; basta tocar qualquer fruta podre ou mofada e ela volta a ficar madura e perfeita. No Pie Hole ele trabalha junto a Olive Snook (Kristin Chenoweth), uma romântica ex-jockey que tem uma paixão secreta por Ned e não faz idéia de seu dom. A única pessoa que conhece o segredo de Ned é Emerson Cod (Chi Mcbride), o detetive particular que tem um fraco por tricô e por dinheiro. De olho nas recompensas de cada caso solucionado, ele propõe a Ned uma sociedade em que o confeiteiro ressuscita a eventual vítima de assassinato, ela é questionada e tocada novamente por Ned antes que se esgote o prazo fatal de um minuto, e com as informações colhidas (às quais a polícia nunca tem acesso), Emerson resolve o crime, ganha a recompensa e dá uma parte para Ned.

Chi Mcbride
Os dois há tempos vêm realizando essa parceria até o dia em que Emerson leva Ned ao velório de uma mulher assassinada recentemente para questioná-la antes que ela seja enterrada. Aberto o caixão, Ned descobre que a vítima desta vez foi sua antiga vizinha e paixão de infância, Chuck (Anna, quando adulta). A história é de que ela, depois de anos cuidando das tias resolvera partir num cruzeiro marítimo, a fim de ver o mundo que ela só conhecia pelos livros. Concordara, porém, em fazer um favor a uma amiga e levar uma encomenda na bagagem — dois pequenos macacos de cerâmica que pareciam perfeitamente inocentes, mas que na verdade eram de ouro maciço e a cerâmica lhes revestia apenas a superfície — e acabou morta por um criminoso que procurava essa encomenda. Conflitadíssimo, e sem revelar a Emerson que conhece Chuck, Ned diz ao detetive que quer ficar a sós com a moça para questioná-la. Ele ressuscita Chuck, explica o que está acontecendo e avisa que ela tem apenas um minuto. Eles relembram o primeiro beijo que deram 20 anos antes e resolvem que a maneira que ele usará para matá-la definitivamente será outro beijo.

Chuck sendo ressuscitada
Kristin Chenoweth
Só que quando o minuto crucial chega ao fim, Ned não tem coragem de matá-la de vez e ela continua viva, o que provoca a morte de um agente funerário ladrão que trabalhava lá. Ned acaba contando tudo a Emerson, que fica horrorizado mas não tem outra solução senão aceitar, já que o confeiteiro é sua galinha dos ovos de ouro. No meio tempo, Ned leva Chuck para sua casa, reiterando enfaticamente que os dois não podem jamais se tocar ou ela morrerá na hora. No dia seguinte os dois vão até a casa de Chuck, que é para onde a empresa de turismo mandou sua mala, ainda contendo a tal encomenda que provocou seu assassinato e que não fôra encontrada pelo assassino. Ele está à espreita  nos arredores da casa, entretanto, e quando tenta matar Chuck — que se esgueira pela casa atrás da encomenda silenciosamente, para não ser vista pelas tias — é morto a tiros por Lily, que não vê Chuck ali por causa de seu tapa-olho. Chuck e Ned descobrem o ouro por baixo da cerâmica dos macacos, vão morar juntos e fica claro que há um sentimento se renovando entre os dois.


Ellen Greene
Assim termina o primeiro episódio, com a trama de todos os personagens mais ou menos delineada para o que seria a primeira temporada. A crítica não poupou elogios dos mais efusivos. O TV Guide anunciou taxativamente que “a ABC encontrou seu novo Lost”. A New York Magazine disse que o seriado era “engraçado, imaginativo e inteligente”. O site Television Without Pitty foi mais longe, declarando que Pushing Daisies era “um dos programas mais originais, mais genuinamente divertidos da TV”. A revista Time colocou o seriado entre os dez melhores do ano, em quinto lugar. Depois do terceiro episódio, o prestígio do seriado era tal que a ABC se rendeu e encomendou a Bryan Fuller os outros nove episódios que tornariam aquela primeira temporada completa. É onde desgraçadamente entra em cena o azar ocasional de Anna, e o que parece ser a "maldição das duas temporadas" que rondava os seriados de Fuller: com todas as temporadas do horário nobre bem no meio das filmagens e da elaboração dos roteiros, aquele seria o momento perfeito para desencadear uma greve de roteiristas e deixar a televisão e o cinema na pior situação possível. Foi exatamente o que aconteceu.

Swoosie Kurtz
Os dois maiores sindicatos de roteiristas dos Estados Unidos (WGAE — Writers Guild of America East e WGAW — Writers Guild of America West), representantes de quase quinze mil roteiristas de Cinema, TV e Rádio, entraram em greve no dia 5 de novembro, quando haviam sido transmitidos apenas cinco episódios de Pushing Daisies, dos nove que já estavam finalizados até aquele momento. Assim como ocorrera 20 anos antes, nas greves de 1985 e 1988 (que pediam aumento de salários e porcentagem nas vendas de fitas de vídeo), o WGA reclamava que era maior do que nunca a disparidade entre os ganhos dos estúdios e o salário dos roteiristas, e os tubarões do entretenimento mais uma vez vinham ignorando o pagamento de residuais pelo uso de material na Internet, celulares, Tivo, animações, etc., além da porcentagem na monstruosa venda de DVDs, que pela primeira vez na história estava dando mais lucro do que a própria receita das bilheterias.

Enquanto o WGA discutia ferozmente suas reivindicações com a AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers), os estúdios, desarvorados e pegos totalmente de surpresa, faziam aquilo que podiam: houve produtores que foram atrás de roteiristas não-sindicalizados, outros contrataram roteiristas canadenses ou ingleses; algumas séries não foram prejudicadas, ou porque eram filmadas fora ou porque, por uma ou outra razão, já estavam finalizadas, e o número de Reality Shows — programas que efetivamente não têm roteiro — triplicou. Mas a grande maioria foi afetada e orçam pelas dezenas as séries cômicas ou dramáticas, de 20 ou 45 minutos, que simplesmente foram obrigadas a encerrar suas temporadas no 9º, 10º, 13º episódio, ou até menos. Pushing Daisies estava de mãos atadas: era série autoral, seus roteiristas eram sindicalizados e não havia como burlar a greve. A única coisa que Bryan Fuller pôde fazer foi reescrever o 9º episódio, adiantando um cliffhanger originalmente escrito para o fim do episódio 22, o último da primeira temporada, em que Ned confessa à Chuck que é responsável pela morte de seu pai.


O golpe foi mortal. O que a greve dos roteiristas fez foi interromper no início de dezembro uma temporada que só terminaria em março de 2008. E com isso mutilou completamente uma história que não era exatamente complexa, mas que envolvia mistérios, revelações, novos personagens e reviravoltas que precisavam desesperadamente de tempo para se desenvolver. No mais, espera-se em geral sete meses entre uma temporada e outra; a greve elevaria esse prazo para quase onze meses, tempo suficiente para esfriar a empolgação do volúvel e raso público de TV norte-americano. Fiando-se na boa audiência dos nove episódios, contudo, a ABC encomendou mais treze para a temporada de 2008/2009. A greve chegou a bom termo em 12 de fevereiro, depois de uma funesta paralisação de 100 dias, e o anúncio das premiações televisivas veio como uma bem necessária injeção de confiança a Pushing Daisies. O seriado foi indicado a doze Emmys (ganhou três: Barry Sonnenfeld por direção de série cômica, Melhor Trilha Sonora para Jim Dooley e Melhor Edição para Stuart Bass) e três Globos de Ouro (não ganhou nenhum mas Anna foi indicada para Melhor Atriz em série cômica), além de Sonnenfeld ter recebido o prêmio de Melhor Diretor do Director’s Guild of America. Tudo consolação pelo que já na época (cerca de três meses antes do início da segunda temporada) parecia ser o prenúncio do inevitável.

Jim Dooley
A temporada de 2008 começou com cheiro de cancelamento. Tempo demais havia passado, a trama fôra criminosamente apressada e os índices de audiência foram decepcionantes desde o início. Lembro-me da frustração de assistir os primeiros episódios sabendo que aquele monte de tramas, só concebível em séries programadas para ter longa duração, não seria jamais apreciado (ou mesmo digerido) pelo público norte-americano. A estadia comprida e amorfa de Olive no convento, a revelação de Lily, a insegurança de Chuck, os irmãos mágicos de Ned, a ressurreição de Charles Charles, a filha de Emerson e a única coisa que realmente me incomodou a introdução de David Arquette, ridículo e sem qualquer talento, no papel do novo interesse amoroso de Olive, substituindo o excelente Raul Espárza (“Alfredo Andarísio”, da primeira temporada), que sumiu sem qualquer explicação. No dia seguinte à transmissão do 6º episódio, 20 de novembro de 2008, Bryan Fuller anunciou que Pushing Daisies havia sido oficialmente cancelada. E o que se seguiu foi um carnaval de idas, voltas, adiamentos e cancelamentos.


