sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Parceria de Guarnieri e Toquinho - Parte 2


Castro Alves Pede Passagem foi um grande sucesso e colocou Guarna de volta na proa do cenário teatral brasileiro, em plena época de repressão, e ainda lhe rendeu os prêmios APCT e Molière de melhor autor. Ele mais tarde diria que esse foi o início de seu "Teatro de Ocasião", em que realizava obras para o momento, e que provavelmente não realizaria, fossem outras as circunstâncias. Só que ele diria também que depois de A Semente, Castro Alves era sua peça preferida.

Com uma peça sua lotando casas pelo Brasil inteiro, Guarna pôde se dedicar com mais tranqüilidade às novelas que fazia sem parar na Tupi. Terminada Meu pé de Laranja Lima, com Ivany Ribeiro, começou imediatamente Nossa Filha Gabriela com a mesma autora e assim entrou em 1972. Participou de Signo da Esperança, de Marcos Rey, direção de Zara, e em outubro desse ano começou Camomila e Bem-me-quer, terceira novela que fez com Ivany, e mais uma direção de Zara. Foi quando recebeu um telefonema do produtor Orlando Miranda. Quem conta é a cantora e atriz Marlene, em depoimento a Simon Khoury:

A cantora Marlene
Quando estava fazendo o show 'Marlene, Olê, Olá' (1972), o Orlando Miranda telefonou entusiasmado pro Gianfrancesco Guarnieri pedindo a ele que não deixasse de me assistir, porque o que estava fazendo era um negócio muito sério e coisa e tal. Já tinha gravado uma música do Guarnieri, "Gimba", que faz parte da trilha-sonora da peça que a Maria Della Costa tinha feito em São Paulo e Paris, e eu tinha muita admiração pelo Guarnieri, por suas peças e canções. Ele atendeu ao convite do Orlando e veio me ver. No camarim ele entrou emocionado e disse: "Já tenho o título de uma peça que vou escrever pra você: Samba-enredo".

Voltou pra São Paulo, ficou batendo naquela maquininha de escrever dele, e quando se levantou da mesa, estava pronta a peça "Botequim" (risos). Ele fez uma personagem bastante dramática para mim, e estreei a peça no Teatro Princesa Isabel em 73, com músicas do Toquinho e dele. Meu papel era terrível, uma viúva assassina. (Bastidores, Vol. IV, Leviatã 1994)

Botequim realmente estreou em 11 de abril de 73 em Brasília. Direção de Antônio Pedro e músicas de Toquinho. Guarna vivia um momento extraordinário. Sem precisar pisar no palco, produzia mais um soco metafórico na ditadura, e ainda de quebra, no mês anterior começara a trabalhar numa das novelas mais exitosas de toda a década de 70: Mulheres de Areia, de Ivany Ribeiro. No papel de Tonho da Lua, Guarnieri faria história. Mas a historia do momento está no teatro, e o depoimento de Marlene é bem completo e vale a pena ler:

Antônio Pedro

Uma das pessoas que incutiu na minha cabeça que eu poderia me tornar uma grande atriz dramática naturalmente foi o Guarnieri, que escreveu a peça para mim. Pra fazer essa minha personagem em "Botequim" foi uma barra muito pesada. Tive até que beijar a boca de uma mulher, por aí você pode avaliar. O papel era muito violento, foi uma luta tremenda que travei comigo mesma, custei muito a me enfronhar na personagem, pois realmente fugia a tudo o que tinha feito anteriormente. Ela era má, rancorosa, lasciva, desesperada, e havia uma cena de liberação sexual em que eu tinha primeiro que transar com um homem e depois com uma mulher, e nos ensaios não conseguia. Não conseguia porque ainda estava cheia de conceitos e preconceitos, uma série de bloqueios. Foi a partir dessa peça que passei a compreender uma série de problemas; consegui me liberar de tudo, e isso eu devo ao texto do Guarnieri e ao excelente trabalho que o diretor Antônio Pedro fez comigo. Fizemos uma série de exercícios de laboratório e ele foi muito compreensivo, pois gastou dois meses até conseguir fazer erguer minha personagem.

Marlene e Ivan Cândido,
em cena de Botequim
Tinha uma cena com o Ivan Cândido, que fazia o papel de meu marido: eu tinha que transar com ele e depois ele me obrigava a fazer amor com uma mocinha (Thaia Peres) que entrava no botequim com seu namorado (Eduardo Tornaghi). E empacava aí. O Antônio Pedro colocava a Thaia e eu frente à frente e pedia que nos olhássemos fixo por alguns minutos pra trocarmos energias, e isso era feito também por todos os atores do elenco. Depois tínhamos que nos tocar de leve, acarinhar, tocar e beijar. Ele queria que fôssemos ficando íntimos e gostássemos muito uns dos outros. A coisa foi indo, foi indo, até que um dia explodi e deixei a personagem fazer tudo o que eu não estava conseguindo realizar. Eu me atirei em cima do Ivan Cândido como um animal no cio; depois tocava primeiro nos pés dela, nas pernas, ia subindo, subindo, ia me levantando e segurando nos cabelos dela, que eram longos, e quando cheguei à sua altura, olhei fixo em seus olhos, me aproximei do seu rosto e naturalmente a beijei nos lábios. A cena era muito forte e lindíssima. Nos ensaios abertos ao público, gente da classe, essa cena era aplaudidíssima. Estreamos em Brasília, e a peça lá foi levada na íntegra, mas quando viemos pro Rio, a censura mutilou todo o espetáculo e essa cena foi suprimida. (Bastidores, Vol. IV, Leviatã 1994)

Em Botequim, Guarna não tinha figura histórica de nenhum tipo para exaltar. O espetáculo trata do confinamento de pessoas diferentes num boteco qualquer - o que por si só já dava o tom do momento que o país (e o teatro) vivia, subjugado que estava a um poder ditatorial - e das conseqüências desse confinamento, num dia de intensa borrasca. Há figuras arquetípicas da sociedade, como o beberrão conformista, a universitária aguerrida, a burguesa ignorante e etc., mas a crítica em geral, embora positiva, considerou o espetáculo hermético demais. Guarna teria exagerado tanto nas citações e nas referências cifradas que não era possível compreendê-las ou inseri-las no universo dramático da peça. A isso ele respondia com extraordinária sinceridade: "O pileque confessional de Botequim é como se fosse um depoimento meu sobre o que fiz e o que vi de 1968 para cá. A peça é uma retomada de posição face às minhas perplexidades, tão semelhantes às de muitas pessoas que existem por aí. Estou interessado em dizer e fazer coisas, mesmo que, por motivos óbvios, só possa ir até certo ponto. O importante é tentar superar e romper a muralha do silêncio que nos cerca. O fascinante na arte é exatamente assumir a nossa própria consciência, mostrando que a vida continua, mesmo com toda a marginalização imposta". (Botequim e Um Grito Parado no Ar, Monções, 1973)

Ficha Técnica de Botequim, que tinha o título alternativo de "Céu sobre Chuva",
 deixando aberto o caminho para a próxima peça de Guarnieri, "Um Grito Parado no Ar"
A mistura e a proximidade de cenas de realismo total com cenas completamente herméticas ou metafóricas confundiram a crítica. As atuações, entretanto, foram elogiadíssimas, especialmente a do veterano Oswaldo Louzada, no papel do bêbado Carrapato. Eis o que disse dele Roberto Cleto, na Última Hora: "Uma interpretação absolutamente sensacional de Oswaldo Louzada, de uma verdade tão grande que às vezes a gente tem a impressão que frases que ele está dizendo não são absolutamente de Guarnieri, mas dele mesmo, tal a sinceridade com eu soam".

