sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Sobre a polêmica das biografias


Meus caros,
confesso que tem me faltado tempo para acompanhar essa polêmica acerca das biografias. Instado, porém, por alguns amigos, deixo impressões que, se não solucionam nada, pelo menos trazem informações que ajudarão o leitor a decidir.

1 – Quando artistas se metem a falar sobre assuntos que não são de sua seara, geralmente vem abobrinha. Não vou nem mencionar a multidão de atores, atrizes, cantores, cantoras e compositores falando pelos cotovelos e doutrinando, como grandes estudiosos, nas campanhas do PT nas décadas de 80 e 90, e a ausência envergonhada de 99% deles nas campanhas do PT de hoje. Prefiro citar o exemplo da VEJA, que publicou uma matéria de capa sobre Cazuza, quando este ainda vivia. Matéria com o espírito de porco típico da VEJA, sensacionalista, explorava abertamente a desgraça do compositor, e chocou todo mundo. Dias depois um grupo de artistas se juntou para desagravar Cazuza e pariu um manifesto caótico, canhestro, mal-escrito, que acabou pior do que a ofensa da revista.

É o que acontece quando artistas desatam a tagarelar sobre política, meio ambiente, direito, sociologia, feminismo, educação e assim por diante. No afã de demonstrar um conhecimento que não têm, falando pela rama e crendo que só quem está ouvindo são as vacas de presépio de seus fã-clubes, acabam dizendo bobagens, se enrodilhando e fortalecendo o lado adversário. Se quando estão sendo sinceros já metem freqüentemente os pés pelas mãos, a coisa desanda de vez quando estão advogando em causa própria, que é o que vemos com as biografias. Conta Marcel Prenant que Marx enviou a Darwin uma cópia francesa de seu soporífero O Capital. A resposta de Darwin é um primor de humildade que precisa ser seguido por esses artistas: “Sou apenas um biólogo e não entendo nada dessas questões”.

Compositores devem fazer o que sabem: compor. Não digo a eles como fazer música, não venham me dizer como escrever uma biografia.

2 – Sem entrar nesse carrossel de acusações, reclamações e polêmicas, quero dizer que entendo perfeitamente o receio desses artistas. Eles são conhecidos. Vivem em um aquário. Sabemos quem foram as esposas de Caetano, que Roberto Carlos perdeu uma perna, que Gil é um canabista convicto, e assim por diante. Escrever uma biografia deles e passar ao largo de tudo isso é hipocrisia. Eles sabem disso e morrem de medo de que sua intimidade seja devassada. E não só isso; temem, como qualquer pessoa honesta, que a calúnia e a mentira se transformem em regra.

E por quê? Eis um exemplo: Nos Estados Unidos há uma vagabunda chamada Kitty Kelley que se especializou em lançar biografias mentirosas e escandalosas. O esquema é simples: o lançamento é feito, uma campanha publicitária monstruosa acompanha o lançamento, um milhão de cópias são vendidas e quando a justiça decide que o livro é calunioso e o retira das livrarias, editora e escritora já encheram os bolsos. A indústria da mentira é das mais prósperas, que o digam os tablóides ingleses. É o que disse Mike Wallace (citado no filme The Insider): “A fama dura quinze minutos, a infâmia dura bem mais”.

Mike Wallace
Só que esse é o preço que se paga pela liberdade de expressão que esses artistas tanto ajudaram a concretizar. É, aliás, o preço que se paga pela liberdade em geral: a eterna vigilância, como diz o adágio. E o que é a eterna vigilância? É o que a maioria do povo, sem cultura e sem discernimento, não tem: bom senso, bom gosto, critério. Por que se criou aquela classificação de idade para cada horário? Porque no momento em que acabou a censura oficial, pais que assistiam TV com seus filhos de 8 anos foram surpreendidos com beijos de língua no Sítio do Pica-Pau Amarelo, cenas de sexo na novela das sete, ou nudez frontal num programa que passa domingo à tarde. Sou a favor dessa classificação? Sou. Sou a favor de arrolhar a imprensa, como tentou fazer aquele escroto apedeuta do Lula, porque o Estadão publicava diariamente os desmandos da família Sarney? Não. Há sempre dois lados na mesma moeda.

3 – O meu caso é curioso. Jânio é uma figura pública e durante décadas sua história tem sido contada da pior maneira, com preguiça, distorções, equívocos e parcialidade. Quando entrevistei Tutu, no único depoimento que ela deu sobre seu pai até hoje, impressionei-me de tal forma com sua sinceridade que senti a necessidade de avisar-lhe, em dado momento, que eu provavelmente usaria muito daquilo que estava sendo gravado, em meu livro. A resposta dela é lapidar: “Pode usar à vontade. Só não vá mentir”. Tive acesso irrestrito à família de Jânio — arredia e escaldada pelas agressões da imprensa e de biógrafos incompetentes — porque deixei claro desde o começo que minha pesquisa era profunda, bem documentada e, sobretudo, honesta.

Para a família de Jânio — como deve ocorrer na família de qualquer pessoa que levou uma vida PÚBLICA — não existe nenhum receio de que o biógrafo entre em determinados aspectos pessoais de sua vida, desde que o trabalho seja pautado por essas três regras simples: bom senso, bom gosto e critério. Uma biografia chapa-branca, creio eu, é tão perniciosa quanto um livro de mexericos e boatos. A verdadeira preocupação é que a história seja MAL CONTADA.

O livro de Tão Gomes Pinto sobre Maluf,
exemplo perfeito de literatura chapa-branca
4 – Deve haver uma legislação especial para as biografias, que procure impedir a veiculação intencional de calúnias? Não sei. Talvez. Não vou responder sumariamente e incorrer no mesmo erro dos artistas que enfiaram seu bedelho numa discussão que deve ser realizada sem paixões e rasgos de indignação. O que penso, realmente, é que se qualquer caluniador fosse punido exemplarmente, esta discussão não existiria. Joel Rennó não matou Paulo Francis com a mera possibilidade de que o jornalista tivesse que pagar por sua calúnia?

Vamos conversar sobre o assunto. A mesma coisa vale para a pena de morte, o aborto e dezenas de outros temas que nunca foram discutidos de maneira apropriada, porque sempre aparece a turminha fanática e estraga tudo.

O que torna impossível qualquer resultado produtivo são erros judiciais flagrantes — como a proibição inexplicável da excelente biografia de Roberto Carlos, escrita por Paulo César de Araújo, pura e simplesmente porque o rei não quer que saibam que dia houve em que ele não foi um devotíssimo cristão — e idiotices como sugerir a apresentação dos originais ao biografado, sua autorização para que um livro seja escrito ou (pior de todas), que royalties sejam pagos ao biografado! Isso é dar a faca e o queijo ao censor.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Entrevista à TV CÂMARA de Jacareí — 01/09/2013


Meus caros,
em agosto fui convidado pelo jornalista Rodrigo Romero, da TV Câmara de Jacareí, para uma entrevista sobre o primeiro volume de minha biografia de Jânio Quadros. Imaginei que seria algo semelhante ao que há pouco fizera na TV Câmara de São Paulo, ou seja, uma entrevista para o telejornal local, mas logo fui informado que participaria de um programa chamado “Gente em Destaque”.

Veiculado aos domingos, o programa é apresentado pelo próprio Rodrigo e, para minha grata surpresa, nossa conversa de quase uma hora e meia foi transmitida na íntegra. Pudemos falar com tranqüilidade, sem quaisquer restrições, sobre os mais variados episódios da vida pública de Jânio. Foi uma ótima entrevista e um belo trabalho de Rodrigo e de toda a equipe do “Gente em Destaque” e da TV Câmara de Jacareí. Aqui está o release do programa:

GENTE EM DESTAQUE fala de obra sobre Jânio Quadros

O entrevistador Rodrigo Romero e o historiador Bernardo Schmidt

A TV Câmara Jacareí apresenta neste domingo (1º/9) um programa 'Gente em Destaque' especial. Vamos lembrar os 52 anos da renúncia (25/8/1961) do presidente Jânio Quadros e pra isso entrevistamos Bernardo Schmidt, o biógrafo definitivo do político. O escritor lançou recentemente o 1º de vários volumes sobre a vida e a obra de um dos personagens mais polêmicos do Brasil. Esse volume inicial aborda o período que vai de 1917, data de nascimento de Jânio, até seus 30 anos, quando foi eleito vereador. Não percam! É domingo, dia 1º, às 10 da manhã (com reprises durante a semana), nos canais 27 da NET, 61.4 UHF digital e no site www.camarajacarei.sp.gov.br .

Abaixo está a entrevista completa, dividida em quatro blocos, cada um deles com uma resenha explicativa dos assuntos tratados. Faço um agradecimento especial a Victor Henrique Martin, que trabalha na TV Câmara de Jacareí.
Divirtam-se:

1ª Parte

O interesse e o fascínio por Jânio, que começou no debate dos candidatos ao governo de São Paulo, exibido pela Bandeirantes em 1982 — A década de 80, que marcou o fim dessa geração de políticos que incluía Ivete Vargas, Herbert Levy, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e etc. — Assistindo a atuação de Jânio como prefeito em seu seguindo mandato e sua interação com a classe política — O dia em que conheci Jânio — Alguns livros escritos sobre Jânio — As diversas cidades onde Jânio viveu e as razões pelas quais Gabriel chegou a cada cidade — O assassinato de Gabriel Quadros



2ª Parte

A maneira arrevesada de Jânio falar, os sotaques e as influências dos maristas e da faculdade de Direito do Largo São Francisco — A correção e o pernosticismo no falar e as punições para os erros — A necessidade de realizar um trabalho imparcial sobre Jânio, a preguiça fundamental dos historiadores e a palavra dos ressentidos, dos invejosos, dos inimigos, e a falta de credibilidade — A posição da família de Jânio, e em especial de Dirce Tutu Quadros sobre a biografia de Jânio — A sinceridade e a honestidade de Tutu durante seu depoimento — A primeira eleição de Jânio e a confusão dos biógrafos — A rivalidade clássica com Adhemar (aproveito aqui para retificar um erro que cometi, ao afirmar que Craveiro Lopes era Primeiro Ministro de Portugal, quando ele de fato era presidente)



3ª Parte

A eleição de Jânio para deputado federal pelo Paraná, em 58 — Três momentos de Jânio na presidência: o jingle, a condecoração a Che Guevara e a renúncia — O depoimento do neto de Jânio — A eleição de 62, a cassação, o apoio a Faria lima, a recusa ao convite da Frente Ampla, o pronunciamento contra Costa e Silva, o confinamento de 68 e o ostracismo na década de 70 e a volta à vida pública, em 82