Em 17 de dezembro foi ao ar o 10º episódio, dos treze que estavam feitos. Por razões que a própria razão desconhece, a ABC resolveu segurar a transmissão dos três últimos episódios gravados. Primeiro se falou em transmissão exclusiva na Internet, depois aventou-se a possibilidade dos três programas serem disponibilizados apenas na caixa de DVDs da segunda temporada, houve quem falasse num possível arrependimento da ABC e somente em março de 2009, quando os programas já haviam sido transmitidos em países como Turquia e Alemanha, a ABC finalmente os colocou no ar, com grande audiência. Foi um anti-clímax horroroso porque na época em que foram gravados, um ano antes, a esperança era de que a série seguisse em frente e somente cinco ou dez minutos finais do 13º episódio foram refeitos, comunicando, de forma canhestra, que a série terminava ali. Ainda pior foi a sobrevida que se planejou para Pushing Daisies, primeiro com a idéia de um filme (descartada imediatamente, considerando que um longa equivaleria no máximo a dois episódios, custaria bem mais e não explicaria a série), depois um gibi (absurdo completo, já que a melhor coisa de Pushing Daisies era seu elenco e a junção música/imagem), uma animação com música de Jim Dooley e, mais recentemente, uma minissérie.

A vingança final parece ter vindo na celebração do Emmy, em 2009; cancelada, ceifada e aniquilada mesmo sendo um dos maiores sucessos de crítica dos últimos anos, a 2ª temporada de Pushing Daisies foi indicada a mais cinco Emmys. Ganhou quatro: Kristin Chenoweth como Melhor Atriz coadjuvante em série cômica, Robert Blackman e Carol Kunz por Melhor Figurino, Michael Wylie, Ken Creber e Halina Siwolop por Melhor Direção de Arte e Todd A. McIntosh, David Martin DeLeon e Steven Anderson por Melhor Maquiagem. Anna pode não ter ganho nada, mas foi para sua casa com uma indicação ao Globo de Ouro, convites para quatro filmes, uma peça de teatro, protagonizar um episódio da prestigiada série da TV inglesa The Street e nada menos do que seis convites para pilotos de novas séries, sendo que três chegaram a ser divulgados: uma série chamada I, Claudia, “sobre uma advogada convencida de que está destinada a tornar-se a próxima presidente americana e faz tudo para que isso aconteça. Há também Eastwick, baseada no clássico filme de 1987 estrelado por Cher, Susan Sarandon, Michelle Pfeiffer e Jack Nicholson. Seguirá a vida de três mulheres da cidade de Eastwick que ganham novos poderes depois que um enigmático estranho chega à cidade. A terceira oferta na mesa, para Anna, é House Rules, sobre novos políticos abrindo seus caminhos até Washington”. A atriz aceitou fazer os filmes (dos quais o único que acabou engavetado, por alguma razão, foi Angel Makers), a peça, The Street e declinou todos os convites para novas séries, o que se mostrou uma sábia decisão, pois de dois dos seriados nunca mais se ouviu falar, e Eastwick, não passou da metade da primeira temporada.

Pushing Daisies foi mais do que “um conto de fadas policial”, ou “forense”, como o intitulou o release da ABC (“a forensic fairy tale”). Aliás, em termos de oxímoros, os seriados de Bryan Fuller são geralmente chamados de dramedy, como também poderiam ser denominadas “feel-good dramas”, porque era impossível não comover-se, não emocionar-se pelo menos duas vezes em cada episódio. Só a trilha sonora magistral de Jim Dooley era suficiente para amolecer os espíritos mais insensíveis. Lee Pace, com seus quase dois metros, suas sobrancelhas grossas e sua expressão de eterno desamparo fizeram dele um Ned perfeito. Sua tristeza é a tristeza de todos os tímidos do mundo e sua luta para conquistar Chuck é o triunfo do fraco e introvertido contra os fortes e barulhentos. Anna trouxe à Chuck o carisma necessário, o constante bom humor e a vivacidade de espírito que encantam o confeiteiro, são contra-ponto de sua tristeza e esteio emocional da relação dos dois. Amamos vê-la em seu traje de apicultora, deitada no sofá lendo livros, abrindo a geladeira e vendo 20 ou 30 tipos diferentes de queijos e aprendendo a falar idiomas exóticos fluentemente.

A Olive de Kristin Chenoweth é o alívio cômico; loira, com o sorriso de mil dentes, os olhos azuis e o porte minúsculo, ela ficou com as risadas e os interlúdios musicais de Pushing Daisies, mas sempre com o pé no patético, no pungente, no riso que encobre o choro do amor não correspondido. Chi McBride é outro que esconde a vulnerabilidade com imagem oposta. No caso, é o detetive durão que carrega a tristeza de nunca ter visto a filha e torna-se ganancioso, não conseguindo jamais, porém, deixar de ser fundamentalmente justo e bonachão. Swoosie Kurtz é uma Lily amarga e frustrada, e Ellen Greene é uma Vivian frágil e bondosa; os dois papéis cresceriam bastante com o tempo e teriam proporcionado notáveis displays de talento por parte de ambas. E por fim, dentro do elenco principal, é impossível não citar o maravilhoso garoto Field Cate, que interpreta o jovem Ned; suas cenas em flashblack são como um prefácio de cada episódio, no qual ele não diz uma única palavra, mas a tristeza de seus olhos é eloqüente em seu silêncio e comovente em seu abandono.

Pushing Daisies até parecia, por vezes, resvalar no piegas, mas na verdade o que fazia era o melhor da arte, era transformar situações simples em momentos profundamente tocantes e significativos. Como não se emocionar quando Ned abre o caixão de Chuck, prestes a ser enterrado, e ao invés de vê-la desmaiada ou desesperada, ela está sorrindo, como se nada tivesse acontecido? A imagem do jovem Ned no internato, dormindo embalado a uma torta, que não come mas deixa lá porque o aroma lhe traz a lembrança da mãe, Olive cantando Hopelessly Devoted to You e dançando de costas para o faxineiro, que passa a enceradeira e dança no mesmo ritmo, só que com seu mp3 ligado em outra música, Chuck segurando a mão de outro homem de olhos fechados e pensando em Ned, ao som da música de Jim Dooley e etc. Foi brilhante utilizar o Halloween como data na qual Ned expia sua tristeza (de descobrir que o pai constituíra nova família com outra mulher) ajudando Chuck a rever suas tias. A idéia de Chuck com um lençol na cabeça, fantasiada de um fantasminha que não assusta ninguém, batendo na porta das tias e dizendo, com sua voz de adulta, ligeiramente embargada, o trick or treat tradicional, provocando alegria em Vivian e a raríssima comoção de Lily, que há anos não sabiam mais o que era ter crianças pedindo doces no Dia das Bruxas, é um toque de gênio.


Anna e Lee em cena de "Dummy"
Mesmo as tramas mais intrincadas (e que podem ter sido um dos fatores de desestímulo para o telespectador dos Estados Unidos) guardavam momentos que tocavam a perfeição; no 2º episódio (Dummy), por exemplo, sobre o complicadíssimo caso do sujeito que utilizava bonecos para testes de acidentes automobilísticos em seus crimes, houve uma das mais lindas cenas de romance que já tive oportunidade de ver. No fim do episódio, de mãos amarradas, cada um dentro de um saco plástico, presos dentro de um automóvel, Ned e Chuck se olham com aterradora expressão de tristeza. O narrador (Jim Dale) transmite o pensamento de ambos: “And though he couldn’t hear her, Ned suddenly wanted to tell her everything: pet peeves and favorite foods, his fears, his dreams and all the pure joy she had brought into his life”. Mais do que triste, Chuck está decepcionada. Só consegue dizer “son a bitch!” e o narrador observa: “Chuck pondered why it was she always seemed to die just as things started to get good”. Com um olhar da mais apavorante desesperança, de raiva e revolta por seu destino, Chuck murmura apenas “good-bye” e, não tendo mais nada a perder, separados pelo plástico, os dois se beijam como não tinham podido fazer até o momento e como não fariam nunca mais se morressem ali.


Já no 4º episódio (Pidgeon), quem conseguiu arrancar emoção de um momento trivial foi Olive, quando se encontrava no moinho com as tias de Chuck e só aguardava a chegada dela para desmascará-la. Quando Chuck chega, entretanto, segundo conta o narrador, Olive percebe que se afeiçoara às duas ex-nadadoras e que sua vontade de se vingar tinha evaporado: “This was the moment Olive Snook had been waiting for: she need only to open the door to expose Chuck’s deceit to the aunts and The Pie Maker could be hers. It was everything Olive wanted. And yet … [stops and looks at the aunts; her eyes close as all her animosity washes away] she knew that the aunts would be traumatized by the discovery that the late Charlotte Charles was late no more. In that moment, Olive felt that angry fire extinguished in her heart by a light breeze. She had grown fond of Lily and Vivian and could not bring herself to hurt them”. É uma cena linda, como tantas e tantas naqueles nove preciosos episódios iniciais.

