Primeira decisão a ser tomada: a tradução da peça. Cyrano tinha uma tradução de Carlos Porto Carrero que necessitava urgentemente de uma atualização. Mas como traduzir um texto como Cyrano, tornando-o palatável para o Brasil dos anos 80 sem agredir a magnífica poesia em versos dodecassílabos de Edmond Rostand? O ingente fardo recaiu sobre os ombros experientes de ninguém menos que o grande poeta Ferreira Gullar, que se desincumbiu da tarefa de maneira absolutamente brilhante. Sua tradução tem a fluência de um rio; mais do que traduzir, ele melhorou Rostand no português, como é próprio dos grandes tradutores.
Segunda decisão, a mais importante: quem poderia dirigir um texto clássico com dezenas de atores, interlúdios musicais e cenas de capa-e-espada? Que diretor teria a sensibilidade imprescindível para pôr em pé o drama de Cyrano, com suas nuances românticas e trágicas, sem cair no melodrama, na pieguice? Fagundes chamou o melhor de todos: Flávio Rangel. Flávio era um Midas do meio teatral; jovem, brilhante, corajoso e com menos de 50 anos já assinara a direção de dezenas de espetáculos memoráveis e vitoriosos. Flávio foi o diretor perfeito. Autoritário sem ser despótico; Cultíssimo sem ser arrogante (ok, talvez um pouco); e por se identificar com Cyrano, compartilhava da empolgação de Fagundes em levar aos palcos espetáculo tão difícil.
A cenografia dificílima de Cyrano também foi posta em mãos mágicas; mãos que desenharam cenários por onde desfilaram desde Maria Callas até Fernanda Montenegro: o cenógrafo e diretor italiano de nascimento-brasileiro de coração, Gianni Ratto. Ratto tinha sob sua responsabilidade não apenas a interação de Cyrano com a lua (uma das paixões do verdadeiro Cyrano, que term até livros escritos sobre o assunto), mas a melhor cena de balcão desde Romeu e Julieta. Em meio a outras tarefas bem fáceis, como recriar tabernas, casernas, cenas de batalhas, um convento, e assim por diante. O resultado foi pouco menos que sublime.
O saudoso João José Pompeo foi o desprezível De Guiche. Walter Breda era o bêbado Ligniére. Tácito Rocha e Neusa Maria Faro em papéis múltiplos. Figurinos de Kalma Murtinho, coreografia de Clarisse Abujamra, e tantos outros que fizeram dessa peça uma das mais extraordinárias experiências do teatro brasileiro no século 20. A coragem de Fagundes, sua temeridade, sua inteligência na hora de escolher, seu absoluto compromisso com o talento e não com a notoriedade, nos deram um desses presentes raros e preciosos. Eis o mistério (e a tragédia) do teatro: só conhece a sensação de ver algo tão bem feito quem teve a sorte de estar presente no teatro, quando essa coleção de talentos se reuniu.
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