4ª parte

Eleição de 1985, Fernando Henrique senta na cadeira do prefeito uma semana antes da eleição, e as diferenças entre a simplicidade verdadeira de Jânio e o academicismo burguês FHC — Fernando Henrique, porém, é o primeiro a reconhecer que aprendeu com Jânio e aquela eleição — A eleição presidencial de 89 — A morte de Eloá — Decadência e morte — Histórias de Jânio



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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"

de Bernardo Schmidt
Editora O Patativa - 350 pgs ilustradas
R$ 30,00 (Frete incluso para todo o Brasil)

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editora.opatativa@gmail.com
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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

"Todos os Cantos do Vale", de Edson D'aísa


E eu, hoje operário
de um mundo novo
Conto histórias do meu povo
no meu canto popular.
(Edson D’aísa, “Tal Brasil”)

Por volta de 2002, o compositor Edson D’aísa e um amigo, o letrista João Bid, estavam em uma praça de São Roque. João perguntou: “E aí, você está compondo alguma coisa?” “Não”, respondeu Edson, “eu ando meio sem inspiração”. De repente passou um senhor de aparência curiosa, cinco relógios em cada braço, foi até o orelhão, vasculhou-o em busca de fichas, moedas ou qualquer outra coisa, e seguiu seu caminho. João, intrigado, virou-se para Edson: “Quem é esse sujeito? Você conhece?” “Conheço. Esse é meu tio. Uma figura”, esclareceu o compositor, referindo-se ao homem dos relógios. “Ele é assim mesmo, diferente, no mundo da lua”. João plantou a idéia ali mesmo: “Pô, cara! É sobre isso que você tem que falar! Sobre a tua cidade, as tuas verdades, as coisas aqui de São Roque. É sobre essas pessoas que você tem que fazer música!” Edson ouviu atento e gostou do conselho. São-roquense, amava a cidade e experiências pessoais não lhe faltavam para pintar retrato amplo, rico em sentimentos, da velha cidade nascida às margens do Carambeí. O caminho era esse mesmo. A semente frutificou. Tornou-se Todos os Cantos do Vale.
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Edson D'aísa
Edson D’aísa já ultrapassa os 25 anos de carreira, se tomarmos em conta suas vitórias em festivais regionais, desde a década de 80. Compositor completo (músico e poeta), despontou como um dos notáveis valores daquela nova MPB e se salvou, inclusive, de virar “Edjogon”, amálgama de seu nome verdadeiro — Edson João Gonçalves — que lhe foi proposto como nome artístico, à época, por um produtor pouco inspirado. Optou pelo “D’aísa”, em que homenageia a esposa Isabel, e durante a década de 90 foi cuidar de sua vida pessoal, casamento, filhos, casa e tudo mais.

Quando pensava que a música saíra definitivamente de sua vida, eis que surge o Mapa Cultural Paulista, festival que prestigia músicos das mais variadas regiões de São Paulo. Edson lembrou o sucesso de Cavaleiro Errante e Entoada, canções suas que venceram prêmios múltiplos em festivais, anos antes, e resolveu voltar. Compôs Sol do Sentimento, montou o grupo “Videira” com nove pessoas, incluindo talentos como o violonista Carlos Renato, o baixista Fábio Roque, o percussionista Ito Carvalho, a prima Noemi Rocha no piano e Will Gonçalves na flauta, a esposa Isa, Paulo Ribeiro e Valter Lereno (artista plástico) nos vocais. Contou ainda com sugestões de arranjo de João Bid e foi vencendo cada uma das eliminatórias do Mapa. A música acabou em quarto lugar na final, mas a partir daí Edson decidiu retomar a carreira musical. Pouco depois teve a conversa com Bid e o projeto de cantar São Roque começou a tomar forma.

Todos os Cantos do Vale não é obra de exaltação. Edson teve o bom senso de fugir da louvação vazia de São Roque e da transformação dos bandeirantes que fundaram a cidade em santos. Pelo contrário. Faz o trabalho consciencioso do pintor; é paisagista quando descreve as belezas naturais, e retratista quando entra na história e nos costumes. É historiador imparcial e jornalista minucioso. Faz descrição sem apologia. A primeira canção do cd já deixa evidente que o intuito do compositor é cantar a cidade sem decantá-la. No próprio encarte há uma ótima classificação temática dessas pinturas, e O Vale vem classificada como “A História”. Sua origem é curiosa: “Quem me inspirou essa música foi o padre Daniel”, diz Edson, sobre o pároco de São Roque. “Eu estava na missa, faltava pouco pra festa de São Roque, e ele falou ‘bonita essa comemoração, é bonito andar pelas ruas da cidade e ver a homenagem aos bandeirantes, mas não podemos esquecer que tudo isso foi à custa do sangue de muitos índios’. E a gente sabe disso, mas ele falou de um jeito que me tocou, aquela coisa da história dos livros ser uma e a verdadeira ser outra, e decidi que tinha que falar disso”.

E a canção, de fato, não é a história tradicional de um lugar que se descobre e civiliza, mas de um vale que é invadido. É quase um protesto tardio. Em meio à melodia dolente, começa a descrição: “No vale por onde caminho/ De onde sou filho aonde nasci/ Na terra dos Taxaquaras/ Da beleza rara do Carambeí./ A ave que voa gritando (tradução de “Carambeí”)/ Do ribeirão até o Saboó/ E canta pedindo socorro de cima do morro/ Lá vem Vaz-Guaçú”. A ave não anuncia, prazenteira, a chegada do homem branco, no caso, Vaz-Guaçú, ou Pedro Vaz de Barros, o bandeirante que fundou São Roque. Ela pede socorro. Teme a extinção do vale e a exterminação dos taxaquaras, primeiros habitantes da região. O compositor lhe faz coro: “Eu fico pensando na gente/ Índios inocentes os donos do vale/ Um sentimento tristonho/ Que eu me envergonho, não vou me orgulhar”. No fim, o lamento poético: “O vale hoje tem outro nome/ Da crença dos homens que vivem aqui/ O vale por onde caminho/ Não é mais chamado de Carambeí”.



Por Todos os Cantos é “O Lugar”. É a “herança da beleza tupi-guarani” na paisagem de São Roque. A melodia jazzística, sofisticada, acompanha a enumeração dos bairros, rios e tribos do vale. Edson brinca com o idioma ameríndio, faz bela poesia e utiliza prodigiosamente aquilo que Plínio Ayrosa descreve como “a curiosa mobilidade” das palavras e frases dessa língua, comum aos habitantes primitivos de toda a costa brasileira nos séculos XVI e XVII, “nossos antepassados brasílicos”: “Eu sou Capoava, eu sou Butantã/ Rio dos Araçás, sou teu Goianã/ Eu sou Cambará, subindo o Ibaté/ No escurão da noite, Pirapora a pé./ Araçariguama, eu sou Caête/ Sou Carambeí, Guaçú Tietê/ Sorocamirim e sou Potribu/ Sou Curuperê que deságua no Itu”.

Mais brilhante ainda é a reprise dessa idéia, na última faixa do cd, Por Todos os Cantos II, com a tradução da letra anterior. Com classificação exata de “Poetas da Natureza”, é declaração tácita de co-autoria, feita por Edson aos índios, e linda homenagem à riqueza lírica e descritiva do tupi-guarani. A melodia é um primor de nostalgia e o acordeom que atravessa a música rescende ao “verde manto forrageiro/ o pico mais alto/ a pé no caminhar/ pra ver peixe pular”. É o próprio pássaro do “bando de aves/ partilhando o fruto” e “o grito dos pássaros/ lá do ribeirão”. A canção ainda traz a participação especialíssima de Lula Barbosa, amigo a quem Edson admira desde seu primeiro grande momento com Mira Ira, no Festival dos Festivais, da Rede Globo, em 1985.

Em determinado momento a cunhada de Edson, Mãe Ofá, apontou uma lacuna no projeto: “Está tudo muito bom, mas você está falando dos índios e não falou nada da história dos negros aqui da cidade”. Ela fazia referência ao bairro de São Roque até hoje conhecido como o “Quilombo do Carmo”. Não tendo suficiente conhecimento do episódio, Edson deixou-o de lado, até que sua sogra, certo dia, mostrou-lhe um artigo escrito pelo jornalista Roque Alves de Lima, falando em detalhes sobre a criação desse quilombo.

Segundo Edson, “o que é que a história dizia? Essa terra pertencia à igreja, à uma ordem de carmelitas e eles arrendaram o local para um barão do Rio de Janeiro, o Barão de Bela Vista. O cara veio e trouxe esses negros escravos, com ele, pra produzir ali. Passou um tempo, o investimento dele ficou inviável, e ele largou os negros aí, à própria sorte”. Por isso, aliás, o primeiro verso diz “como se fosse um quilombo”, porque não se tratava de um grupo de escravos foragidos, e sim um agrupamento de pessoas. Ou “Um Povo”, conforme o tema da música Quilombo. Daí em diante foi só versejar: “Plantado lá no pé da serra passando por Una (Ibiúna) enfim/ Escravos do Rio de Janeiro vieram a Sorocamirim/ Das mãos do Barão Bela Vista que não agüentando até o fim/ Lançou-os à sua própria sorte e ergueu-se o quilombo assim”.

Só que a história desses negros continua. Os versos que dizem “negro não tem que fugir/ Agora tem seu tesouro, negro já não cai no choro/ Negro agora já tem seu patrimônio”, ironizando o condomínio de luxo existente no local (“Patrimônio do Carmo”), são também prenúncio da disputa jurídica que se travou a seguir, na tentativa dos gananciosos carmelitas de reaver a gleba, que por justiça deveria ter sido dada aos negros. “Passou um tempo, a igreja entrou com um processo pra tirar a terra dos negros. E eles não tinham como se defender, falavam dialetos, aí o processo foi julgado à revelia e eles perderam”. Ou, como Edson consigna na letra: “Mas os carmelitas do Carmo de posse do que não era seu/ Tentaram um acordo com os negros mas que não se assucedeu/ E sem conhecer seus direitos foi que à revelia correu/ A causa da terra dos negros que era um presente de Deus”.