Não que a segunda temporada tenha carecido de cenas comoventes; houve algumas — Chuck despejando abelhas mortas sobre Ned e assistindo, maravilhada, aquele enxame de abelhas ressurrectas, ou Chuck jogando um plástico enorme sobre Ned e abraçando-o com toda força, não segurando a emoção e a gratidão de ter Charles Charles novamente vivo, e sobretudo o magnífico ardil de Olive, que utilizando uma escuta, pede a Lily que relembre o dia do nascimento de Chuck como se pudesse contá-lo a ela mesma; Lily reluta mas entra na brincadeira e fala com emoção, diretamente à Chuck, que ouve tudo aos prantos, dentro de um carro, em frente à casa — mas o fantasma do cancelamento já rondava a série e as tramas se amontoaram e se atropelaram, e as cenas individualmente memoráveis foram em menor número.

É triste e melancólico falar hoje sobre Pushing Daisies. Porque era um seriado maravilhoso, um trabalho extraordinariamente bem-feito, que projetou Anna para o mundo e merecia ter recebido melhor acolhida do público, nos Estados Unidos, e contar sua doce e comovente história por alguns anos e talvez algumas centenas de episódios. Com 22, já tem seu lugar na história da televisão.


Land of the Lost (2009)

Passado o furor da ascensão e queda de Pushing Daisies, só restou a Anna o prestígio adquirido com a série, exemplo de trabalho bem cotado e qualificado, que o público americano – afogado em CSIs, hospitais e putarias adolescentes – compreensivelmente não absorveu. No primeiro semestre de 2009 se falou muito das ofertas que Anna teria recebido nos Estados Unidos. Especulações à parte, ela se concentrou em filmes e no teatro.

O primeiro resultado concreto, mesmo, foi o convite recebido por ela para estrelar, junto aos atores Will Ferrel e Danny Macbride, um remake da série televisiva do início dos anos 70, chamado Land of the Lost. A série teve o nome de "O Elo Perdido" no Brasil e eu sinceramente não tenho maior recordação. A história era de um guarda florestal que atravessa sem querer um vetor dimensional com seus dois filhos e vão parar em uma terra estranha, que mistura futurismo com pré-história.

Danny Macbride, Will Ferrel e Anna
O filme de 2009 é dirigido por Brad Silberling, diretor de TV que não tem nada em seu currículo a não ser a versão cinematográfica do gasparzinho ( Casper, em 1995), e City of Angels, melodrama intolerável feito para as meninas suspirarem enquanto Nicholas Cage ajeita seu aplique e faz cara de cachorro pidão para uma canastroníssima Meg Ryan.

O diretor mudou completamente a história do seriado de 1974 e ao invés de um guarda florestal com dois filhos, Rick Marshall (Ferrel) virou um cientista frustrado e ridicularizado que encontra uma assistente que o admira (Anna) e o incentiva a retomar sua pesquisa. No local onde a pesquisa deve ser retomada, os dois encontram um picareta (Macbride) e os três acabam sugados para a tal terra estranha que mistura futurismo com pré-história.

O filme é veículo para o humor Saturday Night Live de Ferrel, e Danny Macbride é meramente um assessório. A Holly Cantrell de Anna é encantadora e adorável, como já era de se esperar.


Não se deve pensar, pela frieza do comentário, que o filme é um horror. Não é nenhuma obra-prima do humor e da ficção científica, evidentemente, mas como entretenimento leve e despretensioso, agrada o suficiente. O problema é que ninguém tem mais saco para ver Anna em trabalhos que não desafiam seu talento, especialmente contracenando com o cromaqui. Em entrevista promocional comentou-se que ela passou “grande parte da filmagem em frente a uma tela verde tentando parecer apavorada pela visão de uma bola de tênis na ponta de uma vara, substituindo um dinossauro que mais tarde foi acrescentado pelas maravilhas da tecnologia moderna”. “No começo é difícil fazer essas cenas com CGI”, disse ela, na mesma entrevista. “Você tem apenas que fazer de conta e imaginar que aquelas criaturas estão lá. É como ser criança novamente”.

O filme estreou em junho de 2009 nos Estados Unidos e em julho na Inglaterra. Recebeu críticas fracas e não foi o sucesso que se esperava, considerando que Ferrel é até bem famoso nos Estados Unidos. Talvez o timing do lançamento, a promoção (ou sei lá que razões) tenham falhado e o filme foi engolido em pouco tempo. Mas enfim, para a pobre e extraordinária Anna, que já amargou filmes tão piores, é uma experiência até prazerosa. Não obstante, ela defende o filme: “Eu acho que é um excelente filme para as férias. Se você quiser sentar, se desligar e se divertir muito, é perfeito”.

The Street (2009)


A série semanal The Street foi criada em 2006 pelo inglês Jimmy McGovern, que começou sua carreira de roteirista televisivo justamente na novela Brookside, que no início da década de 90 lançaria Anna como atriz. Ele tornou-se famoso em meados da mesma década com a série Cracker, na ITV, sobre um psicólogo criminal interpretado por Robbie Coltrane (o Hagrid dos filmes de Harrt Potter), e teve novo sucesso de crítica e público com The Street. A série tinha episódios de uma hora que contavam histórias dos moradores de uma mesma rua em Manchester. Em geral, as historietas não tinham ligações entre si, exceto pelo fato dos protagonistas serem vizinhos; as tramas se resolviam no mesmo episódio, podendo ou não ter desdobramentos. Também acontecia costumeiramente do protagonista do episódio de uma semana fazer uma rápida participação no episódio seguinte. Embora fosse produto televisivo da melhor qualidade, que contava com um elenco brilhante e recebeu dezenas de prêmios, inclusive o Bafta e o Emmy Internacional, a série foi cancelada devido a seu alto custo no fim da terceira temporada, com o qual a ITV não podia mais arcar. Teve 18 episódios.

Anna com os filhos Jack e Luke
(spoilers) Anna protagonizou o primeiro episódio da terceira temporada, escrito por Jan McVerry e dirigido por Terry Macdonough, e que conta a história de Dee Purnell, mulher abandonada pelo marido com dois filhos pequenos, Jack e Luke (Jordan Hill e Sam Lenthall), e que, não vendo outra opção para poder pagar suas múltiplas dívidas começa a se prostituir nos fins de semana em um bordelico das redondezas. Enfrentando problemas no aquecedor e no encanamento de sua casa, ela contrata o encanador Mark (Daniel Mays), com quem inicia um namoro, sem no entanto revelar-lhe sua ocupação ocasional.

Anna e David Bradley

O namoro progride, Mark, também solteiro, lhe apresenta sua filha, Megan (Chelsea Cowper), eles se dão muito bem e tudo corre às mil maravilhas até que Mark resolve apresentar Dee a seus pais. Por triste ironia do destino, o pai de Mark, Joe (David Bradley, o casmurro Argus Filch dos filmes de Harry Potter, que já trabalhara com Anna mais de dez anos antes na minissérie da BBC, Our Mutual Friend), fôra cliente de Dee, que no prostíbulo atendia pelo nome de “Ruby”. O velho exige que ela termine a relação com o filho, o que ela faz na mesma noite, sem dizer a ele o porquê. Não resiste, entretanto, às súplicas insistentes de Mark e volta com ele dias depois, o que irrita Joe. O velho e Dee se ameaçam mutuamente, ela de contar tudo à Nessa (Bárbara Marten), esposa de Joe, e ele de contar à direção do St. Peter – prestigioso semi-internato onde ela deseja matricular seus filhos – que ela é uma prostituta.


Daniel Mays

É um estupendo trabalho de Anna. Pushing Daisies era um seriado belíssimo mas não lhe dava rios de oportunidades para variar sua interpretação. Com The Street ela foi da fantasia doce e comovente de Chuck à realidade crua e cruel de uma mãe solteira e endividada num subúrbio miserável de Londres. Não bastasse isso, ela ainda tem que se preocupar com o fato de seu filho Jack ser vítima de bullying na escolinha onde estuda, razão pela qual ela faz das tripas coração para que eles sejam bons alunos e consigam o ingresso na aristocrática St. Peter. É um dos melhores papéis de Anna até hoje, e certamente o mais dramático, porque foge dos problemas existenciais de Me Without You, não se passa na antigüidade e não tem elementos sobrenaturais, como Báthory, e a personagem de Anna não é uma drogada histérica como a Denise de Niagara Motel (cuja pobreza do roteiro, aliás, sequer se compara ao excelente texto de The Street).

Expressão pétrea na confissão
A cena em que Dee revela a Mark que é uma prostituta, com a expressão pétrea, dura, ebulindo e se corroendo por dentro, e deixando transparecer apenas os olhos injetados, brilhosos pelas lágrimas, é primorosa. Também é um espetáculo de talento a cena seguinte, em que o rapaz vai confrontá-la no bordel e termina esfregando-lhe na cara uma nota de 20 libras, o acintoso pagamento pelo que eles passaram juntos, que lhe retira o excesso de maquiagem e a fere mais do que qualquer violência física. O texto é enxuto, não há maniqueísmos, exageros, e pelo rosto lindíssimo e borrado de Ruby passam todas as emoções de uma mulher humilhada ao extremo, até que ela volta, como mecanismo de defesa, à mesma expressão de pedra. Triste, patético, pungente. Realmente uma beleza.