Marlene e Oswaldo Louzada (em pé),
em cena de Botequim
Aldomar Conrado, do carioca Diário de Notícias, fala do brilhante elenco do espetáculo: "Na condução dos atores, Antonio Pedro revela-se excepcionalmente seguro. Não existe um ator sequer a quem fazer restrições. Evidente alguns se sobressaem pela própria oportunidade que os personagens lhe oferecem, mas o nível geral é de rara qualidade. Marlene (em quem sempre admiramos a cantora e sempre duvidamos do talento de atriz) explode no Botequim com uma força, uma garra, que lhe garante, de antemão, uma nova carreira cheia de sucesso. Isolda Cresta estava precisando, há muito tempo, da oportunidade que Olga lhe oferece. E a atriz cria um personagem pungente, rico em sutilezas, certamente o melhor momento de sua carreira (...). Louzadinha - Oswaldo Louzada, vivendo um Carrapato com profunda humanidade. Ivan Cândido, com extrema correção, num personagem totalmente impossível: o operário. Thaia Perez e Eduardo Tornaghi interpretam com uma sinceridade comovente os dois jovens estudantes, que no final da peça são considerados 'contaminados' pelas autoridades sanitárias. (...) Para André Valli, um destaque especial. O Túlio criado por André terminou me acompanhando até agora. Eu não consigo esquecer aquele ar pungente de quem é leitor da seção Cartas do Leitor, de quem nunca prevaricou, de quem sempre grita estrangulado. Um personagem, enfim, que termina sendo um pouco protótipo de todos nós, na nossa impossibilidade de gritar mais alto. E que André Valli realiza com muita segurança".

Botequim

A seguir, as letras de todas as músicas de Botequim. Para nossa sorte, foram todas editadas no LP de Toquinho e Marlene lançado em 73 que leva o nome desse espetáculo e que traz quase todas as músicas da parceria Toquinho/Guarna (excetuando completamente Tudo de Novo e algumas menores da trilha de Castro Alves). O LP tem como intérpretes o próprio Toquinho, Marlene, o MPB4, e Guarnieri, nos brindando com uma excelente rendição da Embolada do Carrapato. As letras por vezes são maiores na peça e foram ligeiramente diminuídas para a edição deste LP.

Quem Sabe Mais
(Toquinho/Guarnieri)

Sei que é você que sabe mais
E que tudo o que se faz
Você tem que consentir.
Eu concordo em seguir
Sem zangar, sem fugir, sem chorar.

Pois você soube calar os murmúrios da razão,
Minha voz, meu coração.
Mas não soube ver a luz do meu amor,
E ele é bem maior que a sua lei.
Você tirou de mim o gosto do perdão
Sem saber chorar o que chorei.

Sei que nem sempre é ganhador
Quem se julga vencedor.
Não duvides, podes crer, eu ainda hei de ver
Você zangar, você fugir, você chorar.
No melhor do seu sofrer você triste há de ver
Eu contente festejar.

Pois não soube ver a luz do meu amor,
E ele é bem maior que a sua lei.
Você tirou de mim o gosto do perdão
Sem saber chorar o que chorei.

Esperando por você

(Toquinho/Guarnieri)

Por você fiz tanto,
Fiz de tudo por você.
E em cada pranto
Escorreu muito de você.

Foram noites longas, muito longas sem você,
E eu fiz coisas tristes, ah, tão tristes...

Por você fui todo,
Mesmo tolo por você.
Vivo a cada instante
O que eu lembro de você.

Lembro, é só lembrança
O que eu tenho de você.
E eu estou só e sempre
Esperando por você.

Eu sofri sem mostrar.
Entre o pó das rendas claras
Guardo a minha dor.
Dor é o que resta para dar.
Entre o pó das rendas claras
Choro o meu amor,
Cego, sem a luz do teu olhar.

Sem querer fui pouco,
Quase nada por você.
Fui num breve instante
Um momento de você.

Sombra abandonada,
Tão distante de você.
E eu estou só e sempre
Esperando por você.

Canção do Medo

(Toquinho/Guarnieri)

Medo, tenho medo, muito medo
Se o desejo é forte de ver
Minha vida se modificar.

Tenho medo, muito medo
Se a saudade é grande
Da noite sagrada em que eu quis amar.

Vem a vontade de crescer.
Vem a coragem de gritar.
Aí, eu fecho os olhos,
Tranco a porta, calo a boca
Pra me guardar.

Medo, tenho medo, muito medo
Quando vem a vida e obriga
A gente a se decidir.

Tenho medo, muito medo
De enfrentar a morte e a má sorte
E eu tenho medo de existir.

Vem a vontade de viver.
Vem a coragem de sorrir.
Aí, eu fecho os olhos, tranco o riso,
Calo a boca pra prosseguir.

Sou Assim

(Toquinho/Guarnieri)

Sou assim, não me envergonho.
Nesse mundo tão tristonho
Nada, enfim, tem mais valor.

Sou assim, sou muito esperta.
Mais vale renda certa
Que suspiros de amor.

Sou assim e assim me imponho.
Já não vivo mais de sonho,
A ilusão não tem sabor.

Sou assim e pouco importa.
Se o poeta me vê morta,
Tenho e pago meu cantor.

Quem chora por amor é um imbecil.
Quem vive de ilusão é muito mais.
E eu que vim do nada sei agora
De quanto a riqueza é capaz.

Tirei do meu caminho a compaixão.
Amar não diz mais nada para mim.
E esqueci as palavras de perdão,
Pois os meios sempre são justificados pelos fins.

Quanto Vale uma Criança

(Toquinho/Guarnieri)

Quanto vale uma criança sem brinquedos pra brincar
Encostada ao pé da porta sem nem forças pra chorar.
Quanto vale um sorriso do menino adormecido
Na infinita madrugada em seu sonho colorido.

Façam seu jogo, senhores. Mãos no bolso, boa ação.
Façam seu jogo, senhores. Alivia o coração.
Façam seu lance, senhores. Toda alma quer perdão.
Façam sue lance, senhores, no mercado da aflição.

Quanto vale a cor do ódio nesses olhos de criança,
Que não sabem ver ternura e que da paz não têm lembrança.
Quanto vale uma lágrima triste, vil, em descaminho
Num rostinho de menino que tem medo de carinho.

Façam seu jogo, senhores. Mãos no bolso, boa ação.
Façam seu jogo, senhores. Alivia o coração.
Façam seu lance, senhores. Toda alma quer perdão.
Façam sue lance, senhores, no mercado da aflição.

Quanto vale um homem morto no melhor do seu destino,
Pelo medo assassinado, esse resto de menino.
Quanto vale esse meu canto que já nasce estrangulado
Pelo nó da indiferença, canto tão desesperado.

Façam seu jogo, senhores. Mãos no bolso, boa ação.
Façam seu jogo, senhores. Alivia o coração.
Façam seu lance, senhores. Toda alma quer perdão.
Façam sue lance, senhores, no mercado da aflição.

Embolada do Carrapato

(Toquinho/Guarnieri)

Abram alas minha gente que chegou um cantador
Que nem sempre é decente, mas que canta por amor.
Bolso cheio só de raiva, fel na boca e coração.
Meu nome foi Dino Paiva, era nome de prisão. ("cristão", depois da censura)

Mas nas quedas desse mundo, ou por troça ou desacato,
Fui perdendo até o nome, só me chamam Carrapato.
Pior que sarna sou o que gruda, nó que ato não desato.
Nossa Senhora me acuda: quando chego, chega o chato.

Troco tudo nesse mundo, até o certo sai errado.
Rezo a Deus o amor profundo, e o diabo é que é chamado.
Eu pus filho nesse mundo, eu casei, fui batizado.
Eu amei mulher fingida, tava sendo engambelado.

Fui lavar a minha honra com trabuco e com machado,
Só encontrei foi mais desonra, pois voltei todo cortado.
Fico só com minha raiva, meu amor atraiçoado.
Fico só com cinco filhos sem saber se aparentado.

Mesa de Bar

(Toquinho/Guarnieri)

Mais uma noite foi passada,
Se despede a madrugada,
Surge o sol, não tem calor.

Essa gente tão cansada
Esperando quase nada,
Implorando por favor.

Um canto seu, sua morada.
Ter talvez a namorada,
Um pouquinho de amor.

É na mesa de um bar
Que se bebe ilusão,
Que se sofre demais,
Que se pede perdão.
É na mesa de um bar
Que se engana a razão,
Que a saudade
Maltrata o coração.

