segunda-feira, 27 de junho de 2011

Tardes com Fernando Jorge

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Evolução Concisa dos meus "Livros de Cabeceira"


Meu caro,
com grande atraso mando o texto que você me pediu sobre meus “livros de cabeceira”. Demorei para mandar não só pelos afazeres diários (que consomem muito e pagam pouco) mas porque ao contrário do que se imagina, não sou um grande leitor. Você não verá aqui os clássicos portugueses, brasileiros ou de qualquer outra nacionalidade. Aliás, você não verá ficção, a não ser teatral. Leio bastante, mas não por vontade, passatempo, hobby ou compulsão. Ler é uma contingência de minhas pesquisas. Uma contingência prazerosa, sem dúvida nenhuma, mas não tenho, a rigor, livros de cabeceira. Ou talvez os tenha, mas eles mudam ao longo dos anos. Há uma rotatividade fundamental nos títulos. Assim sendo, o que mando aqui é uma evolução concisa (BEM concisa) dos meus livros de cabeceira.

Maria José Dupré

O Cachorrinho Samba,
de Maria José Dupré

O primeiro deles, e possivelmente meu único verdadeiro livro de cabeceira, porque o li e reli umas vinte vezes e me acompanhou por boa parte de minha infância, foi O Cachorrinho Samba, de Maria José Dupré. Recomendação de uma professora que tive aos 9 anos, na 3ª série primária. Fiquei maravilhado. Que introdução magnífica ao mundo da leitura! Descobri ali o que era viajar com um livro, desligar-me do mundo real, sentir o que sentem os personagens, os medos, os cheiros, os sabores, as apreensões, as alegrias, tudo. Foi tal o efeito desse livro em meu espírito que procurei espontaneamente o livro que a mesma professora recomendara à 4ª série, A Mina de Ouro, também de Dupré. Mais uma excelente experiência. O próximo passo foi comprar o resto da coleção da Ática (“Coleção Cachorrinho Samba”) que incluía os dois livros, além de A Montanha Encantada, O Cachorrinho Samba na Floresta e O Cachorrinho Samba na Fazenda. Não parei mais; sem qualquer estímulo familiar, minha admiração pela autora me levou, nos dois anos seguintes, a fuçar a biblioteca de meu falecido pai, onde encontrei Éramos Seis, Dona Lola, A Casa do Ódio e outros romances adultos de Maria José, que também aproveitei para ler. Enfim, tenho hoje a mais infinita gratidão pela “Sra. Leandro Dupré”, como ela era estupidamente identificada em muitos de seus livros. Ela ainda estava viva, naquela época, com uns 90 anos, e quase a conheci pessoalmente (um dia conto esta história). Quando me perguntam qual o maior autor brasileiro de livros infantis, não digo Monteiro Lobato. Ele vem em segundo, depois de Maria José Dupré. 

A Droga da Obediência,
de Pedro Bandeira

Na adolescência li pouquíssimo. Fui contaminado pela música e deixei a leitura em segundo (ou terceiro) plano. Daquela época, posso citar Ameaça de 7 Cabeças, de Pedro Bandeira. Gostei do livro, que li na 7ª série, aos 13 anos, e fui atrás do que se havia recomendado para os alunos da 8ª, A Droga da Obediência, também de Bandeira (ambos da Editora Moderna). Mas o “efeito Cachorrinho Samba” não se repetiu. A Droga da Obediência foi interessante porque tratava de tormentos adolescentes, mas na época eu queria ouvir heavy metal e tocar guitarra. Me interessava bem mais a leitura dos posters da Som Três ou da revista norte-americana Circus, do que literatura de qualquer tipo. Hoje, não me recordo mais da trama de nenhum dos dois livros, mas guardo um exemplar autografado de Ameaça de 7 Cabeças, porque o Pedro Bandeira — na época com apenas 43 anos e já um best-seller — fez uma palestra na minha escola e pudemos conhecê-lo e conversar com ele, que sempre foi um grande sujeito. 

Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, tradução de Ferreira Gullar

Em 87 ou 88 assisti duas vezes a montagem de Cyrano de Bergerac dirigida por Flávio Rangel com Antônio Fagundes no papel-título. O prazer que senti é indescritível. Por sorte o texto utilizado na peça estava à venda em uma edição pocket da José Olympio, e eu o adquiri e passei os meses seguintes lendo e relendo, assistindo em minha mente cada uma das cenas daquela montagem extraordinária, que ainda hoje é única, já que Cyrano é uma obra que aterroriza atores e diretores e não foi jamais remontada entre nós. Não digo mais nada porque qualquer elogio a essa obra-prima é redundante, mas não me furto de elogiar o trabalho impecável de Ferreira Gullar. Até aquele momento, a única tradução de Cyrano que havia em português era a de Carlos Porto Carrero, feita — creio eu — nos anos 20 ou 30. É um tijolo de erudição, mas parece saído de manuais jesuítas do século XVI, de tão arrevesado que é o português utilizado. Conseqüência disso, não tem qualquer teatralidade. Gullar fez uma tradução livre, substituiu o alexandrino pelo decassílabo, eliminou trechos, criou outros e acabou fazendo um trabalho brilhante, perfeito, que se encontra no mesmo patamar de grandeza do texto original. 

The Annotated Shakespeare, comentado por A. L. Rowse, editado pela Greenwich House 

A música deu lugar ao teatro e Cyrano deu lugar a Shakespeare. No início dos anos 90 fui bombardeado por três montagens sucessivas de peças do bardo; o Macbeth de Ulysses Cruz, o Macbeth de Antunes Filho e o Sonho de uma noite de verão do Ornitorrinco. A cultura para mim sempre foi uma teia, em que uma coisa leva à outra, e o impacto causado pelas duas primeiras montagens, sobretudo, me obrigou a ir atrás dos filmes feitos a partir das peças de Shakespeare. Assisti todos. O Henry V de Olivier devo ter visto umas 200 vezes. E quando não encontrava filmes, apelava para esse livrão com as obras completas e comentadas. The Annotated Shakespeare é um trabalho admirável de Alfred Leslie Rowse, e nele conheci Coriolanus, Titus Andronicus (o filme de Julie Taymor ainda não existia), The Merry Wives of Windsor, Measure for Measure, Cymbeline e assim por diante. Para não dizer que esquadrinhei o volume completo, admito que me mantive à distância dos sonetos, que conheço pouquíssimo, mas lembro-me de iniciar a leitura de cada peça como alguém que inicia um decatlo; no canto da página o glossário de Rowse para o inglês elizabetano; ao lado, o meu velho Webster para o inglês contemporâneo, no qual eu também precisava de ajuda. Na faculdade eu era o mala que citava o bardo no original. Não há dúvidas que deseje dirimir ou textos que precise escrever sobre Shakespeare, até hoje, que eu não conte com esse livrão como fonte eterna de inspiração e conhecimento. E junto dele, o livro Ser Ator (Globo, 1986), de Olivier, minha bíblia enquanto fui ator amador, na faculdade. 


