segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Seu Chico, Getúlio e a Rádio Record


Francisco Assumpção Ladeira nasceu em 1910. Estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco no período que antecedeu o golpe de 1930 até a revolução de 32. Tornou-se procurador da prefeitura em 1935, com Fábio Prado, freqüentou desde essa época o Automóvel Clube e o Jockey Clube. Filiou-se à UDN. Elegeu-se vereador em 1948, na primeira legislatura depois do Estado Novo. Conheceu de vista ou intimamente todos os presidentes brasileiros desde Epitácio Pessôa. Viu Zequinha de Abreu tocar "Tico-Tico no Fubá" ao vivo. Recebeu Ernesto Nazareth em sua casa. Mário de Andrade tem hoje uma rua com seu nome graças a Seu Chico. O Parque do Ibirapuera deixou de ser apenas invernada do Corpo de Bombeiros para virar parque, mesmo, por seu requerimento, quando vereador. Compartilhava feijoadas com Procópio Ferreira no TBC semanalmente. Freqüentava a Pensão Humaitá, de Yan de Almeida Prado, com Prestes Maia. Conviveu com todos os grandes advogados brasileiros do século XX. Deu caronas a Jânio quando este era um pobre vereador...

Não há como fazer um simples resumo de sua vida e de suas lembranças. Não de alguém que tem em suas lembranças de criança a Revolução Russa e a Gripe Espanhola. São material para vários volumes alentados de memórias. Neste tópico, onde procuro prestar singela homenagem pelo quase centenário deste querido e precioso amigo - primeira de muitas, se Deus quiser - ele fala da Rádio Record, como se diz proverbialmente em inglês, since the day before yesterday, quando a Record sequer pertencia a Paulo Machado de Carvalho. Uma gota no oceano de lembranças de Seu Chico, e no entanto, material que não se encontra praticamente em lugar nenhum. E quando se encontra, não é pela palavra abalizada de quem viveu a época e foi testemunha ocular dos fatos. Conversar com Seu Chico e conversar com Josefo, com Políbio. É conhecer a história de São Paulo e do Brasil em primeira mão.
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O "torrãozinho" a que se refere Seu Chico

Então acontece o seguinte: havia em São Paulo duas estações de rádio. Uma era a Educadora Paulista, e a outra era a Rádio Record. A Educadora Paulista funcionava naquele Palácio das Indústrias, na várzea do Carmo, ali, e tinha um torrãozinho em cima, e começava o programa com a música Rapaziada do Brás. E Rapaziada do Brás era música do Alberto Marino [1902/1967 - a valsa, de 1927, recebeu uma letra composta por seu filho, em 1960]. Onde tinha as Porteiras do Brás, agora é um viaduto que se chama Alberto Marino, e quando ele publicou essa música, que era o intróito do programa da Educadora, ele publicou com o nome de Bertorino Alma, e Bertorino Alma é um anagrama, você aproveita todas as letras de Alberto Marino.

A Rádio Record foi fundada por um camarada chamado Álvaro Liberato de Macedo. Ele tinha uma casa de discos na rua São Bento chamada Casa Record [entre outras coisas, "disco", em inglês], por isso deu esse nome pra estação. Uma casa que vendia vitrolas, discos, gramofones, e havia um funcionário nessa casa, meio-tio meu, chamado Querubim Assumpção, que tocava muito bem violino, tudo isso, sabe? Mas acontece que o Álvaro teve umas encrencas loucas... e separou-se da mulher dele, e depois tinha um desordeiro aqui em São Paulo chamado Joaquim Jaguaribe. Era um desordeiro famoso, e um dia o Álvaro estava num bar na rua Líbero Badaró, e esse desordeiro chegou e disse: 'Eu vou urinar na sua perna'. O Álvaro tirou o revélver e pá!, matou o sujeito. Esse Joaquim Jaguaribe era famoso. Era Joaquim Jaguaribe Lacerda de Abreu.

Aí outro dia o Geraldo Nunes estava fazendo um programa sobre a revolução de 32, e o Paulo Bonfim falou no Jaguaribe, que o Jaguaribe foi soldado em 32, soldado em 32 nada, porque em 1929 eu fui visitar o Álvaro que estava preso, lá no Instituto Paulista, arranjaram um atestado médico e ele ficou preso no hospital... porque eu me dava com ele, e o filho dele, Álvaro Macedo Filho era muito amigo meu, o Alvinho Macedo, que era um sujeito técnico em rádio, e foi um dos que fundaram a estação. De maneira que o Paulo se enganou. Depois me ligou e ficamos uma hora no telefone.

Paulo Machado de Carvalho
 
A casa de discos existia desde 1926, 27, sei lá, e em 28 ele fundou a Rádio Record. Mas com esses dissabores todos, ele resolveu parar a estação. Aí esse meu tio, com o irmão dele, que chamava-se Luís, que era pianista, meio-tio meu também, resolveram que ao invés de parar a estação, iam tomar conta dela e colocá-la no ar. Disseram ao Álvaro, 'o senhor vai lá quando quiser, pra estação não ficar fechada'. Então havia a Rádio Educadora e a Rádio Record em 1928, 29, 30. Em 31, o Paulo Machado de Carvalho [1901/1992] comprou a Record, e passa daí, ao início da estação, e ninguém se lembra que antes de 1931 a estação já existia há 3 ou 4 anos, e nesse tempo, então, eu era estudante de direito, em 1928, 29, que eu entrei na faculdade, eu fui pra estação pra ajudar o Luís, era ele quem tomava conta, lá na praça da República, onde funcionou até a revolução de 32.
 
