domingo, 28 de novembro de 2010

Twisted Sister, 24 anos depois


Lembro-me de uma redação que fiz na oitava série em que tínhamos que nos apresentar à nova professora de sei lá quê matéria, onde ela exigiu que o texto fosse iniciado com uma frase marcante que tivesse, ou não, algo a ver conosco. Não compreendi o pedido. A professora explicou: “Qualquer coisa que seja marcante para você. Comece o texto com isso”. Depois de alguns minutos de total indecisão, escrevi: “Meu nome é Bernardo Schmidt e um dos melhores momentos de minha vida foi assistir um show do Twisted Sister em Washington DC”.

Com o advento da MTV, em 1982, o video-clip tornou-se instrumento definitivo na divulgação de um novo LP. O formato já existia desde a década de 60, mas sem maior apuro técnico ou artístico e – com raras exceções – os clipes se resumiam a criações conceituais no mais das vezes toscas, ou meras filmagens da música sendo cantada. Michael Jackson quebrou esse molde a pauladas e popularizou a si mesmo e à MTV com o magnífico vídeo-filme da música Thriller, dirigido pelo cineasta John Landis e com a participação especial de Vincent Price em áudio, com a gargalhada mais famosa de todos os tempos. Era entretenimento para toda a família. Em 1983 surgiu algo diferente. Maquiagem no estilo “heróis (ou monstros) da Marvel” já se conhecia através do Kiss (que por sinal se livrou da maquiagem nesse mesmo ano, logo depois de ter vindo ao Brasil) e vinha renascendo com bandas como o Motley Crue, mas um grupo de homens que se maquiava e cujo vestuário beirava o cross-dressing era coisa que não se via desde Ziggy Stardust ou do New York Dolls. O Twisted Sister, por assim dizer, ressuscitou o estilo.

O TS já existia desde 1972, sem maior sucesso. Gravaram dois LPS no início da década de 80 – Under the Blade e You Can’t Stop Rock’n’Roll – mas foi com Stay Hungry, em 83, que veio finalmente a consagração. E não tanto pela qualidade musical, que era constante desde o primeiro disco, mas porque o clip utilizado para promovê-lo através da MTV foi maravilhoso, arrojado e inovador. A música chamava-se We’re not gonna take it (“Não vamos aceitar isso”) e a letra era um hino de revolta juvenil contra qualquer tipo de autoridade. Frases como This is our life, this is our song/ We'll fight the powers that be just/ Don't pick our destiny'cause/ You don't know us, you don't belong, ou Oh, you're so condescending/ Your gall is never ending/ We don't want nothin'/ Not a thing, from you já eram, por si só, tudo aquilo que um adolescente gostaria de dizer aos pais, mas o clipe superou em muito o poder dos versos. No mesmo estilo de Thriller, possuía uma historinha que mostrava um garoto ouvindo música e tocando guitarra em seu quarto, até o momento em que é interrompido por seu pai, que lhe dá um sermão aos berros, criticando e humilhando o garoto de todas as maneiras, até concluir com o célebre “What do you wanna do with your life?” O garoto responde “I wanna rock!” (título da música do TS que ele estava ouvindo antes do pai entrar), e solta um acorde da guitarra que ejeta o pai pela janela.



O TS desfrutou do sucesso de Stay Hungry e do clip de We’re not gonna take it por dois anos, até que lançaram Come Out and Play, em 1985. O gordo dinheiro injetado na banda com o disco anterior, além do período em si – meados da década de 80, em que o heavy metal passou por uma fase horrenda, poser, virou hard rock, guitarras cruas foram acrescidas de teclados e sintetizadores, e os trapos e os andrajos de androginia pré-histórica foram substituídos por roupões de lantejoulas, meias-calças e cabelos bufantes – fizeram de Come Out and Play um arremedo daquilo que se conhecia por Twisted Sister.

Ombreiras de pele ou penas
de urubu, lenços de zebra, coletes de oncinha, meias-calças...
TS e o visual "poser" de
Come Out and Play

Nós, os fãs, entretanto, estávamos vivendo aquela época e só percebemos isso hoje. Enquanto tudo acontecia, aquilo era a glória. Especialmente porque tive a sorte de estar nos Estados Unidos quando começou a turnê mundial do novo LP e um belo dia vi no jornal o anúncio de um show do Twisted Sister marcado para o dia 22 de janeiro de 1986, em uma arena coberta chamada Capital Centre, que não ficava – conforme eu assinalei erroneamente em minha redação – em Washington, mas em um município próximo, Landover, no estado de Maryland. Como cheguei em cima da hora não pude ficar na pista e comprei o ingresso que sobrava, na arquibancada. Não importava, porque aquilo tudo foi um sonho.

O ingresso desse show inesquecível

Houve uma rápida abertura do Dokken, banda menor que se desfez logo depois, e começou a atração principal. O Capital Centre veio abaixo. O TS era paradoxal; estavam ricos e famosos graças a Stay Hungry, e no entanto o cenário nada mais era do que um pano todo pintado simbolizando um ferro-velho com prédios e as pichações que apareciam na contra-capa do LP Come Out and Play. Se não me engano a bateria de A. J. Pero estava sobre um carro todo detonado, parte do que seria o tal ferro-velho. Era a marca registrada das apresentações do TS: não havia necessidade de cenários mirabolantes, holofotes e pirotecnia, todos usados à farta pelas bandas de então. Bastava a energia incomum de Dee Snider e as músicas emblemáticas, que cantávamos a plenos pulmões. Em We’re not gonna take it as luzes se apagavam e se ouvia o detestável sermão do pai, que servia como introdução à música. Um delírio. Houve um ou dois bis, num deles apareciam os quatro (Dee, Ojeda, Jay Jay e Mendoza) nas janelinhas dos prédios de pano, cantando. Tosco, tosco, e no entanto inesquecível. Na última música, Be chrool to your scuel, Dee Snider não se contentou em cantar, apenas; pegou uma terceira guitarra e acompanhou os outros.


Depois da lua-de-mel do TS com a MTV, a emissora musical resolve banir o clipe de "Be Chrool to your scuel" - cujo título parodia "Be true to your school", dos Beach Boys - que contava com a participação especialíssima de Alice Cooper. O motivo seria o realismo excessivo das imagens, que mostravam - embora de maneira inofensiva, humorística e próxima aos cartoons - os alunos transformando-se em zumbis canibais.

Desse show guardei o Official World Tour Program, o programa do show, com 24 páginas de fotos e informações sobre o grupo e a turnê, com um pequeno booklet de curiosidades e trivia no meio (vi esse estupendo programa à venda no eBay por míseros 30 dólares), ter conhecido o Capital Centre, fechado em 1997 e demolido em 2002 e a recordação extraordinária de assistir o grupo no auge do sucesso, quando eu tinha apenas 13 anos.

A fama destruiu o Twisted. Para moleques como eu e milhões de outros fãs, o Come Out and Play era a glória da mesma forma que o Stay Hungry, o Under the Blade ou qualquer outro álbum que a banda lançasse, mas em termos críticos, alheios à tietagem, ou para o público mais exigente, o LP foi uma decepção e minou o destino do TS. Em 1987 eles tiraram a maquiagem e lançaram Love is for Suckers. A. J. Pero fôra substituído por Joey Franco. Mais uma decepção. Lembro-me de um artigo que ironizava a música One Bad Habit, que dizia no refrão: I’ve got one bad habit, I like to rock’n’roll. O crítico então escreveu: “Not such a bad habit, and not such a bad album”. Ironias à parte, ele foi simpático. Eu pessoalmente acho Love is for Suckers ótimo, em muitos aspectos superior a Come Out and Play, mas a crítica especializada aniquilou o LP, que acabou sendo um fracasso de vendas. O grupo se desfez e passou os 15 anos seguintes no vinagre.


Em meados da primeira década do século XXI começou o culto da nova geração pelo heavy metal e pelo hard rock dos anos 80. Bandas consagradas ou bandas de um único hit que haviam sumido há vários anos foram descobertas pelos jovens e ressurgiram gozando de sucesso inédito em reunion tours, com os integrantes originais na faixa dos 50 anos. Por alguma razão – seja porque o público brasileiro é o mais carinhoso e empolgado que existe, ou porque somos fundamentalmente carentes de shows desse tipo, ou até mesmo porque os rockeiros do hemisfério norte nunca se deram conta de que nosso país sempre foi um dos maiores consumidores de heavy metal e hard rock de todos os tempos – o Brasil está geralmente no topo da turnê de todas essas bandas. E no ano passado, com A. J. Pero de volta à bateria, o TS veio ao Brasil pela primeira vez. Eu não esqueci a banda, ao longo dos anos até comprei algumas coletâneas caça-níquel em cd para relembrar os sucessos, mas por uma razão ou por outra acabei não vendo o show realizado no Via Funchal, que – para meu supremo arrependimento – soube mais tarde ter sido fantástico. A energia estava toda lá, a maquiagem era a mesma do Stay Hungry, um sucesso atrás do outro, e até comentários dos colunistas mais conservadores davam conta de que o show fôra excelente.

Em junho deste ano a internet anunciou que o TS voltaria para mais dois shows no Brasil em novembro, um em Curitiba e outro em São Paulo. Desta vez não perdi. Ontem, 24 anos depois de tê-los visto no Capital Center, ouvi novamente, ao vivo e in loco, o lendário “We are Twisted! Fucking! Sisteeeeeer!” com que Dee Snider começa todos os shows. Do lado de fora do Via Funchal, minutos antes, eu às vezes ria, observando aquele monte de rockeiros e fãs de rock (nos quais evidentemente me incluo), todos de meia-idade, todos na faixa dos 40, alguns ainda mantendo o mesmo cabelão comprido, outros já encaretados pela idade e pelas circunstâncias. Aqui e ali meninas de 16, 17 anos, proverbiais groupies, deslumbradas com a presença desses velhos metaleiros que faziam sucesso quando os pais delas ainda eram adolescentes. No palco a sensação foi a mesma. Snider e Mark Mandoza estão idênticos mas Jay Jay French e A. J. Pero engordaram pelo menos 20 quilos. O som é quase o mesmo, excetuando-se French e Ojeda, que pareciam não lembrar mais dos solos de cada música. Nada que atrapalhasse a catarse do momento.