A conclusão do episódio poderia tropeçar em todas as armadilhas de pieguice e do politicamente correto. Faz exatamente o contrário. Cansada de ver seu filho apanhar na escola, Dee vai à casa do menino agressor e se engalfinha, a socos, com a mãe dele. No dia de sua entrevista no St. Peter, ela vai com hematomas horrorosos no rosto. Com um filho a cada lado, explica porque está machucada, não mente, e se submete ao julgamento da severíssima banca de admissão. A coordenadora da banca fica horrorizada com a história de bullying contada por Dee, mas longe de se comover e aceitar os garotos pela coragem daquela mãe só e desamparada, afirma que a escola tem um padrão a zelar e não permite alunos que venham envoltos nesse tipo de imbróglio. Dee chora convulsivamente, implorando para que eles não rejeitem a matrícula dos filhos, a coordenadora se mostra impassível, e então percebemos que um dos membros da banca, que se mantivera de cabeça baixa até aquele momento, era o vigário da escola — Iain Mackee — e, desta vez por feliz (e algo bizarra) coincidência, cliente constante da linda e desejável Ruby. Pouco depois, em um amplo salão onde Dee aguarda, triste e desesperada, o veto à matrícula dos filhos, o vigário aparece, constrangido, e diz que se Jesus voltasse à Terra, seria encontrado “entre pecadores como eu”. Ato contínuo, avisa que a matrícula dos garotos foi aprovada. O momento é de suprema alegria para a mãe e os filhos, e o episódio termina com o reencontro e reconciliação de Dee e Mark. Perguntada por ele como conseguiu o ingresso dos garotos em escola tão prestigiosa, há espaço para uma piada particular entre ela e o espectador: “Eu transei com o vigário”. Mark ri, achando que ela está fazendo simples gracejo com a profissão que abandonou logo após a briga dos dois.

Segundo Anna, “graças a Deus eu nunca estive em uma posição como a de Dee. Mas o programa mostra o que uma mãe está preparada a fazer para cuidar de seus filhos e eu me identifico muito com isso. Gracie é a coisa que mais amo no mundo. Tê-la me mudou fundamentalmente como pessoa e como atriz. Realmente coloca o resto da sua vida em perspectiva”.

Na época em que assisti esses episódios de The Street, dias depois de serem transmitidos pela TV inglesa, comentei que minha única restrição a esse trabalho, brilhante sob todos os aspectos, é que não era nem remotamente possível que as putas da periferia de Londres fossem tão lindas. Curioso que como mãe e dona de casa suburbana Anna convence muito bem, mas a tonelada de maquiagem despejada sobre Ruby parece apenas ressaltar sua beleza, ao invés de vulgarizá-la e escondê-la. É uma pena que não seja o cinema o veículo onde a atriz tem chance de mostrar todo esse talento. The Street foi ao ar no dia 20 de julho de 2009 e na semana seguinte, conforme a dinâmica do seriado, ela fez uma aparição relâmpago, no mesmo papel, como vizinha de um soldado que voltou desfigurado do Iraque. Por esse trabalho ela ganhou o prêmio da Royal Television Society, mas infelizmente foi esnobada pelo Emmy internacional e pelo Bafta. Perguntada sobre todos seus projetos cinematográficos feitos em 2009 e lançados em 2010, Anna não deixou a entrevistadora sequer concluir a pergunta; declarou imediatamente: “O único do qual me orgulho é The Street.

Concluído esse projeto, ela ficou livre para embarcar em sua terceira aventura teatral, depois de tantos anos longe dos palcos. O autor escolhido era Truman Capote e a peça, uma adaptação do livro Breakfast at Tiffany’s, o mesmo já celebrizado no celulóide por ninguém menos do que Audrey Hepburn.

Breakfast at Tiffany’s (2009) - CLIQUE AQUI.


You will meet a tall dark stranger (2010)

No camarim de Breakfast at Tiffany’s, uma repórter que entrevistava Anna divisou, no meio dos pertences da atriz, um papelório em cuja capa se lia “WASP”, Woody Allen Summer Project. Era o roteiro de You will meet a tall dark stranger, filme realizado pelo grande autor em 2010, entre Whatever Works, de 2009, e Midnight in Paris, de 2011. Gostaria de saber em que momento Woody descobriu a existência de Anna, ou qual o trabalho, exatamente, que lhe chamou a atenção. Segundo Anna, “Ele me fez um dos maiores elogios que já recebi em toda a minha vida. Eu não podia acreditar”. Tentarei descobrir qual foi, porque ela não revela. “Pensei que devo estar fazendo alguma coisa certa, se alguém como ele está dizendo aquilo”. Allen convidou a atriz para fazer parte do ensemble cast de um de seus magníficos filmes. Sim, porque You will meet a tall dark stranger é um daqueles filmes de Woody em que não há um único protagonista, ou um casal de atores principais (ou até um ménage se considerarmos Vicky, Christina, Barcelona) mas quatro ou cinco, e cada trama tem seus personagens principais e coadjuvantes. Neste caso podemos estabelecer que os protagonistas são quatro, Gemma Jones, Anthony Hopkins, Naomi Watts e Josh Brolin, e que as tramas são duas, a primeira envolvendo o casal formado por Hopkins e Gemma – tendo como coadjuvantes Pauline Collins, Lucy Punch, Roger Ashton-Griffiths e Theo James – e o segundo casal formado pela filha deles, Watts e seu marido Josh Brolin – coadjuvados por Antonio Banderas, Freida Pinto, Ewen Bremmen e Anna.

Woody Allen
Tudo aquilo que se disser a respeito dos filmes escritos e dirigidos por Woody Allen será redundante. Até mesmo a frase anterior é redundante. Na verdade, os rifões sobre a obra desse notável autor são de que ele é uma usina de histórias inteligentes, que ele cria, concatena e conta como ninguém, que atingiu o pináculo do requinte na observação do humor e do drama cotidianos, seus elencos são geralmente impecáveis, seus diálogos são os mais perfeitos do cinema moderno e que não há quem consiga transformar em personagens da telona os personagens da vida real com a sua maestria. Tudo verdade. E considerando que seus filmes saem basicamente da mesma fôrma, é impossível fugir dessas conclusões cada vez que analisamos um de seus trabalhos. Mesmo assim, não me furto ao deleite de fazer um pequeno comentário sobre You will meet a tall dark stranger. A história se passa na Inglaterra, e não há propriamente um mote; o narrador do filme principia parafraseando o famoso solilóquio de Macbeth quando a rainha morre, sobre a vida ser “um conto cheio de som e fúria, e que no fim não significa nada” (Life’s but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more: it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing – Ato V, cena VI), e em seguida já somos introduzidos à trama de Helena (Gemma Jones). Vejamos:

Em sentido horário, Anthony Hopkins, Gemma Jones, Antonio Banderas
e Naomi Watts

Ela é casada com Alfie (Hopkins), que “se recusa a envelhecer” e se divorcia dela depois de 40 anos de casamento para viver intensamente o resto de seus dias. Enquanto Helena tenta o suicídio, faz análise e toma anti-depressivos, Alfie vira um rato de academia e começa a namorar uma jovem prostituta, Charmaine (Lucy Punch), que atende a domicílio. Só quem consegue tirar a velha de sua depressão é Cristal (Pauline Collins), uma vigarista que finge prever o futuro e ganha a vida passando a perna nos ingênuos e ignorantes que acreditam nas bobagens que ela diz. No caso de Helena, a falsa adivinha só precisa dizer o que ela quer ouvir, além de servir-lhe doses generosas de whisky. A filha de Alfie e Helena, Sally (Naomi Watts), trabalha em uma galeria de arte cujo dono é Greg (Antonio Banderas) e é casada com Roy (Josh Brolin), que abandonou a medicina para tentar ser escritor, foi elogiado por seu primeiro livro, anos antes, mas desde então não conseguia emplacar outro sucesso. Há dois escrevendo e reescrevendo o mesmo livro, ele fica fascinado com a morena do prédio em frente ao seu, Dia (Freida Pinto) que ele vê de sua janela enquanto ela toca lindamente o Grave Assai, de Luigi Boccherini, ao violão.

