segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sobre "O Avarento", com Paulo Autran


Em novembro de 2006, uma amiga minha me pediu um texto sobre O Avarento, com Paulo Autran, que estava na época em cartaz no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. Como se tratava de publicação de baixíssima tiragem, sem qualquer repercussão, não perdi meu tempo com ser sincero, e escrevi um texto quadrado, sem maior profundidade. Por e-mail cheguei a dizer a essa amiga jornalista: "Eu poderia ter falado sobre o que achei da performance dos atores, individualmente, mas tenho uma série de críticas a fazer (achei o elenco fraquíssimo), então deixei quieto. Mesmo porque, tenho a impressão de que você quer um texto rápido, chapa branca, mesmo, e se eu começar a criticar, ele vai ficar enorme". Pelo jeito, nós dois estávamos enganados; a revista não quis publicar o artigo porque achou que ele não era suficientemente crítico. Em todo caso, eis o texto, de 19 de novembro de 2006:
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Avareza pouca é bobagem

A lenda do velho pão-duro que esconde sua fortuna vem provavelmente de Menandro, comediógrafo grego precursor da "nova comédia", no terceiro século A.C. Nessa fonte bebeu o romano Plauto, para compor a comédia latina Aulularia (ou A Comédia da Marmita), quase 2 séculos depois. Em 1668 o texto de Plauto recebeu roupagem nova e definitiva através da pena privilegiadíssima de Molière, que o transformou em O Avarento, encenado com ininterrupto sucesso desde então (Nesse ciclo irregular de atualizações e adaptações entrou até Ariano Suassuna, utilizando os dois textos como espinha dorsal de seu brejeiro O Santo e a Porca, de 1957).

O clássico de Molière já teve montagens brasileiras encabeçadas por atores como Procópio Ferreira, que a remontou diversas vezes, sempre com grande sucesso, Abílio Pereira de Almeida, em tímida performance no curto período em que foi ator, antes de se dedicar integralmente a escrever peças, Jorge Dória, brilhante, levando a platéia às lágrimas de riso da primeira à última cena, e até Cacá Rosset, em (desastrosa) montagem do Ornitorrinco. Agora chegou a vez de Paulo Autran, geralmente considerado nosso maior ator, encarnar Harpagon, o magnífico sovina esculpido pelo gênio francês. Aos 84 anos, Paulo estrela sua 90ª peça de forma jovial, cômica e vibrante.

A trama gira em torno de Harpagon, um velho viúvo que esconde sua fortuna em uma caixa, enterrada no jardim de sua casa. Enquanto todos procuram viver suas vidas normalmente, gozando do amor e da felicidade que o dinheiro não traz, Harpagon está sempre desconfiado de que vai ser roubado pelos empregados ou até mesmo pelos dois filhos, que lhe devotam amor e carinho verdadeiros, porém em vão, pois para ele só o que importa é o dinheiro.


O termo "avarento", que a princípio significaria apenas "aquele não dá", que "não é generoso", ganha novo significado semântico com o texto de Molière. Introduz a figura do homem que não é apenas miserável com os outros, mas consigo mesmo. Ele não desfruta dos benefícios que poderiam advir da riqueza, porque seu apego é com o próprio dinheiro. Com a idéia de tê-lo, e não com a idéia daquilo que ele pode proporcionar. Vive como um mendigo, regateia os gastos mais comezinhos, priva-se dos prazeres mais ínfimos, despreza a caridade, foge de quaisquer assuntos ligados a gastos ou finanças e sua mente é voltada exclusivamente para a proteção desse dinheiro. Aumentá-lo, se possível. Subtraí-lo, jamais.

Os filhos de Harpagon, Cleanto e Elisa, são jovens e apaixonados, e como na maioria dos textos de Molière, seus casos amorosos têm complicações que só serão superadas através de ardis e de maquinações que vão dando o estofo cômico e dramatúrgico à peça. Cleanto secretamente ama Mariana, a quem Harpagon decidiu desposar. Elisa, por sua vez, foi prometida por Harpagon a Anselmo, um velho rico, mas na verdade ama Valério, que é simplesmente um criado e portanto está longe do casamento por interesse que Harpagon planeja para ela. Entram em cena Frosina e Flecha, respectivamente a governanta e o faz-tudo de Harpagon. Divertidos, inteligentes e com uma pitada de maldade, ambos vão procurando resolver os problemas dos filhos de Harpagon, resolvendo seus próprios problemas financeiros no meio do caminho. E no fim há uma grande surpresa que amarra a trama.