O sucesso inesperado do ano passado deixou Dee e cia. relaxados e à vontade em meio ao público de São Paulo. Estavam sem qualquer maquiagem e desfiaram, às vezes sem pausa, aqueles sucessos que sabemos de cór e salteado. No início de The Price, depois da famosa introdução de Eddie Ojeda, Dee estava de costas, preparando-se para começar quando o público se antecipou e cantou, afinado, em perfeito uníssono, o How long i have wanted/ this dream to come true/ and as it approaches/ i can't believe i'm through. Snider virou-se, surpreso com aquele côro sensacional e brincou, no microfone: “I’ll sing it, ok?” Mesma coisa em I Wanna Rock, que teve o pulo coletivo mais sincronizado da história do rock, e em todas as ocasiões em que houve oportunidade para acompanhá-los. No fim de We’re not gonna take it, o público entoou o refrão quando a canção já estava terminada. A banda não deixou por menos e voltou a tocá-la, cantando o refrão junto ao público. Uma beleza.

Jay Jay French, que no passado não abria a boca durante o show, estava falador e alegre. Disse que a medida do amor deles pelo Brasil é que naquela turnê tinham um show no Chile, um show na Argentina, um na Bolívia e DOIS no Brasil. Enquanto dizia isso, Snider desfraldou uma bandeira brasileira com o símbolo do TS no meio, que recebeu do público. O grande vocalista, aliás, cantando com a mesma força e alcance dos anos 70 e 80, não regateou elogios a São Paulo. Em determinado momento disse, sem rebuços, “You're the fucking best, São Paulo, you’re the best, primêro, number one”, e declarou desde logo que o Brasil já era “our second home”, porque o público era louder, e as garotas eram hotter. Provocou gargalhadas quando falou isso, apontou para uma garotinha e disse, “but not you, little girl”. Arrematou dizendo “Twisted Sister is gonna move to São Paulo. We will live here with you, ok?”. Em tom mais sério, relembrou a morte de Ronnie James Dio, com quem o TS faria um show na Europa, este ano, e a quem Snider qualificou de um “deus do heavy metal”. Em tributo a Dio, o TS tocou Long Live Rock’n’Roll, que o público também cantou junto.


Foi balsâmico rever o TS depois de quase 25 anos. Que energia, que comunhão fundamental com o público, que prazer compartilhado entre músicos e espectadores.

Ouvindo as músicas e assistindo os clips hoje, impressiono-me com a inocência daquela juventude e o quanto éramos desnecessariamente reprimidos. E sinto nojo do que se faz hoje. Talvez o mesmo nojo que quem cresceu na década de 60 sentiu quando ouviu o rock dos anos 80. Ou talvez o que se faz hoje seja uma merda, mesmo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Hamlet: duas tentativas frustrantes

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O Hamlet de Diogo Vilela
O Hamlet de Diogo Vilela

Existem momentos que são esperados ansiosamente por aqueles que vão com freqüência ao teatro. Paulo fazendo Lear foi um, assim como Fagundes fazendo Cyrano, Fernanda fazendo Arkádna, Dória fazendo Harpagon, e por aí vai. Na minha lista particular, o Hamlet de Diogo figurava em segundo lugar, perdendo apenas para a curiosidade que eu tinha por ver Paulo interpretando o Rei Lear. Satisfeita essa curiosidade, Diogo pulou gloriosamente para o primeiro lugar. Nos bastidores de Solidão, a Comédia, em 1994, perguntei a Diogo quando é que viria seu Hamlet. Ele brincou, contou-me do comentário de Miguel Falabella, de que um Hamlet de Diogo seria um Hamlet mulato, e terminou dizendo que a peça evidentemente estava em seus planos, como está sempre nos planos de qualquer grande ator, mas para breve.

A espera foi cruel. Passaram-se sete anos até que o projeto se transformasse em realidade. Quando a peça chegou a São Paulo, em pequena temporada no Teatro Alfa-Real, comprei o ingresso imediatamente. Poucos dias antes assistira a entrevista de Diogo no programa de Jô Soares, divulgando o espetáculo. Levava consigo o ator Luiz Artur, que interpretava Laerte, e juntos fizeram uma pequena demonstração do que seria o duelo de Hamlet e o irmão de Ofélia, no último ato. A entrevista, longe de me entusiasmar, me assustou um pouco. Luiz Artur era menos do que um amador, estava inteiramente cru. Parecia jamais ter feito teatro em sua vida. Comecei a temer pelo que seria o elenco desse Hamlet, e infelizmente não me enganei.

O Hamlet de Diogo foi, para mim, uma espécie de implosão. Um anti-clímax. Marcus Alvisi, tão competente e afiado para a direção de espetáculos vencedores como Solidão, a Comédia e Navalha na Carne, apresentou uma montagem ingênua e superficial para o Hamlet traduzido por Millôr Fernandes. Não sei se o termo exato seria "ingênuo", mas não consegui sopitar um completo espanto na escolha grosseiramente equivocada dos atores. Vamos a eles:

Ricardo Petraglia é um ótimo ator, mas não o achei adequado para Cláudio. Simplesmente não me convenceu. Seu jeito gaiato, de malandrão sedutor, não se coadunava com a gravidade do personagem shakespeariano. Alvisi deveria ter trabalhado nisso, fazendo com que Petraglia perdesse uma série de maneirismos contemporâneos demais. Não trabalhou. Quanto à Rita Elmôr, que interpretou Ofélia, não sei ao certo quais seus trabalhos anteriores (uma novela no SBT, acho), mas ela certamente não estava à altura da tarefa. Sua entrada, na cena da loucura, criou um certo efeito pela careta que fez, misturada à maquiagem pesadíssima. Foi seu único momento mais ou menos memorável. O trabalho de Luiz Artur eu prefiro nem comentar.

Susana Faíni é uma atriz competente. Sua Gertrude foi razoável, mas dentro de um elenco tão falho, ela não podia fazer milagres. O mesmo se pode dizer do experiente Antônio Pedro, cujo Polônio passou em brancas nuvens. Bom mesmo foi o Horácio de Fernando Eiras. Nunca tinha visto Fernando no teatro, e para dizer a verdade, seu trabalho na televisão nunca me impressionou. Pois gostei bastante de seu Horácio.

E por fim, Diogo. Seu Hamlet foi bárbaro. Ele comentara no programa de Jô que a densidade depressiva do personagem andava afetando-o, nos últimos tempos. De fato, seus olhos não negavam esse estado de espírito. Em seu primeiro monólogo já fulminou o público com os olhos injetados, uma expressão de destruição, de alma em escombros. E seguiu brilhantemente pelo resto do espetáculo, talvez com um ou outro vício de interpretação (provável herança da TV Pirata) que poderia ter sido facilmente aparado por Alvisi. Em geral ele se desincumbiu exemplarmente da tarefa. Diogo nasceu para fazer Hamlet. Sempre possuiu o talento e a ecleticidade imprescindíveis para uma boa performance. Em português claro, ele é melhor ator do que todos os Hamlets que tivemos nos últimos 20 anos. Mas uma andorinha só não faz verão. Shakespeare não costumava escrever peças onde apenas um personagem brilhava, e um ator perfeito, embora o protagonista, não foi suficiente para que o espetáculo ficasse bom. Também é freqüente o naufrágio de espetáculos que contam com um bom elenco, mas sem um diretor que os conduza.

Diogo merecia um elenco melhor e um diretor com mais familiaridade e vivência com Shakespeare. O que não teria sido o Hamlet de Diogo nas mãos de Antunes Filho? O que não teria sido um Cláudio de Walmor Chagas (ele próprio um célebre Hamlet do passado)? Uma Gertrude de Marília Pêra? Uma Ofélia de Giulia Gam, Denise Fraga ou Maria Luisa Mendonça? Um Polônio de Laerte Morrone, Guarnieri ou do próprio Antônio Pedro, dirigido por alguém que lhe soubesse fazer aflorar o enorme talento?

É costume dos atores ingleses voltar aos papéis shakespearianos que já interpretaram em outras épocas, pela razão específica de enriquecer a performance com a experiência da idade. Olivier repetiu nos anos 50, com excelentes resultados, o Coriolano e o Macbeth que fizera com inexperiência e sucesso tímido nos anos 30. Gielgud interpretou Hamlet 4 ou 5 vezes, ao longo de sua vida; Próspero e Lear ele também repetiu mais de 3 vezes. Espero com todo meu coração que Diogo volte a Hamlet. O ator e o personagem merecem.

O Hamlet de Marco Ricca
O Hamlet de Marco Ricca

O diretor Ulysses Cruz andava num verdadeiro frenesi shakespeariano no segundo lustro da década de 90. E foi justamente a seqüência de três peças do bardo em três anos que jogou água fria nesse frenesi. Em 1995 Ulysses dirigiu uma estupenda montagem de Péricles, Príncipe de Tiro, no SESI de São Paulo, tendo Leonardo Brício no papel-título. O prestígio e o sucesso sem precedentes do espetáculo resultaram num convite de Paulo Autran para dirigir seu esperado Lear, depois de baldados os esforços do velho mestre em convidar um diretor estrangeiro. A montagem foi irregular; Paulo estava bem mas o elenco coadjuvante aniquilou a peça. Até mesmo os cenários de Hélio Eichbauer mostraram-se menos inspirados do que o normal. Em 1997 Ulysses partiu para o Hamlet de Marco Ricca, com tradução do ator Marcos Daud. Assisti a peça no Sérgio Cardoso, teatro que, ao contrário do Alfa, tem espaço de sobra para abrigar um espetáculo dessa magnitude.

Estava acostumado a ver Ricca em propagandas de barbeador até que o assisti com Walderez de Barros em uma adaptação da Gaivota de Tchekhov. Não cheguei a me impressionar, até porque os olhos de toda a platéia não se desgrudaram de Mayara Magri do início ao fim, mas percebi ao menos que Ricca era capaz de sustentar um protagonista difícil como Treplev. Vendo seu Hamlet apenas acrescentei um adendo à mesma impressão: ele era capaz de sustentar um personagem difícil como o príncipe dinamarquês, mas não passava disso. Sua interpretação foi descolorida, em termos dramáticos. O rosto manteve a mesma expressão de susto do início ao fim, a voz – quiçá castigada pelo cigarro – teve modulação mínima e não se viu a emoção que ajudasse o público a discernir entre a normalidade, os falsos transes de loucura e os momentos de verdadeira tristeza de Hamlet.

Ernani Moraes foi um excelente Cláudio. Já o vira anos antes em verdadeiro tour de force com Denise Weinberg na Megera Domada do Tapa e passei a admirá-lo ainda mais. Ernani, dono de uma das mais belas vozes do teatro e da televisão no Brasil, domina como poucos os eventuais problemas advindos de tal qualidade. Daniel Boaventura, por exemplo, não consegue se livrar dos cacoetes de locutor quando interpreta e acaba imprimindo uma canastrice quase que involuntária a seus personagens, obstáculo que Moraes transpõe com facilidade. Na cena dos atores, quando a peça encenada desmascara o crime cometido pelo irmão do rei, lembro-me do impacto de Ernani levantado-se e dizendo, com perfeita calma, o “Preciso de luz” (estou citando de memória, não lembro mais como foi traduzido o give me some light do original), para em seguida, ante o suspense da platéia, substituir o “away” do texto pela repetição de “luz”, num grito arrepiante.