Nas três canções seguintes Edson deixa momentaneamente a raiz social e mergulha de cabeça na raiz familiar. Falando sobre o tema “A Estação”, ele compõe No Teu Trilho, homenagem comovente ao pai ferroviário, morto em 1999. A família vivia perto dali, e para chegar ao trabalho, o velho Juvenal descia uma rua. “Quando chegava à estação”, conta Edson, “ele parava e dava pra ver minha casa lá em cima, então a gente ficava no muro, esperando ele passar pra ir pra estação, acenávamos para ele e ele acenava de volta. Foi um jeito de homenagear a estação, mas pondo uma verdade minha, então pra mim a estação é meu pai”.

O mais é ouvir a música, executada como uma oração por cello e piano, e cuja beleza só é superada pela poesia inspiradíssima de Edson, verdadeiro diamante de sentimento: “Lembro do teu gesto no caminho pra estação/ Onde agora é rua, me acenava com a mão/ Hoje o apito é como um grito/ Se perdendo no infinito/ Te chamando, mas em vão./ Sigo no teu trilho, herança viva/ Mas vou sem locomotiva, eu apenas sou vagão./ Pois o trem que fez a travessia/ Foi cortando a noite e o dia/ Me deixando na estação”.

Assim como Juvenal personificou a estação, a mãe de Edson, Lourdes, personifica “A Brasital”, a velha tecelagem fundada por Enrico Dell’aqua em 1890, e que transformou São Roque em pólo industrial da região. Lourdes — que morreu em 2000 — e suas irmãs foram funcionárias da Brasital nas décadas de 50 e 60 e a canção Tal Brasil descreve, de forma bem-humorada, em samba que remete a Noel Rosa e Wilson Batista, a rotina daquelas operárias incansáveis que ajudaram tanto a promover o progresso do município.

A fonte principal da poesia é uma tia de Edson: “Ela é minha madrinha, tem uma memória fabulosa e me contou muitas histórias. Ela foi funcionária da Brasital muito tempo e mora naquelas casinhas da Vila Aguiar, que era dos operários. Então falei ‘tia, queria fazer uma música sobre você, sobre minha mãe, como era trabalhar lá’, e ela foi contando”. E a letra foi surgindo: “Desperta, levanta às cinco, fica logo esperta/ Se faz bonita, prepara a marmita/ Pega a sombrinha e vai trabalhar”.

Diz a letra: “Chegando e o apito já está chiando/ E as mocinhas o passo apertando/ E o porteiro querendo fechar”. Edson explica: “Sabe o que é ‘o apito chiando’? Pro apito funcionar a caldeira vai liberando vapor, então ele começa a chiar antes de apitar, e era aquele barulho gigante, shhhhhhh. E elas entravam pela rua Ruy Barbosa e ouviam o chiado, ‘já vai apitar, o apita está chiando’, e tinha um cara que era porteiro, esses puxa-sacos de patrão, que ficava na entrada e ia ameaçando de fechar a porta, e as mulheres corriam para entrar, tinham que bater cartão, ou ponto, minha tia contou e eu falei que tinha que incluir isso na música”.

A composição seguinte, Atrás de Morro Vem Morro, classificada como “Um Reencontro”, tem, na música e na poesia, ecos sertanejos do interior de Minas Gerais: “Um ramo de oliveira atravessou a fronteira/ Numa saudade tropeira deixando Minas pra trás/ O vale está no destino, o amor também estava lá/ E foi que plantou sementes, atrás de gente vem gente”.

Considerando que o pai de Edson, Juvenal, era de Coroados, no interior paulista, pergunto sobre sua mãe. O compositor esclarece que Lourdes era de Olímpia, também no interior de São Paulo, mas estava em sua ascendência a história de Atrás de Morro Vem Morro. É uma das histórias mais saborosas por trás das composições de Edson: “Meu avô era mineiro de Oliveira, tropeiro, levava carga em lombo de mula, e morava com a irmã e a mãe. O pai já tinha morrido. Aí um dia ele decidiu tentar a vida em São Paulo e não voltou mais. Com o tempo começou a dar aquele desespero na irmã, o cara não voltava, mas imagina naquela época pra você se comunicar, década de 20, até antes disso”.

Judite — a irmã — nunca desistiu de procurar notícias do irmão, mas se conformou com a ausência, casou-se e seguiu com a vida. Juracy — o irmão — também seguiu sua vida e se casou em Olímpia, onde começou sua família, e mais tarde se estabeleceu em São Roque.

Judite, por sua vez, quando constituiu sua própria família, saiu de Oliveira e foi para uma cidade na grande BH, Capim Branco: “Ela tinha um pequeno comércio, uma venda de interior”, conta Edson, “e chegavam aqueles caixeiros viajantes, mascates, e tal, e quando vinha alguém de São Paulo ela perguntava ‘ô moço, você está vindo de São Paulo, você não conheceu lá um senhor chamado Juracy Silvino?’, não tinha a menor noção. E não é que numa dessas ela perguntou e o sujeito respondeu ‘olha, engraçado a senhora perguntar. Eu conheci um senhor numa cidade chamada São Roque, ele falou que era mineiro, que era tropeiro, sim, e o nome dele era Juracy’. Deu certo!”

A poesia segue, preparando o terreno para o reencontro: “A outra parte da história/ Ficou por trás da estrada/ Nas mãos das meninas de Minas/ Juntar o fio à meada/ Viajante trouxe a notícia/ Que conhecia o tropeiro/ E foi que partiu ligeiro/ Atrás de mineiro, mineiro”. O que a licença poética não revela é que as meninas de Minas não incluíam Judite, neste caso; quase vinte anos haviam se passado e, não tendo coragem de viajar, ela pôs as três filhas adolescentes num ônibus e mandou-as para São Roque atrás de Juracy.

A sorte estava com elas. Segundo Edson, “elas chegaram, desceram do ônibus, foram até o balconista e perguntaram: ‘Oi, a gente é de Minas, estamos procurando um tio nosso, que mora aqui, e tal, não sei se o senhor conhece, se chama Juracy Silvino’. O cara que estava no balcão respondeu: ‘Esse homem que vocês estão procurando é meu pai’. O balconista era meu tio, irmão da minha mãe”.

A família se uniu novamente, décadas depois. “Por isso eu fiz essa música”, diz Edson, “porque daí fui pra lá várias vezes, e é um carinho muito grande que existe nessa história. E a família cresceu porque a irmã do meu avô teve um monte de filhos, e meu avô teve um monte de filhos aqui também, e esses primos também tiveram um monte de filhos, e eu sou dessa geração. A ligação é muito forte”. Como reza a canção, “foram tantas emoções/ Que sobrou muito carinho/ Pra todas as gerações”. Mais à frente, a homenagem, que aumenta a cadência da música num quase forró: “Eu quero ouvir as batidas de Minas na minha canção/ Eu quero ouvir os tambores de Minas no meu coração/ Lembro as meninas de Minas/ Lembro as meninas daqui/ Lembro Tereza, Zefina/ Conceição não me esqueci/ Lembro de Lourdes, Nesica/ De Nenê Leila e Darcy/ Lembro da tia Judite/ Lembro do vô Juracy”.

A Valsinha Para Praça é auto-explicativa. “O tema — ‘A Praça’ — pedia uma coisa mais nostálgica”, conta Edson, e de fato ela sabe àquelas valsas dos anos 40, celebrizadas por Galhardo. É canção, aliás, que embalaria lindamente casais daqueles bailes de antanho, na voz tonitruante de tenores como Celestino.

O compositor faz aqui um misto de crônica e poesia: “Os velhos que chegam primeiro/ Pro dia inteiro poder barganhar/ Canários, relógios, chaveiros/ Não pelo dinheiro, só pro tempo passar”. E continua, com fina percepção poética, a descrição do cotidiano na praça da matriz, passando pela tarde: “Desse carrossel inconstante/ Cenário de amantes de tempos atrás/ Um gira á direita outro gira pra esquerda/ E eu zonzo de tanto olhar”.

A noite dá ao compositor a oportunidade de alçar seu estro a vôos mais altos, na descrição das “estrelas no teto” e na outorga da praça aos “bêbados e vagabundos”, donos legítimos do local: “E a noite então cai de mansinho/ E os passarinhos já foram dormir/ Silêncio agora é completo/ Estrelas no teto já podem sonhar/ Teus bêbados e vagabundos/ São donos do mundo e desse lugar/ Te guardam pela madrugada/ Até a alvorada vir te despertar”.

A valsa é interregno para que Edson faça uma última incursão familiar nesta sua notável observação poético-musical de São Roque. E o título da canção, Amar o Planeta, tratando de “Um Personagem” da cidade, é trocadilho que só os são-roquenses, e mais especificamente quem chegou a ver esse personagem, vão reconhecer. Porque “Amar o Planeta” não é sobre a natureza ou ecologia. É a junção de um nome, “Amaro”, e de um apelido, “Planeta”.

Voltamos à conversa de Edson e João Bid, que deu origem a todo este trabalho: “Amaro na verdade é meu tio”, revela Edson. “E planeta era um apelido dele. Porque ele tinha um problema mental, então as pessoas falavam que ele andava meio no mundo da lua, fora da órbita, e apelidaram-no de ‘planeta’. Aí fiz o trocadilho”. Como se viu no início, ele andava com vários relógios em cada braço, o que deu a Edson a inspiração para os versos iniciais desta que foi, efetivamente, a primeira música que ele escreveu para o projeto: “Ele carrega nos braços as horas do mundo/ Traça o seu destino feliz, vagabundo/ Vagando no mundo, no mundo da lua”.

Mas o bom “Planeta” tinha outros hábitos que marcavam muito, como por exemplo andar com um molho de chaves no bolso: “Ele carrega nos bolsos as chaves de todas/ As portas que abrem pro bem e pro mal/ Na tela dos sonhos do Cine Central”. Segundo Edson, o molho não era para nada, era só para poder carregar o chaveiro com as chaves, provável nostalgia de seu tempo de porteiro no Cine Central.

“Tinha aula ali no Bernardino”, continua Edson, “as crianças saíam da escola, o Planeta pegava um cavalete, fechava o trânsito, punha um quepe, apito e atravessava a molecada da escola. Simples assim. Ninguém intervinha, nada, e estava tudo certo. E era bacana, ele dava a contribuição dele para a sociedade”. O fim da canção, que tem uma batida de um rock dos anos 70 e início dos 80, é o compositor entrando no universo desse tio, que viveu para receber e apreciar a homenagem do sobrinho, e morreu em 2007: “Dou um salto para o alto e agarro um cometa/ Cruzando as estrelas chego de repente/ Dentro da tua mente, onde habita o Planeta”.

