segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia - Vol. 1 - "Um Moço Bem Velhinho"

         A Biografia Definitiva de Jânio - Parte I

O leitor deste livro, fruto de treze anos de pesquisas, acompanha a descrição envolvente, magnética, da juventude de Jânio, como nunca antes havia sido feita. (...) Quem quiser, a partir de agora, conhecer a fundo a vida de Jânio da Silva Quadros e a sua época, os seus contemporâneos, precisará ler o livro de Bernardo, sob a pena, se não fizer isto, de se tornar omisso, lacunoso, mal informado.

Fernando Jorge

Acompanhei atentamente os dez últimos anos de vida de Jânio. Desde sua derrota na eleição de 1982 para o governo de São Paulo, quando ficou atrás de Montoro e Reinaldo de Barros, passando por sua inexplicável indecisão em 84, período em que o Brasil inteiro se uniu pelas Diretas-Já e em seguida por Tancredo; sua brilhante eleição no ano seguinte, derrotando um super-confiante Fernando Henrique Cardoso, sua atuação na sucessão de Montoro, em 86, na qual prometeu apoio a Quércia, Ermírio e Maluf, não apoiando nenhum; seus três anos de mandato, sua complicada sucessão, em 88, dividindo-se entre Leiva e Maluf, abrindo caminho para Erundina; sua quase candidatura em 89, o começo do fim com os constantes AVCs, a despedida da política, o apoio a Maluf e a Aureliano, e mais tarde a Collor, no segundo turno; o declínio progressivo em 90, o apoio final a Fleury e a morte de Dona Eloá.

Daí em diante sentiu que a vela de sua vida – como ele mesmo dizia – “bruxuleava”. Era um espectro, uma sombra esmaecida e distante do que fora um dia. Aqui e ali os jornais davam notícias de suas repetidas internações. Foi desaparecendo. Jânio já não existia mais. Sua morte, em fevereiro de 1992, só veio encerrar de vez aquilo que terminou com a morte de sua esposa.

Em 1991, a professora Vera Chaia lançou em livro sua tese de doutorado sobre a “liderança política” do mato-grossense (A Liderança Política de Jânio Quadros – 1947/1990. Ibitinga, Humanidades, 1991), analisando a atuação do político pelos diferentes cargos públicos que ocupou. Vera chegou a contatar a assessoria de Jânio para um possível encontro; o ex-presidente não era refratário a conversar com estudantes (sobretudo se fossem mulheres) e dera, no passado, uma proveitosa entrevista a Miriam Limoeiro Cardoso, que preparava uma tese comparada sobre a economia nos governos de Jânio e Juscelino (Ideologia do desenvolvimento – Brasil: JK/JQ. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2ª ed. 1978). Como a pesquisa de Vera ocorreu entre o fim do mandato na prefeitura e os primeiros problemas de saúde, o pedido foi negado. 


Seu trabalho de pesquisa, não obstante, é de alta qualidade e contou com os depoimentos de alguns janistas históricos, como J. B. Vianna de Moraes e Jair Carvalho Monteiro, assessores da segunda prefeitura de Jânio, como Alex Freua e Wilson Pereira, e até de um célebre contemporâneo de faculdade e de política, Ulysses Guimarães. Presa, porém, ao tema que escolheu e às limitações de um trabalho acadêmico, Vera não chegou a escrever um livro compreensivo e definitivo sobre o ex-presidente. Lamenta-se, por sinal, que não tenha partido para uma iniciativa de maior fôlego, considerando que na época em que realizou sua pesquisa, muitos dos maiores amigos, colegas e correligionários de Jânio ainda estavam vivos e bem. É a mesma sensação de oportunidade perdida que se tem ao compulsar o trabalho acadêmico de Regina Sampaio sobre Adhemar e seu partido (Adhemar de Barros e o PSP. São Paulo, Global Editora, 1982), cuja lista de depoentes inclui notáveis protagonistas da história, como Lucas Nogueira Garcez, Conceição da Costa Neves, Paulo Lauro, Erlindo Salzano e Mário Beni.