Mariana Muniz não chegou a comprometer como Gertrude, mesmo sendo, efetivamente, uma bailarina consagrada, e não uma atriz, e Rubens Caribé – conforme a crítica consignou, em uníssono, na época – de fato exagerou na intensidade de seu Laerte. Suas gritarias não ajudaram em nada o público a compreender a tragédia do estudante honesto e honrado que chega a seu país para encontrar o pai assassinado e a irmã enlouquecida. A gaúcha Júlia Feldens, na época com apenas 19 anos, foi uma grata surpresa. Inexperiente, se agarrou com unhas e dentes à cobiçadíssima (e extremamente perigosa) oportunidade de começar sua carreira fazendo Ofélia. E não decepcionou. À sua voz talvez ainda faltassem algumas gamas a serem exploradas, mas em geral ela esteve muito bem. Do Horácio de Plínio Soares eu não tenho a mais remota recordação.

O Polônio de Marcos Daud foi simplesmente ridículo e é nesse descuido que jaz meu problema com a direção de Cruz. Por que um ator jovem e canastrão é chamado para interpretar um maravilhoso personagem mais velho como o pai de Ofélia e Laerte? Daud estava envelhecido artificialmente da maneira mais tosca e sem graça. Falava com voz do detetive Ted Tigre e no fim da cena com Reinaldo, ele pegava uma caixa de sucrilhos Kellogs e começava a comer. Uma idiotice completamente sem sentido que fez o público rir e retirou qualquer seriedade da cena seguinte, uma das mais dramáticas da peça, em que Hamlet conversa com o fantasma de seu pai. Uma sabotagem de seu próprio trabalho, porque a aparição do fantasma foi a melhor coisa bolada por Ulisses Cruz; valendo-se do fato de que o pai de Hamlet usava o capacete de sua armadura e não podia ser identificado, Cruz criou plataformas ao redor do cenário e depois de fazer o fantasma andar por uma, utilizava outro ator vestido da mesma forma e andando por outra, o que criou a interessante ilusão de que o fantasma era onipresente.

Com todos os seus defeitos, sem emocionar quase nunca (um pouco, talvez, na cena da loucura de Ofélia), o Hamlet de Marco Ricca ainda foi ligeiramente superior ao de Diogo Vilela. Diogo é infinitamente mais competente e foi um melhor Hamlet, mas em termos de montagem, Ulysses Cruz ainda levou a melhor, mesmo em um momento particularmente baixo de sua carreira. E que eu saiba, não voltou mais a Shakespeare desde então. Fica a lição: o bardo não pode ser feito em escala industrial. Na Inglaterra talvez seja possível; no Brasil, não.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Sobre o filme "Gimba, Presidente dos Valentes"


Quando indagaram a Flávio Rangel “se valia a pena fazer cinema no Brasil” o diretor teatral (...) respondeu que sim, “que vale a pena fazer cinema aqui, como vale a pena fazer qualquer outra arte e assim como vale a pena fazer tudo o mais que represente realmente progresso, que tenha a sua importância no desenvolvimento do país, como estradas, hospitais, represas”. Aí está um depoimento lúcido em pouquíssimas palavras. E todo o entusiasmo de um artista que usa agora do cinema como um meio normal de expressão estética e popular, ao mesmo tempo condicionando-o à realidade brasileira. (Cinelândia, abril/1963)

Não há trabalho sobre a parceria de Guarnieri e Flávio Rangel que possa vingar sem que se leia a biografia de Flávio escrita por José Rubens Siqueira (Viver de Teatro, Nova Alexandria, 1995). José Rubens foi o único a colher o depoimento do próprio Guarnieri sobre esse assunto, e contou ainda com a entrevista que Ferreira Gullar fez com Flávio (versão integral sem cortes), onde ele falou bastante sobre toda a parceria, incluindo o filme Gimba, Presidente dos Valentes. É, portanto, obra fundamental para qualquer pesquisa.

Rangel sempre foi um grande aficionado do cinema e, como vários diretores de teatro (Fernando Peixoto é um deles), sonhava dominar não apenas os palcos, mas também as telonas. Esse sonho quase se tornou realidade em duas ocasiões: primeiro em 1960, quando dirigiu a montagem original de O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, no TBC. Empolgado com a magnífica obra-prima de Dias, comentou com o próprio que a peça poderia virar filme. A idéia acabou sendo levada adiante, mas na hora de escolher quem ia dirigir, Flávio acabou sendo preterido por Anselmo Duarte, que possuía experiência em direção cinematográfica, coisa que Flávio não tinha.

No ano seguinte Flávio e Guarnieri já sonharam A Semente como um filme, muito mais do que como uma peça, tanto é que algumas rubricas de Guarnieri chegam a ser cômicas (um bom exemplo é a presença de urubus no lixão onde Agileu conversa com os mendigos), quando imaginamos a dificuldade de realizá-las num palco italiano tradicional como o do TBC, onde a peça acabou sendo levada. Mais uma vez o plano de tornar-se diretor de cinema foi frustrado, para Flávio.

Quando a versão cinematográfica de Anselmo Duarte para O Pagador de Promessas foi laureada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, Flávio mais uma vez voltou a acalentar o sonho de dirigir um longa. Talvez influenciado pelos esforços do CPC da UNE na tentativa de fazer um cinema de fundo social, que resultou no clássico Cinco Vezes Favela (1962), Flávio escolheu Gimba, de Guarnieri, ambientado num morro carioca — e que ele próprio já dirigira no teatro, em 59 — para levar à telona. Inseguro nessa sua estréia no cinema, Flávio foi se aconselhar com Roberto Santos — diretor de O Grande Momento, primeiro longa de Guarna — que se tornou co-roteirista e ajudou Guarnieri a dar um tratamento com linguagem cinematográfica ao texto de 59. E as filmagens foram de novembro de 62 até o início de 63.

Eis o que Flávio teve a dizer sobre o filme, para Ferreira Gullar:

É uma experiência artística que eu considero frustrada, porque o filme talvez devesse ser em cores e não em preto-e-branco. E eu fiquei no meio do caminho, entre um filme de conotação folclórica, que talvez fosse isso que as pessoas esperavam, e a tragédia social. Não ficou nem uma coisa nem outra. (...) O filme não é ruim. Tem uma música lindíssima, que até hoje ficou muito famosa, uma música do Carlos Lyra com letra do Guarnieri, que era tocada no filme pelo violão do Baden Powell e com a gaitinha do Omar Izar, que é aquela: "Feio, não é bonito"... chama "O Morro". (...) Mas não é um filme, assim, desprezível, não. É um filme correto. Conta sua história corretamente. Falta alguma coisa a ele. Falta aquilo que o espetáculo no teatro tinha, talvez. Falta vibração. (Viver de Teatro1995)

Quando começaram as filmagens, no morro da Mangueira, Alberto Silveira escreveu na Manchete que “há quem acredite que Gimba, com seu ambiente folclórico e verdadeiro, danças e canções, alcance a grandeza de Porgy and Bess” (15/12/62),  referindo-se ao musical negro de George Gershwin, filmado em 1959 por Otto Preminger. Não foi o caso. A recepção ao filme em termos de crítica e público foi morna e ele acabou esquecido rapidamente. O que sobrou, realmente, foi a composição de Lyra e Guarna, que se tornou um clássico de nosso samba e, segundo Rangel contaria em entrevista ao SNT, em 75, era uma das preferidas de Tom Jobim. Certa vez comentei com Guarnieri que estava prestes a conseguir uma cópia do filme e que o assistiria, finalmente. Ele riu um pouco e me disse: "Não se dê o trabalho". Daí se vê mais ou menos em que conta ele tinha o filme.

A morte de Gimba: Gracinda Freire e Milton Moraes

Milton (Gracinda atrás dele) cumprimenta o menino
José da Silva Cruz Filho, que interpreta Tico
Não segui o conselho dele e assisti Gimba. Era uma cópia bem ruinzinha em video, gravada da televisão — o filme nunca foi restaurado ou lançado oficialmente em vídeo — em algum daqueles programas de filmes nacionais da Cultura, transmitido talvez há uns 15 anos. Há que juntar a opinião de Rangel e de Guarna e extrair o quociente; com efeito, o filme não chega a ser ruim, mas também não chega a ser bom. É um filme amorfo, que não empolga e raramente emociona. Minha sensação mais nítida foi de que ao invés de transformar a peça em uma experiência visual e performática superior (o que Leon Hirzsman fez com Black-Tie, em 81), a versão cinematográfica deixou a descoberto todas as fraquezas do texto. Um texto que eu, particularmente, já não considero dos mais inspirados de Guarnieri.

Gracinda Freire
O par principal, que no teatro era composto por Sebastião Campos e Maria Della Costa, foi interpretado no filme por Milton Moraes — talentoso e respeitado no meio teatral, onde criara recentemente papéis como o de Pedro Mico, de Antônio Callado e o do Boca de Ouro de Nelson Rodrigues — e Gracinda Freire (também escurecida artificialmente para parecer mulata), que vinha de uma elogiadíssima e premiada performance no filme Três Cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira, lançado no ano anterior. Gracinda estava orgulhosa de participar do projeto: “Estou contentíssima por ter podido atuar em Gimba”, disse ela. “É a coisa mais linda que já me aconteceu na vida profissional: o papel que tenho na versão da peça de Gianfrancesco, sob a direção de Flávio Rangel”. (Cinelândia, maio/1963)

O elenco traz figuras de proa do cinema nacional, como Ruth de Souza, atores do Arena, como Milton Gonçalves, e ainda Paulo Copacabana e o grande Osvaldo Louzada, reprisando no cinema seus papéis de Mãozinha e Gabiró, que fizeram na montagem original com Maria Della Costa. Cyro Monteiro — excelente, por sinal — faz o papel de Carlão, que no teatro foi de Sadi Cabral. Altamiro Martins, que no teatro interpretou um repórter tanto em Gimba quanto em Pagador de Promessas, foi preterido nas duas versões cinematográficas; no filme de Anselmo Duarte o papel foi para o jovem Othon Bastos; no filme de Rangel, o repórter foi vivido por John Herbert. Entre as curiosidades temos Zé Kéti trabalhando como ator, assim como pequena participações de Maurício Sherman e Paulo Emílio Salles Gomes.