Dane-se

(Toquinho/Guarnieri)

Leve pra longe esse choro,
Eu não posso lhe ajudar.
Minha vida é um estouro,
Não me venha perturbar.
Cada um por si,
Não me venha querer ensinar.

Quero é curtir,
Não me faça crescer,
Não me faça morrer de pensar.
Dane-se!

Cada um faz somente o que quer,
Enfrento enquanto puder.
Quando a morte por certo vier,
Eu não perco um momento sequer.

O sofrimento do mundo
Não consegue me afligir.
Eu não quero ir ao fundo,
Não me venha reprimir.

Guarnieri estava sem limites para sua criatividade. Mesmo trabalhando como um doido na novela de Ivany Ribeiro, encontrou tempo não só para escrever Botequim (em dois dias), mas um segundo espetáculo para estrear ao mesmo tempo: Um Grito Parado no Ar.

Escrita em uma única noite, essa peça é talvez a mais original e a mais genial de toda a obra de Guarnieri. Conta a história de um grupo de teatro tentando finalizar um espetáculo que estreará em dez dias, e que luta com todos os tipos de dificuldade, desde os materiais até os emocionais, passando pelos existenciais, psicológicos, amorosos, sociais, etc. Seguindo esse princípio, Guarnieri pintou uma verdadeira tela viva que transmite todas as mensagens que o público - e o cidadão - brasileiro queria e precisava ouvir, dentro de um exercício teatral complexo e engenhoso. A peça envolve mímica, mind games entre os atores, inserções musicais, inserções de entrevistas feitas por Mário Masetti, entrevistas com prostitutas e assim por diante.

O espetáculo foi uma nova colaboração entre Guarnieri e a companhia de Othon Bastos e sua esposa Martha Overbeck. Para harmonizar e dar forma a isso, só Fernando Peixoto. Com sua direção brilhante, competente e precisa, os seis personagens vão desfiando suas tristezas, incertezas, inseguranças, desamores e medos em exercícios para a peça que supostamente deve estrear, mesmo com a pobreza franciscana da produção, que vai sendo - tal qual o povo - subtraída de seus poucos recursos até ficar sem a luz do teatro. O exercício teatral era tão rico que em certos momentos os atores já não se comunicavam mais com palavras, mas com gestos que significassem intenções ou emoções, se amando e se agredindo até o ponto em que já não se sabia mais onde terminava a peça dentro da peça e começava a realidade. Em seu livro Teatro em Pedaços (Hucitec, 1989), Fernando Peixoto explica por alto os três planos em que se divide o espetáculo:


Elenco e equipe técnica de Um Grito Parado no Ar
 
Um diretor e cinco atores procuram realizar um trabalho, enfrentando toda sorte de pressões externas; o trabalho está sendo minado por uma infra-estrutura repressiva, que provoca uma crise de conseqüências insuspeitas; a peça que este grupo está procurando encenar é mostrada através de cenas isoladas, mas nunca totalmente definida. (...) Noutro plano estão os poucos momentos em que o diretor e atores conseguem vencer; são mostrados exercícios de interpretação, laboratórios e improvisações, discussões sobre os personagens. O espectador assiste ao processo de criação do ator. A mística do teatro é desnudada. (...) No terceiro plano estão as entrevistas com o povo, todas autênticas, gravadas nas ruas de São Paulo. Na peça dentro da peça seriam entrevistas realizadas para servirem de material de estudo para a criação de suas personagens.
 
Sônia Loureiro, em cena de
 Um Grito Parado no Ar
 
Em conversa que tive em 2006 com Sônia Loureiro, que interpretou Nara na montagem original, ela jogou luz sobre o processo de ensaios, que durou pouco menos de um mês:
 
O Fernando montou tudo isso em cima disso, de jogos, mesmo, nós improvisamos o tempo inteiro, com um texto que era um roteiro do Guarnieri. O Guarnieri fez um roteiro, e nós criamos em cima, nos ensaios. Em cima da idéia dele. Mas não fugindo nem um milímetro da idéia que ele propôs. Aquela coisa do Chacrinha, dos interrogatórios kafkianos baseados nos interrogatórios do Doi-Codi, a menina que não quer dar e demonstra o puritanismo ao contrário. Então nós improvisamos em cima, e saiu a maravilha que saiu. (...) E o Fernando como diretor era muito calmo, muito engraçado, muito piadista, um relax. Eu conhecia o Fernando dos espetáculos do Zé Celso, considerava o Fernando genial, uma pessoa intelectualmente sábia, e uma criatura muito molinha, muito gostosa, muito piadista, muito engraçado. Muito relax. Muito, muito. (...) E vou te dizer que o mesmo mérito, senão maior, foi da produção de Martha Overbeck, que era atriz e produtora, esposa de Othon, até hoje. Ela com muita coerência, contratando profissionais competentes, e nós ensaiando 12 horas por dia, numa salinha, improvisando, o espetáculo foi todo feito em cima de improvisações em cima dos temas. Tudo.
 
Assunta Perez e Sônia, na cena da "Mãe Coragem" de Um Grito Parado no Ar 
 
A Assunta Perez fazia a atriz mais velha, Flora, recalcada, que colocava muitos pontos em discussão, de atores da meia-idade que ainda trabalham em teatro. (...) Assunta Perez era divina, trabalhando. Nunca esqueço uma cena dela, porque os improvisos se sucediam, agressão, depois começava o jogo de futebol, aí passava pra passeata, aí passava pro tiro na menina, eu, a menina morria, eles a colocavam na mesa, e aí a Assunta vinha, dizia um texto baseado na "Mãe Coragem", do Brecht, que era muito forte, muito vivo, de todas as mães que perderam seus filhos na época da ditadura que nós estávamos vivendo. Uma cena belíssima, as pessoas morriam de chorar, todas as noites, e eu deitada, morta, me emocionava com a interpretação da Assunta Perez, que era maravilhosa.

É preciso registrar a fantástica performance desse fabuloso ator que é Othon Bastos, no papel de Augusto, que recebeu elogios unânimes, inclusive de grandes figuras de uma geração teatral anterior a de todos eles, como Pedro Bloch. Segundo Sônia:

Othon Bastos, em cena de Um Grito Parado no Ar

Contracenar com ele nessa peça foi um dos maiores prazeres da minha vida. Ele é uma criatura que tem uma técnica excepcional. Ele é formado em Londres, como ator. Ele é um cara muito racional, a emoção dele é totalmente controlada, ele é um grande exemplo de ator técnico, agora, o olho dele brilha quando ele contracena com você. É muito bom. Ele não trabalha sozinho, ele joga, ele joga legal com você, ele contracena, mesmo, não gosta de trabalhar sozinho. É um doador, nesse sentido.

Quando eu me vi frente a ele comecei a tremer, falei "Jesus, eu tenho que funcionar, tem que acontecer alguma coisa". Tinha que dar um beijo de verdade nele, eu morri de medo, porque a esposa dele era a produtora (risos), e claro que não consegui fazer da primeira vez. Ela me chamou de lado e me disse assim "Meu amor, você é atriz ou não? Você tem que fazer de verdade! Beija ele mesmo que eu estou dando a maior força!" (risos) E aí eu fui e beijei mesmo, pronto! Com o aval da esposa, que é uma super atriz, uma super produtora, e infelizmente é uma pessoa que parou de trabalhar, nesse sentido, e eu acho que o Brasil perdeu muito com isso. Perdeu muito. Martha Overbeck, volte! Você é maravilhosa.