Morto Jânio em 92, por toda a década seguinte foram poucos os livros que apareceram para jogar alguma luz sobre a lendária figura do ex-presidente. Em 1996 vieram três de uma só vez: A Renúncia de Jânio (Rio de Janeiro, Revan, 1996), o tão esperado “livro-confissão” que Carlos Castello Branco só permitiu que lançassem após seu falecimento, e que pouco ou nada esclareceu. Foi escrito no primeiro lustro da década de 60 e tem o mérito único de trazer a visão do próprio Castelinho acerca de todo o episódio da renúncia, sem no entanto explicá-lo, que era o que todos esperavam. Também decepcionante é Jânio Quadros – Memorial à história do Brasil (São Paulo, Rideel, 1996), coleção caótica de artigos de e sobre Jânio, cujo ponto alto é o texto de recordações do neto do ex-presidente. O melhor deles é o terceiro, justamente o que não se pretende nem analítico e nem biográfico: Viagem com o Presidente Eleito (Rio de Janeiro, Mauad, 1996), de Joel Silveira, no qual o saudoso jornalista consigna, com talento e graça, as recordações da viagem que fez com Jânio logo após a eleição de outubro de 1960.

A eles podemos acrescer trabalhos pequenos mas bem-intencionados como os de Marcone Formiga (Jânio – Herói ou bandido? Brasília, Dom Quixote, 1992) e Arnaldo Lacombe (Jânio Quadros – A Renúncia e os Governos Militares. São Paulo, Legenda, 1998), livros de escopo mais amplo como o Testemunho Político, do jornalista Murilo Melo Filho (Rio de Janeiro, Bloch, 1997), fantasias bem-humoradas como Uma vassoura na história do Brasil, de Cleiber de Andrade (Belo Horizonte, Consórcio Mineiro de Comunicação, 1998), até as “Memórias”, que podem ser mais ou menos reveladoras, de Roberto Campos (A lanterna na popa. Rio de Janeiro, Topbooks, 2ª ed. 1994), Abreu Sodré (No Espelho do Tempo – Meio Século de Política. São Paulo, Best Seller, 1995), Júlio de Sá Bierrenbach (1954/1964 – Uma década política. Rio de Janeiro, Domínio Público, 1996), Mário Martins (Valeu a Pena. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996), Toledo Piza (Por quem morreu Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, Ampersand, 1998) e poucos outros.

Foi a essa altura, no fim daquela década que se iniciou com as mortes de Jânio e de Ulysses, que comecei a estranhar a inexistência de um trabalho longo e detalhado sobre o presidente que renunciou. Por que um personagem tão fascinante, com um vida tão rica, tão cheia de fatos interessantes, misteriosos, emocionantes e anacrônicos, estaria relegado ao esquecimento? O general Castello Branco foi objeto das ótimas biografias complementares de Luiz Vianna e Foster Dulles; JK deixou vários volumes de memórias, além de ter sua infância e juventude esquadrinhada com a competência e a erudição tradicionais de Francisco de Assis Barbosa; até Costa e Silva mereceu um estudo bastante respeitável, da autoria de Jayme Portella. Para o “homem da vassoura”, entretanto, só havia lugar nos anedotários, no folclore, na área humorística da história. Percebi aos poucos que a escassez de estudos profundos sobre a vida de Jânio não era apenas fruto da preguiça dos historiadores, mas de uma rematada má-vontade com sua figura política.


Jânio não estava sendo só ignorado na escolha de personagens históricos a serem biografados; o pouco que se contava de sua história vinha sempre eivado do ressentimento de seus adversários e do desprezo da geração que o sucedeu. E a maioria dos escritores (jornalistas ou sociólogas, visto que a rigor, nenhum historiador se debruçara, ainda, sobre a vida de Jânio) que ocasionalmente falava do ex-presidente não conseguia transcender sua própria orientação política e carregava para seus textos um teor vingativo. No fito de punir o mato-grossense pelas eventuais posições mais reacionárias tomadas durante sua vida pública, ou por simples antipatia pessoal, ignoram-no ou perpetuam-no em livro com a imagem de palhaço, de alcoólatra ou de reles desequilibrado mental, sem ressaltar suas múltiplas qualidades. Essa injustiça não provoca danos somente ao estabelecimento da história do mato-grossense, mas ao estudo de nossa história republicana. Embora nascido no Mato Grosso, Jânio é o político mais representativo e importante de São Paulo na segunda metade do século XX. A partir do estudo de sua vida, contudo, é possível mapear os momentos mais marcantes de todo esse último século.

