terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Altamiro Martins

- Alô.
- É da residência do seu Altamiro?
- É.
- Ele se encontra?
- (Desconfiada) Quem queria falar com ele?
- É o Bernardo.
- (Pausa) Qual é a sua relação com ele?
- Eu sou amigo dele. (Reconheço a voz) Dona Vera?
- Sim.
- Eu sou o Bernardo, Dona Vera. Costumava ir sempre até aí para conversar com o seu Altamiro, a senhora lembra?
- Ah, sim... pois eu vou ter que te dizer... que o Altamiro faleceu no dia 2 de novembro.

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Altamiro Martins

O diálogo, ocorrido na quarta-feira, 1° de fevereiro de 2006, me abriu aquela janela dimensional que só nos aparece quando recebemos, de maneira totalmente inesperada, notícias terríveis como essa. Através dessa tela imaginária, vi Altamiro na minha frente com a mesma clareza cristalina com que vejo minha mão, meu quarto e tudo que me circunda.

No início de 1995, um amigo meu me chamou para que trabalhássemos juntos em uma série de programas ecumênicos chamada "Palavra Viva". Eram historinhas de dois minutos com mensagens de fé e boa vontade. A bem da verdade, programas religiosos não eram exatamente o que eu pretendia para a minha então nascente carreira de ator, mas como o cachê (baixíssimo) fazia diferença para dois duros como nós, e o programa passava em horários absolutamente mortos (5 ou 6 da manhã), calculamos que tínhamos mais a ganhar que a perder.

O que não sabíamos é que o diretor do "Palavra Viva", José Carlos Barbosa, gostava de chamar veteranos do teatro e do cinema para participar dos pequenos programas. Assim, de uma hora para outra, meu amigo estava gravando com Vera Nunes e eu com Altamiro Martins, sendo que no meu programa ainda haveria a participação de Ruthinéia de Moraes. Eu não tinha idéia de quem eram os três, mas um único programa com Altamiro (de 3 ou 4 "Palavra Viva" que acabei fazendo) foi suficiente não só para que eu aprendesse, mas também para que eu ganhasse um dos amigos mais queridos que já tive.

O programa que filmei com Altamiro teve dois locais de gravação. O primeiro era o hoje extinto restaurante Pandoro, ao lado do Pandoro que ainda existe na avenida Europa, mais bar do que restaurante. Na cena, eu era o médico que pretendia largar seu prestigioso consultório particular para voltar a clinicar em povoações humildes da Amazônia. Altamiro era o conservador e aristocrático pai que não compreendia o desprendimento do filho.

O segundo local era um estúdio, e nele se montou o que seria supostamente um modesto posto de saúde em alguma remota vila no meio da floresta, onde uma médica - Ruthinéia - conversava com uma enfermeira sobre a perspectiva da volta de um benemérito paulista - eu - que lá clinicara tempos antes.

Nos intervalos da gravação conversei com Altamiro, que se mostrava perfeitamente familiarizado com a câmera, e procurou me tranqüilizar e me dar toques que me ajudaram muito. Comentei que meu amigo há pouco gravara um "Palavra Viva" com a atriz Vera Nunes, ao que ele respondeu: "É minha esposa". Terminado o nosso jantar de mentira, aproveitamos que a comida servida era de verdade e jantamos lá mesmo. Aos poucos fui entendendo quem eram Altamiro Martins e Vera Nunes.

Começamos a falar de teatro. Na empáfia de meus 23 anos, joguei um monte de informações para o ar, na tentativa de impressionar Altamiro. Esforço vão. Qualquer coisa que eu lhe dissesse voltava dez vezes maior. Quando comentei do Cyrano que eu vira com Fagundes, direção de Flávio Rangel, sua resposta já me fulminou:

- Trabalhei com o Flávio no Gimba, do Guarnieri, em 59, e no Pagador de Promessas, do Dias Gomes, em 60.

Boquiaberto, comentei que meses antes eu vira Paulo Autran em O Céu tem que esperar, no Rio. A resposta foi ainda mais devastadora:

- A Verinha fez a primeira peça do Paulo.
- Um Deus dormiu lá em casa?? - perguntei eu, embasbacado, sobre o espetáculo de 49.
- É, esse mesmo. Paulo, Tônia, Armando Couto e Vera.

Altamiro me jogava essas pérolas e ria com seu sorrisão bonito, divertindo-se com o choque em meus olhos arregaladíssimos. Perguntei-lhe quem era a atriz que faria a médica que me aguardava na Amazônia.