Gracinda (Guiô) e José Cruz Filho (Tico)
Ruth de Souza (Chica Maluca) e Cyro Monteiro (Carlão)

Zé Kéti
Enfim, malgrado os esforços e as melhores intenções, trata-se de um daqueles trabalhos que tinha tudo para dar certo, mas deu errado. Para coroar a frustração de que Flávio falou a Ferreira Gullar, a cópia do filme não chegou a tempo na Europa e o filme não pôde participar do Festival de Cannes, onde o Brasil tinha o favoritismo de ter vencido no ano anterior, com O Pagador de Promessas. Hoje, o valor de Gimba é o fato de ter juntado uma verdadeira constelação de talentos num projeto que não vingou. A seqüência inicial (a única comentada de vez em quando pelos cinéfilos), que traz o garoto correndo pela cidade, acompanhado pela câmera, para dar no morro a notícia de que Gimba está chegando, é bonita e imensamente valorizada pela trilha sonora, com Zé Kéti cantando Feio, não é bonito ao som do violão de Baden e a gaita de Omar, citados por Flávio. O arranjo — se não me engano — é do Maestro Lyrio Panicalli. Assim como ocorreu com a versão musical de Lost Horizon, em que a trilha de Burt Bacharach foi infinitamente mais festejada do que o trabalho do diretor Charles Jarrott, a trilha de Gimba merecia ser restaurada antes que o próprio filme. Não seria material suficiente para um LP, mas para um compacto duplo, como a trilha de Eles não usam Black-Tie.

Baden Powell e Omar Izar

Além de Feio, não é bonito, há belíssimas inserções musicais de Baden com seu violão pelo filme inteiro. Há também uma musiquinha cantada para celebrar a chegada de Gimba ao morro. Na peça, essa música era Salve Salve General. No filme, a música chama-se Gimba Chegou, e (pelo que sei) foi composta especialmente para o filme por Zé Kéti. Não consegui entender perfeitamente sua letra, mas é algo assim:

Gimba chegou
o mais valente desse morro
Gimba voltou pro reinado que é seu
salve o rei vagabundo (?)

Gimba é o mais valente que tem,
que tem, que tem no império do samba
Gimba é o mais valente que tem
que tem, que tem, e ... de nada. (?)

Gimba voltou
voltou pro morro de mangueira (?)
Gimba voltou a saudade apertou,
a saudade apertou.

E no fim Feio, não é bonito é reprisada; no meio de várias vozes me parece que está a voz de Cyro Monteiro. (4/12/2006)
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Este é o link para download de Feio, não é bonito cantado por Zé Kéti no início do filme, alguns minutos de Baden Powell tocando na trilha de Gimba, a música Gimba Chegou e a reprise de Feio, não é bonito no fim do filme. Divirtam-se.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Blog e Teatro


No dia 17 de novembro este blog completa um ano de existência. Durante muito tempo fugi do tal weblog, convicto de que o orkut, fóruns, chats e a internet em geral já tomam suficiente tempo de nossa vida. O Facebook e o Twitter não me agradam em nada, mas acabei rendendo-me ao blog e admito que a experiência tem sido das mais prazerosas. Comecei-o de forma despretensiosa, simplesmente transferindo textos postados por mim no orkut nestes últimos seis anos e aproveitando para revisá-los, ampliá-los e – o mais divertido do blog – ilustrá-los. Com o tempo veio a vontade de redigir textos novos e as idéias que na minha cabeça eram compactas e concisas transformaram-se em trabalhos longos, de pesquisa profunda e meticulosa, com os quais tenho aprendido muito. Mais do que isso, porém, tenho me divertido muito. O blog, com toda a sua riqueza de temas e de informações, continua sendo apenas um passatempo.

Mas não é só o blog que faz aniversário. Em agosto de 2010 completei 20 anos de peregrinação teatral. O início foi igualmente simples; eu ia pouco a teatro e desejoso de ver Fernandona no palco, acabei assistindo Dona Doida no Ruth Escobar. Dali em diante não parei mais. O prazer de ver os atores interpretando ao vivo e não na televisão, a diversão de conhecê-los pessoalmente e a extrema conveniência de ser (na época) estudante e pagar meia-entrada transformaram o teatro no maior hobby que tive em toda a minha vida. Durante a década de 90, vezes houve em que cheguei ao extremo de ver até quatro peças por semana. Pegava a Ilustrada na excelente seção de teatro (muito melhor do que a de hoje) e circulava os espetáculos que me interessavam. Daquele 12 de agosto de 1990, quando eu tinha apenas 18 anos e vi Fernandona interpretando as poesias de Adélia Prado – contando com a iluminada presença de Gianfrancesco Guarnieri na platéia – até hoje, assisti algo em torno de mil espetáculos. Recentemente fiz uma contabilidade aproximada, totalmente informal, e fiquei impressionado. Fui a todos os teatros de São Paulo e vários do Rio; tive o prazer e o privilégio de ver meus ídolos. Vi Paulo Autran dez vezes, Bibi Ferreira vi nove vezes, vi Guarnieri no palco, vi Cleyde Yáconis, vi Maria Della Costa, vi Othon Bastos e Débora Duarte juntos, vi Renato Consorte e Myriam Muniz juntos, shows de Chico Anysio, Juca Chaves e Dercy Gonçalves.

Conheci Dias Gomes, Geraldo Vietri e Plínio Marcos; conheci José Renato, Guarnieri, Chico de Assis e me correspondi com Augusto Boal; conheci José Celso, Renato Borghi e Fernando Peixoto; conheci Maurice Vaneau, Antunes e Abujamra.

Vi a cortina do João Caetano se fechar sobre Fernandona por conta de uma ameaça de bomba, vi o elenco de Escola de Maridos, que assisti onze vezes no SESI, anunciando calmamente que o espetáculo seria encerrado porque as coxias estavam se incendiando, vi Fagundes no centro do Jardel Filho destratando suas fãs na primeira fila, vi Paulo Autran comemorando seus 73 anos em pleno palco do Sérgio Cardoso, vi José Simão se contorcendo de riso em um show de Costinha, vi Denise Fraga três vezes levando o público ao choro de tanto rir com Trair e Coçar é só Começar, vi Irene Ravache chorando e gritando “bravos” a Bibi Ferreira no meio de sua peça sobre Amália Rodrigues, vi José Possi Neto pulando de alegria em sua cadeira enquanto Renato Borghi gritava “boceta” repetidas vezes em cena de Pentesiléias, vi Paulo Gracindo e Jofre Soares emocionando o público só de entrar em cena...

Vi o público vidrado na beleza e no talento de Luciene Adami em As Mil e Uma Noites, vi o público boquiaberto com a estupenda nudez de Tatiana Issa em A Falecida, vi três vezes o público rir às gargalhadas e aplaudir freneticamente o talento do Circo Grafitti em Almanaque Brasil, vi o público chorar e rir com Gibe, Chico Martins e Aparecida Baxter em Chá, Rosquinhas e Rococó, vi o público chorar e rir com Augusto Pompeu no fim de Sonho de uma Noite de Verão, descobri o que é talento vendo Luis Melo e Laura Cardoso em Vereda da Salvação, descobri o que era putaria no Ham-let de José Celso, vi Nelson Xavier brilhar intensamente nas três horas de Grande Sertão Veredas, vi Célia Helena secar as lágrimas depois de ver Diogo Vilela em Solidão, a Comédia, vi Osmar Prado se desdobrar em mais de 20 personagens no magnífico O Fabuloso Obsceno, de Dario Fo, beijei a mão de Marcel Marceau e o ouvi dizer, depois de dez cortinas, le public bresilien c'est merveilleux, vi a generosidade de Edson Celulari, abrindo caminho e permitindo que Cacá Carvalho o esmagasse com seu talento, em Don Juan...

Mas vi também Fernandona e Fernandinha pagando o mico colossal de fazer aquela porcaria que foi The Flash and Crash Days, vi Cláudia Abreu se submetendo ao flagelo de fazer o horroroso Viagem ao Centro da Terra de Bia Lessa, vi Maitê Proença, que como atriz já é um desastre, cantando com sua voz de gralha e torturando a platéia do Teatro Mars em Histórias de Nova York, vi Cláudia Raia em dois de seus musicais com playback, vi o tenebroso Marcos Palmeira em seu inqualificável Othello, vi Ana Paula Arósio arrancar risos como Hipólito, no patético Fedra dirigido por Abujamra, vi o equivocado Tartufo de Edney Giovenazzi, vi o desperdício de Raul Cortez em Luar em Preto e Branco, Cheque ou Mate e seu esquecível Rei Lear, dormi durante uma hora de O Evangelho segundo Jesus Cristo, saí no meio de Querido Mentiroso, com Sérgio Britto e Natália Timberg, por medo que eles me vissem dormindo na terceira fila do Teatro Hilton, vi Louise Cardoso fazer o papel de uma cadela, no deplorável Sylvia, vi Marco Nanini brilhante em Kean, péssimo em O Burguês Ridículo, vi vários espetáculos de Gabriel Vilela, brilhante em Vem buscar-me que ainda sou teu e A Vida é sonho, soporífero em A Rua da Amargura e O Mambembe, senti, junto ao público do Procópio Ferreira, a vergonha alheia de ver Fagundes no grotesco Vida Privada...

Tantas coisas... vi Leona Cavalli passar como um trator por cima de Mariana Lima em Tio Vânia, vi Marco Pâmio superar Sérgio Britto em Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, vi Drica Moraes ofuscar Marília Pêra em Vítor ou Vitória, vi Luciana Braga engolir Malu Mader em Vestido de Noiva, vi Giulia Gam engolir Bete Coelho em Pentesiléias, vi Bete Coelho engolir Giulia Gam em Cacilda, vi Luis Miranda engolir o elenco inteiro de Angels in America, vi Carolina Dieckman com 14 anos em Banana Split, deslumbrando os marmanjos do Teatro Vanucci, vi Gabriela Duarte lutar com sua falta de talento em Namoro, vi Natália Lage conquistar e deliciar o público com seu carisma no horrendo À Beira do Mar Aberto, vi o público bocejar com Fernandona em Gilda, vi o público bocejar com Paulo Autran em Para Sempre, vi o público bocejar com Marília Pêra em Master Class, vi o público bocejar com Beatriz Segall em Guerra Santa, vi André Valli e Suely Franco levando o público ao paroxismo do riso, em Mimi, uma adorável doidivanas, vi Izabella Bicalho maravilhando o público em Gota D’água, vi Jorge Dória matando o público de rir com A Presidenta e O Avarento...