O tio de Jânio, Miguel Quadros, participou da campanha civilista de Ruy Barbosa em 1909; Gabriel Quadros (pai de Jânio) foi estudante da primeira turma de agronomia da Universidade do Paraná, reduzida a ¼ pela gripe espanhola; foi ligado pessoal e profissionalmente a Affonso Alves de Camargo e teve que sair do Paraná com a família, em direção a São Paulo durante o golpe de 1930 por ter ligações históricas com o PR paranaense. Fugiu da polícia de João Alberto Lins de Barros no Paraná e fugiu novamente em 31, já em São Paulo, rumo a Cândido Mota. Durante a Revolução de 32, Gabriel pertenceu ao MMDC no posto de tenente-médico (o mesmo de Adhemar e Juscelino); Jânio estava na tradicionalíssima Faculdade de Direito do Largo São Francisco durante a intentona comunista de 35, o golpe do Estado Novo e o putsch integralista de 38. Era simpatizante do PRP e da candidatura de José Américo, caso ela tivesse ocorrido. Estava no último ano do curso quando estourou a grande guerra; empregou em seu escritório um nissei que perdera seu trabalho em virtude da animosidade com o Japão; ele próprio começou a trabalhar no prestigioso Dante Alighieri, que cuidadosamente ocultava sua origem italiana sob o nome temporário de “Colégio Visconde de São Leopoldo”.

Com o fim da ditadura getulista Jânio se integra instantaneamente ao novo movimento político que começa a tomar forma; tem duas experiências partidárias (UDN e PPS) em 1945, entregando-se de corpo e alma à campanha de Eduardo Gomes. Assiste – frustrado por estar do lado de fora – a Constituinte e as eleições estaduais de janeiro de 1947. Candidata-se, finalmente, pelo PDC à Câmara Municipal de São Paulo, em uma das mais conturbadas eleições municipais de todos os tempos, e inicia sua vida pública. Estava ligeiramente atrasado em relação aos políticos com quem roçaria ombros ou terçaria armas durante as décadas de 50 e 60: Adhemar já fora deputado estadual, interventor, e ocupava o governo de São Paulo pela segunda vez; Juscelino chefiara a Casa Civil da interventoria de Benedito Valadares, fora nomeado prefeito de Belo Horizonte e exercia pela segunda vez o mandato de deputado federal. Carvalho Pinto, economista e advogado, já era considerado um papa das finanças municipais a partir da prefeitura de Abrahão Ribeiro. Carlos Lacerda, três anos mais velho que Jânio e filho de um dos mais proeminentes políticos da República Velha, tem no início de sua vida pública um detalhe dos mais interessantes: flertara com o comunismo, fincara o pé no jornalismo e em janeiro de 1947 se elegeu vereador pelo Rio de Janeiro. Apenas onze meses depois, em 16 de dezembro, renunciou a seu mandato, reclamando da falta de autonomia do Distrito Federal e acoimando a Câmara de “dispendiosa inutilidade”. Teria Jânio – que por essa época já era vereador diplomado, a poucos dias da posse – tomado conhecimento da atitude de seu colega carioca?

Nesta investigação inédita sobre a juventude de Jânio, e o caminho trilhado por ele para se tornar o maior fenômeno da política brasileira no século XX (bem como os próximos volumes, que cobrirão detalhadamente a existência do mato-grossense até sua morte), mais de 600 livros foram consultados, milhares de edições de jornais de oito décadas diferentes, documentação até hoje desconhecida e entrevistas com mais de 130 pessoas. Foi, portanto, fundamental ter começado a pesquisa ainda em 1998, porque as experiências do ex-presidente na infância e na juventude, detalhadas neste primeiro volume, só poderiam ser contadas, ou confirmadas e enriquecidas, por testemunhas oculares, esses depoentes preciosos, basilares que tive a sorte de encontrar, cheios de disposição, na faixa dos 80 e 90 anos. Desnecessário dizer: 90% deles não haviam sido procurados jamais para falar sobre Jânio. E a partir deles é que se desenrola toda a trama de uma vida que percorreu 75 anos, 42 dos quais, dedicados exclusivamente à política. A dezenas delas recorri mais de uma vez, a outras tantas recorri mais de dez vezes e a um grupo mais limitado, venho recorrendo há mais de dez anos, sempre que preciso de informações.

Num primeiro momento posso citar a importância fundamental de pessoas como a prima-irmã de Jânio, Clotilde de Quadros Cravo, cuja memória perfeita para nomes e datas envolvendo sua família me ajudou sobremaneira nas lacunas inevitáveis de uma pesquisa que há muito deveria ter sido feita. Lícia, Maria de Lourdes e Maria do Carmo da Silva Vendas, três sobrinhas de Leonor, mãe de Jânio, da mesma forma, uniram esforços e me deram belíssimos depoimentos, no Rio de Janeiro, esclarecendo questões jamais levantadas sobre a desconhecida origem da família Silvano da Silva. E como não falar de meu querido e saudoso Glaucus Quadros, filho de Miguel – o tio querido e admirado por Jânio – que esteve, ainda criança, junto ao pai em momentos decisivos, inclusive instantes após o atentado covarde que o matou, no próprio dia em que eclodiu o golpe do Estado Novo?