Gravura que encontrei no livro com a tradução de Jenny
para Escola de Maridos, e que mais tarde utilizei na
montagem que realizei dessa peça no Mackenzie
Obras de Molière, traduzidas por Jenny Klabin Segall

O único autor teatral que conseguiu me desviar de Shakespeare, ainda que temporariamente, foi Molière. Em 1993 assisti onze vezes a montagem de Escola de Maridos, traduzida e dirigida por José Rubens Siqueira, em cartaz no SESI, e me apaixonei violentamente pelo mestre comediógrafo. O problema é que Zé Rubens só traduzira o Escola (traduziu depois Tartufo) e não havia — como não há até hoje — obras completas de Molière em português. Não querendo conspurcar a riqueza poética do autor lendo as traduções em prosa editadas pela Lello no início do século XX, em Portugal, não me interessando pelas pedregosas adaptações em verso, de Castilho, e considerando também que Guilherme Figueiredo só emprestara seu vasto conhecimento do francês ao Tartufo, embarquei nas traduções feitas pela erudita Jenny Klabin Segall.

Ela possuía um vernáculo divino, uma riqueza invejável de vocabulário, mas suas traduções eram demasiadamente literárias, se apegavam excessivamente à forma e à métrica, deixando de lado a simplicidade do humor molieresco. Sem embargo, conheci George Dandin, As Preciosas Ridículas, Escola de Mulheres e outras comédias através de Jenny. Por muito tempo suas traduções foram o pão da minha alma. Até na praia eu andava com esses livros debaixo do braço. Tais edições — que também continham suas traduções para Racine e Corneille — eram da Martins, se não me engano, lançadas na década de 60, por aí, mas as traduções são dos anos 30 ou 40. Não tenho as capas para mostrar porque os livros pertenciam à biblioteca George Alexander, do Mackenzie. 

Tragédias e Comédias Gregas e Romanas

A teia da cultura em ação novamente. Através de Molière cheguei a Terêncio e Plauto, através de Shakespeare cheguei a Plauto e Sêneca, e através de Sêneca cheguei à tragédia grega. Sêneca comecei a ler em inglês, primeiro nas arcaicas traduções elizabetanas (as mesmas que devem ter sido lidas por Shakespeare, aliás), que encontrei em empoeiradíssimos volumes na George Alexander, e depois em uma modesta edição da Penguin. De vez em quando encontro por aí, perdidas, traduções feitas em Portugal. De Terêncio, acho que nunca vi nada em português. O Brasil está completamente alheio a esse circuito. Plauto e os gregos conheci através de Jaime Bruna, cuja tradução do Hipólito de Eurípides me fez chorar e permanece, portanto, a minha favorita entre todas. Eram duas edições da Cultrix. Dali a pouco devorei inteira a coleção da Jorge Zahar com tradução de Mário da Gama Khoury e me aprofundei nos três tragediógrafos e em Aristófanes (que sinceramente não apreciei). Também aprendi bastante com os trabalhos analíticos de Pierre Grimal e Junito de Souza Brandão. Bruna, Khoury, Grimal e Brandão são pedra angular de meu aprendizado greco-romano. Também gostaria de poder dar o nome do autor de um livrão que me ensinou muito sobre a história do teatro, e que durante meses consultei. Só que não me lembro mais nem do nome do livro, nem do autor. Teria que voltar ao Mackenzie para olhar. É muita coisa. Mas coloquemos as coisas desta forma: a década de 90, para mim, em termos literários, divide-se entre Shakespeare, Molière, os gregos e os romanos. Dos gregos, meu favorito é Eurípides, dos romanos, meu favorito é Sêneca.

Biografia, História e Política

A partir de 1998 — ano em que se inicia oficialmente a pesquisa sobre Jânio — minhas leituras passaram a ser exclusivamente de material político, histórico e biográfico, e assim permanecem até hoje. Desde então, li mais em um único mês do que lera em toda a minha vida, antes disso. Li milhares de livros, literalmente, nestes últimos 13 anos. Não posso citar livros de cabeceira; o que posso dizer é que naquele início muito me influenciaram os quatro volumes de memórias de Afonso Arinos, A Alma do Tempo, Escalada, Planalto e Alto Mar, Mar Alto, editados pela José Olympio. Li-os e anotei-os de cabo a rabo. Devo citar também as biografias de Patrocínio, Patrocínio Filho e Arthur Azevedo escritas por Raymundo Magalhães, às quais volto constantemente para aprender ou relembrar fatos e pessoas da política, do teatro e do jornalismo nos séculos XIX e XX. No primeiro lustro deste novo século, por recomendação de uma amiga, tomei-me de amores incontroláveis por Tina Modotti, personagem maravilhosa, singular, de vida muito mais rica e atribulada do que Olga Benário, e que ainda não recebeu do cinema a homenagem a que faz jus há tantas décadas.

O livro de Elena Poniatowska
sobre Tina Modotti
Sobre sua extraordinária existência, que se espalha por três continentes e mistura cinema, música, fotografia, militância política, boemia, alguns dos maiores artistas plásticos do século XX, grandes romances e grandes perdas, li três biografias que se completam em suas diferenças: o livro de Margaret Hooks — Tina Modotti, fotógrafa e revolucionária (José Olympio) — completo e imparcial, além de ser o mais recente dos três; o ensaio de Christiane Barckhausen Canale — No rastro de Tina Modotti (Alfa Omega) — opinativo, informativo e instigante; e a biografia romanceada de Elena Poniatowska — Tinísima (Ediciones Era, México) — que desperdiça sua extraordinária documentação em situações inventadas, onde se detecta claramente a personalidade da própria autora, mas vale por ser uma pesquisa profunda e meticulosa (Tina merecerá um post exclusivo em breve).