Tantas coisas... três Hamlet, três Macbeth, dois Othello, dois Sonho de uma noite verão, dois Rei Lear, duas A Tempestade, dois Tartufo, dois O Avarento, dois O Burguês Fidalgo, dois Médico à Força, duas Antígona, dois Vestido de Noiva, dois Arena Conta Zumbi, dois Ponto de Partida... e isso entre centenas de outras coisas e causos. Mas paro por aqui. E que venham mais 20 anos de blog e de peregrinação teatral.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri - Parte 1


Meus caros,
desde o momento em que criei a comunidade dedicada a Guarnieri, no orkut, comecei a escrever textos sobre suas parcerias musicais, ignoradas pelo público mais novo e inteiramente ausente da internet. Tendo escrito a respeito e disponibilizado trilhas de espetáculos como Arena Conta Zumbi, Botequim e Ponto de Partida, aproveitei sites magníficos como o Loronix e fiz um garimpo das músicas que trazem Guarnieri como letrista, e que porventura não tivessem entrado nos antigos LPs com a trilha dessas peças. A esse esforço juntaram-se abnegadamente pessoas da comunidade e no fim de algumas semanas eu tinha pronto aquilo que batizei de “Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri”.

Publiquei-o no orkut em 9 de abril de 2006, em texto extenso no qual comentei a origem e as circunstâncias de cada gravação, incluindo no fim o link para download de todas as 25 versões que encontrei para essas músicas. O próprio Guarnieri e sua família aprovaram e elogiaram a iniciativa, o que me estimulou a seguir em frente, atrás de versões difíceis, praticamente desconhecidas, que não constavam nos sites que geralmente me guiavam, como o cliquemusic.com.br e o discosdobrasil.com.br. Tendo o mestre e sua família ao lado, me auxiliando, além de vários outros amigos e membros da comunidade, incentivados pelo acerto que foi o Primeiro Cancioneiro, um mês e meio depois, em 27 de maio, veio o “Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri - Vol.II”, desta vez com 29 versões. Erros que cometi pela pressa com que pesquisava e escrevia, foram corrigidos, novas informações foram adicionadas e mais um passo largo foi dado no sentido de reunir a obra de Guarnieri e ensinar as gerações mais novas sobre essa faceta pouco conhecida do grande autor.

Menos de dois meses após a publicação do Segundo Cancioneiro, que Guarnieri e sua esposa Vanya ouviram juntos, apreciando aquelas gravações maravilhosas, antigas, que nem eles mesmos tinham mais, o mestre morreu. Foram necessários quase três anos para que eu tivesse ânimo de lidar com esse material novamente. Em 29 de janeiro de 2009, veio o “Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri - Vol.III”, com mais 31 versões de suas composições como letrista. Juntando os três cancioneiros, são mais de 85 versões. É um número altamente significativo, considerando que metade dessas versões sequer consta das relações do cliquemusic.com.br e do discosdobrasil.com.br. Desde então não vi mais necessidade de continuar. O material vem rareando, não apenas porque os LPs que poderiam trazer diferentes versões estão cada vez mais escondidos nos porões das gravadoras e nas empoeiradíssimas coleções particulares, mas porque, com efeito, talvez tenhamos chegado ao limite daquilo que foi gravado.

O que fiz aqui, e que se verá a seguir, foi condensar em um só os textos que escrevi e dividi-lo em três partes. Cada uma delas terá seu link de download. Este é o mais completo cancioneiro de Guarnieri até o momento, com 88 versões de suas músicas, e mais alguns bônus tracks, com músicas relacionadas, de alguma forma, ao dramaturgo. Encerro esta pequena introdução com um agradecimento especial a Larissa Maragno, sem a qual nada disto teria sido feito. Ela esteve sempre presente, solícita, prestativa, generosa, paciente, com sua boa-vontade infindável e seu astral maravilhoso. Minha gratidão a ela é eterna. E deixo dois comentários que fiz quando publiquei os textos no orkut: 1) Este "Cancioneiro" evidentemente não é definitivo. Trata-se apenas de uma iniciativa amadora e despretensiosa de trazer a vocês a produção musical de Guarnieri. É pena que o grande Almir Chediak não esteja mais entre nós, porque Guarna seria o objeto de um belíssimo songbook. 2) A busca pelo material dos cancioneiros me remeteu sempre ao poema Aos pósteros de Brecht, adaptado por Guarnieri e Boal para o Zumbi, porque esse esforço de todos nós no resgate da maravilhosa obra do saudoso Guarnieri é a própria conquista da "terra da amizade", a que alude o poema, "onde o homem ajuda o homem". Muito obrigado a todos vocês.

Bernardo
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Adoniran Barbosa

A faceta musical de Guarnieri surgiu com sua primeira peça, Eles não usam Black-Tie, em que a letra do sambinha Nóis não usa os Blequetais ganhou música de Adoniran Barbosa. Com as dezenas de remontagens da peça nos anos seguintes, ela foi ganhando novas letras de Guarnieri e novas músicas, sejam de Carlos Lyra, Ary Toledo, ou o artista que estivesse próximo ao Arena, na ocasião. A produção lírica continuou na segunda peça, para a qual Guarnieri escreveu a letra da música-título, Gimba, musicada por Jorge Kaszas. Na montagem cinematográfica da peça, surgiu a primeira parceria que se tornaria um clássico: O Morro - Feio não é bonito, com música de Carlos Lyra. Flávio Rangel dizia que este era o samba favorito de Tom Jobim, justamente por casusa do verso "feio, não é bonito". Da parceria com Lyra surgiriam ainda Glória in Excelsis, das duas ou três que ambos chegaram a compor para uma "Missa Agrária" que ficou apenas no projeto, e Lá vem o bloco, composta para o festival da Record de 1966, em que A Banda e Disparada venceram o primeiro prêmio.

Em 65 o dramaturgo conheceu aquele que viria ser seu principal parceiro musical: Edu Lobo. Da parceria com Edu nasceram obras-primas como a trilha do musical Arena Conta Zumbi e as canções compostas para as peças Memórias de Marta Saré e Me dá o mote.

Em 1967 veio Arena conta Tiradentes, de Guarnieri e Boal, e as músicas das principais canções do espetáculo foram compostas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Théo de Barros e Sidney Miller. Destas canções, somente Espanto, de Guarnieri e Théo de Barros, foi gravada. As outras três composições permanecem inéditas em LP ou cd. Já tenho uma gravação caseira (meu melhor obrigado a você, querido DAVID JOSÉ) da música Dez Vidas, de Sidney Miller, e estou em processo de escolha para realizar uma gravação profissional dela. Assim que conseguir trarei aqui para vocês.

Toquinho

No fim da década de 60, Guarnieri caiu de pára-quedas numa composição inacabada de Toquinho e Jorge Ben. Deu-lhe um retoque e a música Zana acabou sendo o início da bela parceria de Toquinho e Guarnieri, que nos rendeu as canções de quatro peças, Tudo de Novo, Castro Alves Pede Passagem, Botequim e Um grito parado no ar. A parceria de Guarnieri e Sérgio Ricardo consiste de três músicas compostas para a peça Ponto de Partida, de 1976. Em 1980 Guarnieri compôs a letra para a música Clareira Aberta, de Chico Mário, irmão de Henfil e Betinho. Creio que representa o fim de suas criações musicais.

Algumas considerações:

Carlos Lyra
1 – Quem quiser saber mais sobre a obra musical de Guarnieri pode pesquisar aqui mesmo no blog, nos posts que já publiquei sobre o cinqüentenário de Eles não usam Black-Tie, o espetáculo Arena Conta Zumbi, a parceria de Guarnieri e Toquinho (Partes 1 e 2) e a parceria de Guarnieri e Sérgio Ricardo.

2 – Sendo a composição mais conhecida de Guarnieri, superabundam por aí gravações de Upa, Neguinho. Separei 19 versões para os cancioneiros. Poderia ter colocado mais umas 15, se quisesse; gravações bobas, oportunistas, sem maior qualidade musical. Mas meu intuito nunca foi somente o de introduzir as pessoas à obra de Guarnieri, mas de que ela fosse conhecida pela voz e pelos instrumentos de músicos gabaritados, tão talentosos quanto os compositores cuja obra estavam interpretando.

3 – Outra coisa que encontrei eventualmente foram as versões conjuntas de Glória in Excelsis e Carcará. O costume de unir a primeira estrofe de Glória com a música completa de João Cândido e João do Valle, inaugurado no Opinião de 1965 e copiado ad nauseam dali em diante, só serviu para manter a belíssima composição de Lyra e Guarna no esquecimento durante mais de 40 anos. Para nossa sorte, em 2006 Lyra incluiu a música em uma compilação e a versão é disponibilizada aqui.

4 – A única música com letra de Guarnieri que recebeu versão em inglês é Memórias de Marta Saré, que virou Crystal Illusions. Feio, não é bonito teve regravações para discos de Carlos Lyra no México e nos Estados Unidos, e por terem sido lançados especificamente nesses mercados, tiveram somente seus nomes traduzidos (El Jacal e The Hill). Até existem algumas canções de Lyra em espanhol, mas Feio, não é bonito infelizmente não entrou nessa seleção.

Para esta empreitada benéfica, que traz gratuitamente ao lume um material precioso que está empoeirando por aí, contei com a ajuda de amigos generosos e abnegados. Difícil citar todos, e impossível não citar pelo menos alguns, como Gilberto Brasil, Vander Colombo, Ruth Pacheco, Hugo Kochenborger, Vadir Picolo, Marcos D'Olivais e Nilson Aguiar. José Juvenal Gomes me mandou o magnífico Gimba cantado por Marlene. Cecília Thompson me abriu seu baú de recordações e foi através dela que consegui muitas das maravilhas que se encontrarão aqui. Renata Ferreira me auxiliou sem fazer perguntas, sem se queixar, sem cobrar, nada. Somente pelo prazer de ajudar e de ver o estado de êxtase em que eu ficava cada vez que ela me aparecia com algo raro e precioso. Bruno DeLaRosa é outro que me ajudou generosamente não só com músicas que eu já estava desistindo de encontrar, mas também com seu conhecimento extenso de músico e apreciador da MPB. Tivemos excelentes discussões madrugada adentro acerca das parcerias de Guarna com Toquinho e Edu Lobo.

