Ver o comercial da minissérie foi suficiente para que eu não a assistisse. Ela veio, foi, e sua existência passou em brancas nuvens até que duas amigas me falaram bem da produção. Pelo respeito que tenho à opinião delas, e aproveitando que um filme foi feito a partir da minissérie, resolvi assistir. O resultado? Meu respeito pela opinião delas sofreu um baque violento.
Fernando Meirelles |
Em geral, acredito que a teledramaturgia brasileira está há alguns anos em um buraco do qual não consegue sair. Novelas, séries, minisséries, programas cômicos, programas dramáticos, nada tem qualidade. Produção nota dez. Criação nota zero. O outrora celebérrimo padrão Globo de qualidade já não existe mais e o que se faz na Globo pode muito bem ser comparado aos produtos de segunda feitos pela Record, Bandeirantes, SBT e Rede TV. Entretanto, a idéia de passar recibo de nossa própria falta de imaginação e ir buscar no Canadá o argumento para uma minissérie me entristece. Ainda creio que se é para fazer porcaria, que ela seja pelo menos brasileira.
“Slings and arrows” é sobre uma companhia estável de teatro na cidade fictícia de New Burbage. É, em tudo e por tudo, calcada nos ingleses Old Vic e RSC, que trabalham a um tempo com o governo e a iniciativa privada em temporadas anuais onde são levadas peças de Shakespeare e de outros dramaturgos clássicos. E é aí que começa o problema.
Ao transpor a história toda para São Paulo, Fernando Meirelles simplesmente ignorou o fato de que esse tipo de companhia não existe por aqui e desencadeou uma série interminável de incongruências. Não existe companhia de teatro clássico estável no nosso pobre Municipal. A Secretaria de Cultura é um órgão burocrático, inoperante, que mais parece uma repartição pública e seus fomentos ao teatro são poucos e pessimamente gerenciados, o que joga por terra, por inexistentes, os papéis de Dan Stulbach, Regina Casé, Haydée Bittecourt e todo aquele conselho esquisitíssimo de engravatados que lê O GLOBO em plena capital paulista e se reúne para decidir os destinos do teatro em São Paulo. Ver a executiva rica e gananciosa de Regina Casé em um stair master falando no celular ou recitando mantras motivacionais dentro de seu carro importado não têm rigorosamente NADA a ver com o nosso teatro. Tem, sim, com a realidade empresarial do teatro, do cinema e das artes na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas jamais caberia em São Paulo.
Um dos Hamlets de John Gielgud |
O segundo problema é a adaptação em si, do inglês para o português. Fernando Meirelles deve estar esquecendo-se de nosso idioma, porque traduziu de forma literal expressões que não têm paralelo em português, como deal with it, (que fazendo um trapézio idiomático, seria algo como um taxativo “acostumem-se com isso”) traduzido como “lidem com isso”; ou get back on that horse, talvez semelhante ao “dar a volta por cima” ou “voltar para o jogo”, traduzido como “montar esse cavalo”. Healing process, “processo de cura”, virou “processo de cicatrização” e Daniel de Oliveira tenta seduzir Maria Flor oferecendo-lhe nachos, que no Brasil não gozam de toda essa fama e só se conhecem pelo nome de “Doritos”. São tropeços inexplicáveis, porque poderiam ser adaptados para o português com a maior facilidade. O que não se perdoa é que Dan Stulbach chame Titus Andronicus de Titus Andrômedo ou Felipe Camargo repita três vezes Trólio e Créssida. Aí saímos do erro de adaptação para a ignorância pura e simples sobre a obra de Shakespeare, e sendo o bardo pedra angular da série, não teria sido ruim que roteiristas e elenco fizessem um intensivão sobre ele e suas peças.