Dali em diante cito dois livros sobre Jânio que podem não ser completos ou essenciais para a compreensão do político, mas me serviram de porto seguro quando iniciei a pesquisa e estão gastos de tanta consulta: A Liderança Política de Jânio Quadros (Humanidades), de Vera Chaia (que tinha comigo desde 1991, quando ele foi lançado, mas que só fui ler com atenção e cuidado nessa época) e Tempos de Jânio e outros tempos (Civilização Brasileira), de Castilho Cabral (também escreverei brevemente um post com a bibliografia comentada de e sobre Jânio, então não desço a detalhes no momento). Dentro da pobre e lacunosa bibliografia acerca de nossos presidentes, me impressionou bastante o exaustivo trabalho em dois volumes de Raymundo Magalhães sobre Deodoro (Deodoro, a Espada contra o Império, Companhia Editora Nacional), o esmerado e abalizado estudo de Américo Jacobina Lacombe sobre Afonso Pena (Afonso Pena e sua época, José Olympio) e a belíssima biografia de Nilo Peçanha (A Vida de Nilo Peçanha, José Olympio) escrita por Brígido Tinoco. Esta última está entre as melhores biografias que já li em minha vida. E eu não seria justo se não mencionasse Chatô, rei do Brasil, de Fernando Morais, que considero de longe o melhor livro do jornalista. Bem melhor do que Olga, por sinal, cujo mérito é trazer a ótica de Prestes, mas tem sua espinha dorsal no trabalho anterior de Ruth Werner.

A Academia do Fardão e da Confusão, de Fernando Jorge

Aquilo que mais se aproxima de um livro de cabeceira, hoje em dia, para mim, é A Academia do Fardão e da Confusão (Geração Editorial), de Fernando Jorge. Poderia citar antes dele as biografias de Bilac e Santos Dumont ou os dois volumes sobre Getúlio escritas por Fernando, repositórios monumentais, formidáveis de informações que me mostraram com clareza, objetividade, erudição e excelência a verdadeira dimensão que deve ter uma biografia. Mas não são livros de cabeceira. Já o livro sobre a Academia é uma mescla única de cultura e diversão. Não conheço outro livro que tenha me ensinado tanto, ao mesmo tempo em que me fez gargalhar tão ruidosamente. É o raríssimo passatempo que instrui e diverte. Assim como pessoas há que se voltam para a Bíblia em momentos de angústia, ou a livrinhos de máximas e pensamentos quando estão tristes, abro o livro da Academia em qualquer página quando estou irritado ou chateado, e na leitura da primeira história que encontro pela frente, as nuvens se dissipam, meu humor melhora e começo a rir. Os livros escritos pelo Fernando são uma coleção de trabalhos brilhantes, de pesquisas notáveis, de um resgate inestimável de nossa história e de nossa literatura, mas entre todos, meu preferido é o da Academia. É polimórfico, multi-temático, caleidoscópico, é uma obra-prima.

Deveria ter feito esse trabalho há mais tempo, ou feito um por década. Tremo só de imaginar as injustiças que cometi, os esquecimentos de livros que muito me marcaram nesta ou naquela época, mas que não me ocorrem no momento. Mas enfim, é isso aí.

Abraços
Bernardo

sexta-feira, 10 de junho de 2011

José Altino Machado (1924/2011)


















Eu sou muito tímido, entendeu? Tímido, sou inibido, eu tenho medo das coisas, tenho um temperamento difícil. Dizem que sou inteligente, mas é só.

Eu não sou rico, tenho o que eu tinha, perdi dinheiro quando fui pro Acre, paciência. Valeu! Valeu ter tido aquele instante de glória, o contato com o povo acreano, eu sou cidadão rio-branquense... Pra mim, eu sou riquíssimo. De conhecimento, de amizades que forjei, de oportunidades que tive na vida. Quando fui deputado federal, caramba... não gastei um tostão, fui pro Tribunal de Contas... devo tudo ao Dr. Oscar Pedroso Horta. Que me deu o ponta-pé inicial. Era meu pai. Eu não sou nada, mas o pouco que eu fui, eu devo ao Horta. Que gostava de mim como um filho.

O mundo está podre. E eu estou velho.

José Altino Machado

Meados de 1999, desértico início de minha pesquisa sobre Jânio. A sempre solícita e gentil Ana Laura, neta do ex-presidente, me pergunta, em um de nossos vários encontros:
— Você já conversou com o Dr. Altino?
Minha resposta é uma triste interrogação, aliás muito comum naquela época em que, aos 27 anos, estava absolutamente cru no assunto:
— Quem?
— O Dr. Altino Machado — responde ela, sem se abalar com minha ignorância. — Você tem que conversar com ele. Não foi apenas amigo do meu avô, mas uma das pouquíssimas pessoas a quem ele de fato respeitava.

Fui ao primeiro encontro com o bom Altino na certeza de que a observação de Ana se devia mais à amizade deles do que a qualquer outra coisa. “Donos” de Jânio, “o melhor amigo”, “a única pessoa que” isso ou aquilo, surgiam aos borbotões, cada vez que eu dizia estar escrevendo a biografia do ex-presidente. No caso de Altino verifiquei com o tempo que Ana estava certa no que dizia. Jânio respeitava mesmo o taubateano Altino, batizado com esse nome em homenagem ao presidente de São Paulo na República Velha, Altino Arantes. Mas não era o respeito jurídico que votava a Marrey Jr., respeito intelectual como o que nutria por Pedroso Horta, o respeito afetivo que tinha de graça por Juarez Távora, o respeito cívico que dedicava, como todos os brasileiros, ao benemérito coestaduano Cândido Rondon, o respeito de tiete deslumbrado que não conseguiu sopitar ao defrontar-se com Getúlio ou mesmo o respeito arrependido que passou a alimentar por JK, depois de cassados os dois; Altino estava em um grupo seletíssimo. Mais do que seleto, era uma espécie de clube de 2 ou 3, entre os milhares de conhecidos do ex-presidente. Era o rol diminuto e apertadíssimo de pessoas a quem Jânio confiaria a esposa, a filha e as netas. Confiaria sua própria vida. Altino era alguém a quem Jânio respeitava por reunir a raríssima trinca que contém a amizade, a lealdade e, sobretudo, a verticalidade MORAL. Não, não falo de honestidade, embora seja qualidade que Altino possuía para dar e vender. E também não digo que Altino fosse um santarrão. Em absoluto. Chegaremos lá.

