quarta-feira, 8 de outubro de 2014

"À Saudosa Memória de Dirce", de Gabriel Quadros


Dirce e sua mãe, Leonor
Há pouco mais de um mês morreu Tutu, a filha de Jânio. Conhecida a vida inteira por “Tutu” — apelido que ganhou do pai ainda na infância — as pessoas acabaram não atinando para a significação de seu verdadeiro nome, que era Dirce Maria do Valle Quadros. Batizando a filha com o nome “Dirce”, Jânio homenageava sua irmã, morta aos 16 anos. O “Maria” foi acrescentado por Eloá, mas Tutu não gostava desse segundo nome, e tampouco fazia segredo disso.

Dirce da Silva Quadros nasceu em 22 de maio de 1918, em Curitiba, para onde seus pais se mudaram depois de um período de quatro anos no Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul). Jânio e sua irmã viveram toda a infância e pré-adolescência no Paraná. Estudaram em diversos educandários, por conta das constantes mudanças do pai nos anos 20, e com o golpe de 1930, vieram para São Paulo. Gabriel Quadros — pai de Jânio e Dirce — era filiado ao Partido Republicano Paranaense e membro da equipe do governador Affonso Alves de Camargo. Com a ascensão de Getúlio, Gabriel preferiu sair do Paraná e tentar a sorte no Estado onde o Partido Republicano era mais forte.

Jânio e Dirce, circa 1933
Dirce infelizmente nasceu com um problema cardíaco e sua saúde requeria atenção redobrada. Os dois irmãos eram unidos, brincavam juntos, se divertiam juntos e ela levava uma vida tão normal quanto possível, mas a fragilidade de seu organismo não conseguiu impedir que ela contraísse a tuberculose, a moléstia mais temida e disseminada da época. E também a mais rápida. Gabriel, que era médico, fez tudo que era humanamente possível para salvar a filha, inclusive interná-la em Campos do Jordão. Não adiantou. Sem a penicilina, e demais remédios surgidos nos anos seguintes, não havia como curar doença tão insidiosa e cruel. Dirce morreu em 24 de novembro de 1934, aos 16 anos. Jânio ficou devastado. Ainda mais devastado ficou Gabriel. A morte da jovem foi um divisor de águas na vida do médico e em sua relação com a esposa e com o filho. Em depoimento longo e exclusivo, Tutu falou com clareza sobre a morte da tia, que ela não chegou a conhecer, mas cujo nome herdou:

A mãe favorecia a ele e o pai favorecia a ela. Quando ela morreu, enquanto o Jânio e minha avó Leonor ficaram muito mais unidos, ele começou a ter problemas sérios com o pai. Depois disso, eles nunca mais se entenderam. Tinha amor entre eles, mas não havia mais nenhum entendimento. E o pai sofreu muito com a morte da filha. Muito. Tinha fotografias da tia Dircinha por todo lado, acendia velas, e eu acho que de uma certa forma ele nunca se recuperou da perda da filha. Que é o que costuma acontecer aos homens que perdem filhas. Meu avô Gabriel perdeu muito do encanto pela vida, o gênio dele se alterou muito, a tolerância, a paciência, a irritabilidade aumentou. (JÂNIO, pgs 104,105)

Gabriel, na década de 50
Gabriel era jornalista diletante desde a faculdade, no fim dos anos 10. Em quase todas as cidades onde viveu, tratou logo de se familiarizar e se infiltrar na imprensa local. Em São Paulo não foi diferente, e em 1933 vamos encontrá-lo como colaborador fixo de um pequeno diário chamado “Correio de S. Paulo”, de inspiração perrepista. Como sempre ocorreu nessa sua área de atuação, ele escrevia desde a crônica social até o comentário sobre política externa.

Em 26 de maio de 1936, em que se completava um ano e meio da morte de Dirce — e quatro dias depois do que seria seu aniversário de 18 anos — Gabriel escreveu sobre dois livros recém-lançados em sua coluna semanal (um sobre obstetrícia e outro sobre religião) e aproveitou parte da coluna social para publicar uma pequena homenagem póstuma à sua filha. Gabriel não escrevia bem. Era prolixo e rebuscado. Colecionava palavras difíceis e declinações oblíquas. Defeitos, aliás, que transmitiu ao filho, e que este cuidadosamente desbastou, corrigiu, depurou, ampliou e posteriormente transformou em arte.

Mas seu artigo sobre a filha é inspirado e tocante, porque traz o selo legítimo da tristeza e da saudade.
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À SAUDOSA MEMÓRIA DE DIRCE

Faz hoje precisamente um ano e meio que o gélido sudário da morte te envolve em suas diáfanas vestes e te roubou ao carinho dos teus pais!

A nossa casa é agora um sepulcro lacrado pelo sinete da saudade.

O teu róseo quarto, querida, continua vazio, chora em cada canto uma saudade, geme em cada saudade uma agonia.

As flores que plantaste e regaste com tuas mãozinhas de fada, desfolharam pétala por pétala e rolando n'um queixume triste se foram ao léu, nas asas do vento...

Tua mãe é a mesma — essa mater dolorosa que, n’uma caudal de pranto, procura no céu, nas noites plenilúnias, ver luzir o teu rosto na mais bela estrela coruscante.

Teu irmão, no vácuo do lar antes em festa, sente a ausência da companheira de infância.

O teu velho pai é esse rosto contrafeito, que ri em espasmos de dor, é como a harpa de cordas partidas que dedilha a saudade sem harmonia de acordes.

Desconheço alguém mais invejoso que a morte: ela quer só para si e nos rouba tudo o que é puro e bom.

Minha Dirce querida!

Teu pai viverá ainda rindo, essa louca comédia da vida, sob os grilhões da saudade até que a justiça de Deus o chame aos braços teus na eternidade infinita.

Até lá, continuarei com tua mãe a procurar no céu os teus lindos olhos no luzir das estrelas...

GABRIEL QUADROS
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Bibliografia

  • SCHMIDT, Bernardo. Jânio 
    — Vida e Morte do Homem da Renúncia. São Paulo, O Patativa, 2013.
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
350 pgs ilustradas
R$ 30,00 (Frete incluso para todo o Brasil)

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Ver também:

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