Toda noite eu ia pra estação, às vezes falava no microfone como speaker, às vezes fazia contratos de publicidade, e nós tocávamos a estação, e quando foi 1930, 1931, mais ou menos, que o Álvaro resolveu vender, nós não tínhamos dinheiro pra comprar. Ele queria vender a estação, mas disse que queria 35 contos, e nós não tínhamos 35 contos. E 35 contos, na ocasião... um automóvel custava uns 10 contos... seriam 100, 120 mil reais, por aí, e o Paulo Machado comprou a estação. Eu conhecia o Paulo porque era muito amigo do Marcelino, irmão dele. O Marcelino era colunista social e escrevia livros sobre comida, bebida e etiqueta.

Getúlio Vargas

Eu era a favor do Getúlio, tanto que nessa ocasião que eu estava na Record, em 1929, houve um dia em que eu fiz uma propaganda do Getúlio, e no dia segunte apareceu lá na Record o delegado de ordem política, Laudelino de Abreu [1894/1962]. E o Laudelino disse 'Ô moço, aqui não se faz propaganda de gaúcho nenhum, não. E a estação está fechada!' Fechou a estação durante três dias. Depois disso nós procuramos o Laudelino e pedimos pra ele abrir a estação, dar licença para nós, que não faríamos mais propaganda para o Getúlio. Esse Laudelino morava aqui na rua Turiassú, e depois da revolução empastelaram a casa dele.

Três dias antes de terminar a revolução houve uma chamada dos reservistas, e eu já era reservista, porque freqüentei o Tiro da faculdade de Direito, que se chamava "Escola de Instrução Militar 52". Tinha uma sala de armas chefiada pelo tenente Pessoa Cavalcanti, que depois se tornou um general conhecido, parece que era José Pessoa Cavalcanti [não encontrei registro de Pessoa Cavalcanti - 1885/1959 - no Largo São Francisco], mas acontece que desses reservistas, publicaram o nome de alguns, e o meu nome foi publicado juntamente com o Luís Eulálio Vidigal, mas nós não chegamos a nos apresentar, porque três ou quatro dias depois, a revolução acabou. Quando o João Alberto Lins e Barros foi interventor, o pessoal da faculdade de Direito o combateu muito. Até houve um desafio qualquer, e ele disse que se os estudantes fossem procurá-lo, encontrariam a ele 'na retranca de uma metralhadora'. E justamente aquela parte da faculdade de Direito que era privada, passou a se chamar 'sala da retranca'.

Eu era da oposição. Era veladamente do Partido Democrático, meu tio Laerte Teixeira Assumpção foi um dos fundadores do PD, e eu ouvia em casa, o meu pessoal todo era contra o PRP, que era o partido da situação, o partido do Júlio Prestes, Partido Republicano Paulista, e depois, passados dois anos mais ou menos, houve a revolução de 32, que nada mais foi do que uma revanche dos paulistas. Quando os gaúchos vieram em 30 e quiseram amarrar os cavalos, no Rio de Janeiro, no obelisco, e em São Paulo andaram batendo esporas no viaduto do Chá, isso revoltou muito o brio dos paulistas, e a revolução foi uma vingança contra o regime do Vargas. Esse negócio de constituição, e tal, tinha razão de ser evidentemente, mas no fim foi tudo revanche.

João Pernambuco

Na Record, então, eu tive ocasião de conhecer muitas pessoas interessantes. Me lembro um dia que chegou o João Pernambuco [1883/1947], autor do Luar do Sertão, a música era do João Pernbambuco, letra do Catulo Cearense, e depois tem uma música dele, muito interessante, que é pra violão, que chama-se Sinos e Carrilhões. E o Pernambuco chegou lá, e fui conversar com ele. Parece que estou vendo ele. Era um homem do meu tamanho, talvez um pouquinho maior do que eu, e tocava violão com o violão aqui, sabe? [como se fosse um contrabaixo]

Seu Chico imita a maneira que João Pernambuco tocava seu violão

Nessa ocasião ele já tinha 50, 60 anos. E assim outros músicos que conheci por lá. Eu lembro do [tenor] Arnaldo Pescuma [1903/1968], me lembro de um trio chamado 'Beraldini, Corazza e Torres' [não encontrei referência, mas o 'Corazza' pode ser do violoncelista Calixto Corazza], que era um trio de violino, piano e violoncelo, que durante a semana tocava na Casa de Chá do Mappin, ali na praça do Patriarca. Eu era advogado da prefeitura, que funcionava lá na Líbero [Badaró, 377, no térreo do Palacete Prates], mas às quatro da tarde eu saía, e ia pro Mappin tomar um chá, e ouvia aquela música suave do trio lá... eram duas casas que serviam chá, a Casa Alemã, na rua Direita, e o Mappin, compreendeu?

Um comentário:

  1. Maravilhoso! Só não coloco comentários em todos os posts para não me tornar repetitivo.Dá gosto de lêr,parabéns! Henrique Medeiros Pires

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