Zeca Louro
Grande parte deste cancioneiro se deve ao amigo Zeca Louro e seu estupendo Loronix. Lá encontrei o Gimba de 1960, interpretado pela orquestra de Luiz Arruda Paes, que eu não direi nem que é raro, porque na verdade é inteiramente desconhecido. Foi com Zeca Louro que consegui também uma gravação que procurei durante meses para que Guarnieri a ouvisse: a versão obscura e completamente esquecida de Luiz Eça e Cláudia Versiani para o Segue Coração, de Edu Lobo e Guarna. Agradeço muito ao João Bid, pela cessão de sua linda música em homenagem a Guarnieri, composta em parceria com Lula Barbosa. Parabéns, João. Maria da Conceição Gonçalves não hesitou um segundo só para me ceder com extrema gentileza a rara Clareira Aberta, de Chico Mário e Guarna. Adalberto Carvalho Pinto pôs fim em uma busca de meses quando me mandou Gongoba com Olívia Hime, ripada diretamente do vinil. Paulo Ricardo de Barros não me fez esperar nem uma dia pelo Upa, Neguinho de Lennie Dale, tão fácil de encontrar quanto um japonês loiro.

Agradeço também ao dileto amigo Marcus Falcão pelo pronto envio de Upa, Neguinho com Patrícia França e o Quinteto Violado; Patrícia (infelizmente não tenho o sobrenome da moça, que se deletou do orkut), pela Canção do Medo, divinamente interpretada, ao vivo, por Marlene; e Renato (o sobrenome não consta de seu perfil no orkut), pelo envio do Feio, não é bonito de Jair Rodrigues, que eu procurei desde o Primeiro Cancioneiro, sem sucesso. Mando também um beijo à minha doce e prestativa amiga Bellacrys e a todos aqueles que me ajudaram e incentivaram – no melhor estilo do próprio Guarnieri – de maneira desinteressada e generosa. E agradeço sobretudo à Vanya Sant'Anna, que sempre deixou de lado seus importantes afazeres para responder com paciência evangélica meus questionários intermináveis. A todos, muito obrigado!
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Cancioneiro Completo
de Gianfrancesco Guarnieri

Nóis não usa os Blequetais (Adoniran Barbosa/Guarnieri)

1 – A primeira letra de Guarnieri recebeu música de Adoniran Barbosa em 1958, quando Eles não usam Black-Tie estava em cartaz no Arena. Foi lançada como lado B de um compacto simples de 78rpm da RGE, que trazia a música Pafunça, parceria de Adoniran com Oswaldo Molles, no lado A.

A curiosidade é que no compacto a composição é creditada a "Peteleco" e "Tião". Peteleco na verdade era o cachorro de Adoniran, e o pseudônimo seria usado tanto por Adoniran quanto por sua esposa, em algumas co-autorias (o que não deixa de ser uma ironia, já que "Adoniran Barbosa" por si só já era o pseudônimo de João Rubinato, que se transformou em Adoniran Barbosa para homenagear seus amigos Adoniran Alves e Luís Barbosa). E Tião era ninguém menos do que o próprio Guarnieri, utilizando seu nome na peça. No cartaz promocional da RGE, mesma coisa; a música era de Peteleco e Tião, e Adoniran aparecia somente como intérprete.

Leon Hirszman

2 – A música foi regravada pelo próprio Adoniran em 1981 para o filme que Leon Hirzman realizou a partir da peça de Guarnieri. Ficou bem melhor que a versão de 58.

3 – Como parte do projeto "Poeta, mostra tua cara", em 96, Solange Kafuri dirigiu um show com Guarnieri, Marília Medalha e o grupo vocal Catavento, com participação especial de Edu Lobo e Carlos Lyra. A amizade se firmou entre Guarnieri e o grupo, e quando o Catavento decidiu gravar um cd homenageando Adoniran Barbosa, no ano seguinte, chamou o letrista para cantar junto. É uma gravação divertidíssima, em que Guarnieri alterna os vocais com o grupo.

Letra:

O nosso amor é mais gostoso
Nossa saudade dura mais
O nosso abraço mais apertado
Nóis não usa os bleque tais

Minhas juras são mais juras
Meus carinho mais carinhoso
Suas mão são mãos mais puras
Seu jeito é mais jeitoso

Nóis se gosta muito mais
Nóis não usa os bleque tais


Gimba (Jorge Kaszas/Guarnieri)

Em 1959, ano seguinte à avassaladora estréia de Black-Tie, Guarnieri escreveu Gimba para Maria Della Costa a convite de Sandro Polloni, diretor da companhia e marido de Maria. Pela primeira vez trabalhando em palco italiano, a peça assumiu ares de grande espetáculo e teria duas músicas originais. Inexperiente nesses assuntos, já que a "trilha" de Black-Tie consistia em uma música dada de presente por Adoniran, entre garrafas de cachaça e cinzeiros transbordando, Guarnieri falou com o pai, o maestro Edoardo Guarnieri. Edoardo recomendou seu colega de partidão, o maestro húngaro Jorge Kaszas, para trabalhar com o filho. Kaszas, pelo que pude apurar, se foi em 2002. Que eu saiba, eles só compuseram duas músicas para a peça, que são estas apresentadas a seguir.

Sebastião Campos e Maria Della Costa, em "Gimba"

1 - A primeira gravação desta música foi feita pelo ator e barítono Ivan de Paula, que atuou no espetáculo no papel de "Negrão". Está num bolachão de 78 rotações lançado pela Mocambo/Rosemblit provavelmente em maio de 59. Creio que a impressão deste disco foi exclusiva para as rádios, mas não tenho certeza. O que eu sei é que ele não foi jamais relançado ou convertido para 33 rotações. É desse bolachão que vem a música que vocês vão ouvir, e como eu não sou técnico de som e nem tenho idéia de como se remasteriza um disco velho, não estranhem o chiado, muito típico dos discos de 78 rotações, e que procurei reduzir o máximo.

Uma observação: este disco é raríssimo e só existe em alguns centros culturais espalhados pelo Brasil. Mas como todos nós sabemos, a burocracia impera nesses centros culturais e seus funcionários são geralmente gente entediada que não faz idéia do material com que está lidando e também não faz questão de facilitar sua divulgação, portanto é com satisfação que passo por cima disso e trago a vocês as músicas prontas e livres de complicações. É gratificante pensar que depois de mais de 45 anos em silêncio, este velho bolachão cantou novamente.

2 - Em setembro de 1959 – portanto quatro meses depois do lançamento do disco de Ivan de Paula – Marlene gravou sua versão de Gimba pela Odeon. Marlene estava no auge de sua popularidade como rainha do rádio e sua gravação foi um sucesso. O fonograma foi recentemente remasterizado pelo Instituto Moreira Salles, então a qualidade é muito boa.

Walter Wanderley

3 - Mais conhecido por ser o marido que espancava Isaurinha Garcia, o pianista Walter Wanderley (1932/1986) gravou esta música em 1960, num compacto que trazia uma música americana qualquer no Lado A, e Gimba no Lado B. Sua versão é instrumental e eu sinceramente a considero de uma mediocridade terrível. A composição de Jorge Kaszas merecia uma orquestra, e não esse arranjozinho com órgão que só funciona em elevador de hotel três estrelas. De qualquer forma, a música depois entrou num LP de Walter chamado Sucessos dançantes em ritmo de romance, então a qualidade de som é ótima.

4 – Esta é uma versão instrumental do maestro Luiz Arruda Paes e sua orquestra. Luiz (1926/1999) era instrumentista, regente e compositor, mas foi na área dos arranjos que ele se celebrizou. Trabalhou como maestro da TV Tupi do primeiro ao último dia de funcionamento dessa emissora. Era respeitadíssimo, foi um dos fundadores da Jazz Sinfônica de São Paulo e sua versão de Gimba é bem melhor do que a de Walter Wanderley (perdão aos fãs de Walter). Está num LP chamado Brasil Moreno, de 1960.

Letra:

Ô Gimba...
Gimba... (na versão de Marlene)

Ninguém do meu morro esqueceu
malandro bamba que eu muito conheci
malandro triste cansado de viver, sofrer
O morro inteiro chora por ti. ("canta por ti", na versão de Ivan)

Gimba, todo morro te chorou.
Deixou a mulata pra gente consolar,
deixou a navalha pra gente usar na hora H,
sumiu da vida, cansado de cansar.

Gimba, oi Gimba, oi Gimba, aiai...
vestido de zinco ficou.
O samba hoje é triste, de soluço.
Sem Gimba o morro acabou.


Salve Salve General (Jorge Kaszas/Guarnieri)

Lado B do LP de Ivan de Paula que traz Gimba no Lado A. Que eu saiba, é filho único e jamais foi regravada.

Letra:

Lá, lá, lá, lá
oi Salve o Gimba!

Salve, salve General
seu retorno enche o morro de alegria
hoje pra nós é carnaval
chegou o mestre da valentia
presidente dos valentes!

Presidente dos valentes
o morro veio a levantar, pois é
relembrando o tempo que já passou
Salve, salve meu senhor!
O meu samba te abraçou

Presidente dos valentes
o morro veio a levantar
pra mostrar à muita gente
que a nossa favela dá o que falar.

Lá, lá, lá, lá
oi Salve o Gimba!


Glória in Excelsis (Carlos Lyra/Guarnieri)

1 – Carlos Lyra e Guarnieri compuseram Glória in Excelsis para uma "Missa Agrária" que ficou apenas no projeto. Além dessa havia duas outras músicas ("Hino dos Inocentes" e "Perante a Lei") que jamais receberam gravação oficial. Só o que existia eram as gravações da introdução de Glória seguida por Carcará, de José Cândido e João do Vale, costume inaugurado com o espetáculo Opinião e copiado por TODO MUNDO. A primeira gravação foi de Nara e está no cd com a trilha da peça. A segunda – que apresento aqui – foi de Bethânia, que substituiu Nara. Está no primeiro disco da irmã de Caetano, lançado em 1965. Desnecessário dizer que é maravilhosa.




Bethania canta "Glória" na
introdução de "Carcará" no 4º Festival da Balança, "o maior festival universitário do Brasil"

2 – Mais uma versão de Bethânia, sem alterações na estrutura, mas muito melhor porque ela a canta ao vivo no célebre Festival da Balança, de 1966 (festival patrocinado pelo Centro Acadêmico João Mendes Jr., da Faculdade de Direito do Mackenzie), e sua emoção transborda na interpretação. Até mesmo quando ela inclui ninguém menos do que o estilista Denner, naquele datado e estranhíssimo texto patriótico, no meio de Carcará.

3 – Durante 40 anos não houve uma gravação integral de Glória in Excelsis. Talvez por isso mesmo, em 2006 Lyra preparou uma espécie de CD acompanhado de um livro (Cd Book Eu e a Bossa, lançado oficialmente em 2008) onde falou de sua carreira e aproveitou para regravar uma penca de suas magníficas composições. Para nossa sorte, ele lembrou-se de Glória e gravou-a pela primeira vez. A composição recebeu um ritmo de xote (inadequado, a meu ver) e não é muito prazeroso engolir o sofisticadíssimo Lyra cantando com um falsérrimo sotaque nordestino. É a própria Bethania que deveria fazer a rendição definitiva de Glória. Ainda assim, é pérola raríssima e fico satisfeito de trazê-la a vocês, finalmente.