Sônia Loureiro, em foto de 2006

Sônia fala da estréia curitibana, em abril de 1973:

Estreamos em Curitiba, no Guairinha. Foi um sucesso absoluto, lotando as casas todos os dias, ganhamos todos os prêmios, melhor ator, melhor direção, atriz revelação, eu, atriz coadjuvante Assunta Perez, melhor atriz, Martha Overbeck, ganhamos todos os prêmios. Em São Paulo fizemos no Teatro Aliança Francesa, na General Jardim. Ficamos muito tempo em cartaz lá, lutando de terça a domingo, sendo que dois espetáculos na quinta, dois sábado e dois domingo, lotadaços, com briga na porta pras pessoas assistirem, durante uma época de recessão política, castração de liberdade, que é 1973. No Rio de Janeiro também. Todos lotados. Nunca fizemos um espetáculo com meia casa. Por isso que eu digo: durante a época da ditadura, o teatro de resistência fez muito sucesso, deu emprego a muita gente, técnicos, produtores, assessores de imprensa, atores... eu tenho carteira assinada com a "Othon Bastos Produções Artísticas". O Guarnieri assistiu a estréia e ficou tão emocionado que não conseguia falar com a gente, ele chorava. Ele só chorava. Abraçava a gente e chorava, abraçava a gente e chorava, abraçava a gente e chorava...
 
Recentemente, Fernando Peixoto elaborou em sua recordação do Grito. O depoimento, dado à Marília Balbi e constante no livro Em Cena Aberta, da Coleção Aplauso, é valioso e uma aula magna de teatro, como praticamente tudo que foi feito por esse grande mestre:

Programa Original de Um Grito Parado no Ar
 (clique em cima para ver maior)
Dirigir esse espetáculo foi uma experiência fascinante. Porque dialeticamente fui dirigido por ele. O texto possui uma teatralidade potencial que se articula no palco de forma quase espontânea. São poucos os espetáculos que fiz até hoje que sinto como tão pessoal, tão meu. Mas o grito é de todos nós. A peça não descreve a biografia de ninguém, nem retrata este ou aquele integrante da chamada classe teatral. Mas cada personagem reúne uma série de características que estão na vida real de muitos atores, atrizes e encenadores. A peça trata da vida de todos nós.

Estruturei o espetáculo sem me preocupar com a elaboração de uma rigidez formal. Não existia pré-estabelecida pela direção uma organização cênica em termos de espaço ou de linguagem visual. Os atores improvisavam seus movimentos, que a cada dia eram determinados por motivações interiores e pela compreensão do verdadeiro conteúdo de seus relacionamentos, uns com os outros. Numa primeira fase de trabalho analisamos minuciosamente o texto. Não só para descobrir o seu significado, mas para fixar sua estrutura dramática e cênica, seus movimentos internos e externos, a condução de seus temas, os momentos da ação, a progressão ou a eventual interrupção da mesma.

Adquirimos com esse exercício uma consciência clara do movimento dinâmico e ideológico dos personagens em comparação com a realidade e com os modelos vivos que conhecemos. E a peça trata da vida de todos nós. De forma aberta ou velada estamos, todos, em algum momento de algum personagem, ou em mais de um, com Um Grito Parado no Ar. Em 124 cenas determinávamos o conteúdo de cada uma. Às vezes a cena era apenas uma frase ou uma palavra, outras vezes, apenas o silêncio. No estudo das entrelinhas, das pausas, do não-dito, do sugerido.

Programa Original (clique em cima para ver maior)

Depois partimos para a fixação do comportamento dos personagens, da forma histórica como se relacionam entre si em cada situação específica. Assim estruturei o espetáculo. O resto ficou livre: a exteriorização formal pode e deve ser reinventada a cada dia. E era permanentemente reestimulada pela realidade cotidiana, pela participação ativa na vida, como cidadãos e homens de teatro. Para quem fazia o espetáculo, ler o jornal diariamente era uma forma de ensaio. Nos laboratórios os atores-personagens se descobriam a si mesmos e, ao mesmo tempo, minados por seus problemas pessoais, pela crise financeira que os destrói e pelo terror psicológico que os castra, descobrem também a sua impotência.

Cena de Um Grito Parado no Ar

O movimento teatral brasileiro da época vivia a reflexão crítica sobre o momento. Estávamos limitados pela censura e Guarnieri quis escrever um roteiro para ser ampliado, modificado, discutido. Mas existindo a censura, nosso grito foi em cada apresentação, um atestado de nossa liberdade de criação cerceada, a afirmação de uma limitação que nos foi imposta. Mas no grito, o objeto de estudo é o esmagamento do homem pela sociedade. Com a ditadura havia uma despolitização total da cultura brasileira, um esvaziamento de nossa cultura, mas havia uma reação contra isso. O teatro manteve vivo a sua verdade crítica. É por acreditar no homem que existiu Um Grito Parado no Ar. Homem enquanto ser socialmente oprimido, mas capaz de alterar sua própria condição social à luz da história.

Foto de Iolanda Huzak

Em alguns ensaios eu me sentia diretor de tráfico e conselheiro espiritual: reunia o elenco apenas para resolver problemas de circulação e aconselhava ou apoiava, sem nada impor, uma ou outra idéia. Juntos fomos, pouco a pouco, encontrando as soluções cênicas. Foram tantos momentos. Teve uma cena em que Othon Bastos faz um monólogo central da peça de costas para a platéia, dirigindo-se de frente a seus companheiros de elenco, atinge uma força cênica que nunca seria possível se estivesse de frente para o público. Mas quando ergue o corpo assassinado da estudante baleada na rua, seu primeiro movimento é encarar em silêncio o público.

Essa peça foi um ato de amor pelo teatro e pela profissão, que Guarnieri colocou com angústia e fé e eu procurei assumir como meu, como nosso. E que se define numa fala do personagem diretor, que por brincadeira do Guarnieri chamava-se também Fernando, que dizia: “Eu só sei me comunicar através disso que está aí, o teatro. E está cada vez mais difícil!”

Osmar Rodrigues Cruz, Fernando Peixoto e Guarnieri, na premiação do Molière de 1973

Embora Guarnieri tenha recebido os prêmios da APCA, o Molière e o Governador do Estado de melhor autor, ficou uma certa mágoa pelo fato dessas instituições terem premiado somente o Grito em detrimento a Botequim, pelo simples fato de ambas as peças terem estreado quase ao mesmo tempo. Mas esses prêmios não são nada perto da contribuição dada por Guarna, Toquinho, Fernando Peixoto, a companhia de Othon Bastos e a companhia que realizou o Botequim, ao teatro brasileiro, nessa primeira metade da década de 70.

Um Grito Parado no Ar não tinha músicas cantadas pelos atores, com exceção da "música-tema", cantada inicialmente por Sônia Loureiro, sozinha, à capela, e no fim por todo o elenco. A despretensiosa iniciativa de criar uma única música original para o espetáculo acabou produzindo (em minha humilde opinião) a melhor música da resistência à ditadura de 64. Uma melodia lindíssima de Toquinho e uma poesia maravilhosa de Guarnieri. O resultado disso é que a letra acabou censurada e somente o refrão foi liberado para gravação no LP de Marlene e Toquinho. Nem o site oficial de Toquinho traz a letra inteira, só o refrão. A letra, na íntegra, é inédita virtualmente. Portanto é com redobrado prazer que a tiro de seu injusto esquecimento e a entrego a vocês:

Um Grito Parado no Ar
(Toquinho/Guarnieri)

Moro no fim de um escuro corredor
Papel jornal fazendo as vezes de vidraça
Quarto mirim que só tem cheiro de bolor,
Eu vivo assim, em cada esquina uma ameaça.

Não peço nada, eu não quero me envolver,
Na rua nua em cada cara uma desgraça.
Há tanta gente procurando esquecer
Que a vida é à-toa, a morte chega e tudo passa.

Quem souber de alguma coisa
Venha logo me avisar
Sei que há um céu sobre esta chuva
E um grito parado no ar...

A vida enfim é um escuro corredor,
Leio jornal e muitas vezes acho graça.
E quanto a mim, estou vivendo de favor,
Não sou ruim embora viva de trapaça

Não peço nada, eu não quero me envolver.
Até a lua tem as nuvens por mordaça,
Assassinada mesmo antes de nascer,
A esperança sobe aos céus como fumaça.

Quem souber de alguma coisa
Venha logo me avisar
Sei que há um céu sobre esta chuva
E um grito parado no ar...