Glaucus foi testemunha das brigas horríveis de Jânio e seu pai, viu os preventórios de Gabriel – popularmente conhecidos como “lava-pau” – no Bom Retiro, os porres homéricos de Jânio na casa dos amigos, o tratamento autoritário dele com Eloá e as preocupações que isso causava aos pais da moça. E, se isso não fosse suficiente, era irmão mais novo de Jacyr, filho primogênito de Miguel, e único primo a quem Jânio realmente estimava.

João Brasil Vita e seu irmão Fiore me levaram às peladas que a mocidade do Cambuci promovia no campinho da vizinhança; Ruth Prado me provou que Jânio amou e teve seu coração partido antes de conhecer Eloá; Anis Aidar e José Lourenço me transportaram, com seus depoimentos, ao bonde que os levava de suas casas até o Arquidiocesano, que na época ficava em frente à Estação da Luz; Francisco Ladeira chegou a conhecer a clínica de abortos de Herculano, irmão de Gabriel; Hilário Torloni por pouco não estagiou com o pai de Jânio na zona do meretrício, junto a outros estudantes de medicina; Sebastião Giraldes, Granadeiro Guimarães e Octavio Machado de Barros lembravam vivamente de seus tempos de “Sanfran”, da avareza de Jânio no jogo de cartas ao tapa-olho que foi obrigado a usar nos primeiros meses de curso; J. Pereira o viu professorar, Heloisa Selmi-Dei foi sua aluna e quem o apresentou a seu pai, Roberto Selmi-Dei; José Yamashiro foi seu colega de escritório e cabo eleitoral; a viúva de Afrânio de Oliveira, Vera, e a filha de Quintanilha Ribeiro, Maria Luiza, falaram com carinho e saudade da ligação umbilical de Jânio com esses, que foram dois dos maiores companheiros do “homem da vassoura” desde os bancos universitários; Nicolau Tuma e seu pai, José, contaram cédulas da eleição à Câmara com Jânio e Gabriel; Décio Grisi e Jânio se abraçaram em plena Praça Clóvis Bevilaqua quando descobriram que estavam eleitos... fatos extraordinários, lembranças ricas, esclarecimentos e correções.

Acima de tudo, o INEDITISMO. A vida de Jânio nunca havia sido pesquisada exaustiva e criteriosamente. Sua história começa a ser contada agora, com o lançamento desta biografia, 96 anos depois de seu nascimento e 21 anos depois de sua morte.


Jânio, presidente da República, visita o Arquidiocesano e conversa com um de seus velhos professores, o Irmão Amandino. Logo atrás do padre, sorrindo, está José Lourenço. (foto: Memorial Arquidiocesano)

O autor e a filha de Jânio

No mais, só posso agradecer a Oscar Pedroso Horta Filho pela fidalga gentileza, o bom humor e a paciência evangélica com que sempre me atendeu desde o início da pesquisa, e a Fernando Jorge, a quem Jânio disse, em carta, que “se vai ser o meu biógrafo asseguro-lhe que meus ossos dormirão em paz”. O grande escritor, o maior de nossos historiadores, cedeu-me essa tarefa e ainda me honrou com prefácio que me lisonjeia e enriquece meu trabalho.

Gratidão imensa e amizade fraterna me ligam à Ana Laura Quadros Gomes, sempre solícita, gentil e atenciosa nas diversas vezes em que recorri à sua ajuda. Foi elo valioso e indispensável no contato com sua mãe. Aproveito, assim, o ensejo para enviar meu melhor agradecimento à Dirce “Tutu” Quadros. A filha de Jânio foi de uma sinceridade constante e absoluta em seu depoimento – o único que deu até hoje, desde a morte de seu pai – e em momento algum se evadiu de qualquer pergunta minha, mesmo quando o assunto não fosse agradável. Tutu sempre soube da importância de seu depoimento e só concordou em me receber depois de muitas conversas, e a certeza de que meu trabalho primava pela imparcialidade, pelo bom senso e pela ambição única de contar, enfim, a história de Jânio, sem omissões e sem distorções.

Leia a PARTE 2
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
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350 pgs ilustradas
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Ver também:
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia - Vol. 1 - "Um Moço Bem Velhinho"

A Biografia Definitiva de Jânio - Parte II
 
A biografia de Jânio era uma imposição da bibliografia política brasileira. Logo atrás de Getúlio, o mato-grossense foi o presidente sobre quem mais se escreveu, só que enquanto o primeiro tem sido objeto dos mais variados esboços biográficos, os livros acerca de Jânio carecem de valor documental e histórico. Poderíamos, aliás, passar horas analisando como são poucos os verdadeiros estudos de valor acerca de nossos presidentes, e as razões para que se cuide com tal desmazelo a vida desses grandes políticos. Desde aqueles que foram tema de apologias, como Wenceslau e JK, passando por outros pesquisados apenas por seus parentes – Hermes e Epitácio – recebendo, portanto, a absolvição sumária de seus pecados, até chegarmos ao aspecto mais doloroso: os presidentes que não têm até hoje suas vidas em letra de fôrma porque os autores não encontraram ressonância junto ao governo ou às editoras – comerciais e estatais – para o lançamento de seus projetos.