Em sentido horário: Freida Pinto, Josh Brolin, Pauline Collins e Anna

(spoilers) Helena confia em todas as idiotices que lhe são ditas por Cristal, passa a viver sua vida segundo elas e atinge a paz de espírito, sobretudo quando a vigarista lhe afirma que ela conhecerá um novo homem. Alfie fica maravilhado na redescoberta do sexo, com a prostituta, e decide se casar com ela na esperança de ter um filho, que substituirá o garoto que teve com Helena, e que morreu jovem. Sally também quer um filho e constituir família, mas não pode porque o marido é um loser, sem dinheiro para sustentá-la, não termina seu livro e pula de bico em bico, um mais subalterno do que o outro. Decepcionada com o casamento, ela se apaixona por Greg, que também é infeliz com sua esposa. Roy, por sua vez, ressente a falta de solidariedade da esposa e começa uma amizade com Dia, que está noiva de um sujeito qualquer mas não impede o flerte descarado que existe entre ela e Roy. A história está criada e concatenada, e os personagens estão devidamente delineados. É onde começa a magia de Allen. Alfie gasta rios de dinheiro para agradar a burra e fútil Charmaine, e descobre aos poucos que a vida em comum de ambos é ridícula e absurda. Helena conhece Jonathan (Roger Ashton-Griffiths), dono de uma livraria de ocultismo que enviuvou recentemente, e os dois se tornam amigos. Sally, que tem entre suas atribuições profissionais apresentar novos artistas a Greg, o leva para conhecer sua amiga pintora, Íris (Anna). A paixão de Sally por Greg aumenta a cada dia mas ela não toma nenhuma iniciativa. Roy lê os originais de um romance escrito por seu amigo Henry (Ewen Bremmen) e fica impressionadíssimo com a qualidade do trabalho. Sua confiança, já combalida por essa leitura, é destruída quando ele submete, finalmente, os originais de seu novo livro à editora e recebe uma resposta negativa.

Banderas e Watts, e abaixo
Hopkins e Lucy Punch

Em seguida vêm os conflitos, as coincidências e a colisão de destinos que Allen domina como o gênio que é. Arruinado financeiramente, Alfie pede a Helena que o receba de volta mas ela, inteiramente subjugada às mentiras de Cristal, se recusa. Jonathan joga água fria nos planos casamenteiros de Helena porque não consegue entrar em nova relação amorosa se não tiver a autorização de sua finada esposa. Em uma sessão espírita em que supostamente invocam o espírito da falecida, Jonathan se amedronta e não pede a ela a autorização. Sally cria coragem para se declarar ao patrão, mas quando vai fazê-lo, descobre, em conversa com Íris, que a amiga começou um affair com Greg logo depois de Sally tê-los apresentado. Ela então decide abrir uma galeria própria com outra amiga e pede um empréstimo à sua mãe, que apóia na hora o projeto. Ao mesmo tempo, Roy e Sally se separam e ele tem a notícia de que houve um terrível acidente automobilístico no qual Henry morreu e um outro amigo dele ficou em coma. No auge do desespero e da falta de qualquer perspectiva profissional ou literária – e aproveitando o fato de que Henry era um homem só, sem família, e reservado sobre suas veleidades de romancista – ele apresenta os originais do amigo à sua editora como tendo sido escritos por ele. A editora aceita o livro imediatamente, cobrindo Roy de elogios, e ele se muda para o apartamento de Dia, que rompe seu noivado, causando toda sorte de problemas à sua família e à do seu ex-noivo, e inicia uma relação com Roy.

Em sentido horário: Ewen Bremmen,
Roger Ashton-Griffiths, Lucy Punch e Theo James

O desfecho é fantástico. Alfie descobre que Charmaine está tendo um caso com Ray (Theo James), colega dos dois na academia. Confronta o rapaz e leva uma surra. Todo machucado, ainda recebe de Charmaine a notícia de que ela está grávida. A cena é espetacular. Ele pergunta se o filho é dele, ela diz que sim, mas correndo o risco de ser desmentida por um teste de DNA ela indaga: “Quem vai ficar sabendo?”, ao que Alfie responde: “Eu saberei, se for um garoto”, emendando depois de pequena pausa, aniquilado, “se eu decidir fazer um teste de DNA nele”. Sally, seguindo o conselho de sua mãe – que se limitara a repetir o que ouvira de Cristal – se declara a Greg antes de deixar sua galeria. A resposta dele é uma negativa de constrangimento e polidez. Resta-lhe pedir o dinheiro da nova galeria para sua mãe mas Helena agora se recusa a emprestar, porque, segundo ela, Cristal lhe disse que “o alinhamento dos planetas não recomenda transações financeiras no futuro próximo”. Roy, experimentando novamente o sucesso literário e prestes a se casar com Dia, reúne-se com os amigos e – outra cena absolutamente sensacional – comenta a triste fatalidade do acidente que matou Henry. Um dos amigos então o corrige, dizendo que quem morreu foi o outro, e que era Henry quem estava em coma, aliás, melhorando a cada dia. Roy se dá conta que o amigo que lhe comunicou a notícia do acidente estava confuso e chocado ao telefone, e se enganou com os nomes. Roy, portanto, estava gozando de uma fama à qual não só não tinha qualquer direito, como ainda pertencia a um homem que estava vivo e que poderia sair do coma a qualquer hora. O filme termina com Jonathan informando Helena que sua falecida esposa lhe dera o consentimento para que eles se casassem.

Embora sendo fundamentalmente uma história de casais (como praticamente todos os filmes de Allen), You will meet a tall dark stranger seria talvez, primordialmente, sobre o que em inglês se chama “deception”, ou seja, enganação, tapeação. Em uma das cenas iniciais, Roy critica Sally por incentivar os encontros de Helena e Cristal, e afirma que o que a velha precisa é de remédios e não de ilusões, ao que Sally replica: “Não se as ilusões funcionam melhor do que os remédios”. No fim essa frase é repetida pelo narrador, como sendo a moral da história. Só que neste contexto, não há diferença entre “ilusão” e “mentira”, enganação, “deception”. É a pedra angular na relação de Cristal com Helena; nas atitudes do velho Alfie, que se engana imaginando estar vivendo sua segunda juventude e ao mesmo tempo é enganado pela jovem e desfrutável Charmaine; no desespero de Roy, ao apresentar o livro de outra pessoa como sendo dele, e de Dia ao trair seu noivo com escritor; no silêncio de Greg, não por esconder de Sally seu namoro com Íris, mas por escondê-lo de sua própria esposa; na credulidade de Jonathan, que imagina ter realmente recebido do além uma autorização para se casar, e, por fim, nas maluquices de Helena, que transforma sua vida toda em uma enganação, com a diferença de que está tão desequilibrada que acredita piamente em tudo aquilo.

Antonio Banderas, Naomi Watts e Anna
Pauline Collins é a divertida charlatã Coral
A única inocente é Sally, que não mente, não trai, procura seguir seus instintos de forma honesta e cuidadosa, e acaba sendo vítima do declínio mental de sua mãe e de uma vigarista a quem inicialmente deu corda.

Nas palavras do próprio cineasta, ele estava “interessado no conceito de fé em alguma coisa. Parece tão sombrio quando eu o digo, mas precisamos de algumas ilusões para seguir em frente. E as pessoas que conseguem se iludir parecem mais felizes do que as que não conseguem. Conheço pessoas que colocaram sua fé em religião e em adivinhos. Então me ocorreu que esse seria um bom personagem para um filme: uma mulher para quem tudo falhou, e de repente, acontece que uma mulher prevendo seu futuro a ajudou. O problema é que, eventualmente, ela terá um duro despertar”.

Freida Pinto
É mais um dos grandes filmes de Woody Allen – na minha opinião, o melhor, junto a Vicky, Christina, Barcelona, em muitos anos – e, como já foi observado no início, quaisquer elogios serão redundantes. O elenco é de cobras criadas e está bem afinado e entrosado. Ressalto a ressurreição de Pauline Collins, atriz de teatro que teve 15 minutos de fama no cinema há mais de 20 anos, quando foi indicada ao Oscar pela versão cinematográfica da peça Shirley Valentine, e que está muito bem como Cristal. Anthony Hopkins geralmente dispensa comentários, mas nunca é demais dizer que está excelente. Quem me surpreendeu foi Gemma Jones, que dá um banho de interpretação e provoca no espectador uma gama de emoções que vai da comiseração ao ódio. Antonio Banderas esbanja charme e está em seu elemento, envergando os modelitos de Giorgio Armani desenhados especialmente para ele.

Freida Pinto é tão maravilhosa que não precisaria nem ser boa atriz. Ilumina a telona com a força de mil holofotes com um simples close em seu rosto perfeito. Anna tem apenas duas cenas, sendo a segunda a mais importante, porque revela – inteiramente ignorante da paixão de sua amiga pelo patrão – que está tendo um caso com Greg. Ela imprime a seu monólogo toda a vulnerabilidade, toda a fragilidade da mulher apaixonada. Quando fala dos brincos que ganhou de Greg ela parece uma adolescente envergonhada falando do namorado e chega a enrubescer. Um ótimo trabalho. Também ótimas são as reações de Naomi Watts, tanto no choque de saber que sua amiga está namorando Greg, quanto em sua desastrada declaração a Greg, e na terrível humilhação de ser rejeitada. Sobre trabalhar com Allen, Anna declarou que “a direção dele foi fenomenalmente específica e brilhante, e ele foi muito gentil e caloroso. Fiquei impressionadíssima com isso. Ele é maravilhoso para se trabalhar”.