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Altino nasceu em Taubaté, aos 21 de fevereiro de 1924. Veio criança para São Paulo, cursou a Escola Americana, no Mackenzie e em 1942 ingressou no Largo São Francisco. Pobre, precisando ganhar dinheiro e encaminhar a vida, trabalhou em inúmeros bicos. Cansada de ver o filho se esfalfando em empreguinhos sem futuro, sua mãe telefonou para um primo, o bem-sucedido desembargador Paulo Costa, e pediu-lhe que arranjasse um estágio para o calouro Altino em algum escritório de advocacia. Paulo pensou imediatamente em Pedroso Horta. Ligou para o célebre advogado criminal em seu escritório na José Bonifácio, 233, 3º andar:

— Oscar, você pode pôr um estudante de Direito aí?
— O que é que ele sabe fazer? — perguntou Horta.
        — NADA!

Oscar Pedroso Horta
E não sabia mesmo, tanto é que admitia não ter sido mais do que um office boy, ou um attaché em seus dez anos com Horta, mesmo depois de formado em 47. Segundo Altino, “eu carregava mala, datilografava pra ele, ia buscar o filho dele no colégio, o Oscarzinho, ia comprar brinquedo pra ele, eu era um office boy, não era advogado”. O convívio com o velho mestre, entretanto, foi o diferencial de sua vida:

O Horta era um gênio. É difícil falar do pai. O Horta é meu pai político, pai administrativo. Eu era amigo do Alceu Maciel, que também trabalhava lá, nós somos irmãos, somos filhos do Horta. Filhos políticos, filhos funcionais, filhos da advocacia. Aprendi pra burro. Modéstia à parte, meu português é bom. Devo ao Horta. Ele tinha um português bonito, elegante, fino, diferente do Jânio. O do Jânio era exótico, digamos assim; o Horta falava um português lindíssimo, clássico, uma cultura literária fantástica, uma biblioteca linda que ele tinha, ele era um gênio, sempre foi. Era um homem gelado, frio, comedido, mas um encanto, um sedutor de pessoas. Um cavalheiro. Nunca — ele saía numa roda — nunca ninguém encostava a mão no bolso. Não deixava ninguém pagar nada. E era o maior advogado de júri do Brasil. Perdia talvez pro Curvelo, mas era superior ao Dante Delmanto, Waldir Troncoso Peres, a qualquer outro.

Lá roçou ombros com Getúlio de Paula Santos e Oscar José Horta, responsáveis pela parte cível, e o próprio Pedroso Horta na área de Direito de Família e Criminal. Pelas mãos de Horta conheceu Adhemar de Barros, esteve duas vezes com Getúlio Vargas, e permaneceu no escritório da José Bonifácio até 1952. Em 1953 recebeu um recado do amigo e jornalista Freitas Nobre: Ildélio Martins estava prestes a sair do escritório de Francisco Carlos de Castro Neves — um dos mais renomados e prestigiosos escritórios de advocacia trabalhista em São Paulo — onde exercia a advocacia cível. Altino foi correndo para a Xavier de Toledo 121, 7º e 8º andar, e, em suas próprias palavras, “aprendi a advogar”. Substituiu Ildélio na parte cível e teve como colega José Granadeiro Guimarães, que cuidava de praticamente toda a área trabalhista, já que Castro Neves andava às voltas com seus pepinos de deputado estadual. É Altino quem conta:

Castro Neves
Eu fazia advocacia cível com o Castro Neves, no lugar do Ildélio. Mas acontece que tinha um filho da puta lá que mandava os clientes pro Castro Neves com um bilhete assim: “Castro Neves, veja a injustiça que sofreu esse homem. Atenda-o. Ass., Jânio Quadros”. E quem acabava atendendo era eu, de graça. E todo dia era a mesma coisa. No vigésimo bilhetinho eu pergunto, “Castro Neves, quem é esse filho da puta do Jânio Quadros, que manda esse pessoal pra cá? Não agüento mais, hoje estive na delegacia de Santana, depois Santo Amaro, eu estou trabalhando de graça pra ele!” O Castro Neves aponta um sujeito e diz: “É ele”. O Jânio estava na minha frente (gargalhadas). Ali que eu fiz amizade com ele. E ele ia todos os dias ao escritório do Castro Neves. Levar casinhos de eleitores e de gente humilde, a mulher brigou com o marido, faz o desquite, eu fazia. Roubaram o burrinho do sujeito lá em Parelheiros, eu ia lá e apresentava queixa-crime. Jânio e Castro Neves eram irmãos, eram contemporâneos de faculdade, trabalhavam juntos desde que o Jânio era vereador, se entendiam, eram idênticos, tinham as mesmas preocupações.

Granadeiro Guimarães
Ao cabo de seis anos, em pleno fastígio de Jânio, agora governador, Altino se cansou de tudo aquilo e resolveu mudar de vida completamente. Saiu do escritório de Castro Neves, “que era um sujeito maravilhoso. Tenho saudade dele. Trabalhei lá seis anos e me orgulho disso. Deixei 80 ações em andamento, o Castro Neves não acreditou, não tinha noção de como eu trabalhava e teve que colocar três pessoas no meu lugar”. Em seguida vendeu uma casa e deu o dinheiro como entrada para uma fazenda em Duartina, no interior paulista. Durante os anos de 58, 59 e 60 ocupou-se de pagar o financiamento. No início de 1961 terminou, finalmente, o pagamento, plantou milhares e milhares de pés de café, e se pôs a aguardar a prosperidade. Foi quando recebeu um telefonema de Pedroso Horta, Ministro da Justiça e articulador político do governo de Jânio, recém-eleito presidente. Solicitava um encontro. Chegando à casa do velho patrão, em São Paulo, ouviu a proposta à queima-roupa:

— Você quer ser governador?
Altino evidentemente não entendeu a pergunta:
— O senhor está me gozando, Dr. Horta? De onde?
A resposta de Horta o deixou ainda mais confuso:
— De onde você quiser: Amapá, Acre, Rondônia ou Roraima.

Horta então explicou que os governadores dos territórios ainda eram de nomeação do presidente da república e Altino, naquele momento, estava sendo convocado a assumir o governo de qualquer um daqueles territórios. Depois de alguns minutos de estarrecimento o bom taubateano demonstrou incerteza. Não era político, estava afastado, era fazendeiro, acabava de plantar não sei quantos mil pés de café, etc. Horta descorçoou:

— Deixa de ser burro! Você vai dar um exemplo de administração paulista, dinâmica, você é um homem honesto, trabalhador, vão gostar de você, nós te prestigiaremos, você vai sair de lá senador para o resto da vida. O que você acha? Você iria?