- Ruthinéia de Moraes - me disse - Ela é ótima. Como você deve saber, ela criou o papel de Neusa Suely na primeira montagem paulista de Navalha na Carne.

Não, eu não sabia. Mas foi passar uma ou duas horas com Altamiro e minha cultura teatral triplicou. Descobri que Altamiro, Vera e Ruthinéia não eram simplesmente atores aposentados, mas três figuras da maior importância para o teatro brasileiro, amargando injustíssimo oblívio. Troquei telefones com Altamiro e nos prometemos um novo encontro para conversarmos mais sobre teatro. O primeiro foi em 96. Fui até o apartamento de Altamiro e ficamos o dia inteiro trocando idéias sobre a recém-lançada biografia de Flávio Rangel, escrita por José Rubens Siqueira. Aproveitei para contar-lhe que no lançamento do livro, no Teatro Municipal, estava presente a querida Ruthinéia, a quem me apresentei como o médico que ela esperava na Amazônia. Encontro abençoado, pois Ruthinéia nos deixou pouco depois.

Com intervalo de alguns meses eu ia novamente a seu apartamento e repetíamos a dose: horas e horas da mais animada e agradável prosa teatral. Altamiro falava de Pedreira das Almas no TBC, da viagem de Gimba à Europa, da briga tremenda de Guarna e Flávio com Sandro Polloni, de seu papel de repórter em Gimba e a maneira como dizia uma de suas falas na peça, tal qual um narrador de futebol; falava de sua madrinha de casamento Bibi Ferreira, que o dirigiu em Portugal, na peça Society em baby-doll, de sua entrada no Arena e seu primeiro contato com Guarna em 57, com Juno e o Pavão, dirigido por Boal (e uma das primeiras peças de que participou Aracy Balabanian) e tantas outras coisas. Regávamos nossa tertúlia com alguns litros de café e alguns maços de Derby vermelho e de Shelton longo. E sempre na companhia da espaçosa cadela de Altamiro, "Tchuca".

Altamiro e Tchuca
Vera Nunes chegava sempre depois das 9 da noite e nos encontrava irremediavelmente na sala, às gargalhadas, com aquele monte de xícaras de café e cinzeiros transbordando. Ralhava duramente com Altamiro:

- Altamiro, você deixou o rapaz sem comer até agora?

Altamiro respondia como uma criança pêga com a boca na botija:

- Mas Verinha, eu e o Bernardo engrenamos um assunto no outro e acabamos não dando conta da hora...

Vera, menos verborrágica que nós, de vez em quando se permitia rememorar alguns fatos de sua extraordinária carreira e falava de Ruggero Jacobi, de Paulo Autran e chegava até mesmo a rir quando lembrava da peça que fez com Procópio e do terror que era contracenar com o mestre, que raramente decorava seus textos, tão acostumado que estava com o ponto. Antes de ir embora eu ainda presenciava os dois fazendo planos para assistir algum clássico do cinema que passaria de madrugada.

Com Altamiro, meados da década de 90

Nos anos seguintes nos encontramos com freqüência. Altamiro preparava seu video e assistíamos velhos filmes de Vera, como "Suzana e o presidente" ou "Garota Mineira". Também assistimos o primeiro filme de Altamiro, o terrível "Fatalidade", de 53, que tinha como curiosidade o fato de trazer ninguém menos do que o pai de Carlos Zara numa coadjuvância. Aproveitávamos a presença daqueles velhos atores nos filmes e falávamos de Sadi Cabral, de Morineau, de Wanda Marchetti, Jayme Costa, enquanto eu fuçava a pequena mas bastante completa biblioteca de Altamiro, que ele mantinha em total organização. E assim fui conhecendo cada vez mais a geração de Altamiro e Vera, e aquela que os precedeu.

Altamiro tinha duas peças escritas (minha maldita memória me trai no momento e eu não me recordo os nomes), e uma delas ele leu com Vera e elenco na sociedade lítero-dramática Gastão Tojeiro. Vera fazia o papel de uma freira e o público gostou muito. Paralelamente, já no fim dos anos 90, os dois começaram a ensaiar a peça Teto de Lona, de José Carlos Barbosa (o diretor do "Palavra Viva"). Em um de nossos encontros Altamiro chegou a comentar que a cena final era muito emocionante e que ele terminava a peça em lágrimas.