Letra:

Glória a Deus Senhor nas alturas
E viva eu de amarguras
Nas terras do meu senhor
Não, não é só do meu sofrimento
É mais tristeza e lamento
É todo o meu povo em dor

Eu sei bem que Deus meu pai
Que vê tudo, na verdade
Sabe o bem, sabe a maldade
Vai saber minha razão
E também vai condenar
Vai negar o seu perdão
Ao Senhor que anda esquecido
Que os homem são tudo irmão

Glória a Deus Senhor nas alturas
E viva eu de amarguras
Nas terras do meu senhor

Um pequeno detalhe: nas gravações caseiras da época, Guarnieri trocava a letra da estrofe final para “Glória a Deus Senhor nas alturas, e viva nóis de amargura, nas terras do mau sinhô”.


O Morro – Feio, não é bonito (Carlos Lyra/Guarnieri)

Carlos Lyra
Feio, não é bonito foi composta para a produção cinematográfica da peça Gimba, dirigida por Flávio Rangel em 1963. A música era cantada na abertura por Zé Ketti, que também trabalhou no filme como ator. É um desastre que a trilha sonora de do filme Gimba não tenha sido restaurada e lançada em cd (assim como o próprio filme), porque consiste em diversos arranjos da música de Lyra para violão, tocadas por ninguém menos do que o mestre Baden Powell.

1 - A música teve diversas gravações em 1964 e seria necessário correr atrás da data de lançamento de cada LP (coisa que não fiz) para descobrir qual veio primeiro. CREIO que a primeira gravação foi de Jair Rodrigues. Vem do segundo LP da carreira de Jair, O Samba como ele é, de 64. Embora o grande talento de Jair ainda estivesse no nascedouro, é um belo registro.

2 – Até onde eu sei, a primeira gravação oficial de Carlos Lyra para Feio, não é bonito é de um LP que ele gravou em 64 com o saxofonista americano Paulo Winter (1939) chamado The Sound of Ipanema – Paul Winter with Carlos Lyra. Posso estar enganado. De uma forma ou de outra, é uma gravação interessante, no estilo das que João Gilberto fez com Stan Getz ou Jobim com Gerry Mulligan. Esta, aliás, é a tal que recebeu o nome de "The Hill", fazendo com que eu ficasse crente de que havia uma versão em inglês da música.

Pery e Nara: inigualáveis lançadores de sucessos

3 – Pery Ribeiro gravou a canção no LP Pery Muito Mais Bossa, de 64. Hoje a gravação está um pouco velha, mas o filho de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins continua com uma bela voz e foi sempre um grande lançador de sucessos.

4 – A versão de Nara, constante de seu primeiro LP, Nara, de 1964, é quadrada e sem a mínima graça. Mas como eu não sou exatamente fã de Nara, minha opinião é suspeita.

5 – Um dos costumes de Elis e Jair Rodrigues no Fino da Bossa era cantar pout-pourris de compositores ou temas. Neste, lançado no LP Dois na Bossa, de 1965, o pout-pourri é dedicado a músicas que falam do morro. Ficou a cargo de Elis cantar a parceria de Lyra e Guarnieri, mas é um prazer ouvir a música toda e constatar a maravilhosa química que existia entre esses dois talentos extraordinários que são Elis e Jair.

O Morro não tem vez
(Jobim/Vinícius)
Esse Mundo é Meu
(Sérgio Ricardo/Ruy Guerra)
Feio, não é bonito
(Lyra/Guarnieri)
Samba do Carioca
(Lyra/Vinícius)
Esse Mundo é Meu (reprise)
(Sérgio Ricardo/Ruy Guerra)
A Felicidade
(Jobim/Vinícius)
Samba do Negro
(Roberto Corrêa/Sylvio Son)
Vou andar por aí
(Newton Chaves)
O Sol nascerá - A Sorrir
(Cartola/Erlon Chaves)
Diz que fui por aí
(Zéketti/H. Rocha)
Acender as velas
(Zéketti)
A voz do morro
(Zéketti)
O Morro não tem vez (reprise)
(Jobim/Vinícius)

6 – O segundo pout-pourri com Jair e Elis, lançado apenas em 1994 no terceiro cd de uma coleção que teve o inacreditável mau-gosto de não mencionar o nome de Jair em seu título (Elis Regina no Fino da Bossa - ao vivo), é dedicado a Carlos Lyra. Desta vez é Jair que canta Feio, não é bonito, e é divertidíssimo ouvir a reação de Elis dizendo "Ahhhh... essa eu conheço!", quando ouve a primeira frase da música.

Minha namorada
(Lyra/Vinícius)
Primavera
(Lyra/Vinícius)
Se é tarde me perdoa
(Lyra/Ronaldo Bôscoli)
Cartão de Visita
(Lyra/Vinícius)
Feio, não é bonito
(Lyra/Guarnieri)
Maria Moita
(Lyra/Vinícius)
Maria Ninguém
(Lyra)
Maria do Maranhão
(Lyra/Nelson Lins e Barros)
Aruanda
(Lyra/Geraldo Vandré)
Samba do Carioca
(Lyra/Vinícius)

7 – Em 1965 Edu Lobo gravou um LP ao vivo com Nara Leão e o Tamba Trio. No ano seguinte foi a vez dele gravar o LP Reencontro - Silvinha Telles, Edu Lobo, Tamba Trio e Quinteto Villalobos. A canção de Lyra está num pout pourri que inclui primeiramente O Morro não tem vez (Jobim/Vinícius), Feio, não é bonito e Zelão (Sérgio Ricardo). A primeira é cantada pelo Tamba Trio e Zelão é cantada por Edu. Quem canta Feio, não é bonito é Sylvia Telles. Ela não era extraordinária como Elis ou Maysa, mas era uma ótima cantora de Bossa Nova e verdadeiramente amada por seus fãs e colegas do meio artístico. O valor do LP é redimensionado pelo fato de que Sylvia morreu em dezembro daquele ano de 66, com apenas 32 anos.

8 – Se Sérgio Mendes tinha um mérito, além de seu talento, era o fato de se juntar com músicos tão competentes ou mais do ele próprio. Neste LP de 1966, Sérgio Mendes in person at El Matador, gravado ao vivo e que foi seu primeiro trabalho lançado nos Estados Unidos, ele está acompanhado de craques como Chico Batera, Tião Neto no baixo, Rosinha de Valença no violão e Wanda Sá nos vocais. É uma versão bonitinha e correta.

9 – Em 1966 a grande Leny Andrade gravou o LP Leny Andrade no México, acompanhada de músicos brasileiros, e no track list ela também incluiu Feio, não é bonito em um pout pourri que começava com Aruanda (Lyra), Feio, não é bonito e Exaltação à Mangueira (Enéas Brites da Silva/Aloísio Augusto da Costa). Só podemos festejar. A música de Lyra e Guarnieri na voz de Leny é um privilégio para todos nós.

10 – Lyra regravou a música com o nome de El Jacal para um LP de 1969 chamado Carlos Lyra – Sarava. Por vezes entendo por que Lyra está de saco cheio de gravar as mesmas músicas 200 vezes.

Lyra na capa de "Saravá",
com a esposa Kate

11 – O pernambucano Heraldo do Monte é um famoso violonista e arranjador que começou com Walter Wanderley na década de 50 e mais tarde tocou, como membro efetivo ou apenas acompanhando, a Orquestra de Carlos Piper, o Zimbo Trio, Os Cinco-Pados, Arthur Moreira Lima e Michel Legrand. Batida Diferente – Heraldo do Monte e seu conjunto bossa nova foi seu primeiro disco solo e no Loronix está consignado que seu lançamento é de 1960. Como a música é de 1963, é possível que haja um equívoco. Em todo caso, é uma boa versão instrumental.

12 – Lyra fez nova regravação, desta vez no cd Bossa Lyra, de 1993. É uma beleza. Lyra deixou o clima de samba no começo mas partiu rasgadamente para a Bossa Nova quando entra com o verso Feio, não é bonito.

13 – Beth Carvalho, como uma de nossas melhores sambistas, foi na direção contrária de Lyra e resgatou o clima de samba de raiz e foi até o fim com ele. É uma bela gravação. Do Songbook Carlos Lyra, de 1994.

14 – Em 1998, o saxofonista Paul Winter parece ter ficado com saudade do Brasil e gravou um cd com o afamado instrumentista carioca Oscar Castro Neves, onde reprisou Feio, não é bonito. Versão simpática.

Letra:

Salve as belezas desse meu Brasil
Com seu passado e tradição
E salve o morro cheio de glória
Com as escolas que falam no samba
Da sua história

Feio, não é bonito
O morro existe
Mas pede pra se acabar
Canta, mas canta triste
Porque tristeza
E só o que se tem pra contar
Chora, mas chora rindo
Porque é valente
E nunca se deixa quebrar
Ah! Ama, o morro ama
Um amor aflito, um amor bonito
Que pede outra história.


Sem Você (Carlos Castilho/Guarnieri)

Carlos Castilho era músico e irmão de Bebeto Castilho, contrabaixista, flautista e cantor do Tamba Trio. Carlos foi diretor musical e músico do espetáculo Arena Conta Zumbi e responsável direto pelo sucesso da peça, com seus arranjos simples e bonitos com violão, flauta e bateria. Um grande maestro. Amigo de Guarnieri, deu-lhe músicas para que pusesse letra (e vice-versa, creio). Não conheço a parceria completa deles, mas já estou atrás. O que consegui encontrar foi esta música lançada em compacto por uma cantora chamada Anamaria Bom. A música chama-se Sem Você (lado B do compacto; no lado está uma música chamada "Queimada") e foi provavelmente composta na época do Zumbi. Sem ser nenhuma obra-prima, a música me agradou bastante e até merece uma segunda chance. A letra tem aquele jogo de repetição alternada de palavras que Guarnieri gosta e utilizou também em Tudo de Novo. Aliás, partindo do princípio de que o autor só escrevia sobre coisas importantes a ele ou a seu povo, podemos deduzir que naquele momento ele estava amargando uma paixão das brabas.

Carlos se suicidou em 1985. E só Deus sabe onde se encontra Anamaria Bom.