Altino pediu um tempo para pensar, no qual consultou sua mulher e seus parentes. Todos concordaram que ele deveria ir; era jovem, era janista, era idealista, estava sendo pessoalmente requestado pelo político que galvanizava as esperanças de toda a população brasileira e não tinha como dizer “não”, malgrado o abandono da fazenda que tanto lutara para pagar. Quem também comenta essa nomeação é o saudoso amigo de Altino, Israel Dias Novaes:

Desejoso de marcar exemplarmente a sua passagem pelo posto, através inclusive de critério na designação de titulares, convocou o ministro Pedroso Horta o jovem companheiro de banca para um governo estadual, no caso, o Território do Acre. Pedroso Horta reeditou, com a escolha, a praxe imperial de prover governanças com espírito federal. Era de uso, no longo Segundo Reinado, o presidente da província sequer conhecê-la antes. Prática unitária, com os tropeços conhecidos. (Prefácio de A Outra Gessy, São Paulo, Círculo do Livro, 1988)

Israel Dias Novaes
O que Israel — e sua pena tão privilegiada quanto inconstante — não conta, é que o desejo de Jânio era entregar o Acre ao amigo de infância Brasil Vita, que exercia seu primeiro mandato de vereador. Horta vetou o nome in limine. “Você quer colocar a raposa no galinheiro?”, teria sido a pergunta de Horta ao presidente. E arrematou: “Não, senhor. Vamos chamar o Altino Machado, que é o único que vai tratar essa missão com seriedade, procurando fazer algo de bom pelo Acre, e não transformar aquela terra de ninguém em seu quintal particular”. Jânio sabia que seu primeiro ministro tinha razão e concordou. (Em entrevista a este modesto historiador, Brasil Vita afirmou ter sido convidado e declinado o convite). Altino acabou aceitando. Mas não sem antes ter uma conversa com Jânio. O presidente, notando o nervosismo do taubateano, de apenas 37 anos, encostou-o na parede e lhe disse, com aquela determinação que removia montanhas:

Jânio Quadros
— Arregace as mangas, trabalhe, levante às seis da manhã e não tenha hora para dormir! Se dê ao povo acreano, ame o povo acreano! Faça um plano de ação lá e eu te darei tudo que você me pedir! Você voltará de lá senador! O Acre vai ser Estado!

As dúvidas acabaram e lá foi Altino, de mala e cuia, empolgado e cheio de energia para sua aventura naquele noroeste brasileiro que permanecia tão virgem e inexplorado quanto ao tempo das caravelas. Durante sete meses trabalhou como nunca, até o dia em que Jânio renunciou. E com a renúncia, não foram só os sonhos de seis milhões de brasileiros que desceram pelo ralo. Os planos de Altino para o Acre também desceram. Pior do que isso, sua lavoura de café e sua fazenda em Duartina desceram junto. Ele voltou à estaca zero do dia para a noite. Nos meses seguintes tentava se refazer da paulada que traumatizou o país quando, em julho de 62, recebe novo telefonema de Horta: o Acre virara Estado, seguindo a previsão de Jânio, e Altino deveria se candidatar a deputado federal. Castro Neves lhe fez a mesma recomendação. Sem maiores perspectivas em São Paulo, embora não alimentasse qualquer vontade de integrar o legislativo federal, acedeu e candidatou-se pela UDN. Venceu a eleição e partiu para Brasília, onde ficou até 1967.


De volta a São Paulo, o prefeito Faria Lima o nomeou procurador-geral do recém-criado Tribunal de Contas do Município. Exerceu a função até 1975, quando o prefeito Olavo Setúbal o nomeou conselheiro do mesmo tribunal. Pelo TCM se aposentou, em 1994. Em meados dos anos 90 teve uma breve passagem pela Secretaria de Negócios Jurídicos durante a gestão de Paulo Maluf na prefeitura (Altino tinha tamanho horror de lembrar esse último cargo, que não falarei dele). Nos últimos tempos seu prazer era escrever contos, estar com os amigos, a mulher, os filhos e os netos, e participar das reuniões semanais na Academia Paulista de Letras, para a qual foi admitido em 1997.

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Com o bom Altino
Nossas primeiras conversas foram produtivíssimas, ele guardava belas histórias para contar e a autoridade de quem as viveu pessoalmente. Inteligente, bem-humorado, amistoso e descontraído, foi impossível não passar de depoente a amigo querido. No fim de nossa primeira entrevista, em 27 de setembro de 1999, ele me deu seu mais recente livro de contos, Um Rosto na Janela, e a dedicatória já veio repassada em sua gentileza: “Ao jovem idealista, Bernardo Schmidt, meus contos e minha amizade”. Passamos a nos encontrar com regularidade. Em sua casa, na Academia Paulista, na casa de amigos, até ao teatro fomos juntos, certa vez, ele, Ana Laura e eu, para assistir — que ironia! — Órfãos de Jânio, na montagem do Tapa. Tornei-me “sobrinho honorário”.

Silveira Peixoto
Por sua preciosa recomendação entrevistei seu grande amigo Theófilo Ribeiro de Andrade, figura de proa na efêmera primeira prefeitura de Jânio, em 53; conversei com Laércio Francisco dos Santos, que me deu um depoimento arrepiante, absolutamente sensacional sobre seu trabalho no gabinete de Pedroso Horta no Ministério da Justiça, em 1961; encontrei-me com Ney Prado, brilhante, grande conversador, cheio de memórias de seu trabalho com Castro Neves em Brasília; e proseei um dia inteiro com o nonagenário gigante da Gazeta, que foi Silveira Peixoto. Depois de cada uma delas, o debriefing obrigatório com o Dr. Altino. Almoçávamos juntos a cada dois ou três meses. Dei cano em uma ocasião, já nem lembro mais porquê, e a reação de Altino ao telefone foi de tal desgosto que me cobriu de vergonha da cabeça aos pés. Nunca mais faltei, nem que tivesse que matar. Aos poucos fui adquirindo, por fim, a intimidade para conhecer as duas angústias paradoxais com que Altino vez por outra se debatia.

A primeira delas teve sua bola sutilmente cantada por Israel Dias Novaes naquele mesmo prefácio. Aludindo à participação de Altino na Câmara, diz o notável colecionador de academias que “os contemporâneos relembram-no atuante, desempenado, elegante. Esta elegância sustenta-se até agora na memória visual das taquígrafas, que costumam indagar dos paulistas recém-chegados: E o Dr. Altino? O deputado José Altino Machado?”