São célebres os casos de Dutra, que teve o primeiro volume de sua biografia (Marechal Eurico Gaspar Dutra – O Dever da Verdade. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, organizado por dois genros de Dutra, Mauro Renault Leite e Novelli Jr., a partir de memórias deixadas pelo próprio ex-presidente) publicado com o patrocínio do Exército, e o volume conclusivo engavetado para sempre quando o Exército encerrou o patrocínio; e o de Washington Luís, cuja biografia (Washington Luís – 1869/1924. São Paulo, Imprensa Oficial, 1994 e Washington Luís – 1925/1930. São Paulo, Imprensa Oficial, 2002) não está completa porque a Imprensa Oficial de São Paulo não se digna a publicar de uma vez o terceiro e último volume do monumental esforço de Célio Debes, terminado há mais de dois anos. Nos Estados Unidos, praticamente todos os presidentes foram objeto de pelo menos quatro ou cinco biografias extensas, e isso quando não lançaram seus próprios livros de memórias, outro costume que não nos alcançou, infelizmente.


No Brasil é raro encontrar investigações biográficas sobre qualquer presidente, e não causa espécie que venham com atraso exemplar, caso de Afonso Pena, cuja vida só foi contada em detalhes no belo trabalho de Américo Lacombe (Afonso Pena e sua época. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986), publicado quase 80 anos após a morte do velho Conselheiro.

Neste momento falemos somente de Jânio. Ao contrário do que se imagina, o ex-presidente até hoje não recebeu uma biografia. A pobreza de títulos referentes aos nossos presidentes (bem como a governadores e prefeitos) e os trabalhos de pesquisa meramente jornalística, sem aprofundamento histórico deram margem à confusão entre biografia e “perfil biográfico”. O primeiro gênero é de pesquisa metódica, criteriosa, técnica, longa, que vai da centena de depoentes até o exame de documentos, jornais e livros. Divide-se a vida do biografado nas diferentes etapas de sua existência e de suas atividades políticas e parte-se para o detalhamento de cada uma delas. Foi o que Raimundo Magalhães fez com Deodoro, o que Afonso Arinos fez com Rodrigues Alves e o que Silveira Peixoto e Barreto do Amaral fizeram com Prudente de Moraes, entre poucos outros.


O segundo gênero é um resumo da vida do biografado. É uma condensação de momentos marcantes, uma coleção de manchetes, um clipping. É o que Cyro Silva fez com Floriano, o que Celso Peçanha fez com Nilo Peçanha (primo de seu pai), o que Paulo Amora fez com Bernardes e o que três autores, especificamente, fizeram com Jânio. Vera Chaia (A Liderança Política de Jânio Quadros (1947-1990). Ibitinga, Humanidades, 1991) realizou um bom trabalho mas concentrou-se nos cargos políticos e não varejou a vida pessoal. Ricardo Arnt (Jânio Quadros – O Prometeu de Vila Maria. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004) foi menos acadêmico mas manteve-se na superfície. E Gabriel Kwak (O Trevo e a Vassoura – Os destinos de Jânio Quadros e Adhemar de Barros. São Paulo, A Girafa, 2006) traçou os perfis de Jânio e Adhemar, contando com alguns depoimentos bastante valiosos. O que temos, além desses títulos, são dezenas de livros que se fixam na presidência, na renúncia, nos bilhetes, nas campanhas ou num leque que vai do encômio à objurgatória, ridicularizando, incensando, dando vazão a admirações incontidas ou às desforras pessoais. Alguns, malgrado a parcialidade, trazem fatos que elucidam uma ou outra passagem da vida de Jânio; outros são mera picaretagem. Em geral, nenhum deles acrescenta algo novo àquilo que já se cristalizou na mente do povo em relação ao “homem da vassoura”. Este é o primeiro grande problema:

1 – Todos os livros a respeito de Jânio utilizam a mesma fonte para sua gênese: os trabalhos pioneiros de Viriato de Castro (O Fenômeno Jânio Quadros. São Paulo, edição do autor, 1957/59), de José Yamashiro (Jânio – Vida e carreira política do presidente. Porto Alegre, Livraria Lima, 1961) e de Castilho Cabral (Tempos de Jânio e outros tempos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962). São favoráveis a Jânio, de uma forma ou de outra, mas abriram a picada. Yamashiro estudou a infância (no que contou com a ajuda do jornalista Milton Cavalcanti) e conhecia Jânio desde que trabalhou como tradutor juramentado em seu escritório de advocacia. Viriato resenhou a vida acadêmica e os cargos públicos da vereança à eleição presidencial, com o adendo valioso de ter entrevistado os pais de Jânio. E Castilho, por fim, faz um relato rico e envolvente de suas experiências no primeiro escalão janista de 54 a 62. Embora sejam bons trabalhos, cada um à sua maneira, estão completamente datados, desatualizados, e mesmo assim acabaram por estabelecer uma espécie de teto para o que se conta sobre os primeiros 45 anos do ex-presidente. Com efeito, os pesquisadores e jornalistas que vieram depois não se deram ao trabalho de verificar e expandir as fontes primárias – cuidadosamente deixadas no esquecimento por Viriato, Yamashiro e Castilho, para não descortinarem tragédias familiares e demais questões controversas que poderiam prejudicar Jânio – e não ultrapassaram jamais aquilo que foi originalmente pesquisado e divulgado pelos três, no período que vai de 1917 a 1962.

2 – Como conseqüência, pode-se dizer com segurança que a vida de Jânio era – até agora – desconhecida. Tínhamos duas pesquisas relativamente pasteurizadas e feitas para enaltecer o ex-presidente, e as memórias de um correligionário devotado. Nada sobre a família Quadros, nada sobre a família Silvano da Silva (mãe de Jânio), nada sobre as múltiplas atividades acadêmicas e políticas de Gabriel Quadros (pai de Jânio) ou seu envolvimento com o MMDC, nada sobre o parentesco torto com o governador paranaense Affonso Camargo, nada sobre a irmã de Jânio, e – o que mais impressiona – nada sobre o assassinato de nada menos que três de seus tios, começando com Janguito em 1926, passando por Marcílio em 1932 e terminando com Miguel, em 1937, no mesmo dia em que foi decretado o Estado Novo. Ignorar o tio Miguel, como ocorreu até hoje, é ignorar a pessoa que incutiu em Jânio o gérmen da advocacia – Miguel foi um dos mais proeminentes e beneméritos advogados de Ponta Grossa e de todo o Paraná – e o gérmen da política – o tio de Jânio foi correligionário de Ruy Barbosa na campanha civilista e fazia parte do PR paranaense. Outra pessoa de importância fulcral e que não mereceu até hoje uma única linha de reconhecimento, na formação pública de Jânio, é José Adriano Marrey Jr. Tal se deve não só ao fato de que a extraordinária vida legislativa de Jânio não foi jamais perscrutada por quem quer que seja (e que será também finalmente contada em minúcias e centenas de fatos inéditos no segundo volume desta biografia), mas à triste constatação de que quem se debruçou sobre a vida do ex-presidente deixou passar pistas preciosas, como aquela dada por Miguel Reale em suas Memórias (São Paulo, Saraiva, 1986), quando fala sobre o fato de Jânio ter feito parte do Conselho Consultivo do Partido Popular Sindicalista – também citado por Aureliano Leite ainda na década de 60, em suas memórias (Páginas de uma longa vida. São Paulo, Martins, 1966) – ponta do fio de um novelo indispensável para que se historie todo esse período. Com isso entramos no terceiro grande problema:

3 – É notável a falta de atenção de alguns dos biógrafos de Jânio: há centenas de exemplos, a começar pelo que se viu acima, do PPS de Marrey e Miguel Reale. O mesmo, aliás, se pode dizer de todas as primeiras filiações partidárias de Jânio, sobre as quais reina a mais acachapante confusão. Seguindo a memória lamentavelmente embotada de Vianna de Moraes, Vera Chaia colocou em seu livro que Moraes “e outros companheiros, entre os quais Jânio Quadros, organizaram o diretório distrital da UDN no bairro de Vila Mariana”. Errado. Jânio e Vianna não organizaram coisa alguma, muito menos o diretório da UDN em Vila Mariana, seção das mais prestigiosas em todo o município, e reduto histórico e tradicional, desde a época do Partido Democrático, nos anos 20, do historiador e político Aureliano Leite. Ricardo Arnt elabora sobre o erro e declara que “embora fosse membro do diretório da UDN, Jânio procurou a legenda do Partido Democrata Cristão”. Errado três vezes. Jânio não era membro do diretório; sua filiação era informal e durou semanas; não foi da UDN para o PDC e sim para o PPS, acompanhando Marrey (rejeitado pela UDN) e também não “procurou” nada; foi cooptado por um membro do diretório paulista do PDC, que o convidou a concorrer à Câmara. Gabriel Kwak refunde o erro dos dois primeiros e inverte as datas. Diz, referindo-se a Jânio, que “o jovem professor começou a freqüentar as reuniões de um certo Partido Popular Sindicalista, de cujo Conselho Consultivo fez parte. A obscura organização, entretanto, teve vida curta. Depois se aproximou do diretório da UDN do bairro de Vila Mariana”. Errado duas vezes. O PPS não tinha nada de obscuro, foi fundado por dois dos políticos mais respeitados de São Paulo e elegeu um senador e quatro deputados federais nas eleições de dezembro de 1945, o melhor resultado entre as pequenas agremiações partidárias. E, como já se viu, Jânio não foi do PPS para a UDN, e sim o contrário.