E por aí o público vai constantemente às gargalhadas, com o hilário encontro do sexagenário Harpagon com a adolescente Mariana, a bajulação de Valério, que faz tudo para cair nas graças de Harpagon, as lamentações de Cleanto, as lorotas de Frosina e os atrevimentos de Flecha, consciência coletiva e o único que diz as verdades que Harpagon precisa ouvir. Paulo nos dá um Harpagon com intenso respeito pelo texto de Molière. Enquanto Dória sempre passeou pelos textos do gênio francês, utilizando-os para dar vazão à sua inigualável comicidade e a seu talento magistral de improvisar, Paulo optou por seguir a linha de Procópio, ou seja, a de arrancar gargalhadas coerentes. Nada é forçado, nada é gratuito, nada é caco.

Paulo, como o Sr. Jourdain de "O Burguês Fidalgo"

É teatro de primeiríssima qualidade, onde vemos nosso primeiro ator brilhando universalmente, numa representação que agradaria em qualquer lugar do mundo. Ator experimentado em Molière, a quem já representou em traduções que vão de Stanislaw Ponte Preta - no escrachado O Burguês Figaldo, com direção de Ademar Guerra - a Guilherme de Almeida - no Tartufo, onde interpretou o personagem-título e a mãe de Orgon, Pernella - Paulo encontra aqui o equilíbrio absoluto de texto e performance, no que contou com a aquiescência do diretor, Felipe Hirsh.

A cenografia de Daniela Thomas consiste num painel de caixas de madeira, simples e intrigantes ao mesmo tempo. Todos os personagens estão "encaixotados" no início da peça, como bonecos de porcelana, presos na rotina alucinante de Harpagon, já que a vida de todos ali acaba influenciada pela gana do Avarento. Os caixotes representam um mundo que não é cíclico e remetem ao aprisionamento dos valores verdadeiramente importantes a uma vida sem sentido, que termina no próximo ângulo. (Este parágrafo é o único no qual preservei as observações que minha amiga fizera anteriormente; não é meu)

No programa da peça, Paulo põe em xeque uma questão: Você se vê no lugar do Avarento, ou apenas lembra que conhece alguém como aquele personagem? E de fato é isso que ocorre; as pessoas jamais se enxergam na pele daquele a quem a crítica é dirigida. A carapuça nunca serve a ninguém a não ser a terceiros.

O Avarento é duplamente clássico: no texto inspiradíssimo de Molière e na interpretação de Paulo Autran, que é uma aula magna para todos aqueles que desejam se enveredar pela seara teatral, ou que simplesmente desejam assistir um bom espetáculo. Paulo é, como bem observou Antônio Abujamra, uma "universidade aberta".
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Hoje, passados alguns anos, posso dizer, sem me alongar muito, que O Avarento padeceu do mesmo mal que basicamente todas as grandes montagens de Paulo nos últimos anos: ausência de direção ou um péssimo elenco de apoio. Foi assim com A Tempestade, cuja direção era nula, foi assim com o Rei Lear, cujo elenco coadjuvante era tenebroso, e só não foi assim com as outras que vieram durante e depois porque foram espetáculos menores, com 3 ou 4 pessoas. No Avarento, Paulo brilhou sozinho. Foi um Harpagon maravilhoso, e algo de seu brilho refletiu em Elias Andreato e Cláudia Missura. Acabou. O resto do elenco, assim como a direção, inexistia. Loas à cenografia de Daniela Thomas, que foi boa.

Mas não havia segredo nenhum de que quem estava no teatro, estava lá para ver Paulo, e nisso ninguém se decepcionou. Paulo brindou aquele público com um canto do cisne vigoroso, e, com efeito, sua performance mais possante e energética em muitos anos. Muito mais energética, curiosamente, do que o seu Lear, 10 anos antes. E, embora seja lamentável que ele não tivesse a seu lado os titãs que merecia, vê-lo no palco sempre foi uma experiência inigualável.
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