Watts e Anna
No aspecto menos positivo (porque não chega a ser negativo), Lucy Punch é uma boa Charmaine, mas eu pessoalmente gostaria que o papel tivesse ido para uma atriz mais exuberante, mais gostosa. Punch é magra, não tem formas voluptuosas e atraentes; está maquiada e caracterizada como uma puta de esquina, e não uma escorte de nível médio, mais apropriada para um velho rico mas inexperiente com prostitutas, como Alfie. Em todo caso é uma boa atriz. Só recentemente soube que Nicole Kidman já estava escalada para o papel quando teve que abandonar o projeto por conta de seu papel anteriormente agendado em Rabbit Hole. É uma pena. Quanto a Josh Brolin, compreende-se que Allen o tenha colocado em um papel com o qual o público não precisa se afeiçoar, porque Brolin é um sensaborão. Apesar de sua cabeça desproporcionalmente grande e de seu inqualificável corte de cabelo, saído diretamente de uma batedeira, ele não compromete e se desincumbe do papel com alguma competência. Ainda assim, teria sido bom ver um ator com pelo menos um pouco de carisma no papel do azarado Roy.

Naomi Watts está bem em todo o filme, mas senti falta de uma intensidade maior na cena final com a mãe. O roteiro, inclusive, dá a impressão de ter sido escrito para que houvesse esse crescendo, que começa quando, passado o impacto inicial de saber que não receberá o empréstimo por culpa de um veto de Cristal, Sally exclama: “Ela é uma charlatona!” Watts mantém-se num patamar de indignação comedida, mesmo quando passa, a partir daí, a xingar sua mãe de “imbecil”, de “lunática” e de outros mimos. O efeito dramático teria sido bem maior se ela descorçoasse e deixasse fluir livremente naquele momento a decepção e ódio por ver um projeto de vida tido como certo, indo por água abaixo, por culpa da idiota completa, simplória e manipulável na qual se transformara sua mãe.

O filme estreou em 15 de maio de 2010 no Festival de Cannes, em 23 de setembro nos Estados Unidos e só em março de 2011 na Inglaterra. Teve um sucesso moderado e até onde sei não recebeu indicações ao Oscar (injustiça terrível com Gemma Jones), mas é um belíssimo trabalho e merece ser visto.

London Boulevard (2010)


Collin Ferrel
O último lançamento de Anna em 2010 foi London Boulevard. Voltamos, aqui, de certa forma, à situação de Rogue Trader, ou seja, do roteirista que teve grande reconhecimento por um determinado trabalho – neste caso, William Monahan, que roteirizou o exitoso The Departed, dirigido por Scorsese – e que decide apostar suas fichas também na direção. Monahan adaptou e dirigiu London Boulevard, baseando-se em um livro de Ken Bruen sobre um ex-gangster, Harry Mitchell, que acaba de sair da cadeia e decide, por assim dizer, “seguir melhor vida” e abandonar o crime. A premissa é manjada e o diferencial, como se observara no roteiro anterior de Monahan, teria que residir no elenco competente e no desenvolvimento dos personagens, por sinal os únicos méritos de The Departed, já que a história, tanto no filme de Scorsese quanto em London Boulevard, não passa de um display da degradação humana e uma interminável sucessão de desgraças. Mitchell sai da cadeia e é amparado por seu amigo cretino Billy, que não espera nem cinco minutos para envolvê-lo em nova teia de crimes e corrupção liderada pelo gangster Rob Gant. Mitchell reluta e procura levar uma vida normal arranjando um emprego como segurança de Charlotte, uma atriz problemática, enquanto se esforça para proteger a irmã desequilibrada, Briony, que tem compulsão por sexo, drogas e a mistura de bebidas alcoólicas com remédios de tarja preta.

Collin Ferrel com Anna (acima) e Knightley (abaixo)
(spoilers) Em termos da competência do elenco e do desenvolvimento dos personagens, Monahan foi particularmente feliz, com raras exceções. Todos os atores do filme estão bem acima da média. Colin Farrel talvez não tenha estofo para ser o protagonista absoluto, mas é carismático e sua expressão de tormento, com as sobrancelhas eternamente arqueadas, ajuda na composição do atribulado Mitchell e transmite constantemente seu dilema. Na relação que tem com suas duas mulheres – a atriz para quem trabalha, e por quem se apaixona (Keira Knightley), e sua irmã, a quem ama e tenta proteger, sem sucesso (Anna) – há um paradoxo; Anna está ótima como a doente Briony e Monahan acertou em cheio quando optou para que a relação dela com o irmão pendesse para o humor e não para o drama. A necessidade de Briony pelos barbitúricos, que a leva à promiscuidade, seria pesada e desagradável se fosse mostrada de forma séria. Tornando-a tristemente cômica, ridícula em suas maluquices, como masturbar o tocador da gaita de foles fingindo que é a mãe dele (porque “é comum na Escócia”), seduzir o bondoso e ingênuo doutor Raju ou o afetado restauratier Alfons, Anna virou um bem-vindo alívio cômico, coisa que fez uma falta desesperadora no sinistro The Departed.

Ferrel, Anna e Sanjeev Bhaskar
A cena do jantar preparado por Farrel para que a irmã se alimente direito chega a ser divertida, sem embargo das mal-criações de Briony. Impossível não rir com as respostas dela às invectivas do irmão sobre seus maus-hábitos alimentares: “Comer me deixa enjoada”; as caretas de Briony enquanto joga a comida no chão, a discussão sobre a vodca, a resignação carinhosa de Mitchell, até a conclusão, quando ele, referindo-se a uma caveira de plástico onde Briony deposita as cinzas de seu cigarro, lhe diz: “Eu não consigo comer com essa coisa olhando para mim”, ao que ela responde, incomodada, em pérola non-sense: “Junte-se ao clube”. Briony é uma desequilibrada irremissível, indomável e incurável, mas é dócil e bem-humorada, razão pela qual Mitchell evita de forçá-la a qualquer coisa. Pelo contrário, em certas ocasiões não consegue sopitar o riso diante das reações dela, como na cena do cemitério ou naquela em que lhe entrega a passagem de trem para Paris e ela começa a papagaiar, feliz da vida, palavras sem sentido em francês.

Keira Knightley
No caso do affair de Mitchell e Charlotte, contudo, a coisa não convence. Keira Knightley já provou que além de linda é talentosa, mas a química entre o ex-gangster e a atriz com complexo de Howard Hughes é defeituosa, praticamente inexiste. Talvez porque se consuma tarde demais, talvez porque não há clima para paixão no meio de tanta desgraça, ou talvez porque Farrel e Knightley simplesmente falharam em passar isso para a tela. Também acresce o fato de que Knightley está fisicamente caracterizada como uma super model, e não como uma arrojada atriz européia de filmes pseudo-intelectuais (neste aspecto podemos argumentar que a magra e ossuda Knightley não foi a melhor escolha para o papel, que precisaria de uma mulher robusta e sensual, no estilo de Ornella Mutti ou, entre as britânicas, Catherine Zeta Jones).

David Thewlis
Com essa deficiência da atriz protagonista, quem fica com toda a atenção é seu chevalier servant e factótum Jordan, interpretado à perfeição por David Thewlis. Não tendo sido jamais um admirador do trabalho parco e irregular de Thewlis, admito aqui que seu afeminado e depressivo Jordan é uma das melhores coisas do filme. Naturalmente macilento, feio e desengonçado, todos os elementos do fiel empregado de Charlotte lhe caíram como luva, desde a peruquinha ruiva, a mão sempre desmunhecada enquanto fuma, até as túnicas, a ironia e a expressão de tédio. Também couberam ao personagem Jordan as melhores falas de London Boulevard, sobretudo quando descreve Charlotte para Mitchell: “You’ve seen her in films? Getting her kit off. If it wasn’t for Monica Bellucci, she’d be the most raped woman in European cinema. And all before the age of thirty. Of course she’s also very serious about her acting. Apart from not wanting to do it, she’s incredibly serious about her craft”.

Ben Chaplin
Outra excelente surpresa do filme, no mesmo patamar de David Thewlis, é Ben Chaplin no papel do apalermado screw up Billy. Chaplin me faz lembrar um pouco Ethan Hawke, no sentido de que a expressão angelical era a qualidade e o defeito de ambos. Agradavam imensamente em papéis de galãzinhos ingênuos e bons, mas era só o que podiam fazer, até que ficaram mais velhos, perderam a cara de bebê, ganharam rugas e tiveram, finalmente, a oportunidade de quebrar o molde e variar o repertório de personagens. Billy é o screw up arquetípico, mas ganha tonalidades diversas pelo inesperado talento de Chaplin. O sotaque britânico puxadíssimo, hilário, o pânico para lidar com o patrão e para executar as tarefas que lhe são conferidas, a maneira como capitula cada vez que recebe uma negativa de Mitchell, seu desespero quando a relação entre Mitchell e Gant apodrece e se torna um confronto de morte, são aspectos do personagem que não têm qualquer inovação criativa, mas que ganham vida nas mãos do ator.