Darcy Penteado
A última composição do cd (sobre o epílogo Por Todos os Cantos II já falamos), versando e versejando sobre “A Arte”, só poderia ser dedicada aos dois mais célebres filhos do Vale: o artista plástico e escritor Darcy Penteado (1926/1987), e o ator e dramaturgo Juca de Oliveira (1935): Tua Obra, Teu Pão. “O Juca assisti em Saramandaia quando era criança, e o João Gibão me marcou muito”, diz Edson, relembrando o personagem do ator na novela surrealista de Dias Gomes.

De Darcy Penteado Edson guarda uma recordação fugaz da infância: “Eu vi o Darcy uma única vez, de longe na praça, muito elegante, já senhor, cabelo branco, barba branca, um pulôver vermelho, bem charmoso, e eu era moleque, estava passando na praça e minha mãe virou pra mim e disse ‘sabe quem é aquele lá? É o Darcy Penteado, aquele artista famoso’. Nunca me esqueci dele”. A canção começa com uma engenhosa exposição poética do imenso talento de ambos: “Plantando poesia na vida gente/ Pintando na tela virando aquarela/ Pintor da palavra, poeta da cor/ Artista da vida, tua obra, teu pão./ De cima do palco encena a partida/ Os filhos do Vale te acenam com a mão/ Compondo a textura, entalhando a canção/ Artista da vida, tua obra, teu pão”.

Juca de Oliveira
O que vem a seguir, permeando e ponteando a belíssima melodia, é uma fantasia, um diálogo etéreo e original, entre ambos, no qual Edson brinca com o Pavão Misterioso, de Ednardo, música de abertura de Saramandaia: “Saramandaia, eu sou pavão/ Misterioso sou teu irmão/ Tenho a imagem, eu sei voar/ Sou as batidas do coração/ Pássaros soltos batem no céu/ Sempre voando na contra-mão/ Um personagem da ficção/ Pousando leve no meu quintal”.

Edson chegou a esse ponto da composição e empacou. Não conseguia terminá-la. Um belo dia apresentava uma espécie de avant-premiere com as músicas do cd ainda não lançado, e no fim do show foi abordado por Roberto Godinho, o grande poeta e contador das coisas de São Roque e de todo o Vale. Godinho é autor do livro Ida e Volta, onde esmiúça, com talento e sensibilidade, as sensações, prazeres, tristezas e experiências de sua vida em uma analogia com as estações de trem por onde viajou na infância e juventude.

É Edson que conta: “Aí me apresentei, cantando e falando sobre São Roque — e eu falo muito no show — e aí terminou e o Roberto Godinho chegou e me falou (imita perfeitamente a voz de Godinho): ‘Puta merda, você gosta das coisa de São Roque? Vou te dar um livro que eu fiz falando das coisa de Cangüera, Goianã, Mairinque, e tal, você vai gostar’, daí ele fez esta dedicatória, aqui: ‘Ao companheiro Edson, quem anda no mesmo trem sempre acaba se encontrando em alguma estação’. E eu precisava terminar a música, e esse era o final que eu estava precisando. Devo ao Roberto Godinho”.

Eis a última estrofe, baseada na dedicatória de Godinho: “E quem viaja no mesmo trem/ Um dia se encontra numa estação/ O personagem João Gibão/ Pousando leve no meu vagão”. “Encontro” é a palavra perfeita. Encontro da poesia de Godinho com a poesia de Edson, encontro de dois trovadores, o encontro pessoal deles com o público e obras que são ponto de encontro para quem aprecia o “poetar”, essa sutileza artística na descrição dos fatos comezinhos da vida cotidiana. Eu mesmo, que acabo de chegar ao “Vale”, sinto que já estou no mesmo trem e já tive o prazer de encontrar ambos, às vezes em estações diferentes, às vezes na mesma.

João Bid e Edson D'aísa
Na hora de gravar, Edson chamou João Bid — que lhe inculcara a idéia inicial de um trabalho sobre sua cidade — para um dueto em Tua Obra, Teu Pão.

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A recompensa por esse trabalho dedicado e brilhante de composição musical e poética não se fez esperar: pouco depois do lançamento de Todos os Cantos do Vale, Edson foi avisado pela Câmara Municipal de São Roque de que haveria um concurso para a escolha do novo hino oficial do município, como parte das comemorações dos 350 anos de sua fundação. Embora pudesse pinçar entre várias das canções do cd aquela que melhor representava a cidade, Edson preferiu uma composição original. Escreveu o hino em parceria com o maestro Cândido Francisco Camargo Neto e venceu o concurso. Se Todos os cantos do Vale já transformara Edson no arauto de São Roque, o hino em parceria com o Maestro Cândido veio apenas oficializar esse título.

O próximo trabalho de Edson também tem ecos nessa pintura de São Roque: em 2004 a então secretária municipal de Cultura, Sílvia Melo, deu a idéia para que se fizesse um musical sobre a vida de Darcy Penteado. O professor e diretor teatral Humberto Gomes foi destacado para a criação e direção cênica, e Edson foi chamado para toda a parte musical. O projeto acabou não se concretizando, mas deitou raízes profundas em Edson. “O Humberto me chamava”, conta o compositor, “e dizia ‘olha, vamos fazer uma cena sobre o episódio tal da vida do Darcy, e precisamos de uma música’, e aquilo jorrava de mim. Eu considero essas composições verdadeiras parcerias que tive com o Darcy, e foi muito bacana”. Edson está trabalhando no arranjo das canções com o filho Mateus e está em vias de gravá-las em cd.

Edson, Natália e Bernardo
Aguardamos ansiosamente. Edson é um talento como poucos que temos visto. E está mais do que na hora de homenagear o grande esquecido Darcy Penteado.

Bernardo Schmidt e Natália Negro
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Ficha Técnica

Todos os Cantos do Vale
Canções de Edson D’aísa

Voz e Violão — Edson D’aísa
Contrabaixo, Violão Aço, Piano e Clarineta — Alex Silva
Flautas e Violão Nylon — Fábio Gouvêa
Cello — Jefferson Perez
Bateria e Percussão — Jackson Goulart
Acordeom — Beto Corrêa
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CD e Contatos para Shows:

D'aísa Produções Culturais
Tel: 11 99795 0117

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Os 50 Anos de "Vida e Poesia de Olavo Bilac", de Fernando Jorge


O leitor pudibundo talvez se escandalize com esta passagem da vida de Bilac, mas o biógrafo consciencioso tem a obrigação de contar a verdade. A existência de um homem que não foi santo, nunca pode ser um romance cor-de-rosa, como as histórias ingênuas de Ardel e Delly. (Fernando Jorge, 1963)

Lançado em setembro passado, o livro vem se mantendo na lista dos “best-sellers” nacionais, fato que se dá pela primeira vez, em se tratando de biografia. (Shopping News, 3/11/63)


Fernando Jorge adentrou a década de 60 com um nome elogiado no meio literário. Seus livros, até então — Vidas de Grandes Pintores do Brasil, As Mãos na Ciência, na História e na Arte e Água da Fonte (crônicas) — estavam todos liquidando edição trás edição. Ele contava com expoentes da intelectualidade como Manoel Bandeira, Fidelino de Figueiredo e José Lins do Rego entre seus admiradores e nem mesmo o estrondoso tropeço de 1960/1961 — quando escreveu dois livros que foram lançados como tendo sido escritos por Wilson Moreira da Costa (fato que esmiuçarei em post futuro) — o impediu de refundir e ampliar seu livro de estréia, Notas Sobre o Aleijadinho, transformando-o em O Aleijadinho, Sua Vida, Sua Obra, Seu Gênio, e com isso acabou laureado com o prêmio Jabuti, em 62.

No mais, seus trabalhos eram bem escritos e bem documentados, e ele vinha despontando como grande historiador das artes, no Brasil. Convites havia, inclusive, para que espraiasse suas pesquisas a respeito dos artistas plásticos brasileiros e Fernando chegou a reunir toda a documentação necessária para escrever a biografia do pintor ituano Almeida Júnior. Infelizmente (por razões que nem para mim, que me considero amigo do escritor, são compreensíveis), o projeto foi engavetado.

Por essa época Fernando já andava às voltas com a pretensão de biografar o famoso “príncipe dos poetas brasileiros”, Olavo Bilac. Amante da poesia desde sempre por inclinação própria e por influência do pai — o inspirado poeta Salomão Jorge — Fernando amou a poesia mas preferiu não se arriscar nesse terreno literário, onde brilhava a estrela de seu progenitor. Não se furtou, entretanto, de dar sua contribuição ao universo poético através do estudo meticuloso da vida do fluminense Bilac, que simbolizou o parnasianismo e a chamada “boêmia” do século XIX. Um dos responsáveis pela iniciativa — e é o próprio Fernando que o afirma — foi o editor Eli Behar, dono da editora Exposição do Livro, que muito incentivou Fernando a se debruçar sobre a vida e a obra de Bilac.


 Bilac, na juventude

O poeta já tinha dois ou três biógrafos anteriores e mais uma dezena de escritores e cronistas da época que deixaram em letra de fôrma suas lembranças dele. Fernando não se intimidou. Segundo ele próprio declarou, “é verdade que Elói Pontes tem uma obra em dois volumes sobre Bilac. Mas o trabalho de Elói Pontes, embora seja rico em documentação, é caótico, não possui ordem cronológica, seguimento lógico. E além do mais ele se limita a transcrever trechos de outros autores, de modo que ao seu livro falta exegese, interpretação psicológica” (Diário de S. Paulo, 9/9/63). Fernando foi educado, nessa entrevista. O que pensava sobre o cartapácio de Elói Pontes, de fato, era o que lhe tinha sido dito por Aggripino Grieco, ou seja, de que a tal biografia “parece um cartório em desordem, com os livros esparramados pelo chão”.Pondo mãos à obra, queimou as pestanas na leitura de tudo o que havia sobre o poeta. Durante quatro anos “consultou doze bibliotecas, quatro arquivos, centenas de exemplares de treze jornais que se editavam na época do poeta, além de ter compulsado toda a bibliografia e obra de Bilac. Recolheu também nove depoimentos orais de contemporâneos do poeta”. (Última Hora, 16/10/63)

Em meados de 1963 já estava com o livro pronto e, em busca de um prefaciador que revestisse a solidez documental de sua obra com o verniz inatacável da glória literária, abordou Menotti Del Picchia. O célebre modernista gostava de Fernando, tecera comentários entusiásticos sobre Água da Fonte e seguramente aceitaria com prazer o encargo. E assim foi feito. Fernando apresentou-lhe os originais de seu trabalho e dias depois, concluída a leitura e verificando que o livro descrevia, com bom gosto, mas sem quaisquer restrições puritanas, as bandalheiras de Bilac, Menotti observou que algumas passagens do livro poderiam ser cortadas. Fernando respondeu que não inventara nada e que todos os episódios da biografia já haviam sido “evocados em livros de memórias”, e que eliminá-los seria “um ato de hipocrisia”. Segundo Fernando, Menotti teria respondido laconicamente que “isto não tem importância, é apenas uma questão de gosto” (Fernando Jorge, 1999). O livro — Vida e Poesia de Olavo Bilac — foi, portanto, sem cortes e censuras de nenhum tipo para a gráfica.