Este é o texto escrito por Guarnieri para a contra-capa do LP Botequim, que inclui quase todas as parcerias dele com Toquinho. Interessante o detalhe revelado por Guarnieri, de que a letra da Canção do Medo teria sido escrita por Toquinho:

Reunimos aqui o trabalho de alguns anos. Composições nascidas do tempo roubado a diversos compromissos. Quase sempre madrugada. A maioria das canções pertence ao Botequim. Embora o seu significado fique mais claro conhecendo-se a peça, achamos que poderiam ter vida própria e que, no conjunto, mesmo desligadas dos textos, transmitem o que a gente sente. Há canções de Castro Alves pede passagem e o tema de Um grito parado no ar.

Estas músicas são o resultado de um grande entendimento, de uma parceria que surgiu espontâneamente transformando o trabalho num jogo estimulante e alegre, muito alegre, mesmo nas melodias tristes ou na melancólica constatação de fatos. E pensando nesta contradição descobrimos nosso otimismo. Acreditamos.

O que importa mesmo é que ouvindo estas canções temos necessidade de criar outras, muitas outras, sempre outras. Para meu amigo, meu parceiro Toquinho, isto é fácil como respirar. Toco vive música simplesmente. E é um poeta. Em alguns minutos fez a letra da Canção do Medo, e trancado num escritório de teatro fez a canção de encerramento de Botequim, resumindo o que eu pretendia dizer em poucos e lindos versos. Cheguei a ficar com ciúme. Mas o ciúme foi embora e ficou somente a enorme alegria de ver como o meu amigo Toco entende das coisas. E voltaremos com outras canções...

Gianfrancesco Guarnieri
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Divirtam-se com Botequim, que além das músicas do LP vem exclusivamente acrescido de Modinha, da trilha de Nossa Filha Gabriela, e as duas músicas do espetáculo Tudo de Novo: a música título e Zana, cantadas por Marília Medalha.
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Parte 1 deste artigo

A Parceria de Guarnieri e Toquinho - Parte 1


Era uma época em que se ouvia Guarnieri afirmar: "Por mais graves que sejam os problemas que cercam o teatro brasileiro, não vejo justificativa para o abandono do campo. Ao contrário, cada vez com mais urgência o artista de teatro, seja ator, autor, diretor é chamado a defender sua arte, seus princípios, sua posição. Independente dos fatores, sem dúvida passageiros, que possam prejudicar sua criação".

Fernando Peixoto
("Em cena aberta", Coleção Aplauso)

O endurecimento da ditadura de 64 provocou uma reação musical por parte dos grupos de teatro. No fim desse ano o CPC importou Augusto Boal para a direção do espetáculo Opinião, no Teatro de Arena da rua Siqueira Campos, no Rio, com músicas de João do Valle, Zé Ketti e uma plêiade de compositores. O Arena, aqui em São Paulo, dava à luz a obra-prima Arena Conta Zumbi, início da parceria de Guarnieri e Edu Lobo com direção do mesmo Boal. Ao mesmo tempo, o CPC (mais conhecido agora como Grupo Opinião) voltava à carga com o espetáculo Liberdade Liberdade, colagem de textos de Flávio Rangel e Millôr Fernandes com músicas de Noel Rosa, Billy Blanco e vários outros compositores nacionais e internacionais. O Arena continuou investindo no original e em 67 estreou Arena Conta Tiradentes, com músicas de Caetano, Gil, Théo de Barros e Sidney Miller e letras de Guarna para várias delas.

Myriam Muniz e Guarnieri em La Moschetta

No fim de 67 ainda houve tempo para um dos mais memoráveis espetáculos não-musicais do Arena: La Moschetta, de Ângelo Beolco. Montado em apenas 12 dias, foi talvez o maior momento da parceria artística de Guarnieri e Myriam Muniz. Quem assistiu diz que ambos estavam assombrosos. Myriam chegou a comentar a peça com Guarnieri na entrevista que ele deu ao SNT, em 75:

Me lembro de um dia que você ficou 15 minutos em cena, improvisando. Eu fiquei sentada, te olhando. Olha que 15 minutos em cena é muito tempo. E você sapateava e cantava uma música espanhola que não tinha texto. (...) Era uma matinê e eu me lembro que duas velhas ficaram tão cansadas que foram embora.

Ambos eram coadjuvados por um magrela feio e desengonçado de 18 anos, em início de carreira: Antônio Fagundes.

Fagundes, Myriam Muniz
 e Rolando Boldrin em cena de Animália
Em 68, Guarnieri fez dois trabalhos com Ivany Ribeiro na TV Excelsior - dos trabalhos dele na televisão falaremos em outro tópico - e participou ativamente da Feira Paulista de Opinião, ocorrida em junho. A Feira consistia de textos em 1 ato apresentados em seqüência, no Teatro de Ruth Escobar. Os dramaturgos escolhidos foram Jorge Andrade, Lauro César Muniz, Augusto Boal, Plínio Marcos, Bráulio Pedroso e Guarna, que colaborou com o subversivíssimo Animália. Entretanto, o verdadeiro trabalho dele nesse segundo semestre esteve na composição da peça Memórias de Marta Saré, por encomenda da companhia de Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Guarnieri mais uma vez teve a oportunidade de compor em parceria com Edu Lobo e o espetáculo estreou em dezembro, ficando o ano de 69 inteiro em cartaz. O elenco contava com Fernanda, Guarna, Myriam Muniz, Fagundes (que também trabalhou em Animália), Beatriz Segall e outros. Assim, com Marta Saré e mais duas novelas na Excelsior, terminou a riquíssima década de 60 para Guarnieri. Paradoxalmente, a década de 70, que traria terror e desgraça para todo o Brasil, e em especial para a classe artística brasileira, começou juntamente a uma bela e nova parceria musical. Depois de Jorge Kaszas, Carlos Lyra, Carlos Castilho, Edu Lobo, Théo de Barros e Sidney Miller, o parceiro de Guarna seria um paulista de 24 anos chamado Antônio Pecci Filho, e conhecido como Toquinho.

Sérgio Ricardo, Toquinho e o percussionista Manini no espetáculo de Chico de Assis e Sérgio Ricardo encenado no Arena, Esse Mundo é Meu

Assim como Guarnieri, Toquinho era um prodígio e com 19 anos já participava como músico da remontagem de Liberdade Liberdade com Cláudia no lugar de Nara Leão. No mesmo 65 ele foi introduzido ao Teatro de Arena de São Paulo, participando com Sérgio Ricardo do espetáculo Esse mundo é meu, de Chico de Assis, portanto não é de todo estranho que Guarna e Toquinho viessem a se tornar parceiros em algum momento. O interessante é que a coisa tenha acontecido nesse fim de 69 e início de 70, porque foi exatamente a época em que Toquinho conheceu Vinícius. Vamos por partes.

Toquinho lançou seu primeiro LP em 66. Era todo instrumental e se chamava O Violão de Toquinho, onde ele já mostrava grande talento como violonista, adquirido com Paulinho Nogueira, Oscar Castro Neves e Edgard Janulo. Nos três anos seguintes Toquinho se alternou em bicos na televisão e em composições para os festivais da canção. Em 69 fez uma turnê esquisitíssima pela Europa junto a Chico Buarque, e um de seus bicos por lá (provavelmente por indicação do próprio Chico) foi tocar violão no LP La Vita, Amico, É L'arte Dell'incontro, homenagem a Vinícius de Moraes em que o poeta Giuseppi Ungaretti recitava poesias de Vinícius, e Ségio Endrigo cantava suas músicas mais famosas. Não houve parcerias.

De volta ao Brasil, Toquinho se tornou parceiro de Jorge Ben, com quem compôs as músicas Que Maravilha, Carolina Carol Bela e uma inacabada chamada Zana. E é nesse momento que Guarnieri entra na história.