Ray Winstone
Quanto ao gangster Rob Gant, um psicopata sanguinário, insensível, abusado sexualmente na infância e, como conseqüência, totalmente pervertido, é o tradicional vilão asqueroso e detestável que Ray Winstone tem feito muito bem em basicamente todos os seus filmes, desde o Reeves em Ripley’s Game, passando pelo Mr. French de The Departed, o Sweeney Todd televisivo (não o de Tim Burton) até o Jedburgh de Edge of Darkness, terceira colaboração entre o ator e o roteirista (neste caso com direção de Martin Campbell). Ray Winstone é bom, mas é Ben Chaplin e Ethan Hawke ao contrário; jamais convencerá no papel de um sujeito bom e meigo enquanto não atingir a terceira idade e virar um velhinho bonachão.

O resto do elenco é todo de extraordinária competência, mesmo tendo pouquíssimas aparições, como é o caso do mendigo Joe, de Alan Williams, o doutor Raju, de Sanjeev Bhaskar, o policial corrupto Bailey, de Eddie Marsan, o infeliz Anthony, de Jonathan Cullen e o mau-caráter Danny, de Stephen Graham. Igualmente, vale destaque a trilha sonora, que misturou certeiramente clássicos do rock como Heart full of soul, dos Yardbirds, com músicas mais modernas como Come see me, do The Pretty Things, deixando a trilha sonora com fumaças de Quentin Tarantino.


Ferrel e Winstone em cena intensa de LB
No que tange ao roteiro, voltamos a Rogue Trader. Parece haver um certo bloqueio no trabalho do roteirista quando ele se dispõe a assumir também a direção do projeto, pela primeira vez. Tal qual ocorreu a James Dearden no filme que trazia Ewan Macgregor e Anna, William Monahan ficou entre o ótimo e o meramente aceitável. A história é bem amarrada e tem personagens marcantes, mas ao mesmo tempo falta alguma coisa, o pathos, a catarse, ou possivelmente o toque de um grande diretor, que é o que fez de The Departed um filme excelente (o mesmo com Fatal Attraction, no caso de Dearden), e não só um horroroso banho de sangue. É seguramente uma das coisas que faltaram à relação de Mitchell e Charlotte, à interessante conversão de Jordan, movido de sua modorrenta existência para a cumplicidade consentida no crime, à crise de consciência de Mitchell, que o leva a não matar o adolescente que assassinou seu amigo Joe, e o fato de Jordan não ter se transformado no justiceiro final, matando o menino e sendo o único a permanecer vivo, desfecho irônico e correto por ser ele o único que desejava morrer e no entanto acabava sobrevivendo para vingar Mitchell. Por outro lado, a ingenuidade com que o big bosnian fucker entra, sem qualquer receio, em uma van de Mitchell, ou a facilidade com que Mitchell invade a residência de Gant – conquanto possam ser falhas do livro, e não do roteiro – atrapalharam um pouco a digestão do final.

Ben Chaplin, excelente surpresa de LB
Até na repercussão London Boulevard se assemelha a Rogue Trader. Ficou engavetado por quase um ano e teve lançamento silencioso em novembro de 2010; agradou modestamente quem chegou a assisti-lo e desapareceu. Nos Estados Unidos o filme ainda aguarda lançamento, razão pela qual o público cinematográfico já teve a chance de ver Edge of Darkness, feito muito posteriormente a LB. Por falar em ironia, este foi o segundo filme em que Anna e Thewlis trabalharam juntos, embora, a exemplo de Timeline, também não contracenassem. E assim como se conheceram em Timeline, se separaram em London Boulevard, depois de sete anos e uma filha juntos. Antes mesmo que o filme chegasse às telas, já ocupavam todos os tablóides ingleses as reportagens mostrando fotografias de Anna com seu jovem companheiro de Breakfast at Tiffany’s, Joseph Cross. Na ocasião ela negou que os dois estivessem tendo um caso, mas como a notícia do fim de seu relacionamento com Thewlis apareceu logo depois, sua negativa caiu no vazio. Mais recentemente ela tem sido vista com o ator galês Rhys Ifans.

Limitless (2011)

Descoberto no filme Yes Man, estrelado por Jim Carrey, Bradley Cooper ficou famoso logo depois com a divertida e despretensiosa comédia Se Beber Não Case. Ao que parece, o sucesso de público e crítica deu ao ator autonomia suficiente para escolher alguns de seus projetos seguintes. Limitless é baseado no livro The Dark Fields, de Alan Glynn, teve roteiro de Leslie Dixon, direção de Neil Burger — que se notabilizou por dirigir e roteirizar os filmes The Illusionist, de 2006 (a partir do conto de Steven Millhauser), com Edward Norton e Paul Giamatti, e The Lucky Ones, de 2008, com Rachel McAdams e Tim Robbins — e quem assina a produção executiva, junto a Jason Felts, é o próprio Cooper. A idéia de Alan Glynn é das mais engenhosas: uma pílula que contém droga capaz de ativar 100% da capacidade cerebral e as conseqüências da ingestão descontrolada de tal pílula por determinados indivíduos. No filme, Bradley Cooper é Eddie Morra, perfeito loser que vê sua vida desabar aos poucos, não tem qualquer talento excepcional mas há meses recebeu adiantamento para escrever um livro e até o momento não escreveu um parágrafo sequer. Veste-se como um mendigo, vive num pardieiro e só consegue seguir em frente porque tem o apoio moral (e sobretudo financeiro) da namorada Lindy (Abbie Cornish). Só que o filme começa justamente com um encontro entre os dois em que Lindy termina o namoro.

Cooper e Johnny Whitworth
Arrasado, Eddie perambula pelas ruas e encontra sem querer o seu ex-cunhado traficante, Vernon (Johnny Whitworth). O encontro fortuito, aliás, dá ensejo para uma das frases mais cômicas do filme, pensada por Eddie: “Of all the useless relationships, better forgotten than put away in moth balls, is there any more useless than... the ex-brother-in-law?Os dois vão a um bar e põem a conversa em dia. Perguntado sobre a irmã Melissa (Anna), a ex-mulher que Eddie não vê há dez anos, Vernon conta que ela hoje tem dois filhos, foi abandonada pelo segundo marido e mora em um subúrbio qualquer. Eddie confessa que está em um atoleiro criativo e que não consegue nem começar seu livro. Vernon então lhe dá uma pílula que, segundo ele, o ajudaria a derrubar esse bloqueio. O loser considera a princípio o espanto que lhe causou saber que sua ex-esposa está tão decadente, já que era esperta, “mais esperta do que qualquer um à sua volta”, e em seguida, na certeza de que as coisas não poderiam piorar, toma inadvertidamente a pílula, que não sabe nem ao certo o que é. O resultado é instantâneo. Ao invés de alterar os sentidos, as emoções e as reações, a tal pílula organiza os pensamentos de Eddie, colocando-os em perfeita ordem cognitiva e funcionando como um banco infinito de dados com acesso imediato e inequívoco. Nas palavras do próprio Eddie, “I wasn’t high, wasn’t wired, just clear. I knew what I needed to do and how to do it”.

A primeira mulher, linda, inteligente, e atualmente uma fracassada como Eddie
A dança das letras do NZT
(spoilers) Quando acaba o efeito dessa primeira pílula tomada por Eddie — graças à qual ele praticamente reorganiza sua vida e escreve metade do livro que havia prometido à editora — ele vai atrás de Vernon para pedir-lhe mais. O traficante o recebe com uma ferida no rosto, o que demonstra que estava sendo perseguido. Pede a Eddie que vá buscar suas roupas na tinturaria e compre um café da manhã para os dois. Quando o escritor retorna com o café e as roupas, percebe que enquanto esteve fora, inimigos de Vernon entraram na casa e o mataram. Eddie chama a polícia mas revira a casa antes que eles cheguem e encontra o que os assassinos de Vernon não conseguiram: a reserva particular que o traficante guardava da droga, que explicou chamar-se NZT, antes de ser morto. De lambuja, Eddie leva ainda algum dinheiro que o traficante escondia e sua caderneta de clientes. Novamente sob o efeito da droga, ele explora todo o leque de vantagens associado ao consumo diário do NZT: termina o livro em quatro dias, aprende a tocar piano em três, domina jogos de cartas, torna-se fluente em vários idiomas, é capaz de debater todo e qualquer assunto, desde política até economia, música e literatura, e esse conhecimento o insere num exclusivo círculo de amizades, com quem viaja e se diverte. E numa dessas viagens ele resolve entrar de cabeça no mundo dos negócios, utilizando todo o gigantesco conhecimento que advém da ingestão do NZT.