O Municipal de São Paulo |
Acima de tudo, gostaria que Fernando Meirelles, que por sinal é paulistano, tivesse chamado pelo menos UM ator paulistano para trabalhar nessa série. O único é Dan Stulbach, que é coadjuvante (Paulo Betti é de Sorocaba e está há 30 anos fazendo novelas no Rio. Cecília Homem de Mello é de Amparo e pouco trabalhou como atriz, sendo produtora de elenco de Fernando Meirelles). Felipe Camargo é conhecido pelo carioquêsshhh puxadíssimo. Andréa Beltrão era o símbolo da “Armação Ilimitada”, dos surfistas e das praias cariocas, Regina Casé nem se fala, Maria Flor, Daniel Dantas, Pedro Paulo Rangel e assim por diante. Daniel de Oliveira é mineiro mas pelo tempo que passa no Rio já fala num híbrido de mineirês com o carioquês, situação idêntica à de Débora Falabella e Leonardo Miggiorin. Isso nos leva ao quarto problema: o elenco.
Felipe Camargo e Gilliard |
Andréa Beltrão |
Maria Flor é um caso à parte. Trata-se de uma força da natureza. Ela é 100% carisma. Como atriz ainda mostra-se limitada, tem interpretado todos os seus personagens mais ou menos da mesma maneira doce e brejeira (e convenhamos aqui, a bem da justiça, que os papéis que lhe foram dados até hoje não são muito diferentes entre si), e no entanto sua presença vale cada episódio de que participou.
Maria Flor: 100% de carisma |
O mesmo se pode dizer das lamentáveis novelas em que esteve, dos filmes horrorosos que fez (com exceção de “Chega de Saudade” que é muito bom) e até dessa inqualificável bobagem que acaba de terminar, chamada “Aline”. Não há como classificá-la. Ela é puro carisma. Qualquer coisa que fizer será um prazer absoluto assisti-la.
Daniel Oliveira:
um Hamlet versão "Malhação"
Daniel de Oliveira, Débora Falabella e Leonardo Miggiorin não se sobressaem nem para o bem nem para o mal, mas vale dizer que Daniel como Hamlet é forçar demais a barra. Sei que o propósito da série é justamente o de mostrar os preconceitos enfrentados por um ator de novela que faz um clássico, mas essa seria realmente uma espécie de versão “Malhação” para o Hamlet. Quanto à Débora, é muito bonita mas seus trinta anos de idade tornaram sua Julieta um pouco madurinha demais.
Dantas: de sonâmbulo alegre a pato rouco |
Na parte positiva, Dan Stulbach mostra ótima veia cômica no seu Ricardo, Pedro Paulo Rangel empresta seu sólido talento ao fantasma Oliveira, mas quem rouba a cena é Cecília Homem de Mello, no papel da eficiente secretária e assistente Ana. Seu timing de comédia é esplêndido! Ela se desincumbe de todas as suas cenas com notável competência e protagoniza talvez os melhores momentos da produção.
Dan Stulbach, Pedro Paulo Rangel e Cecília Homem de Mello |
O quinto e último problema é um que acaba anulando qualquer possibilidade de brilhantismo por parte do elenco: o roteiro. A idéia de uma companhia teatral que está tentando a duras penas montar um Hamlet e no meio do caminho são mostradas as alegrias e tristezas pessoais de toda a equipe envolvida não é de forma nenhuma original, mas se bem realizada pode render um trabalho interessante, como parece ter sido o caso da série canadense, bastante premiada. A fórmula derrapou feio por aqui, não apenas pela total falta de identidade da história com São Paulo e o nosso país, mas porque há momentos em que o texto peca pela baixa qualidade.
Daniel Oliveira e Maria Flor |
Os diálogos entre Maria Flor e Daniel de Oliveira são constrangedores, ridículos. O casal não empolga, a traminha da menina que é acusada de estar transando com o galãzinho televisivo famoso não convence e a própria noção de que o povo de teatro está se lixando para o que dizem sobre fulano estar transando com beltrana dentro de um elenco é de um puritanismo patético. O desfecho, em que ela abandona a possibilidade de fazer Julieta para acompanhar o menino em seu próximo trabalho na TV, é ainda pior; ela pretendia ficar e é convencida a ir embora com 5 minutos de um papinho furado de Andréa Beltrão, que a chama pelo mimoso apelido de “sua merdinha” (o proverbial little shit, que pode até possuir uma conotação amigável em inglês, mas em português é apenas ofensivo).