Terminada a temporada de Marta Saré, que foi um grande sucesso, Guarna surpreendeu, partindo para um "espetáculo de variedades engajado" no estilo de Liberdade Liberdade. Chamou Marília Medalha, sua companheira de Zumbi, Myriam Muniz, companheira de sempre no Arena, e Sylvio Zilber, também do Arena e na ocasião casado com Myriam, para dirigir. A novidade ficou por conta do convite a Toquinho, que entrou no elenco e assinou a direção musical do espetáculo. Juntos, Guarna e Toquinho deram os toques finais à Zana, música que é a cara de Jorge Ben e nada tem a ver nem com Toquinho e nem muito menos com Guarnieri (uma mera questão de estilo, sem o menor desdouro a Jorge Ben, a quem eu amo), e compuseram a música Tudo de Novo, que se tornou nome do espetáculo. A terceira e última composição deles neste primeiro momento chamou-se Balada da Delinqüência Juvenil, letra de Guarnieri e Sylvio Zilber, e música de Toquinho e Carlos Castilho.

É possível que o segundo LP de Toquinho (Toquinho) tenha sido lançado durante os ensaios da peça, porque das parcerias com Guarna somente Zana - a piorzinha das três - entrou na edição final, o que reforça a tese de que se trata de uma composição de Toquinho e Jorge Ben que já estava quase pronta e o dramaturgo deve ter mudado um ou dois versos.

Guarnieri e Marília

A parte musical ficava toda a cargo de Marília Medalha e além dessas três músicas, ela cantava Minha, de Francis Hime, Jenny dos Piratas, versão de Toquinho para a música de Brecht e Kurt Weill, Cérebro eletrônico, de Gil, entre outras. Junto ao violão de Toquinho estava o órgão de Francisco Tenório Filho, Tenorinho. As canções eram permeadas por textos de Guarnieri, Zilber, Bertrand Russell, Tennesse Willians, Ionesco, Gonçalves Dias, Millôr Fernandes, Pessoa, Paulo Mendes Campos e Brecht, e por sua vez os textos eram ilustrados por projeções de slides com fotografias de Branca Paulo de Freitas.

Nem o belo elenco e nem o rico conteúdo do espetáculo foram suficientes para que o público se interessasse. Depois de casa cheia na estréia de Tudo de Novo para convidados, em 22 de abril de 70, no Teatro Olimpiá (depois rebatizado com o nome "Záccaro", em São Paulo), o público sumiu. Diante do desastre, o produtor Marcos Lázaro teve a inusitada idéia de incluir a cantora Rita Pavone na abertura do espetáculo. Desnecessário dizer que o martelo da simpática Rita não se coadunou com os textos de Brecht e músicas que diziam "canta, meu pai, que eu sou irmão do povo". E o singelo e bem-intencionado Tudo de Novo sumiu nos desvãos do tempo. E quando digo que "sumiu", digo literalmente. Não há menção à peça ou às músicas dessa peça (com exceção justamente de Zana) no site oficial de Toquinho, e o assunto não foi sequer aventado por Sérgio Roveri no livro sobre Guarna para a Coleção Aplauso.

Myriam Muniz, Toquinho, Sylvio Zilber (em pé), Marília Medalha e Guarnieri no cartaz promocional de Tudo de Novo (foto do arquivo pessoal de João Carlos Pecci,cedida gentilmente pelo pesquisador e músico Bruno de la Rosa)
Eis as letras de Zana e Tudo de Novo:

Zana
(Toquinho, Jorge Ben e Guarnieri)

Você já foi em fevereiro
Ver uma Escola desfilar?
Você já teve boas notícias
A um amigo pra contar?
Você já teve um grande amor
Em noite calma pra passar?

Zana, ô, Zana. Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Pouco tempo pra pensar.
Zana, ô, Zana. Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Tanto tempo pra salvar.

Ai quem me dera um fevereiro
Com vontade de cantar.
Ai quem me dera a um amigo
Boas notícias ter pra dar.
Ai quem me dera o meu amor
Com noite calma pra ficar.

Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Pouco tempo pra pensar.
Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Tanto tempo pra salvar.

Tudo de Novo
(Toquinho/Guarnieri)

O que ficou, filho meu, de um sonho,
de uma esperança de uma vida inteira
a não ser teu olhar manso e conformado?
Um filho, só, e a casa vazia,
um pai antigo e pobre e a tristeza enorme
que nem sabe ser saudade.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
repete a canção com tudinho, com tudo de novo (bis)

Filho meu, que ficou da vida, assim,
conformada a não ser um sonho,
um olhar inteiro e manso de esperança?
De um pai só na casa antiga,
o filho num pobre vazio da saudade enorme
que nem sabe ser tristeza.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
repete a canção com tudinho, com tudo de novo (bis)

Da esperança vazia
que não sabe ser nem um sonho numa casa pobre
de um pai conformado, de um filho só,
a não ser tristeza enorme
de uma saudade antiga, o que ficou, filho meu,
foi uma inteira vida.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
que esta canção tem tudinho, tem tudo de novo (bis)

(fala)
Anseio por aliviar o mal, mas não posso,
eu também sofro.
Eis o que tem sido a minha vida;
Tenho-a considerado digna de ser vivida
e de bom grado, se me fosse dada tal oportunidade
eu viveria tudo de novo.

Até onde eu sei, a música Balada da Delinqüência Juvenil não foi jamais gravada. É uma pena. Só que Guarnieri tinha uma esposa e 5 filhos para alimentar, então não havia qualquer tempo para chorar as pitangas pelo fracasso de Tudo de Novo. Aceitou o convite de Fernando Peixoto - diretor do Oficina junto a Zé Celso e em busca desesperada de um projeto que rendesse dinheiro ao Oficina - e foi para o antípoda estilístico do Arena fazer Don Juan, de Molière.

Fernando Peixoto
Fernando Peixoto participara de todos os grandes espetáculos do Oficina e durante a década de 60 trabalhara em perfeita harmonia com Zé Celso e Renato Borghi. Com efeito, eram os três diretores do grupo. Embora com linhas estéticas diferentes, tanto o Arena quanto o Oficina tinham a mesma finalidade, que era criar uma trincheira popular de conscientização política e liberdade artística. No fim da década, entretanto, o Oficina começou a partir para uma linha quase irracional de libertação (e libertinagem) moral que levou Fernando a se afastar cada vez mais, tanto é que Don Juan foi feito no Teatro Oficina mas não é considerado um espetáculo do grupo. Além disso, Fernando e Guarnieri comungavam da idéia de que o teatro era um instrumento de educação e cooptação do público, quando Zé Celso tinha muito mais uma relação de amor e ódio com a platéia, de amar e fustigar o público, desafiando-o e chegando por vezes até mesmo a agredí-lo, como se viu em alguns de seus espetáculos. Sobre essa divisão irreversível dos maiores grupos de São Paulo, naquele momento, é valioso o depoimento de Fernando Peixoto à EXPO-Arena:

Zé Celso

O Oficina entrou naquele nível desenfreado de drogas, das coisas de religião oriental, a busca do irracional, o contra-racional. (...) Pouco a pouco, o Zé Celso foi trazendo para dentro do grupo uma série de atores jovens, que ele trouxe principalmente do Rio de Janeiro. Eram jovens que tinham feito Roda Viva com ele. Virou uma coisa inteiramente irracional. Em alguns lugares, quando a gente fez a temporada, por exemplo, em Florianópolis, nesse momento, o elenco saía pra rua, levava a platéia para uma praça em frente ao teatro, fazia uma loucura, se envolvia com isso e depois volava para dentro. Imaginem a loucura. Em seguida, eu e o Renato Borghi tínhamos que fazer uma cena violentíssima, a cena do Cardeal, dificílima, ultra-brechtiana, racional, ultra-intelectual. Depois daquilo, a platéia estava num agito, numa loucura. Era um delírio. Pouco a pouco foi-se criando uma crise interna muito grande que levou ao esfacelamento interno do Oficina.

Ainda sobre a questão de meros amadores serem escolhidos ao bel-prazer de Zé Celso (prática que aliás perdura até hoje), Guarnieri comentou à revista Argumento, em 73:

O Oficina fez muito disso: achava que o sujeito, quanto mais instintivo fosse, quanto mais despreparado teatralmente estivesse, melhor para entrar em cena. Esse sujeito é que seria valioso, porque teria uma força misteriosa para colocar em cena. Mas o fato é que ele não tem. Pode ter numa noite, mas na repetição de todas as noites acaba perdendo o que eventualmente tinha para dar. É uma coisa muito desagradável, muito amadora e diletante. Além disso, é uma tendência clara de auto-destruição, fruto do teatro da agressão e da crença de que a palavra está morta.