Menotti Del Picchia

Mais da metade do prefácio de Menotti é a tediosa transcrição de um aranzel sobre biografias que ele pronunciou na Academia Brasileira de Letras oito anos antes, para receber o escritor e político baiano Luiz Vianna Filho. Quando se refere, efetivamente, a Fernando e à biografia de Bilac, o faz em tom de admiração. O modernista principia dizendo que “Bilac tem, agora, através do carinho de Fernando Jorge — o consagrado e premiado evocador de O Aleijadinho — uma nova encarnação biográfica. É interessante registrar como a sensibilidade e o talento de um moço [Fernando tinha 35 anos] da presente geração literária focaliza a figura do poeta que foi o mais alto expoente lírico da sua época”. Menotti comenta as deformações que pode sofrer um biografado nas mãos pouco cuidadosas de certos biógrafos, mas ressalta: “Bilac não corre tal risco. Fernando Jorge, escritor de raça, procurou retratar, com o máximo de fidelidade, a figura do grande poeta”. Mais à frente ele segue no elogio a Fernando:

Esta esplêndida biografia de Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac — legítimo príncipe dos poetas do seu tempo — traz chancela de autenticidade. O jovem autor, já consagrado mestre do gênero, com sua Vida dos Grandes Pintores Brasileiros [sic] — honesto Vasari dos artistas plásticos nacionais — não quis inventar um Bilac a seu gosto e capricho (...). Esta biografia de Fernando Jorge, que com erudição, sensibilidade e amor reevoca a figura do artista permanentemente vivo da “Via Láctea”, “Sarças de Fogo”, “Tarde”, é uma oportunidade (...) para se reavaliar a grandeza do artista, visto, neste prefácio, com os olhos da geração de 22 e estudado, no texto desta magnífica biografia, pela inteligência sensível, culta e moça de esteta e de um ensaísta de 1963.

A polêmica futura em torno dessa biografia começa, de certa forma, nesse episódio de Fernando com Menotti. Quais seriam as passagens que o modernista julgava que deveriam ser retiradas do livro? Não é difícil deduzir, mesmo para quem não conhece esta história. Olavo Bilac, hoje, quase 100 anos após sua morte, é mito, lenda, figura de bronze, medalhão. Porém, nada mais distante da realidade do poeta, que viveu intensamente os seus 53 anos de vida. Era homem honesto, generoso e de bons princípios, isso ninguém contesta, mas desde cedo entregou-se de corpo e alma à “boêmia”, vivendo a maior parte do seu tempo nos bares, botequins, restaurantes e, de madrugada, nos “conventilhos” que grassavam pelo centro do Rio. Foi expulso de casa aos 19 anos, pelo pai que não tolerava mais vê-lo chegar altas horas, sempre bêbado, na companhia de outros “noctâmbulos”, seus colegas de estroinice. Fernando encontra na vocação poética de Bilac a explicação para seus costumes:

Toda aquela geração literária bebia em excesso. E isto se explica. Os escritores e poetas, no século anterior, reuniam-se em bares e confeitarias. Existia o que se chama a “boêmia dourada”. Nada mais natural, assim sendo, que gostassem do álcool, este íntimo companheiro de tantos habitantes do país das quimeras. (...) No século passado os nossos escritores e poetas amavam a boêmia como se esta fosse uma arte digna de ser enaltecida e cultivada. A boêmia era um estado de espírito muito especial, oriundo de uma época mais romântica do que realista. (Fernando Jorge, 2007).



Coelho Netto, Luiz Murat e Bilac

Dourada ou não, essa boêmia maculou gravemente a reputação do poeta. Cruz e Souza, por exemplo, poeta simbolista e, portanto, adversário do parnasiano Bilac, chegou a dizer que “se o Bilac fosse capaz de uma grande missão artística, como blasonam os seus turibulários, não se daria a mundanidades equívocas nem se gastaria nessa estéril boêmia de botequins e noitadas”. Afrânio Peixoto, em depoimento que, assim como o de Cruz e Souza, consta do livro de Fernando, vai direto na ferida: “Quando cheguei ao Rio [no fim do século XIX], a fama de Bilac era execrável. O mundo havia-o por bêbado, desordenado e até de costumes pervertidos”. Não os tinha, como já vimos. Era um homem como qualquer outro, mas muitas de suas histórias envolvendo bebida e mulheres acabaram documentadas por amigos — como Coelho Netto e Martins Fontes — e espíritos de porco — como Medeiros e Albuquerque e Humberto de Campos.

Nos relatos desses memorialistas são várias as vezes em que não se percebe a linha que separa a historieta cômica, divertida e inofensiva, da mais pura e rematada indiscrição. Como Olavo, no fim da vida, recebeu o título de “príncipe dos poetas” e envolveu-se, durante a primeira guerra, em forte campanha nacionalista, a sensação é de que um grande esforço foi feito pelos pósteros para extirpar da história do poeta sua ligação permanente com a boêmia, e transformá-lo em um santo.


Fernando, como o biógrafo exemplar que sempre foi, se preocupou única e exclusivamente com a verdade. O que o movia era o intento de contar a vida de Bilac em seus diversos matizes, na pluralidade de suas atitudes e de sua personalidade. Se um ou outro fato possuía o potencial de turvar a reputação do poeta, não era seu problema; não entrava em suas cogitações escrever um panegírico, e o certo é que, em se tratando de documentação idônea, tudo quanto pudesse descrever Bilac de corpo e alma, para o bem ou para o mal, tinha que ser apresentado ao leitor, para que este tomasse sua decisão. 

Pessoalmente, concordo com Fernando (foto ao lado), admiro a escolha das fontes e admiro ainda mais a criteriosa utilização dessas fontes. Como biografia, Vida e Poesia de Olavo Bilac é impecável do início ao fim. É um belíssimo retrato do grande poeta, e do ser humano por trás desse poeta. Não perderei tempo com os elogios e direi aquela que é, talvez, minha única restrição: no afã de desmentir o boato de que Olavo era um poeta “álgido”, ou assexuado, Fernando cansa um pouco com seus comentários acerca do “discutido erotismo de Bilac”. Por todo o livro há conceitos do tipo “os grandes aedos, quase sempre, são aqueles que amaram de modo viril, conseguindo sublimar no verso a incoercível força do sensualismo”, questões dispensáveis como “o erotismo de Bilac teria sido exclusivamente cerebral?”, psicologismos risíveis como “Bilac talvez fosse dono de uma sexualidade espiritualizada”, “a angústia expressa nestes versos parece derivar do erotismo reprimido”, pernosticismos inúteis como “o ato genésico também se coaduna com o amor puro, abstrato”, “o poeta também expressa, acima, uma insopitável ânsia pelo conúbio carnal”, e assim por diante.


Se Fernando desejava provar que Bilac era um vulcão de energia sexual reprimida, conseguiu. Não precisava psicologizar tanto. Os poemas de Bilac sobre as mulheres geralmente são mais do que suficientes para isso. Inobstante este defeito mínimo, o livro estava pronto (capa da primeira edição, ao lado), era um documentário extraordinário e traçava admirável painel literário do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e seus luminares, como Arthur Azevedo, Raimundo Corrêa, Alberto de Oliveira, Luis Murat, Machado de Assis e etc. Fernando narrou o duelo absurdo de Bilac com Pardal Mallet, a amizade com Guimaraes Passos e José do Patrocínio, as pândegas com Emílio de Menezes, a troca de infâmias que levou Raul Pompéia ao suicídio, as viagens a Paris, as prisões no governo de Floriano e o exílio campestre em Minas.

Além disso trazia, pela primeira vez, um relato completo sobre o romance de Bilac e Amélia de Oliveira (irmã de Alberto) e Fernando estava preparado para mais um grande sucesso, depois do invejado Jabuti. O lançamento ocorreu no dia 12 de setembro de 1963 na prestigiosíssima Livraria Teixeira, na rua Marconi, 70, e foi promovido por Eli Behar e a Exposição do Livro em parceria com Mário Donato, presidente da União Brasileira de Escritores, e Hélio Silveira, secretário do Conselho Estadual de Cultura. Nos primeiros dias a recepção da crítica foi ótima, Herculano Pires, Geir Campos e Aggripino Grieco celebraram a obra em artigos positivos, destacando o exaustivo trabalho de Fernando. O livro foi rapidamente subindo os degraus entre os mais vendidos.
 


Painel literário do Rio na segunda metade do século XIX: Almoço no Hotel Rio Branco em que comparecem, em pé (da esq. Para a dir.), Rodolfo Amoedo, Arthur Azevedo, Inglês de Souza, Olavo Bilac, José Veríssimo, Souza Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio e Heitor Peixoto. Sentados, João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos.