Os seis últimos episódios (segunda temporada da série canadense) têm menos equívocos na área dos diálogos. Erram talvez nas soluções piegas e improváveis, como da funcionária que é fã de Beltrão e recita versos shakespearianos em plena repartição da Receita Federal, o gayzinho que vira hetero pela intensidade do texto de Romeu e Julieta, e a transformação do outro diretor, que deixa de ser alternativo e esquisito. Aliás, esse personagem, o de “Oswald Thomas”, cretino e prepotente, sem a menor competência e sem o menor conhecimento de teatro, cuspindo idiotices em inglês e alemão – alusão direta, perfeita e irretocável a Gerald Thomas – é um dos pontos mais altos da minissérie.Oswald Thomas (Antônio Fragoso) |
“Som e Fúria” não foi ruim. Me pareceu mais um esforço na direção errada. Seria como montar uma minissérie sobre as agruras de uma Escola de Samba em Washington DC. Seu pecado principal está na base, e por isso acaba comprometendo todo o resto. Não dá a vontade de ver a terceira temporada da série canadense, onde o grupo monta o Rei Lear, e sim um desejo imenso de um dia assistir uma minissérie em que brasileiros vão falar sobre as alegrias e tristezas de um grupo de teatro autenticamente brasileiro. E se for em São Paulo, melhor ainda. A fauna teatral bandeirante é das mais ricas e daria material para uma série divertidíssima, que com toda a certeza faria rir e chorar.
Depois de você vi com outros olhos. Quando eu assisti a série, e eu assisti em tempo real, episódio por episódio, feito fã que fui, cheguei a comemorar o fato de a televisão brasileira ter abordado o Teatro como tema de uma minissérie. Nunca fui entendido no assunto, também pudera, moro em Uberaba, Minas Gerais, uma cidade que quando o Grupo Galpão vem se apresentar os prestigia com meia dúzia de gatos pingados, onde os poucos grupos existentes cobram uma fortuna por aulas ‘teatrinho de escola’. Aliás, eu mesmo faço teatro na minha ex-escola, uma forma de me preparar para a prova da EAD que está por vir. Pouco conheço sobre a dramaturgia brasileira e mundial, o sonho de ser ator nasceu tem pouco tempo e a idéia vive de teatro sempre me assustou um pouco. Como espectador ignorante do mundo teatral, asseguro: a minissérie, talvez por sua produção – é o que você me faz pensar agora -, encanta. Embora deva tomar cuidado ao empregar encanto numa produção televisiva. Talvez meu lado sonhador tenha se deixado levar, por desconhecer outras maneiras, pela mágica do que provavelmente é ser ator. Mas no fim o que eu vi mesmo pode ter sido só mais uma ‘encantadora produção televisava’. Obrigado.
ResponderExcluirPs.: a Maria Flor pode mesmo ser tão carismática, mas não há carisma que salve Aline.
Tive que rir. Você tem mão de ferro. Até entendo as tuas amigas.
ResponderExcluirVejo pouco televisão e acho tudo deplorável. Como moro numa cidade pequena, atualmente tenho ido pouco ao cinema, teatro então.. nem pensar, assim sendo, quando aparece alguma coisa que se destaca na medíocre programação global, a gente se enche de esperanças. É claro que quando se descasca o abacaxi ele pode estar podre em algumas partes, ou podre inteiro, mas vale lembrar - sem querer nivelar por baixo - que em tempos de Macho Man com Jorge Fernando e Marisa Orth, está que nunca deveria ter saído da banda Vexame, Som e Fúria é quase um milagre. Mas tua crítica especializada tem total fundamento.