Sim, Altino era um galã. Moreno, alto, bonito, amava as mulheres e possuía aquele charme temerário da geração que freqüentou o Largo nos anos 40. Não era solene e acadêmico como os estudantes dos anos 20, e nem emudecido (pela ditadura) e voltado exclusivamente para as musas como seus veteranos dos anos 30. O historiador (e calouro de Altino no Largo) Célio Debes costuma dizer que a geração deles, nascida no primeiro lustro dos anos 20, acabou prejudicada por ter atingido a maturidade ao mesmo tempo em que despontava a geração nova e menos estudada do pós-guerra. Pode ser. Mas ao mesmo tempo, a geração de Altino e Célio teve o privilégio de trazer o verniz cultural e intelectual de uma civilização que desapareceu com o golpe de 30 e a 2ª Guerra, combinando-o com a postura moderna e progressista que estava no embrião nas décadas de 40 e 50, e floresceria com impacto violento nos anos 60. Célio diria que eles foram um híbrido. Eu diria que eles foram uma mistura quase perfeita. Para aqueles que nasceram no início do século XX, ter várias namoradas era um desvio moral; nos anos 40 era sinal de virilidade. Ser casado e ter flertes ou amantes, para os antigos, era corriqueiro mas mantido a sete chaves e não transpirado jamais, sob hipótese alguma. Na época de Altino os affairs eram conhecidos por Deus, pelas esposas e pelo resto do mundo; apenas não se comentavam.

Horta
Altino pôde, por assim dizer, acompanhar os dois lados da moeda, em seu processo de amadurecimento. Assistiu em primeira mão as inúmeras paixões de Horta e seus vários casamentos. Nas palavras do taubateano, “quando trabalhamos juntos, eu tive em um mês mais mulheres do que o Horta teve na vida inteira dele, porque ele casava! Era gostar de uma mulher, e ele casava com ela”. Por outro lado foi testemunha ocular da ascensão de Jânio e do assédio crescente das mulheres sobre o esquisitíssimo mato-grossense, na medida em que seus cargos iam subindo, dentro da hierarquia política. Só que Jânio era o contrário de Horta; casou-se uma única vez e não pretendia se separar, não importando que fosse um verdadeiro sátiro e que seus casos extra-conjugais orçassem pelas centenas. A carreira política aproximou Altino do estilo de Jânio e o empurrou para as mulheres. No Acre havia trabalho demais e distração de menos. O taubateano ainda tomava pé da situação quando Jânio renunciou, mas guardava uma recordação impagável. Em 28 de abril realizou-se em Cuiabá a segunda reunião de governadores com o presidente, uma excelente iniciativa de Jânio para se manter informado sobre as reivindicações de cada Estado. Altino chegara mais cedo ao almoço dos governadores (do Acre, Rondônia, Mato Grosso e Goiás) com o chefe da nação e se sentara na cadeira ao lado de Jânio. De repente aparece o general Pedro Geraldo de Almeida, chefe do gabinete militar da presidência, sempre sério e cordato, e se dirige a Altino:

— Governador, o senhor se importa em trocar de cadeira? — perguntou, apontando uma cadeira no lado oposto da mesa.
— Claro que me importo, general — replicou Altino. — Eu quero ficar ao lado do presidente.
— Governador, foi o presidente que pediu para o senhor mudar de cadeira.

Jânio
Irritado, Altino se levantou e foi para o outro lado, acreditando ter sido esnobado pelo presidente que já conhecia há quase dez anos. Foi quando Jânio chegou, sentou-se, cumprimentou Altino com absoluta naturalidade e a seu lado se sentou a esposa de um dos outros governadores. Altino riu por dentro, verificando que não fôra esnobado. Basta dizer que pelo resto do almoço teve que assistir, assim como todos, as cutucadas, pernadas e beliscões que Jânio deu na bondosa esposa alheia, que mais tarde provocaria uma briga com o marido para afastá-lo do alojamento reservado aos governadores e passar a noite com o presidente.

Já em Brasília o assédio era selvagem. As mulheres literalmente pulavam sobre os congressistas, em geral desacompanhados, de vez que esposa nenhuma queria se mudar para o que continuava sendo um deserto no meio do planalto goiano.

Jânio
“Sim, o Jânio era putanheiro. E quem não é?”, disse-me certa vez Altino. Comentário clarividente. De Adhemar contava uma piada: “O Adhemar um dia chegou pra um assessor e perguntou: que dia é hoje? O sujeito respondeu: sexta-feira. E o Adhemar, ‘xiii, hoje é dia de comer a Leonor’...”. Perguntei-lhe sobre um companheiro seu de Câmara, governador na década de 80, metidíssimo a santarrão. Altino riu: “Pior do que o Planet”, arrematou, comparando o referido sujeito ao repórter esportivo Paulo Planet Buarque, notável Don Juan em sua época, sobre quem foi criada há anos uma frase divertidíssima: “As mulheres de São Paulo dividem-se em dois grupos: aquelas que deram para o Paulo Planet Buarque, e aquelas que ele não quis comer”. Sobre um determinado padre, amicíssimo de Jânio, a risada veio ainda mais alta. “Era um sujeito divertido, inteligentíssimo, mas um tarado igual ao Jânio. Esse padre deu em cima de uma sobrinha minha. O Dr. Julinho [Júlio de Mesquita Filho] uma vez quase quebrou a cara dele, numa dessas liberalidades dele com as mulheres”. Terminado o mandato de deputado, Altino foi trabalhar com Faria Lima, um dos grandes companheiros de Jânio nas tropelias noturnas. Mais dois anos de trabalho intenso e de conquistas ocasionais.

Faria Lima, quando prefeito
Certa vez conversei com a filha de um secretário de Estado daquela época. Procurei conhecer a abordagem, ou a reação feminina para o comportamento promíscuo dos homens dessa geração. Longe de querer me passar um sermão sobre bons costumes, ela foi sincera e objetiva: promíscuos e canalhas são os homens de hoje, formados e educados dentro de um padrão de comportamento que coloca homens e mulheres num nível de igualdade, em que se estabeleceu, finalmente, a traição como algo condenável. Os homens do primeiro quarto do século XX, ao contrário, tiveram a formação que pregava a existência do chamado “sexo animal”, uma suposta necessidade maior do homem pela satisfação sexual — lamentável conto da carochinha que subsiste até hoje entre os mais ignorantes, para justificar a canalhice masculina — que lhe permitia fazer sexo fora do casamento a fim de apaziguar esse tal excedente de libido que o homem teria em relação à mulher. Diante de regra tão conveniente, homem nenhum poderia negar fogo a uma mulher que se insinuasse a ele, por uma questão de virilidade, orgulho masculino e convenção social. Homem que era homem tinha suas amantes porque era isso que se esperava dos homens e — o que é mais notável — era isso que se esperava dos maridos. Ter amantes podia não ser justificável publicamente, mas no convívio social, pobre era a mulher que não tinha queixas de seu marido nessa área, em reunião com outras esposas. Para elas, TODOS os homens tinham seus casinhos à parte. Aqueles que não tinham não eram exemplos de virtude, e sim, da incapacidade de conquistar uma mulher. Era um defeito.