Até aquele momento ninguém dera a mínima para o fato de que Fernando desvestia o santo e mostrava-o em trajes humanos; público e crítica vinham consumindo o livro com o prazer de quem é introduzido, ou está finalmente conhecendo em profundidade aquela pessoa de quem todos ouviram falar, e cujos poemas estavam nas bocas dos pais e avós de toda aquela geração. No fim de setembro começaram a chegar as cartas e os telefonemas a Fernando e à editora, misturando elogios e reclamações pela forma como o autor descrevia a vida pessoal do poeta. Eli Behar organizou dois lançamentos no Rio de Janeiro para o mesmo dia, 1º de outubro. Segundo Quirino da Silva, o afamado crítico de arte do Diário da Noite de São Paulo, “na Guanabara o livro deu ‘sururu’. Fernando teve logo atacantes e defensores. E por que houve ‘sururu’? Porque o livro é bom. Logo, cabe aqui o velhíssimo rifão: ‘só se atiram pedras contra árvores que dão frutos’”. (Diário da Noite, 10/10/63)


Se iniciou uma verdadeira guerra contra e a favor do livro. No dia 11 de outubro foi a vez do jornalista Leonardo Arroyo dar sua contribuição aos admiradores da biografia, em artigo primoroso na Folha de S. Paulo; no dia 13 entrou na arena o crítico literário Ary da Matta, que publicou comentário violentíssimo no Diário de Notícias, do Rio, com o título de Ausências de Bilac:

Vida e Poesia de Olavo Bilac, do Sr. Fernando Jorge, nada acrescenta ao conhecimento trivial que as vulgarizações mais pobres nos concedem sobre seu biografado. (...) Um anedotário picaresco, fronteiriço do ‘declassé’, despe a casaca dos deuses para exibi-lo em ceroulas e mangas de camisa, num esforço inconsistente de ridicularia aviltante e inconseqüente, que nada constrói nem pode ser levado à conta de literatura. (...) Como técnica biográfica Vida e Poesia de Olavo Bilac fica confinada à área de irresponsabilidade, de mexericos e fofocagens abastardantes e exultantes, não importa a bibliografia citada e na qual nada existe que possa suspeitar a presença da correspondência de Bilac. É obra de terceira mão, uma das mais violentas incompreensões de análise literária, sem outros méritos que lhe justifiquem a notoriedade pré-fabricada de reportagens e entrevistas de televisão.

A paulada de Ary da Matta teve uma única conseqüência: decuplicou a vendagem de Vida e Poesia de Olavo Bilac. Se o livro já vinha obtendo boa acolhida entre o público letrado, imagina-se qual não terá sido o efeito de um termo como “fofocagens abastardantes” para os consumidores de baixa literatura. A guerra continuou; Alceu Amoroso Lima (que aliás é autor da epígrafe escolhida por Fernando para abrir o primeiro capítulo) não gostou e declarou que o livro nada acrescentava à literatura; Nestor Holanda gostou e rebateu o que disse Matta, sobre o livro de Fernando ser sobre reles mexericos: “Vida e Poesia de Olavo Bilac é, na literatura brasileira, um livro sensacional. Mas não vamos confundir isto com literatura sensacionalista, porque Fernando Jorge é um homem de cultura, pesquisador, dono de excelente estilo e, por conseguinte, sua obra merece respeito e louvores” (citado em Shopping News, 3/11/63).




Artigos eram publicados sobre o assunto todos os dias e o livro ia desaparecendo das lojas. Fernando passou a dar entrevistas para refutar as acusações que seu trabalho vinha recebendo. “Não sou anti-Bilac como alguns críticos escreveram [refere-se a Ary da Matta]. Sou apenas verdadeiro. Tudo que escrevi chegou ao meu conhecimento em documentos e através de depoimentos orais dos que testemunharam os fatos. Os episódios, por outro lado, não desmerecem a obra de Bilac”. A frase seguinte é lapidar: “Se a verdade desagrada, culpem a realidade. Não posso inventar um Bilac para a memória dos puritanos e quebrar a autenticidade do livro” (Última Hora, 16/10/63).

Em entrevista ao jornalista e amigo Hélio Siqueira, sob o título “Biógrafo afirma: Olavo Bilac era um bêbedo” (frase que Fernando negou ter dito, pouco depois), Fernando foi ainda mais incisivo (e brilhante) ao falar de seus detratores:

Na realidade esta celeuma existe porque no Brasil os biógrafos só pintam as grandes figuras, os grandes intelectuais, os políticos de nomeada, com tintas cor de rosa. Omitem, propositadamente, seus defeitos, suas fraquezas humanas. Fazem panegírico. Assim, depois de algum tempo, esses grandes vultos das letras ficam intocáveis, transformando-se em autênticos ‘tabus’. Os defensores de Bilac continuam desejando uma mentira, isto é, que o grande poeta era uma criatura de vida morigerada, pacata. Entretanto, a verdade histórica não pode admitir esses pruridos extemporâneos. Bilac era realmente um homem que se excedia nas libações alcoólicas. (...) Doa a quem doer, mas é a verdade. E um biógrafo honesto não pode escrever biografias para agradar adeptos e familiares dos biografados. Tem que se ater à verdade histórica. Foi o que fiz. (Diário da Noite, 18/10/63)

No início de novembro, em meio à barafunda causada pelo livro no meio intelectual, Fernando decidiu responder à crítica de Ary da Matta e o fez através de jornais e programas de televisão, sobretudo o de Flávio Cavalcanti, de quem o autor era amigo. Mas é claro que em se tratando de Fernando Jorge, a resposta não poderia ser séria; não teria a menor graça iniciar polêmica com um crítico pouco conhecido, tentando explicar a razão pela qual não era desrespeito mostrar Bilac como um homem normal, que aqui e ali fazia sexo com prostitutas (fato constante do livro que mais parece ter horrorizado o puríssimo Matta). Fernando preferiu manter-se no nível da zombaria e inaugurou expediente que usaria mais vezes no futuro: se defendeu atacando. Ao invés de refutar as carolices de Matta, Fernando esquadrinhou um livro de história do crítico e enumerou quatro ou cinco erros, que acusou em tom de galhofa.


Disse que se Matta “tivesse que prestar exames de admissão ao ginásio seria fatalmente reprovado nas cadeiras de Português, Geografia, História do Brasil e Literatura”. “Faço esta afirmação”, prossegue Fernando, “baseado numa rápida leitura de um de seus livros didáticos, onde encontrei, ao acaso, dezenas de erros gravíssimos, imperdoáveis, porquanto o referido livro (...) é adotado pela maioria dos nossos estabelecimentos de ensino”. Na seqüência aponta erros de Matta sobre Amador Bueno, sobre Anhangüera, sobre Aleijadinho e assim por diante (Diário do Comércio, 10/11/63). Matta treplicou reclamando que Fernando não refutara suas acusações e limitara-se a encontrar defeitos em seu livro.

Destaco apenas um trecho do artigo, publicado pelo Diário de Notícias no dia 17 de novembro: “Sr. Fernando Jorge que suponho, mal inspirado e pior aconselhado por seus áulicos lisonjeiros (e aqui as cruéis desvantagens do moço abastado e rico herdeiro) não amadureceu como intelectual”. Além de ser uma frase mal-escrita, é um comentário baixo, indigno. Em primeiro lugar Fernando — formado em Direito e Biblioteconomia — tinha um emprego modesto, o de bibliotecário da Assembléia Legislativa, que obteve por concurso e não pelo fato do pai ter sido deputado estadual; em segundo lugar, ele não era nem abastado e nem rico herdeiro; vivia existência franciscana com a esposa, no subúrbio, quase sempre faltava-lhe dinheiro (razão pela qual aceitou ser ghost-writer de Wilson Moreira da Costa, conforme contarei, em breve), e qualquer que tenha sido a herança que Salomão Jorge deixou quando morreu (quase trinta anos depois) — e não deixou nenhuma, porque era perdulário e gastou todo o dinheiro que ganhou na política e na literatura — não foi só para Fernando, e sim para ele e uma penca de irmãos. O escritor não viu mais graça na polêmica e a coisa parou por aí.

A essa altura foi a Academia Brasileira de Letras que resolveu se meter. Era uma boa oportunidade para quebrar a pasmaceira em que vivia aquele depósito de velhos inúteis. Oficialmente, a razão era a alegação de o livro manchava o nome imaculado do poeta. Presidente da academia, Austregésilo de Athayde declarou: “Não é possível que uma personagem tão rica de humanidade e de vida, um poeta de sua grandeza e significação, seja apresentado ao público apenas no seu aspecto anedótico, e tantas vezes depreciativo, como no citado livro” (citado em Folha de S. Paulo, 22/11/63). Extra-oficialmente, como se verá mais à frente, era bem outra a razão para a academia entrar numa polêmica com a qual não tinha rigorosamente nada a ver.



Em 21 de novembro a colunista social do jornal Última Hora, Alik Kostakis, deu a medida do sentimento geral: “O livro de Fernando Jorge sobre Olavo Bilac está provocando polêmicas tremendas. Elogios e ataques de todos os lados. Acho que Fernando está com a bola branca: só quando tem méritos uma obra é assim discutida”. Estava certa. Um novo round dessa briga estava prestes a começar. A Manchete, que na época rivalizava com O Cruzeiro pelo título de revista mais importante do país, convidou Fernando para uma grande reportagem, que seria escrita pelo jornalista Esdras Passaes.

Raymundo Magalhães Jr. — membro da ABL, colaborador da Manchete e desafeto notório de Fernando e de Salomão Jorge — ficou histérico quando soube que o livro sobre Bilac seria comentado na revista. “Fui à redação da Manchete e lá”, conta Fernando, “enquanto falava com o secretário Arnaldo Niskier, ouvi gritos, o barulho de uma briga, de uma discussão feroz”. O escritor perguntou a Niskier o que estava havendo. O secretário respondeu: “Está havendo uma briga. É o R. Magalhães Jr. que discute com o Justino Martins [diretor da Manchete], porque este quer fazer uma reportagem sobre o seu livro e o Magalhães não quer”. O argumento de Magalhães é que a documentação do livro seria suspeita, o que causou hilariedade a Fernando, que utilizara dois livros do próprio Magalhães na pesquisa. Niskier “bateu com a mão direita no cotovelo do seu braço esquerdo” e disse: “Não ligue, Fernando, o R. Magalhães Jr. está com dor de cotovelo, com uma bruta inveja do sucesso do seu livro, porque as biografias dele não são muito vendidas, ficam encalhadas nas livrarias” (Fernando Jorge, 1999).



A reportagem da Manchete saiu no nº 605 da publicação, em 23 de novembro de 1963. Faz um resumo da polêmica até aquele momento e pinça algumas passagens saborosas do livro. Seu único destaque, de fato, é revelar que Corina, sobrinha octogenária de Bilac, desmentia todos os episódios pessoais narrados por Fernando em seu livro; segundo ela Bilac não bebia, não era boêmio, era homem sério mas não tinha temperamento para se casar, era refinadíssimo e jamais seria visto em lupanares, enfim, era um santo. Indignado com a publicação, Raymundo Magalhães fez publicar seu próprio artigo sobre a biografia no dia seguinte, 24 de novembro, pelo Diário Carioca, sob o título “Um Biógrafo de Olavo Bilac”.