Em sentido horário: Cooper, Andrew Howard, DeNiro e Abbie Cornish

Só que ele tem pouco capital. Eddie foi capaz de multiplicar por dez o dinheiro que levara da casa de Vernon, mas aquilo ainda não era o suficiente para que ele existisse dentro do restrito universo das altas transações monetárias. Absolutamente seguro do sucesso de seus empreendimentos, sob efeito do NZT e cheio de renovada confiança, proveniente da reconciliação com sua namorada, ele se envolve com um perigoso agiota (Andrew Howard), que lhe empresta 100 mil dólares. Com esse dinheiro e a ajuda do parceiro Kevin Doyle (Darren Goldstein), profissional caxias e já enfronhado no mercado financeiro, Eddie transforma “12 mil dólares em 2.3 milhões” em dez dias e chama a atenção do mega-empresário Carl Van Loon (Robert De Niro), que se interessa pelo talento do desconhecido rapaz. É quando as coisas começam a desandar. Na ânsia de aprender mais e mais rápido, Eddie duplica a dose diária de NZT e começa a ter brancos e lacunas de memória, que o impedem de recordar porções inteiras do dia anterior, que podem chegar até a 18 horas. Assustado com a suspeita de ter matado uma mulher em um desses períodos que não retém na memória, ele pára de tomar a droga. As reações são funestas. Ele fica em péssimo estado físico e vai piorando com incrível rapidez.

Na esperança de descobrir quais são os efeitos e as conseqüências do vício em NZT, Eddie liga para os clientes de Vernon. Tem a desagradável surpresa de constatar que quase todos estão mortos ou em estado gravíssimo, em vias de morrer. Em meio a esse transe de abstinência e angústia pela descoberta dos efeitos colaterais da droga, Eddie se encontra com a ex-mulher, que vinha evitando de encontrá-lo, mas diante da súbita e inaudita popularidade do ex-marido loser no mundo dos negócios, ela desconfia que havia a mão de seu finado irmão nisso tudo, e vai até Eddie para alertá-lo. Aliás, é só olhar Melissa (Anna) e compreendemos imediatamente o porquê dela evitar o ex-marido. Mostrada em flashback como uma mulher linda, charmosa e inteligente, o que restou dela é o bagaço. Melissa explica a Eddie que foi consumidora de NZT dois anos antes mas que havia parado, com medo de morrer, a exemplo do que vinha correndo a outros clientes de Vernon. Desde então ficara seqüelada, incapaz de manter a concentração por mais de dez minutos, sofrendo com isso problemas terríveis em sua vida profissional. Ela aconselha Eddie a não parar com a droga de uma hora para outra, pois a abstinência pode matá-lo; sugere que ele pare aos poucos. E ainda acena com a possibilidade alvissareira de que nas pílulas mais novas tenham sido corrigidos esses efeitos horrendos da produção inicial.

Anna e Cooper
DeNiro, Cooper, Richard Bekins
e Tomas Arana

Eddie segue o conselho da ex-mulher e volta ao NZT. Com o tempo vai aprendendo a driblar os clarões e os brancos. Descobre aquilo que deve fazer para que a droga não tenha um efeito negativo. Come nas horas certas, toma uma dose fixa, sem excedê-la. etc. Equacionado o problema dos efeitos colaterais, são duas as dores de cabeça que Eddie terá até o fim do filme: em primeiro lugar, quando o agiota vai cobrar a dívida de 100 mil dólares, descobre acidentalmente a pílula de NZT em poder de Eddie. Toma a pílula, fica maravilhado com o efeito e começa a perturbá-lo e a ameaçá-lo, pedindo mais. A segunda dor de cabeça vem com a posição profissional adquirida pelo ex-loser, trabalhando agora com um tubarão como Carl Van Loon. No meio do acordo gigantesco de fusão que fica a seu encargo, Eddie descobre que o rival de Van Loon na transação, Hank Attwood (Richard Bekins), era um dos principais clientes de Vernon, está morrendo de abstinência e seu fiel capanga (Tomas Arana) — seguramente o homem que matou Vernon — já percebeu que Eddie tem um suprimento de pílulas e não poupará esforços ou monstruosidades para pôr as mãos nele.

Anna aparece rapidamente em flashbacks e tem a cena junto a Bradley Cooper, em que lhe explica o mal feito pelo NZT. Confesso que quando assisti o filme pela primeira vez fiquei triste que ela não recebesse o papel que coube à bonita e insulsa Abbie Cornish. Já na segunda vez mudei de idéia. O papel de Melissa é bem melhor. No flashback Anna pode ser linda e charmosa, coisa que é naturalmente e sem qualquer esforço. Já na cena que ocorre no presente, esta é a primeira vez em que ela faz o papel de uma mulher realmente feiosa e embarangada. Em Báthory ela chega a ser mostrada na decadência de uma velhice infeliz. Mas não é uma baranga; é uma mulher de 50 anos que sofreu muito. Já em Limitless, Anna está caracterizada especificamente como uma mulher jovem e devastada pelo uso do NZT. Aparece com uma tenebrosa peruca que parece uma vassoura de piaçaba e está terrivelmente envelhecida. Não há um pingo de humor ou caricatura em seu retrato da pobre Melissa. Ela chega a comover quando lembra que, sob o efeito da droga, I read Brian Green’s “The elegant universe”, in 45 minutes, and I understood it. Seus maravilhosos olhos verdes — mostrados como nunca nessa cor, saltando da tela, verdejantes, mesmo — brilham na recordação de sua extraordinária capacidade de trabalho, que tanta inveja provocou a seu patrão e que por fim a assustou diante do que poderia ser a conseqüência daquela insana atividade mental. É mais um curto e excelente trabalho de Anna.


Efeitos surrealistas do NZT

Não há muito que possa ser dito sobre o elenco, pois o filme é feito apenas para Cooper brilhar. Ele tem cara de fuinha mas é carismático e brincar consigo mesmo em Se Beber Não Case foi um grande acerto. Ele faz um estilo de galã divertido e meio abobado que não irrita o público masculino. Está muito bem no papel de Eddie Morra. Abbie Cornish, como já disse aqui, é linda e sem sal. Seu papel também não é nada que exija uma grande atriz. O mesmo pode ser dito sobre o Van Loon de De Niro. É um papel quadrado e poderia ter sido feito por qualquer ator mais velho. Evidentemente ganha em intensidade e dramaticidade na interpretação de um grande ator como De Niro. Quanto ao filme, propriamente, é entretenimento de primeira, impressiona bastante pela história e pela maneira como são mostrados os efeitos da droga. Aquele zoom que atravessa a cidade inteira, a imagem clareando, com cores fortes, ou a forma retalhada, quadriculada com que Eddie enxerga a mulher com quem transa no cúmulo de sua piração de NZT, são sensacionais.

O problema de vê-lo duas ou três vezes é que a boa impressão inicial dá lugar ao olhar detalhista e analítico. Começamos a reparar, uma a uma, as “implausibilidades” de um roteiro que mexe com situações sobrenaturais, transcendentais, etc. Vêm as perguntas: se Vernom já era um traficante mixuruca, por que ele próprio não se viciou, ciente do efeito inicial da droga, e se destruiu como ocorreu com a irmã? Por que Eddie procurou um agiota? No filme ele diz que transformou os últimos 800 dólares de Vernom em 2 mil. No dia seguinte, em 7 mil e 500. É natural imaginar que em menos de uma semana já teria transformado isso em 100 mil dólares, sobretudo com suas recém-descobertas habilidades para o jogo, sem precisar apelar para um criminoso, perigosíssimo e sem o menor escrúpulo. Outra questão é o porquê do químico do laboratório, responsável pela produção de uma nova dose de NZT não ter tomado o remédio. Por que o capanga de Atwood limitou-se a ajudar Eddie a recuperar as pílulas com o advogado e não quis nenhuma para ele? Por que o próprio De Niro, que comprou o laboratório no fim do filme, não o tomou? E assim por diante...

Filmado no primeiro semestre de 2010, Limitless teve lançamento mundial em março de 2011 e foi um grande sucesso de bilheteria.
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Com esse filme, chegamos até o presente momento na carreira de Anna. Já estão concluídos e em vias de estrear projetos como Neverland, Treasure Guards, e Angel Makers, este último um projeto de 2009 que por alguma razão continua inédito. Depois de Pushing Daisies ela não parou e seus filmes têm melhorado bastante. O público que admira essa grande atriz torce para que seus trabalhos sejam de qualidade sempre equivalente a seu talento, dando a ela a chance de performances cada vez melhores e mais memoráveis. É o que ela merece. E quem sabe no futuro escreverei um artigo que não fale do “desperdício de uma atriz”, mas da “consagração” dessa mesma atriz. Anna, porém, não se amofina com as escolhas eventualmente erradas de sua carreira. Reconhecendo que hoje escolhe seus trabalhos com muito mais critério do que no passado, ela não deixa de fazer a ressalva:

Eu nunca menosprezaria o sucesso. Me sinto muito sortuda de estar simplesmente trabalhando. Freqüentemente penso “não se atreva nem por um segundo a reclamar pelo que recebeu! Você deve sentir humildade e gratidão por tudo que tem!” Eu quero apreciar o que está acontecendo enquanto o estou fazendo. Se ficamos olhando sempre para o futuro e pensando “o que vem a seguir?”, perderemos coisas maravilhosas no presente.
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