Gabriel Quadros, o pai de Jânio
Basta dizer, relativamente aos erros, que o livro de José Yamashiro mapeia quase à perfeição a vida escolar do ex-presidente, no Paraná e em São Paulo, detalhando de forma concreta e didática a passagem dele e de sua família pelas cidades de Bauru, Garça, Cândido Mota e Lorena, que o autor visitou e onde fez inestimável levantamento de dados. Em livros posteriores, não obstante – inclusive aqueles que trazem a pesquisa de Yamashiro em suas bibliografias – esses interregnos no interior paulista são contados de forma completamente equivocada. Kwak diz que após a fuga do Paraná, Gabriel “transferiu-se com a família para Lorena, no interior do Estado. De lá, os Quadros foram para Bauru, Garça e Cândido Mota, até voltarem a São Paulo”, ignorando que tais mudanças não ocorreram nunca ao mesmo tempo e se espaçaram entre o fim de 1926 e meados de 1932. Arnt diz que “as mudanças profissionais do pai médico induziram-no a cursar o primário em Lorena, São Paulo, e a completá-lo em Curitiba, onde iniciou os estudos secundários com os maristas do Instituto Santa Maria”, absurdo total e completo, sem qualquer base documental e que equivale a dizer que Jânio teria iniciado seus estudos secundários aos 8 anos.

Autor mais antigo houve, em livrinho de ódio a Jânio, que afirmou não ter ele jamais se definido “claramente” em relação a Getúlio. Tal baboseira só se explicaria pela preguiça ostensiva de pesquisar com seriedade. O pai de Jânio não só era ligado profissional e pessoalmente à oligarquia política paranaense, como chegou a ser até preso quando estourou o golpe de 1930; a suspeita do assassinato de Miguel Quadros recaiu sobre Manoel Ribas, cupincha de Getúlio no Paraná durantes os 15 anos de ditadura; nos primeiros anos de sua carreira política, na Câmara, Jânio fez críticas duríssimas a Vargas e os ataques só terminaram quando o ditador convidou o jovem vereador para uma visita à São Borja, que ocorreu no início de 1950. A partir daí Jânio parou com as críticas que envolvessem o nome de Getúlio, por quem passou a ter simpatia, mas não poupou ou defendeu em nenhum momento as atrocidades do Estado Novo. E consumado o suicídio os comentários de Jânio, como de 90% dos maiores detratores de Getúlio, passaram a vir recheados de comiseração e piedade pelo gesto extremo. Eis uma análise rápida de Jânio, o homem, e de sua opinião a respeito do ditador. Mas o autor referido, em sua parcialidade e em sua perene superficialidade, baseou suas declarações nas conflitantes filiações partidárias de Jânio. Erro infantil. Uma coisa é analisar a incoerência, o oportunismo e o desprezo do mato-grossense pelos partidos, e outra bem diferente é analisar o que ele de fato pensava em relação a Vargas.

Outro caso emblemático é a idiotice de que Jânio só conseguiu uma suplência para vereador em sua primeira eleição, o que não é dito por nenhum dos três autores pioneiros. Viriato de Castro afirma textualmente que o mato-grossense “foi eleito vereador, obtendo 1.707 votos. Foi um dos últimos. Quase que não consegue votação necessária. Mais de 40 vereadores tiveram maior votação que ele”. Está absolutamente correto, essa foi a votação exata e Jânio realmente foi o 41° mais votado, numa Câmara de 45 vereadores. O erro, porém, é perpetrado pelos três autores contemporâneos que escreveram os perfis de Jânio. Ao invés de uma checagem corriqueira a qualquer jornal da época, ou, melhor ainda, às declarações do próprio Jânio sobre o assunto no Pasquim, em 1977 (leitura obrigatória para o mais diletante dos pesquisadores), os biógrafos posteriores preferiram confiar em um erro grosseiro disseminado por jornais na década de 70 e pela retentiva duvidosa de um ou outro entrevistado. Isso começa, por sinal, na incapacidade desses autores de compreender dois momentos específicos:

1 – Liquidada a ditadura getulista em outubro de 1945, houve uma eleição no dia 2 de dezembro desse mesmo ano, para a presidência e para as duas casas do legislativo federal. O ano seguinte foi tomado pela elaboração e promulgação da nova carta constitucional. Em 1947 houve duas eleições diferentes. A primeira, em 19 de janeiro, para governador e assembléia legislativa, na qual os paulistas elegeram Adhemar. A segunda, em 9 de novembro, para vice-governador, prefeitos e Câmaras Municipais, na qual Jânio assomou à Câmara. Ricardo Arnt ilustra bem essa desorientação quando afirma não apenas que Jânio não se elegeu, mas que se tornou vereador “na mesma eleição” que Adhemar.

2 – Há uma confusão tenebrosa entre: a) A cassação do registro do Partido Comunista (maio de 1947) – que impossibilitou o partidão de constituir uma chapa para as eleições municipais de novembro mas não impedia que os parlamentares comunistas eleitos continuassem a exercer os mandatos em suas respectivas casas legislativas; b) A anulação da diplomação dos vereadores e prefeitos comunistas eleitos pelo PST (31 de dezembro de 1947) – que deve ser a cassação a que os escritores querem se referir, embora nada saibam a respeito, e ela nada tenha a ver com Jânio – e c) A cassação efetiva do mandato dos comunistas eleitos em dezembro de 1945 e janeiro de 1947 (a chamada “Lei Ivo D’Aquino”, em 7 de janeiro de 1948), que só ocorreu uma semana depois dos vereadores tomarem posse oficialmente. Dizer, como certo autor, que “em 1947, eleito suplente de vereador pela legenda do Partido Democrata Cristão, assume o mandato devido à cassação dos candidatos do Partido Comunista, então colocados na ilegalidade” é cometer três erros crassos em uma única frase. Jânio não se elegeu para uma suplência, não assumiu seu mandato em 1947 e não chegou à Câmara pela cassação de quem quer que fosse. O que resulta desse tipo de incompetência é que biografar Jânio não consiste apenas em contar sua história, mas em corrigir os inúmeros erros cometidos por escritores desinformados ou desatentos.

Reconstruir a vida de Jânio desde sua “pré-história”, considerando que o próprio não demonstrou interesse maior em perpetuar o que quer que fosse, requeria aquilo que nenhum de seus biógrafos e exegetas fez, de fato: PESQUISA. Pesquisa em livros imparciais e de conteúdo, em jornais diferentes das mais variadas épocas, em arquivos e documentos até hoje ignorados ou relegados ao descaso pela dificuldade de acesso. Não a pesquisa em livros exaustivamente citados, não a pesquisa em jornais ou revistas atuais, que trazem resumos apinhados de equívocos e interpretações pessoais ou subjetivas, e não a pesquisa com teóricos que têm sempre na ponta da língua o script do materialismo histórico ou dialético para explicar qualquer coisa. Contar a história de Jânio é contar a história de um personagem e sua época, e não a história de uma época e seu personagem. Jânio não é produto sociológico de seu tempo; é produto da família disfuncional que o gerou e o educou. Sua formação intelectual e suas inclinações políticas não são fruto do período em que viveu, e sim da mentalidade individual de qualquer ser humano determinado e de personalidade forte. Ao contrário de Getúlio, frio e abúlico, que chegou ao governo do Rio Grande por indicação, liderou a Aliança Liberal por exclusão e assomou à presidência por uma quartelada que ele assistiu de camarote, Jânio fez seu destino sozinho, e o teria feito qualquer que fosse a época. Seu populismo é atemporal. Enfim, conhecer a vida de Jânio é pesquisar sua vida, as pessoas com quem ele conviveu dentro e fora da política e não as causas, conseqüências e implicações sociológicas do período em que viveu. É pesquisar as atitudes paradoxais, aparentemente inexplicáveis, mas, ainda mais, o que o levou a tais atitudes. É sua personalidade que precisava ser esquadrinhada. E sem pesquisa, e sem a palavra viva de seus contemporâneos, isso não teria sido possível. Diria mesmo que o trabalho teria ficado irremediavelmente incompleto sem uma série longa e significativa de depoimentos.
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
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