Abro um pequeno parêntese: quando Fernando publicou a segunda edição do livro, em 1972, ele comentou as críticas de Ary da Matta e de R. Magalhães. Disse que conquanto discordasse do puritanismo de Matta, não negava que este realizara uma “análise honesta, imparcial”. Já em relação a Magalhães, afirmou que o cearense caíra “no destampatório, começou a urrar, a investir às tontas, e isto numa tediosa e longa moxinifada”. Fernando está certo. Vamos aos fatos, porque é interessante analisar este aspecto da polêmica, passados tantos anos, extintas as paixões e mortos tantos dos seus protagonistas.

Eu pretendia publicar o artigo de Raymundo na íntegra, mas ele incorre naquela que talvez tenha sido a pior de suas várias deficiências: a citação excessiva. No desejo eterno de ser substancioso, Magalhães encheu muitos de seus livros e de sua obra jornalística com transcrições intermináveis, o que inutiliza boa parte de tudo, e torna a parte restante de leitura difícil e cansativa. No caso em questão, 50% do artigo é de citações do livro. Nos outros 50 há uma crítica pessoal e raivosa. E o que mais entristece, nisso tudo, é que se soubesse escoimar seu texto das citações gigantes ou do “destampatório”, teríamos uma crítica razoável, porque alguns dos defeitos apontados por Raymundo procedem. Vejamos:

Raymundo começa criticando a “nota preliminar” com que Fernando segue o prefácio de Menotti. Diz que é “uma espécie de profissão de fé, de manifesto literário ou estético, em que o afilhado de Menotti não pode ter deixado de envergonhar o padrinho, tais as suas tiradas declamatórias enfáticas, pedantes, no pior gosto literário que é possível imaginar. (...) O rigoroso esteta é também rigoroso moralista, em verdadeira revolta contra um mundo em que o seu espírito não encontra clima propício”. Assiste razão a Raymundo; essa “nota” é inútil e vem num tom emocional e panfletário que destoa do livro. Só que o cearense utilizou praticamente metade do artigo com a citação da nota, e as três ou quatro linhas acima para comentá-la. Se possuísse a frieza e o equilíbrio de Ary da Matta, teria sustentado dignamente seu ponto de vista.



Na seqüência Magalhães critica a ótica pela qual Fernando decidiu retratar Bilac (ao lado, no inconfundível traço do grande J. Carlos). O cearense esperava que o autor desse ênfase “à sua ação patriótica, aos seus esforços pela divulgação da cultura no Brasil, ao conferencista e ao professor de civismo, ao poeta parnasiano estudado sob um critério novo”. Bola fora. Cada biógrafo tem um critério pelo qual enfoca seu biografado e Fernando utilizou um critério diversificado e abrangente, que não deixou de fora nenhuma das múltiplas facetas de Bilac, sobretudo sua poesia. Magalhães, pelo jeito, preferia o enfoque patrioteiro, chapa branca, encomiástico e vazio, valorizando o período final do poeta, quando saiu pelo Brasil afora e, “como um flautim que quisesse ser trompa”, segundo o comentário perfeito de Aggripino Grieco, “concitou os moços à defesa da pátria, não ameaçada, aliás, por ninguém, fazendo-se o D’Annunzio dos batalhões acadêmicos” (Fernando Jorge, 2007).

Magalhães continua em sua “moxinifada”, dizendo que “a expectativa do leitor é burlada por uma narrativa frouxa e descosida, por uma exagerada preocupação com o anedótico, o episódico, o burlesco (...). Lendo tal livro, tem o leitor a impressão de que Bilac era um sujeitinho gracejador e irresponsável, pertencente a uma súcia de gaiatos mais ou menos desocupados, que levavam a vida entre brejeirices e anedotas, pregando peças a Deus e o mundo”. Bola fora. A primeira parte é a opinião pessoal, biliosa e envenenada do jornalista; a segunda é o cearense meramente engrossando o coro dos moralistas que foram obrigados a admitir que Bilac não era um nefelibata; caracterizá-lo como “um sujeitinho gracejador e irresponsável, pertencente a uma súcia de gaiatos mais ou menos desocupados”, é, ironicamente, sem qualquer maldade, uma boa definição para o poeta.


Aproximando-se do fim, R. Magalhães acusa o gongorismo de Fernando:

Falando de Amélia de Oliveira, irmã do parnasiano Alberto de Oliveira, de quem Bilac foi noivo, diz Fernando Jorge: “Ela o levou às regiões auriflamantes do amor e à voragem do desespero, da angústia sem remédio”. (...) Quando o biografado vai de bonde fazer um piquenique na Tijuca, com boa cerveja e leitão assado, a coisa começa assim: “Certa manhã ridente, de céu azul, adamantino, com nuvens brosiadas de ouro, Olavo, em companhia de vários amigos, iniciou uma excursão à Tijuca”. (...) Custa a crer que ainda se escrevam biografias, no nosso tempo, em linguagem tão florida e lantejoulada, que lembra os maus folhetinistas da época romântica. (...) É a suma do acacianismo.

Bola dentro. Descontando, como sempre, o monte de citações e a grosseria desnecessária, o cearense acertou em cheio. Fernando era gongórico e adjetivava demais. E a prova de que tinha a humildade para aprender com as críticas — mesmo quando vinham de mesquinhos e recalcados como Magalhães — é que nas edições posteriores ele desbastou os adjetivos no episódio da excursão à Tijuca. Magalhães conclui com um vomito de acidez, no qual, por sinal, acaba acusando suas intenções veladas: “Poeta infeliz tem sido Bilac. Ainda não encontrou seu verdadeiro biógrafo. (...) Bem sei que não é justo comparar coisas tão heterogêneas, mas em face de uma obra assim, ainda podendo incidir num anátema de Fernando Jorge, direi francamente: ainda prefiro um bom chute de Pelé”. (A referência é zombaria de Magalhães com a “nota preliminar” de Fernando, na qual este reclama que estava vivendo uma época “em que os grandes homens do nosso país são os jogadores de futebol”.)


O cearense (na foto ao lado, envergando o fardão em reunião da ABL) provavelmente esperava e desejava uma resposta para poder lucrar com o prestígio de uma polêmica na grande imprensa carioca, mas Fernando não passou recibo. Entrevistado por Flávio Cavalcanti, Fernando pilheriou: “Eu também prefiro um bom chute de Pelé, mas com uma condição: desde que a bola seja a cabeça horrorosa do R. Magalhães Jr.” (Fernando Jorge, 1999) No dia 30 a Gazeta publicou um artigo no qual parecia detectar a razão para o descontrole de R. Magalhães: “Alguns críticos receberam o livro (...) visivelmente contrariados. Até parece que cada um deles tinha guardado na gaveta ou no pensamento uma obra idêntica... Pois não foi um caso assim o acontecido há poucos anos entre dois ilustres críticos brasileiros? Ambos trabalhavam em surdina uma história da literatura brasileira; um deles se antecipou na publicação da obra e o outro pegado de surpresa, não se contendo, explodiu”. Começava a ficar bem claro o motivo da histeria de Magalhães e da academia, que ele bem ou mal representava.


A confirmação veio em uma conversa entre Fernando Jorge e o amigo Vianna Moog, que era acadêmico: “Fernando, o Magalhães tem atacado o seu livro sobre Bilac (na foto ao lado, passeando pelas ruas do Rio) porque você cortou a asa dele. Antes do lançamento do seu livro, o Magalhães declarou na academia que ia publicar a biografia definitiva do Olavo Bilac, mas aí apareceu a sua obra e ele se sentiu frustrado” (Fernando Jorge, 1999). Essa, portanto, era a razão para tanta irritação. Convém lembrar que Raymundo vivia se estranhando tanto com Salomão Jorge — que o acusava por seus erros na elaboração de algumas enciclopédias, e com quem mais tarde teria uma polêmica própria, por conta do livro de Magalhães, Ruy, o Homem e o Mito — quanto com Fernando, que já se referira a ele pela imprensa como “foliculário cearense”. Ver seu plano de biografar Bilac abortado por um escritor que não era nem nascido quando ele já escrevia para jornais, no Ceará, era demais para Magalhães. Resultado: os acadêmicos proibiram simbolicamente a entrada do livro de Fernando no Petit Trianon.

Outros repositórios de nulidades — como a Academia Paulista de Letras, a Liga de Defesa Nacional, e assim por diante — seguiram o exemplo da ABL e formularam protestos formais contra o livro. Telegramas e mais telegramas condenando “o detrator de Bilac” foram enviados às colunas literárias dos jornais. Um caso curioso foi o telegrama condenatório de uma instituição chamada “Casa do Poeta”, enviado a jornais e revistas. Dias depois o presidente desse grêmio, Bernardo Pedroso, enviou telegrama aos mesmos veículos de imprensa desmentindo com veemência a comunicação, que afirmou ser apócrifa. Também vieram telegramas de solidariedade, como no caso da Câmara Brasileira do Livro e de duas das instituições que patrocinaram seu lançamento: o Conselho Estadual de Cultura e a União Brasileira de Escritores.

Menotti Del Picchia, que até o momento mantivera-se silencioso, achou por bem manifestar-se sobre a polêmica. E não o fez para defender o “afilhado”, como se esperaria de um homem arejado, sensível, inteligente e, sobretudo, integrante da Semana de Arte Moderna. Pelo contrário; limitou-se a escrever uma carta e pediu que ela fosse lida em sessão da academia, por Austregésilo de Athayde. Para que se tenha uma idéia do que se discutia nessas sessões, basta dizer que feita a leitura, o velho jurista Levi Carneiro, com 81 anos, comentou que ainda não lera o livro de Jorge Andrade, mas que considerava Bilac um “magnífico orador, destacado que foi não só pela elegância da sua presença como também pelo magnífico timbre de voz” (Jornal do Comércio, 3/12/63).

Athayde leu a carta de Menotti na sessão do dia 21 de novembro, mas como ninguém dava a mínima para o que se passava no interior das catacumbas do Petit Trianon, Fernando só foi saber da leitura pela imprensa dias depois. Sob o título de “Biografia de Bilac”, eis o que diz Menotti:

Publicada a “Vida e Poesia de Olavo Bilac”, cujos originais Fernando Jorge me deu para ler e cujo prefácio me pediu, verifiquei, pelos reparos agora feitos pela crítica, que o jovem escritor paulista não atendeu às solicitações que lhe fizera de escoimar seu texto de certas passagens que me pareceram inconvenientes.