Letra:

Sem você
minha vida se apaga e tudo vai mudar
tanta coisa pra fazer,
tanta luta pra viver
tanto amor que a gente tem pra dar
mas eu sei que sem você pra mim
só pode ser

Lutar sem viver
cantar mas sofrer
querer e não ter
amar sem poder

Sem você
minha vida é nada e tudo vai calar
tanta gente a se acabar
tanta gente a precisar
desse amor que a gente tem pra dar
mas eu sei que sem você pra mim
não vou poder

Amar para crer
sofrer mas cantar
não ter e querer
viver pra lutar
Vem, vem pra mim
não me deixa acabar
vem, vem me dar
muito amor para crer (bis)


Upa, Neguinho (Edu Lobo/Guarnieri)

Da mistura entre o poema Canción de cuna para despertar a un negrito, do cubano Nicolas Guillén (publicado em 1958 em seu livro "La paloma de vuelo popular"), que contém o verso "¡Upa, mi negro, que el Sol abrasa!", e uma trotada inteiramente espontânea de Guarnieri com seu filho Paulo, na presença de Edu Lobo, nasceu Upa, Negrinho, incluída na trilha de Arena Conta Zumbi. Elis a eternizaria como Upa, Neguinho.

1 – Até onde pude apurar, a primeira gravação de Elis para essa canção foi feita ao vivo no segundo volume de Dois na bossa, de 1966. Uma beleza de gravação, que se escora quase que unicamente no vozeirão de Elis, e vem cheia de sua inigualável energia em shows. Acompanhamento do Bossa Jazz Trio.

2 – A versão de Edu vem do LP Edu e Bethania, de 1966, e é tão empolgante quanto um livro de geometria. Mas ao Edu nós perdoamos tudo.

3 – Em meados da década de 60, a fim de se livrar de pepinos contratuais, Walter Wanderley criou o pseudônimo de "Mike Falcão". Com esse vulgo lançou nada menos do que três LPs. Em 1966 lançou No embalo do Samba com Mike Falcão, e uma das faixas foi a célebre composição de Edu e Guarnieri. Já sei que Walter era um bom pianista, muito respeitado e não acho essa versão ruim, acho que até é bem passável, mas infelizmente eu tenho calafrios e me sinto dentro de um elevador, ou na sala de espera de um dentista cada vez que escuto aquele orgãozinho tocado por ele.

4 – Rosinha de Valença (1941/2004) era uma ótima violonista e foi descoberta por Aloysio de Oliveira e Baden Powell. Nascida na cidade fluminense de Valença e batizada originalmente com o nome de Maria Rosa Canelas, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) a rebatizou como "Rosinha de Valença", porque segundo ele, a moça "tocava por uma cidade inteira". Tocou com Sérgio Mendes, Bethania, João Donato, Martinho da Vila e muitos outros. Sua versão vem do LP Rosinha de Valença ao vivo, de 1966, que sabe-se lá por que recebeu esse nome, já que não é ao vivo, mas tem músicos do calibre de Paulinho Moura e Oscar Milito. Eu sinceramente esperava algo mais arrojado, mas enfim, ouve-se com algum prazer.

5 – O Rio 65 Trio foi mais um entre as dezenas de trios de MPB que se formaram naquela época. Este era composto por Dom Salvador, Edison Machado e Sergio Barroso. Não há muito mais a dizer sobre esta gravação de 1966, que entrou no LP A Hora e a vez da MPM, sigla que hoje ninguém faz idéia do que seja, mas significa "Música Popular Moderna".

6 – O americano Lennie Dale era ator, cantor e dançarino da Broadway e num desses espetáculos chamou a atenção do grande produtor do Teatro de Revista Carlos Machado, que o trouxe para o Brasil. Lennie veio e ficou. Gravou LPs de bossa nova pela Elenco, produziu shows no Beco das Garrafas e nos anos 70 fez parte de um grupo performático de travestis chamado Dzi Croquettes (parodiando as dançarinas do Radio City Music Hall, que se chamam "The Roquettes"). Lennie morreu de Aids aos 60 anos, em 1994.

É do LP A 3ª Dimensão de Lennie Dale, gravado com o Trio 3-D em 67, pela Elenco, a versão de Lennie para Upa, Neguinho. Confesso que fiquei prazerosamente surpreso. Apesar do sotaque e de alguns escorregões na letra ("Vija" que coisa mais linda... mas liberdade só "pode" esperar...), Lennie e o Trio 3-D transformam a canção em uma apoteose jazzística que se destaca entre todas as versões. Penso que se Sammy Davis Jr. ou Billy Eckstine tivessem gravado Upa, Neguinho, a linha seguida teria sido essa.

7 – Em 1968, Elis fez sua primeira gravação da música em estúdio, para o LP Elis Especial. Um belíssimo arranjo do mestre Erlon Chaves.

8 – Mais uma versão de Elis, gravada ao vivo com o Bossa Jazz Trio, durante um festival em Cannes, que não sei ao certo quando ocorreu, mas talvez tenha sido no início da década de 70. Elis era realmente fantástica. Ela desafina depois de uma gargalhada no meio da música, mas até a desafinada dela é bonita.

9 – A versão de Sérgio Mendes e seu grupo "Brasil 66" (no qual figuravam pesos-pesados como Oscar Castro Neves e Tião Neto) está no LP Fool on the Hill, lançado em 68 nos Estados Unidos. Sérgio alterna os vocais com a cantora e compositora americana Lani Hall. A versão de Sérgio hoje é algo datada, mas na época ele provocou sensação com seus arranjos.

10 – Maestro, pianista, arranjador e compositor, o paulista Lyrio Panicalli (1906/1984) era considerado uma dos maiores maestros da Rádio Nacional, e tinha admiradores confessos como Tom Jobim. Em 1968 ele lançou o LP Brazil, new dimensions in sound e incluiu a canção. É uma linda versão instrumental.

11 – Outro dos inúmeros trios surgidos na década de 60, o Le Trio Camara – Edson Lobo, Fernando Martins e Nelson Serra – gravou Upa, Neguinho para o álbum que levou o nome do trio, em 1968. Como em todos esses trios, o piano marca e domina toda a canção. Eles eram muito conceituados e famosos inclusive fora do Brasil. É uma versão competente.

12 – Ironicamente, a melhor versão desses trios todos é do mais despretensioso de todos eles: o Inema Trio (Douglas, Tom e Dito). Eles – e mais 9 artistas iniciantes – foram os vencedores de um festival promovido por Flávio Cavalcanti em 1968, chamado "A Grande Chance". Na mesma época o trio venceu um festival na Bahia e se dissolveu pouco depois. Sobrou a dupla Tom e Dito, que continuou fazendo bonito em festivais como o FIC e o Abertura, até o fim, na década de 80. O Inema era um trio vocal, e não instrumental, e a versão deles é bem bonita.




A cantora chilena Sônia Von Schrebler

13 – Sônia Von Schrebler é uma cantora chilena que começou sua carreira nos anos 40 fazendo dupla com a irmã Myriam. Na década de 70 se separaram e Sônia seguiu carreira solo com o nome de "Sonia, la unica". O LP En Bossa é da década de 70 (embora Zeca Louro declara erroneamente que é da década de 60, no Loronix), e é lá que encontramos esta hilária versão de Upa, Neguinho, que vem num portunhol de arrancar gargalhadas, atualmente.

14 – Baden Powell gravou sua versão instrumental da música no LP L'Art de Baden Powell, gravado em Paris, em 1971. Embora sem maiores vôos, é muito bonita, como quase tudo feito por Baden.

15 – A última versão de Elis que incluo aqui é um bootleg feito num show de Elis em Tóquio, em 1979. Uma beleza.

16 – Em 1992, com apenas 21 anos, a pernambucana Patrícia França foi lançada com estardalhaço na minissérie Tereza Batista, da Rede Globo. No ano seguinte foi convidada por seus conterrâneos do grupo Quinteto Violado para participar do álbum Algaroba. O resultado – malgrado a inexperiência de Patrícia – até que foi bom, mas a parceria acabou ali. A versão de Upa, Neguinho contida nesse LP é bonita e original. Não é sofisticada como a de Elis ou repassada em virtuose como a de Baden, mas é talvez a mais brasileira de todas. Tem um delicioso clima sertanejo que no fundo tem tudo a ver com a composição original de Guarnieri e Edu. Enquanto a música fica por conta do violonista Marcelo Melo, Patrícia vai recitando o poema História Pátria do pernambucano de Palmares, Ascenso Ferreira:

Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa Ave-Maria,
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
A gente vivia.

De festas no ano só quatro é que havia:
Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão!
Mas tudo emendava num só carrilhão!
E a gente vadiava, dançava, comia...
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Todo santo dia!

O Rei, entretanto, não era da terra!
E gente pra Europa mandou-se estudar...
Gentinha idiota que trouxe a mania
de nos transformar
da noite pro dia...
A gente, que tão
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
vivia.

17 – o Uma bela gravação contemporânea da canção é da grande cantora Claudya com o Zimbo Trio, que vem do cd Entre Amigos, de 1994.

18 – O mérito desta gravação que Almir Chediak encomendou a Caetano Veloso para o Songbook Edu Lobo, de 1995, é a originalidade da gravação. Ao contrário de Edu, Claudya (e praticamente todas as pessoas que gravaram esta música), Caetano deixou Elis de lado e criou sua própria versão, que começa inclusive com um acorde do Pato Preto, de Tom Jobim. Muito interessante.

19 – A cantora Joyce – pelo que eu sei – gravou Upa, Neguinho duas vezes num espaço de 4 anos. A primeira vez em um cd chamado Delírios de Orfeu, de 1994, e em 98, no cd Astronauta – Canções de Elis. É deste segundo cd a versão que trago aqui. Considero linda a idéia da homenagem. Embora não tendo a voz encorpada e substanciosa de Elis, Joyce sempre foi uma cantora e compositora sutil e cheia de personalidade.

Letra:

Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
Virge que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar

Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
Virge que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
começando a andar
começando a andar
E já começa a apanhar

Cresce neguinho me abraça
Cresce e me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito te posso ensinar
Mas muito te posso ensinar

Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Mas liberdade só posso esperar

Se vocês querem saber minha opinião, ainda sou mais a versão do próprio Guarnieri em Arena Conta Zumbi.

Download da 1ª Parte do Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri
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Errata: Renovando os links de download desta primeira parte do cancioneiro não consegui distinguir entre as versões de Elis para o "Upa Neguinho" com o Bossa Jazz Trio (8ª versão da música) e em Tóquio (15ª versão). A 8ª é supostamente a versão com o Bossa Jazz, mas tem caracteres japoneses no próprio arquivo de mídia, o que me deixou em dúvida. Com isso, deixei apenas essa e retirei a 15ª.
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