Zé Celso respondeu a esse tipo de comentário numa entrevista à revista da Sbat, acerca de Don Juan:

Mas o trabalho todo dessa corrente também era diferente do nosso. E começaram a dizer que nós fazíamos um teatro irracional e eles o da palavra, portanto político. Isso porque tudo que fosse fora do código deles, isto é, a realidade, eles não entendiam, era irracional. O nosso código era o do corpo, em que a palavra se incluía, o deles só o da palavra.

Fosse como fosse, Don Juan acabou sendo o último espetáculo de Fernando no Oficina:

Eu estava com um espetáculo que eu tinha dirigido, Don Juan, de Molière. Eu levei o Guarnieri daqui para fazer o personagem principal. Engraçado. Eu estava indo para o teatro, um dia, e no meio do caminho, mais ou menos em frente aonde hoje é o Teatro Imprensa, eu parei e falei: "Eu não vou mais. Não vou mais porque não dá mais pra ficar junto, se ficar junto vai dar briga. E eu não quero brigar. Eu gosto do Zé Celso, eu gosto do pessoal, mas não dá mais pra ficar junto, esse é o problema. Não é questão de gostar ou não gostar. Não dá pra ficar junto porque a nossa realidade é diferente". Eu voltei caminhando, peguei o ônibus, voltei para o apartamento. (...) Nunca mais fui ao Oficina. Foi separação de casal, de casamento. E o que havia era isso, uma discordância absoluta em relação a isso.

Fernando saiu do Oficina, assim como Othon Bastos saíra pouco antes e Renato Borghi sairia pouco depois. Curiosamente, todos eles foram trabalhar com Guarnieri em peças de extraordinário sucesso, além de terem suas próprias (e vitoriosas) companhias fora do Oficina. E o Oficina definhou em sua confusão orgiástica e psicotrópica.

Antônio Pedro no papel de Sganarelo,
em Don Juan
Don Juan estreou em 18 de junho com um belo elenco que incluía nomes como Antônio Pedro, Jofre Soares, Martha Overbeck, Lutero Luiz e Tessy Callado, mas no meio desse processo de separação e morte lenta do Oficina, é evidente que a peça não podia ter vida longa. Três meses depois da estréia, Guarnieri estava de volta ao querido Arena, que lutava heróicamente para sobreviver, diante do cerco violento da censura. A peça escolhida para estrear em outubro de 70 foi A Resistível Ascensão de Arturo Ui, texto de Brecht que contava metafóricamente a ascensão do nazismo através de uma trama de gangasters.

Sem dinheiro e visadíssimo pela polícia política, Augusto Boal se juntou mais uma vez a Guarna na busca do brilho que os espetáculos do grupo obtiveram de 62 a 68. No elenco estavam Guarnieri, Fagundes, Antônio Pedro, Luis Carlos Arutin, Dante Ruy e Bibi Vogel. O sitema Coringa foi novamente adotado, mas os tempos eram outros e desta vez o resultado não foi bom. A estréia ocorreu no dia 9 de outubro. Ciente de que aquilo não era o melhor que o Arena tinha a apresentar, e sim o que era possível apresentar, a crítica foi carinhosa. Sábato Magaldi destacaria as brilhantes atuações de Guarna como Arturo Ui e de Antônio Pedro como Coringa, mas não perdoaria nem Bibi Vogel e nem a reutilização do sistema Coringa, a seu ver, já esgotado:

Guarnieri, como Arturo Ui

Uma certa insatisfação do espetáculo vem do próprio sistema Coringa, elaborado por Augusto Boal. Toda fórmula, utilizada mais de uma vez, tende a transformar-se em forma. A criação artística, feliz ou infelizmente, não pode permanecer num achado, e reclama sempre novos inventos. O sistema Coringa, que se desenvolveu até Arena Conta Tiradentes, não exprime agora aquela criatividade que seria de desejar. E a utilização de uma só atriz para desempenhar todos os papéis femininos, para ficarmos num exemplo, não parece uma escolha lógica, mas apenas pobreza de recursos. Conhecemos os problemas econômicos do Arena e as limitações de seu palco: é preciso reconhecer, porém, que Arturo Ui não teve, apesar da sustentação teórica possível de dar-lhe, uma montagem ideal.

Fagundes (sentado), Bibi Vogel e Antônio Pedro
(à direita) em cena
de Arturo Ui

Gianfrancesco Guarnieri faz um Arturo Ui convincente, sublinhando o caráter repulsivo da personagem. Antônio Pedro vem se distinguindo pela maleabilidade e, como Coringa, explica sempre com elogiável didatismo a ação em progresso. Luis Carlos Arutim, Antônio Fagundes e Dante Ruy são outros atores que se destacam. Apenas Bibi Vogel deveria ter mais experiência ou domínio para assumir toda a responsabilidade dos papéis femininos.

Em depoimento à EXPO-Arena, em 2004, o próprio Fagundes admitiria que Arturo Ui não fôra um bom espetáculo. Foi o último trabalho da magnífica e inigualável associação de Guarnieri e Boal e a última direção de Boal para um texto linear, utilizando o sistema Coringa, no Arena. Depois disso Boal dirigiria apenas o Teatro Jornal, criação coletiva, e seria preso, torturado e exilado. Era o triste fim do Arena, no Brasil.

Ivany Ribeiro

Quem também agonizava era a TV Excelsior, o que levou Guarnieri a migrar para a TV Tupi junto com Ivany Ribeiro, Carlos Zara e Eva Wilma. O ano de 1970 terminou com o saldo de três peças recebidas com frieza pelo público, a morte anunciada do Arena, do Oficina e da Excelsior, e Guarnieri trabalhando em Meu Pé de Laranja Lima, primeira das novelas de Ivany para a Tupi. Era hora de mudar.

Influenciado pelo livro ABC de Castro Alves, lançado em 1941 por Jorge Amado, Guarnieri resolveu mergulhar novamente na vida de uma grande figura de nossa história para poder manter ativa sua tribuna teatral. O poeta baiano, famoso por sua luta em favor do fim da escravidão, dava poderoso mote para que se cantasse a liberdade, mais suprimida do que nunca naqueles anos acres do governo Médici. Assim nasceu Castro Alves pede passagem. Guarna utilizou o popularíssimo programa de auditório "Esta é sua vida", apresentado por J. Silvestre, como fio condutor da trama, e com música e poesia foi desfiando a atribulada vida do célebre poeta que morreu com apenas 24 anos e um único livro lançado. Para musicar a peça Guarna resolveu chamar Toquinho.

Com fina erudição e agudíssima esperteza, Guarna conseguiu criar um belíssimo painel animado sobre a vida de Castro Alves, enchendo-o do início ao fim de petardos envenenados contra a ditadura. São diversas as vezes em que reconhecenos a voz do próprio Guarnieri nas falas de Castro Alves ou de seu irmão José Antônio: "Está todo mundo sentado de olho miúdo olhando o mundo em sua mexida e chupando sorvete. Podem tombar cadáveres do televisor que ninguém se mexe. Os mortos lhes entram pela casa adentro e ninguém se levanta da poltrona. E se falta luz, vivem na escuridão até que alguém se lembre de acender uma vela." (esta última frase tornaria-se mote para o espetáculo Um Grito Parado no Ar), "Taí, pra isso é que é bom morrer cedo, na flor da idade, antes que chegue a maldita idade do conformismo, da renúncia dessa porca razão!", "Meu coração está nas ruas, com esse povo aturdido... há gente que me ouve e que me segue. Sou uma espécie de esperança. Cada ato arrojado, cada protesto, cada afirmação de nós mesmos cria novo alento prá eles...". Nesta só faltou dizer que ele foi o cantor de Zumbi e Tiradentes: "Defendi os direitos do homem, a liberdade de palavra, de reunião e de imprensa. Condenei a guerra e a tirania; abominei o terror e a violência como armas políticas, fui o cantor de heróis populares brasileiros...", "Cidadãos, é chegado o fim da tirania. Em cada coração o sagrado desejo da Pátria livre, e Pátria livre só a conquista o homem livre, senhor de sua Nação!", e assim por diante.