Menotti bate e assopra. Em um parágrafo diz que “tal o entusiasmo do biógrafo pelo que foi nosso poeta máximo no seu tempo, que seu propósito era tirar-lhe um póstumo retrato nítido e autêntico, tentando uma recriação exata da vida boêmia do artista que nos deu tantos poemas definitivos”. De fato. Só que no parágrafo seguinte ele diz que “a meticulosidade” com que Fernando quis biografar o poeta levou-o “a entrar em certos episódios da fase moça e boêmia da vida de Bilac, que, para mim, exatos ou não, não deveriam ser relembrados, não por conterem qualquer indignidade, mas por ser de todo dispensáveis, dado que não concorreriam para o objetivo do autor, o qual seria, mais uma vez, exaltar o criador de ‘Caçador de Esmeraldas’”. Não é verdade. Menotti se contradiz, porque em um período Fernando deseja o retrato “nítido e autêntico”, e no seguinte o objetivo seria o de “exaltar”, pura e simplesmente, o poeta, o que, com efeito, nunca foi o objetivo de Fernando. O modernista prossegue:

Observei-lhe que tais tópicos deveriam ser excluídos do texto. Ele replicou que se tratava de fatos já conhecidos, porquanto, como documentava o livro, eram depoimentos ou memórias de amigos do mestre cuja publicação correra em livros e jornais. No seu intuito de ser cronista exato, não via o que pudesse denegrir a memória do nosso maravilhoso poeta. Aliás, à época em que haviam ocorrido esses episódios vividos pelo autor dos sonetos imortais da “Via Láctea” e da “Tarde”, era de franca boêmia. Ainda agora, Josué Montello, com muito humor e não menor respeito, relembrou o rico anedotário do grupo luminoso e jovial ao qual pertenceu Bilac e eu mesmo, nesta coluna, já rememorei certas passagens pitorescas da vida desse inesquecido e tão vital homem-artista que foi o querido de Martins Fontes. Coisas humoradas, apimentadas algumas, porém nunca escabrosas.


Exatamente. Acima (e na foto ao lado) Menotti relata com absoluta precisão o que se passou. Só que, mais uma vez, no período seguinte o modernista se contradiz:
 

Fernando Jorge achou justas minhas censuras. Prometeu mondar [cortar] sua biografia dessas passagens para não escandalizar os excessivamente sensíveis — os há ainda? — atendendo assim a eliminação do que eu achava prudentes reparos. (...) Verifico agora que Fernando Jorge não atendeu minha advertência. Lamento-o profundamente porque, o que não foi cortado e põe sombras no retrato que o jovem biógrafo talvez sonhasse exato e luminoso, não pode ser atingido pelo cálido carinho do prefácio no qual procuro traduzir o amor e o entusiasmo que minha geração revolucionária de 22 tinha pelo Mestre, incontestavelmente um dos maiores artistas da raça. (Gazeta, 12/12/63)

Pobre Menotti. No âmago devia saber que seu texto era um poço de contradições e que não havia nada que merecesse qualquer tipo de censura no livro que prefaciara com “cálido carinho”. Vale registro que esse texto teve, pelo que pude apurar, três publicações: na Gazeta, no Diário de Notícias e nos anais da ABL para o segundo semestre de 63, e há pequenas modificações em todos eles. Parece que, pego de surpresa no tumulto causado pela biografia de Bilac, Menotti procurou melhorar o texto a cada publicação, na tentativa de apaziguar os contendores de cada lado. Fernando, porém, não o perdoou. Eis o que diz sobre o momento em que conheceu o conteúdo da carta de Menotti:

Senti-me enojado, ao terminar a carta. Ó mentira, ó hipocrisia! Menotti, eis o fato real, havia aceitado as minhas objeções, os meus argumentos lógicos, e não insistiu comigo para eu lhe atender a solicitação. Ele não me convenceu com o seu reparo e também não prometi, na sua frente, emendar [o texto nos anais da ABL falava em “emendar” a obra, ao invés de “mondar”, verbo arcaico que Menotti usou na imprensa] a biografia de Bilac. A verdade é esta: o autor do “Juca Mulato” se acobardou, vendo a reação da Academia Brasileira de Letras contra o meu livro. E ficou tão apreensivo, tão temeroso, que na ânsia de agradar a academia, fez o presidente deste necrotério efetuar a leitura da sua carta infeliz.

Fernando conta, ainda, que se encontrou acidentalmente com o modernista, dias depois, e que este tentou se explicar. “Cortei-lhe a palavra”, disse Fernando, e disparou: “Menotti, não precisa dizer nada, eu compreendo. A Academia Brasileira de Letras, diversas vezes, tira a fibra dos seus membros. Ela desviriliza a inteligência, anula o senso crítico, troca a verdade pela hipocrisia. A sua carta, lida pelo Austregésilo de Athayde na academia, é o atestado de óbito da retidão moral do outrora corajoso líder Menotti Del Picchia que, viril e pleno de audácia, de altivez, de independência, se agitava no Teatro Municipal de São Paulo, durante a Semana de Arte Moderna de 1922”. Apertou-lhe “a mão mole” e foi embora. (Fernando Jorge, 1999)



No dia 15 de dezembro, o Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, e jornalista dos Diários Associados, Carlos Rizzini (na foto ao lado), publicou o artigo que encerrou, por assim dizer, a polêmica. Transbordando moderação e sabedoria, pôs as coisas em seus devidos lugares e, sem dar nomes, provou que a polêmica não era de razão literária, estética ou estilística, e que as acusações que se faziam à obra e a Fernando eram subjetivas e não tinham a menor importância. Sobre o livro, diz Rizzini: “Li-o de fio a pavio e nele não achei um só fato, um só raciocínio, uma única alusão desprimorosa à grandeza do cantor da ‘Via Láctea’. Ao contrário. Nenhum dos autores que evocaram o poeta, Medeiros, Rodrigo Octavio, Leôncio Corrêa, Elmo Elton, Elói Pontes — este em obra minuciosa — se ateve mais à verdade dos fatos e à sua boa interpretação”. Sua definição da boêmia de Bilac, tão debatida e que tanto chocou os beatos invejosos, é irretocável:

A boêmia significava uma atitude protesto e de revolta dos moços ambiciosos e pobres diante das portas fechadas que os emparedavam. Não se abriam, e eles escandalizavam o burguês que por detrás lhe apertava as trancas. (...) Sem dúvida Bilac fora um boêmio. A mesa dos cafés e dos restaurantes, as vigílias sob a lua e as noitadas alegres marcavam em todo o século XIX, por toda parte, os pontos de afluxo das inteligências inquietas. (...) Era no copo que se molhava o cálamo [pena de escrever] incipiente.



Bonita é a conclusão:

Que importa, grande Bilac, que te discutam os cálices de vinho, as sortidas bulhentas, as reprimendas do velho pai, os sapatos sem sola, o noivado eterno, as mulheres que não amaste, a carteira do fazendeiro que não bateste, os insultos a Pompéia que não escreveste, e outras frioleiras que te salpicam o caminho, se este foi um corte de luz no alcantil?

O teu legado é dos mais altos e preciosos da nossa literatura. Eras cronista sem par, comentarista único, orador fascinante, o maior dos conferencistas do teu tempo, na opinião uniforme dos contemporâneos. Eras o senhor do ritmo e do som. Ninguém tinha a tua voz, a tua frase, a tua inflexão. Formas com Castro Alves e Gonçalves Dias o triangulo supremo da poesia brasileira.


Enquanto brilharem estrelas, luzirás entre elas. (Diário de S. Paulo, 15/12/63)



Ainda houve dois ou três retardatários, que chegaram tarde e tentaram reacender a chama da polêmica, mas Fernando já não se importava mais com nada disso; seu livro vendia mais do que pão quente, Eli Behar fez dezenas de reimpressões e na onda daquela avalanche de artigos, o autor se inscreveu no popularíssimo programa “O Céu é o Limite”, apresentado por Aurélio Campos (na foto ao lado, com Fernando). Não poderia mais se preocupar com as chateações de críticos carolas ou de escritores ressentidos porque precisava agora voltar ao estudo de Bilac, a fim de ultrapassar as fases do famoso programa de perguntas e respostas. Fernando conta que o programa “foi uma prisão”, porque durante os seis meses que participou, foi obrigado a estudar e treinar a memória todos os dias. Contratou um amigo — Dorlândio Meirelles de Almeida — para ministrar-lhe diariamente questionários sobre o poeta, que passavam de duzentas perguntas. Ao cabo desse período, ganhou um bom dinheiro e se retirou.


**********



Epílogo

Raymundo Magalhães lançou seu próprio livro sobre Bilac — Olavo Bilac e Sua Época — em 1974. Ninguém quis saber. O assunto já estava liquidado desde o livro de Fernando. Nunca fez as pazes com Fernando ou Salomão, e morreu em dezembro de 1981, aos 74 anos.

Vida e Poesia de Olavo Bilac teve sua quinta edição lançada em 2007 pela editora Novo Século. Segundo Fernando, é possível que o livro tenha vendido, até hoje, qualquer coisa em torno de 150 mil exemplares. Eu, sinceramente, acredito num número bem maior.

Fernando está hoje com 85 anos, em plena atividade literária. Desde Bilac, entre vários outros livros, lançou biografias vitoriosas de Santos Dumont, Getúlio Vargas e Paulo Setúbal. Passados 50 anos da polêmica em torno de sua biografia, eis o que ele diz:

Eu me diverti muito naquela época. Às vezes ficava chocado com o absurdo, com o disparate, mas ali foi o meu primeiro contato com a chamada “inveja humana”. E passei a acreditar, depois de toda essa campanha contra o meu livro, que de fato, a inveja, freqüentes vezes, é a homenagem desastrada que a inferioridade presta ao valor.


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DOCUMENTÁRIO — OS 50 ANOS DE "VIDA E POESIA DE OLAVO BILAC" — ASSISTA ABAIXO:



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Bibliografia

  • A Gazeta
  • Diário Carioca
  • Diário da Noite
  • Diário de Notícias
  • Diário de S. Paulo
  • Folha de S. Paulo
  • Jornal do Comércio
  • Manchete
  • Última Hora
  • Shopping News
  • JORGE, Fernando. Vida e Poesia de Olavo Bilac. São Paulo, Novo Século, 5ª edição, 2007.
  • _____ . A Academia do Fardão e da Confusão. São Paulo, Geração Editorial, 1999.
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