Em outras palavras, não se justifica e não se aceita o comportamento machista e sexista dos homens de antigamente, e também não se condena a submissa obtusidade das esposas daqueles homens. Mas se explica. E deixa claro o porquê de toda essa papagaiada ter entrado em colapso e descambado na revolução sexual dos anos 60, que acabou com os limites, escancarou para ambos os lados a promiscuidade, e provocou a mentira do “politicamente correto”, de hoje. Pioramos. Diria-se que voltamos aos anos 20. Só que desta vez por hipocrisia pura, e não por formação.

Altino e a esposa Evny
Altino falava disso com indiferença. Era apenas mais um aspecto, totalmente desimportante, por sinal, de sua vida pública. Até o dia em que comentei, jocosamente, que ele era um “galã” da política, ou coisa que o valha. Fazia eu um desastrado elogio, mas ele não gostou. Naquele dia, e em vários outros ele ocupou-se de justificar suas atitudes. Altino não era como Adhemar e Juscelino, cujos casamentos estavam liquidados há anos e mantinham-se vivendo com as respectivas mulheres única e exclusivamente nas aparências. Também não era um compulsivo como Jânio e determinados elementos que o cercavam, que faziam isso quase por esporte. Altino amava sua esposa, sempre amou, tinham três filhos e eram felizes. Mas fôra engolfado por aquela engrenagem de comportamento. As mulheres não eram uma opção; opção era a carreira política, elas eram contingência dessa carreira. Mais do que se explicar, Altino se penitenciava; completara os 360º do ciclo. Teve a formação nos anos 20, viveu a liberalidade dos anos 60 e sobreviveu para se arrepender de tudo aquilo. É como se dele tivesse se apossado o sentimento de “triste dignidade”, a que alude Chaplin em Luzes da Ribalta. Chegando aos 60 anos lhe sobreveio a culpa por não ter sido um marido ideal. Não ficou idoso e morreu, simplesmente, como seus contemporâneos; viveu para contemplar as armadilhas daquele estilo de vida e fez sua mea culpa.

 Essa angústia, entretanto, não se comparava com a segunda, a principal: sua pelágica desilusão com a política. No caso das mulheres, não houve formação cristã que suplantasse o costume masculino vigente. No caso da política, paradoxalmente, não adiantou Altino viver cercado de cobras desde os 20 anos. Continuou sendo medularmente honesto. Era “o lírio no lodo”, como o chamavam, em pilhéria, seus próprios colegas. É suficiente lembrar que no Acre chegou a ter sua residência metralhada pelos caiporas que se opunham às melhorias que Altino tentou levar ao remoto território, enquanto foi governador. Em 67 tentou a reeleição para deputado federal pelo agora Estado; como ele próprio disse, seus votos foram “tungados” para um suplente e ele não se reelegeu, em fraude que colidia frontalmente com a fama de que gozava junto ao povo acreano, e a bem-querença que lhe votava esse mesmo povo. Na ocasião ficou furioso, impetrou recursos e etc. Sua mulher tentava acalmá-lo com argumentação simples, que ele mais tarde reconheceu ser perfeita: “Graças a Deus que você não se reelegeu”.

D esq., Paulo Planet, Jânio, Altino e Maneco Figueiredo Ferraz, genro de Adhemar, no TCM
Quando foi para o Tribunal de Contas acreditou, ingenuamente, que abraçava função burocrática, meramente administrativa, e que não teria que imiscuir-se com politicagem. Enganou-se redondamente. Corrupção e politicagem foi o que mais viu acontecer. Colecionava histórias das tentativas de suborno de que foi vítima, mas lembrava-se especialmente de uma, em que conhecido empresário adentrou seu escritório no TCM e perguntou-lhe se ele era o responsável pela aprovação deste ou daquele projeto de construção. Altino respondeu que não era exatamente quem aprovava, mas redigia pareceres sobre a legalidade dos projetos. O sujeito então deixou de lado as amenidades e explicou que tivera um projeto barrado pelo Tribunal. Puxou um gordo maço de notas graúdas e foi colocando uma a uma na frente de Altino. “Quantas serão necessárias para que o projeto seja aprovado?”, disse o empresário. Ultrajado, Altino disse que não aceitava subornos e tocou o sujeito de sua sala. O final desta história seria feliz, com o bem prevalecendo sobre o mal, se pouco depois Altino não tivesse se aposentado do cargo de conselheiro, e o projeto não tivesse sido misteriosamente aprovado logo após sua saída.

Quando iniciou sua segunda prefeitura, em janeiro de 1986, Jânio declarou aos jornais que considerava o TCM “uma excrescência”. Sabia BEM do que estava falando. Aquilo doeu em Altino, que já estava lá há pouco mais de dez anos. Doeu porque o TCM, fundado por Faria Lima, como instituição, como finalidade, era modelar. Mas com o passar dos anos e a aposentadoria de alguns conselheiros luminares, fixou-se na mente do povo a sensação — de certa forma acusada por Jânio — de que o grupo foi progressivamente perdendo sua identidade técnico-administrativa para se transformar em um repositório de sinecuristas, escolhidos por injunções políticas, como paga por serviços eleitorais ou de qualquer outra natureza.

Altino e Jânio
Tudo aquilo ofendia a alma e o caráter de Altino. Ele vira seu pai perder fortuna com a política em Taubaté, ele vira seus irmãos trabalhando como voluntários na Revolução Constitucionalista, ele próprio ficou arruinado para poder servir nos confins do Brasil, durante os sete meses do governo de Jânio, essas eram suas referências, essa era sua índole, e em Brasília ele viu o “é dando que se recebe” — mais tarde celebrizado por Roberto Cardoso Alves, no dantesco desgoverno de José Sarney — em sua frente, sem rodeios, sem cerimônias, incorporado naturalmente à rotina política dos parlamentares. Saiu de Brasília horrorizado com a corrupção, trazia as mais profundas decepções com relação a políticos que anteriormente reputava honestos. Mesmo Jânio, “porta-bandeira dos meus ideais, dos seus, do seu pai, do seu avô, de seis milhões de pessoas”, ele não conseguiu mais ver com os mesmos olhos, em sua volta à prefeitura. Pergunto-lhe um dia se Jânio, dentre todas as suas contradições, poderia ser chamado de honesto. “Não ponho minha mão no fogo”, foi a resposta de Altino. Emendou certificando-me que suas dúvidas não atingiam a primeira fase da carreira de Jânio, na década de 50. Contudo, atalhou: “Mas não ponho minha mão no fogo”. Concluiu:

Minha formação moral muitas vezes não se coaduna com o sistema político. Com os princípios políticos. A moral e a política são círculos que se entrecruzam, não são concêntricos. Às vezes interessa ter moral, às vezes não interessa. Eu não sou político.