O Castro Alves do grande
 Zanoni Ferrite

Foi um tiro certeiro e a peça agradou em cheio. Tratando-se de texto quase didático sobre figura histórica do século passado, os censores - sempre cretinos - não perceberam as alusões evidentes e óbvias ao momento atual e simplesmente deixaram passar. Produzida pela companhia de Othon Bastos e Martha Overbeck e dirigida pelo prórpio Guarnieri (em sua primeira direção), a peça contou com Zanoni Ferrite como Castro Alves, Fagundes como seu irmão, Dante Ruy, Jacyra Sampaio (absolutamente TODOS eles, ex-integrantes do Arena), Martha Overbeck, Regina Vianna, Luís Carlos Moraes (sobrinho de Dulcina) e outros. Estreou em maio de 71 em Salvador e seguiu em carreira vitoriosa e memorável pelo resto do país.

Este é o texto escrito por Guarnieri para o programa do espetáculo, e que mais tarde foi publicado na introdução do livro com o texto da peça (Castro Alves Pede Passagem, Palco+Platéia Editora Ltda., 1971). Guarnieri relata a maneira como contou a história de Castro Alves nos botecos da vida, tendo os bêbados como público. Agradece a Jorge Amado e a uma série de pessoas, no estilo do Samba da Benção de Vinícius e Baden Powell:

Jorge Amado
Sim, meu povo! Vivemos do canto, do homem e do seu mundo. Nossa poesia é da tua e do boteco. Geração da “Brahma”,
“caipirinha”
e “batida de limão”. Da conversa com o “bebum”. Contamos a história de um grande poeta pra um conjunto de homens. Cada qual mais de cara cheia que o outro. Eram cinco. Tudo fazedor de tijolo e telha. Operário de olaria. Contamos a vida de um moço que foi chamado “poeta dos escravos”. E quando disse eles sorriram. E quando sorriram percebemos que não muito tempo se passou. Ele morreu faz cem anos. E canta forte, minha gente, canta forte que se ouve. Ou sei lá, foi o eco que ficou! E a moçada, sorriu no sem dente, e um lá puxou a fungar escondendo o choro. E fez-se silêncio no botequim. E a gente contando a moçada vibrava e perguntava e pedia pra ouvir os versos que a gente dizia, estropiados, só no que a memória ajudava e mesmo assim o moço poeta desceu que nem em terreiro por lá comandando o encontro, abençoando a cachaça que aumentava o preto dos olhos da moçada que olhava e ouvia. E como o moço amava, reagia, sofria, cantava, chorava, morria... Contei também pra minha amiga, que na sua graça do seu amor por mim, no seu trabalho que não dá dinheiro, na sua maternidade bem compreendida, se afastou dos números e de profundos raciocínios e chorou e riu comigo uma saudade, que é de povo, saudade de um moço, soldado sem fuzil, que da palavra fez espoleta que explodiu estruturas e corações. G.G.

A "amiga" de Guarnieri,
 sua esposa Vanya Sant'Anna

Já cantou essa história, meu povo, um poeta que sussurra à cabeceira dos povos do mundo. Cantador em várias línguas, já nos falou de Besouro, de Lucas da Feira, de Rosa Palmeirão, do negro Antônio Balduíno, de Gabriela, Quincas Berro D’água, e de Castro Alves, amiga, de Castro Alves nos falou, abraçando forte o corpo cheiroso de seu amor, à beira do cais, apontando estrelas e fazendo um ABC que nem o de Lucas da Feira. Sua benção, Jorge Amado, e Vinícius que me ensinou a pedir. Sua benção, Pedro Calmon, autor da obra indispensável para o conhecimento do poeta, sua benção Afrânio Peixoto, sua benção Edison Carneiro (amigo antigo de consultas, sempre presente e orientando ao sincero cantador), sua benção Mário de Andrade, sua benção Xavier Marques. Vossa benção, irmãos de porto e destino, pelo estímulo de cantar.

As três parcerias de Guarnieri e Toquinho compostas para Castro Alves mais tarde lançadas em LP são estas:

Meu Tempo e Castro Alves
(Toquinho e Guarnieri)

Meu tempo escutou, vindo lá do passado,
Um poeta que o tempo guardou.
Meu tempo é apressado, meu tempo é danado:
Meu tempo tudo mudou.

Meu tempo mal guarda o sabor do presente
E se atira prum tempo melhor.
Meu tempo não pensa, está sempre adiantado:
Esqueceu o que sabe de cor.

Meu tempo é de morte pra vida.
Meu tempo se escorre na multidão.
Meu tempo, poeta, é um tempo engraçado:
É o tempo da lua na televisão.

Meu tempo é do homem aflito,
Apressado, angustiado, sem remissão.
Meu tempo, poeta, não é do seu tempo:
É outra a nossa canção.

Vem Amor, Vem Vingança
(Toquinho e Guarnieri)

Vem amor e vem vingança,
Cada qual com sua bagagem.
Vem a morte sem remédio

Escondida numa imagem
De moça nova, donzela,
Toda beleza e coragem.

Toma tento seu Deolino,
Põe freios no coração.
Ninguém brinca sem castigo
Com as leis deste sertão.

Bobeou, não vai entender
(Toquinho/Guarnieri)

Le - le- le - le - le
Bobeou, não vai entender
E você, se um dia bobear,
Vai entrar, eu quero ver.

Meu samba é da rua,
O meu samba é do chão.
Você que está na sua
Preste muita atenção.

O samba é de boteco,
Armado em roda de bar.
Onde o triste dá risada,
Onde o forte vai chorar.

Meu samba calça chinela,
Camiseta e bandeira.
Com amor e cansaço
Ele faz rimas na feira.

Ele é muito fácil,
Sempre sabe o que diz.
Samba meu nasce no peito,
Tão bem feito na matriz.


Agora eu peço perdão ao Vinícius de Moraes
Por essa traição com um cara que é demais.
Um bom parceiro, um diretor fora de série,
Um ator tão badalado: Gianfrancesco Guarnieri.


Na última estrofe desta música fica clara a camaradagem de Guarnieri e Vinícius na "triangulação" de Toquinho como parceiro de ambos. Só que acontece o seguinte: não houve traição alguma porque Guarna foi parceiro de Toquinho ANTES do Poetinha. Graças à sua participação no LP italiano em homenagem a Vinícius, em 69, Toquinho foi chamado para acompanhá-lo em uma temporada à qual se juntaria também a cantora Maria Creusa na boate La Fusa, em Buenos Aires. No show, que virou o LP Vinícius de Moraes en La Fusa, a única música de Toquinho é Que Maravilha, dele com Jorge Ben.

Vinícius de Moraes en La Fusa e
Como dizia o Poeta - Música Nova
A parceria efetivamente só começou em 71, no álbum Como Dizia O Poeta... Música Nova - Vinicius, Marília Medalha, Toquinho, que contou com Marília Medalha, também parceira de Vinícius. Um ano depois de Tudo de Novo. Portanto, o "traído", no bem-humorado perdão de Toquinho foi Guarnieri, e não o saudoso Poetinha. A letra se refere, de fato, ao convívio extenso do dramaturgo e Toquinho, e brinca com o ciúme que isso poderia estar causando a Vinícius. Não é outra a razão pela qual a música que abre a peça, Modinha, é de Toquinho sobre um poema de Vinícius escrito especialmente para Castro Alves Pede Passagem. E não por coincidência, a música foi parar na trilha sonora de Nossa Filha Gabriela, segunda novela de Ivany Ribeiro na Tupi, que estreou em 1° de setembro de 1971. Teve Guarnieri e Eva Wilma como protagonistas, direção de Carlos Zara e um elenco que incluía Bete Mendes, Cláudio Corrêa e Castro e Lélia Abramo, entre outros. A trilha ficou inteira a cargo de Toco e Vinícius.
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Parte 2 deste artigo
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