Inexperiente e burro, duvidei do talento de Altamiro. Só o vira no inefável "Palavra Viva" e em uma pequena coadjuvância na novela "O Rei do Gado", e sequer me passou pela cabeça que um ator que participara do TBC e do Arena poderia ter uma boa performance dramática. Resolvi tirar a prova na leitura que eles fariam da peça no Biroska, casa noturna dedicada à classe teatral. Tive que engolir minha cretinice. Altamiro e Vera faziam um casal de palhaços aposentado e a cena final era um monólogo de Altamiro de frente para Vera, que acabava de morrer. Não só Altamiro terminou a cena com o rosto banhado em lágrimas mas eu também e todo o público do Biroska. Fiquei maravilhado. Admirava Altamiro por ser uma pessoa querida e gentil, mas agora me dava conta do excelente ator que ele era.

Com Vera Nunes, Altamiro e Suzy Arruda

Além de suas peças, Altamiro também tinha escrito o piloto para uma série de televisão no estilo de "O Fugitivo" (série americana que deu origem ao filme com Harrison Ford). Costumava dizer que "estou um pouco velho para o papel principal, mas gostaria muito de fazer".

Infelizmente esses projetos todos acabaram interrompidos no início do século 21. Teto de Lona entrou em cartaz em 99, curta temportada no Teatro Pirandello, com direção de Júlio Sanz, mas Altamiro não pôde participar. Sua saúde deu o primeiro susto. Ele teve que ser operado (anos e anos de cigarro lhe deram uma enfisema e o coração começou a fraquejar) e durante mais ou menos 1 ano parou com as atividades mais cansativas.


Voltou em 2002. Uma pequena participação em "Esperança", anúncios diversos, Telesena, Casas Bahia, e uma linda volta ao teatro com Homens de Papel, de Plínio Marcos, no grupo Luz e Ribalta, dirigido por Antônio de Andrade. Altamiro trabalhou com Vera e um elenco de mais 12 pessoas, sendo que uma delas era Silvia Pompeo, filha de Ruthinéia de Moraes, fazendo o papel da prostituta Maria Vai, criado por Ruthinéia na montagem original da peça. Sucesso total e temporada premiada no Ruth Escobar. Foi a despedida de Altamiro dos palcos.

Estive com ele pela última vez no início de 2003. Estava ótimo, de excelente humor, nem parecia que pouco mais de 1 ano antes passara por uma operação delicada. Empolgado com o sucesso de Homens de Papel, pensava num próximo espetáculo com Vera. O espetáculo não veio, mas ele participou do filme "Nina" de Heitor Dhalia, junto a velhos amigos como Myriam Muniz e Abraão Farc. Não nos falamos por um bom tempo. Meus altos e baixos profissionais eram sempre empecilho para um novo encontro e tive que cancelar compromissos com ele algumas vezes.

Depoimento de 2004, na comemoração
dos 50 anos do Teatro de Arena
No fim de 2004 Altamiro deu seu depoimento a Isabel Teixeira, dentro das maravilhosas comemorações dos 50 anos do Arena. Ele me telefonou algumas vezes, provavelmente para que eu estivesse presente no dia de sua entrevista. Mais uma vez, tudo aquilo que não importa, que é de somenos, acabou se interpondo entre nós, e eu perdi essa oportunidade única de assisti-lo em sua última aparição num palco. E essa é uma culpa que levarei para sempre.

Altamiro nunca parou de fazer comerciais, e recentemente esteve em um capítulo de "A Diarista". Pouco, pouquíssimo para quem, como ele, esteve sempre ombro a ombro com os grandes nomes de nosso cinema, teatro e TV. Altamiro, ao longo de tantas e tantas horas de conversas, estabeleceu os alicerces de toda uma cultura na qual eu mais tarde iria me aprofundar. A compreensão universal do que conheço por "teatro". Mas não é o artista - o galã, o "mineiro irlandês" - que eu pranteio e homenageio neste momento, mas a figura humana imensa, generosa e inesquecível que eu tive o privilégio inteiramente imerecido de conhecer, e a honra ainda mais imerecida de poder chamar de amigo.
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Esse texto foi postado originalmente no dia 4 de fevereiro de 2006 na comunidade que criei para Gianfrancesco Guarnieri, no orkut. Pedi a Cecilia Thompson - que na época de Gimba era esposa de Guarnieri e foi com eles à Europa, com a peça - que escrevesse algumas palavras sobre Altamiro. Sempre solícita, eis o que Cecilia postou no dia seguinte:

Em 1959, eu tinha 22 anos e esperava meu primeiro filho (o Flavinho Guarnieri, hoje com 46 anos, filho meu e do Gianfrancesco). Eu assistia, tricotando os casaquinhos do bebê que ia chegar, a quase todos os ensaios de GIMBA, lá no Teatro Maria Della Costa, minha segunda paixão depois do Arena, encantada com o texto (ora, era a segunda peça do meu marido-herói...), na direção deslumbrante de Flávio Rangel. E não era pouca coisa, não: um cenário incrivel (o público aplaudia o cenário, antes da peça começar, nunca vi isso antes...), um elenco que Sandro definia como "Maria Della Costa e mais 48" - tanto que nos chamávamos de 32, 17, 41... mas Sandro era um encanto, e Maria é minha amiga até hoje - uma luz maravilhosa, Flávio Rangel "pintava com luz", e tantos amigos! Um deles, Altamiro Martins, era tão dedicado e engraçado - ele fazia um repórter que subia o morro para contar ao Rio a morte de Gimba, "o presidente dos valentes" - que nos conquistou na primeira hora. Lembro de grandes conversas com aquele rapaz pouco mais velho do que nós, e lembro, principalmente, da  nossa travessia de navio, o Louis Lumière, até Lisboa, em setembro de 1959, para a vitoriosa temporada de GIMBA na Europa.

Eu passava horrivelmente mal, e Glorinha Moreira, então mulher de Flávio Rangel, minha comadre e irmã, Maria e Altamiro é que seguravam as pontas. Literalmente me aguentavam no balanço das horas, me distraíam, me davam comidinhas e me faziam rir em meio aos piores enjôos. Altamiro até me levou ao bar do navio, um dia, e me carregou para a piscina (eu boiava sem bóia, chegamos a Lisboa no dia 21/9 e Flavinho nasceu no dia 26 de madrugada). Altamiro, Glorinha, Maria, Ruthineia, Eugênio Kusnet e Sadi Cabral fugiram, cada um por sua vez, do ensaio geral, e vieram conhecer o bebé. Flávio Eduardo Frederico, o nosso "porco-espinho" - cabelos arrepiados - ainda tem a figuinha de ouro que Altamiro lhe levou. E eu guardo no meu coração as flores, as fotos dessa viagem, e o carinho desse amigo que pouco vi, nos anos mais recentes, mas de quem nunca me esqueci. Nem esquecerei.

CECILIA THOMPSON

7 comentários:

  1. Bernardo, que depoimento comovente sobre o Miro. Infelizmente, ele já havia falecido quando comecei a fazer a biografia da Vera Nunes,que transformou-se numa enorme amiga. Não sei se vc está sabendo que ela mudou para Campinas por esses dias, para ficar perto dos dois filhos. Um enorme abraço, prazer em conhecê-lo ainda que dessa forma. Em tempo: vc leu a biografia dela?

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  2. Eliana, não sabia que a Vera tinha sido incluída na Coleção Aplauso. Homenagem justíssima, e lerei o teu livro assim que possível. Abração!

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  3. Bernardo, estou profundamente emocionada ao relembrar, com a ajuda de suas palavras, da pessoa linda, querida é iluminada que foi o Altamiro. Tive o privilégio de conviver com ele e com Vera e fazer parte da família no que foi um período muito importante da minha vida. Infelizmente minha memória é bem ruim e não pude gravar as inúmeras e deliciosas histórias que tive a sorte de conhecer, mas sei que, sem dúvida, contaram na minha formação. Agradeço a você por esse texto, tão bela homenagem.

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    1. Obrigado, Bella. Fico muito feliz que tenha te tocado e feito você relembrar nosso queridíssimo e tão saudoso Altamiro, Beijos!

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  4. Olá Bernardo, Tudo bem?

    Trabalho no Projeto Brasil Memória das Artes do Cedoc/Funarte que vai digitalizar todo o acervo da instituição. Estou atrás do contato da Vera Nunes por que o Altamiro aparece no acervo da Maria Della Costa, e precisamos da autorização de imagem dos herdeiros do ator. Você poderia me ajudar? Meu email: gabriel.garciarj@gmail.com
    Link do projeto: http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/

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    Respostas
    1. Gabriel, com a morte do Altamiro eu perdi o contato com a Vera. A Eliane (que comentou aqui em cima) provavelmente pode te dar mais informações. Eu realmente não tinha nenhum contato com o resto da família, acho que eles nem sabem deste artigo, então não saberia por onde começar. Mas fico muito feliz com o projeto e espero que dê tudo certo. Abração!

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