Jânio, porém, colocaria seu corpo inteiro no fogo pela honestidade de Altino. A prova mais gritante disso se deu naquela mesma segunda prefeitura. Ana Laura, com 20 anos, desejava um emprego e procurou o avô em busca de conselhos. Jânio, contrariando um traço de honestidade reconhecido até pelos inimigos, que era o de não dar nem “bom dia” a quem quer que fosse de sua família, enquanto estivesse exercendo cargos públicos, resolveu ser simpático e pediu que a neta fizesse uma lista com os lugares onde gostaria de trabalhar. Feliz da vida, a menina enumerou dez ou vinte empresas onde qualquer pessoa adoraria fazer carreira. Levou à prefeitura e entregou-a a Jânio, sentando-se em sua frente e vislumbrando um extraordinário futuro profissional. O avô olhou a lista por cima e deu-lhe o banho de água fria: ”Você vai trabalhar com o Altino”. Com essa atitude demonstrava o grau de confiança que tinha no taubateano. Conhecedor, como era, da classe política da qual ele próprio era expoente, aquilo era deferência que, entre literalmente milhares de colegas, ele teria com dois ou três. Talvez Farabulini Jr. Talvez Fábio Figueiredo (para citar os que ainda viviam. Entre seus velhos colaboradores, já mortos, também havia alguns poucos). Deferência, por sinal, onde a recíproca não era verdadeira, uma vez que Jânio teve secretários que o conheceram por toda sua vida mas cuidaram de nunca lhe apresentar as esposas ou filhas. Verticalidade moral: entregar sua neta, jovem e bela, aos cuidados de Altino, era a certeza de que ela estaria a salvo da desonestidade dos políticos, e ao mesmo tempo da cafajestagem desses mesmos políticos.

Foi na literatura que Altino encontrou seu porto seguro. Há tempos vinha escrevendo contos e em 1986 — através de um telefonema de Jânio à Nova Fronteira, editora de seu curioso 15 Contos, de 1983 — lançou seu primeiro livro. Em 88 veio o segundo, o terceiro em 92, o quarto em 96 e o quinto e último, o mais demorado, em 2006 (esmiuçarei a bibliografia de Altino em outro artigo).

À direita, a gentileza do amigo, irmão e "tio honorário": "Para o brilhante jornalista, Bernardo Schmidt, meu sobrinho honorário, pela querência que lhe dedico, fruto da apreciação de sua inteligência, com o abraço do José Altino Machado"

Em 1997 veio nova compensação: foi eleito para a cadeira nº15 da Academia Paulista de Letras, na vaga deixada pelo historiador Paulo Pereira dos Reis. A Academia lhe proporcionou a tranqüilidade que há tempos ansiava. Aquele era o ambiente propício para Altino. Disputas e refregas, só se fossem literárias ou para a eleição de novos acadêmicos. O mais eram os encontros às quintas, no Arouche, para o café, as preleções e a prosa. Estavam lá amigos de toda vida como Célio Debes e Israel Dias Novaes, ex-professores como Miguel Reale, poetas do quilate de Paulo Bomfim e Domingos Carvalho da Silva, romancistas como Marcos Rey, os historiadores Hernâni Donato e Myriam Ellis, a jurista e professora Esther de Figueiredo Ferraz, o economista Ives Gandra Martins, gente de boa cepa, grandes conversadores, culturas frondosas e democráticas. Altino não perdia uma reunião. Era o compromisso sagrado das quintas. Só deixou de comparecer no fim, quando a saúde não mais lhe permitiu. Eu, aliás, não sabia que ele estava tão mal. Às voltas com meus próprios problemas de saúde, andava meio afastado dele, sabia que ele estava deprimido com o declínio da saúde de sua esposa, mas só depois fui informado que uma queda no banheiro, há cerca de um ano e meio, desencadeou o calvário que o levou à morte.

Uma curiosidade: no dia 9 de maio, em que Altino morreu, eu estava na mesa de operações de um hospital removendo um câncer do estômago. Não creio que Altino desse maior credibilidade a coisas transcendentais, eu certamente não dou, mas não deixa de ser extraordinário o fato de que no dia em que ele dava sua vida de volta a Deus, eu ganhei uma nova. Não posso dizer que senti a mão dele antes, durante ou depois da operação, mas me aquece o coração imaginar que o Dr. Altino estava lá, e que o advogado foi médico por um dia para salvar o sobrinho honorário.


Infelizmente, depois de eleito acadêmico, Altino publicou apenas um livro, seu último. Mas o conto “Reencontros” — que aliás dá nome ao livro — é ao mesmo tempo uma homenagem à Academia e aos acadêmicos com quem conviveu, e uma descrição velada do que seria seu próprio velório, com pequenas diferenças. O conto tem algo de mórbido, porque fala de um acadêmico que morreu, está sendo velado no Átrio Fernando Costa, na entrada da Academia, e enquanto seus amigos vivos pranteiam o corpo, no caixão, sua alma levanta-se e reencontra seus confrades, já mortos, estando o próprio Altino entre eles. Mas o reencontro daquele grupo de amigos literatos é tão divertido, tão cálido e cheio de amizade, que nós, aqui, sofrendo a partida de Altino, cada vez mais sozinhos, na tenebrosa certeza de que não ouviremos mais sua risada doce e gostosa, suas piadas, suas histórias, e que não leremos mais seus maravilhosos contos, transbordantes de saudade, lirismo, emoção e sensibilidade, só podemos torcer para que esta cena se tenha repetido no momento em que ele descansou:

A confraternização decorria calma, todos serenos, livres das ansiedades, sem preocupação de qualquer natureza. Os mortos viviam o instante eterno; lá estavam e lá permaneceriam por todo o sempre.
Em sua alegria incontida, ouviram-no exclamar, radiante:
— Que felicidade! Que delícia de morte!


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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
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Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
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