Eu quero longevidade. Ainda quero estar trabalhando quando eu tiver 70 anos. Então estou ansiosa para fazer várias coisas. Quanto mais velho, mais interessante você fica.
Anna Friel (2009)
Concluídas as filmagens de The Street e Land of the Lost, agendados para estrear em meados de 2009, Anna Friel recebeu uma proposta irrecusável: voltar ao West End londrino protagonizando uma adaptação teatral do conto Breakfast at Tiffany’s, do escritor norte-americano Truman Capote (1924/1984). A pré-produção começou em maio, a partir do convite feito pelo diretor galês Sean Mathias, que na época exercia o cargo de Diretor Artístico do Theatre Royal Haymarket e gozava o êxito de Esperando Godot, de Samuel Beckett, dirigido por ele e estrelado por Ian Mackellen e Patrick Stewart. Outras de suas direções incluíam remontagens de Bent, de Martin Sherman, Design for Living de Noel Coward e Les Parents Terribles de Jean Cocteau. Mathias convidou Anna, que aceitou imediatamente, e o australiano Samuel Adamson — responsável por transformar o filme Tudo sobre minha Mãe, de Pedro Almodóvar, em grande sucesso do Old Vic em 2007 — para adaptar o texto de Capote.
O Livro de Truman Capote
Breakfast at Tiffany’s conta a história de Holly Golightly, uma alpinista social de 19 anos que freqüenta diversas rodas de grã-finos e vive no limiar da prostituição. Tem uma vida fútil, está sempre em festas, em seu apartamento ou nas casas noturnas mais badaladas de Nova York, e se sustenta com as polpudas gorjetas que recebe cada vez que vai ao toalete (na época era praxe pagar alguma coisa aos funcionários dos banheiros de lugares elegantes, que seguravam toalhas, borrifavam perfumes, etc., e Holly simplesmente ficava com o dinheiro). Na concepção do próprio Truman, “Holly Golightly não era precisamente uma prostituta. Ela não tinha emprego, mas acompanhava homens aos melhores restaurantes e casas noturnas, com o acordo de que seu acompanhante estava obrigado a dar a ela algum tipo de presente, talvez jóias ou um cheque... Se ela quisesse poderia passar a noite com seu acompanhante. Então estas garotas são as autênticas gueixas americanas, e são muito mais prevalentes agora do que em 1943 ou 1944, que era a época de Holly”.
Truman Capote |
É narrada em primeira pessoa pelo vizinho de Holly, um aspirante a escritor que não tem nome, mas que se torna amigo da moça e passa a ser chamado de “Fred” por ela, que o identifica com o seu irmão, que tem esse nome. O título faz referência à adoração da moça pela joalheria Tiffany’s de Nova York, não tanto pela paixão de Holly por jóias — o que ela não tem — mas pelo sonho de ser rica o suficiente para “wake up one fine morning and have breakfast at Tiffany’s”. Com o desenrolar da trama descobre-se que Holly não é apenas uma apaixonante dublê de socialite e gueixa nova-iorquina, amada e desejada por todos mas incapaz de se apegar a quem quer que seja. Ela tem um passado doloroso, vem de uma cidadezinha de caipiras no Texas, seus pais morreram tuberculosos e tanto ela quanto os irmãos, todos ainda crianças, foram distribuídos entre famílias que só fizeram maltratá-los. Holly — ou “Lulamae”, seu verdadeiro nome — e o irmão Fred fogem e em uma casa onde roubavam “leite e ovos de peru” acabam pêgos, mas ao invés de serem punidos são adotados pelo dono da casa, que há pouco perdera a esposa e ficara sozinho com os quatro filhos. O sujeito, Doc Golightly, se apaixona por Lulamae, de apenas 14 anos, e se casa com ela, desgraçadamente um costume dos mais comuns nesse ignorantíssimo interior do sul norte-americano.
Inteligente e esperta, embora endurecida e insensibilizada pelas desgraças de sua vida, Lulamae foge da casa que dividiu com Doc durante um ano e enquanto Fred vai para o exército (a trama se passa em plena guerra, no início dos anos 40), ela vai para a Califórnia, onde, com apenas 15 anos, freqüenta corridas de cavalos e namora um jockey. Lá é descoberta por um agente cinematográfico, O. J. Berman, que vê beleza e potencial na moça, consegue um teste para ela num filme de Cecil B. Demille (The Story of Dr. Wassel, num pequeno equívoco de Truman Capote, pois esses eventos remontariam a 40 ou 41, no livro, e o filme de Demille é de 1944), mas na hora H ela simplesmente desaparece e vai para Nova York.
Um dos inúmeros admiradores de Holly é o mafioso Salvatore “Sally” Tomato, que a observava nas festas mas que só resolve contatá-la e se apresentar quando já está na cadeia. Por intermédio de um capanga que se diz “advogado” de Sally, o mafioso propõe a Holly que lhe faça uma visita semanal, pela qual ganhará sempre 100 dólares e na qual não precisará fazer nada a não ser ouvir a “previsão do tempo” que lhe é ditada por Sally — na verdade instruções cifradas para continuar movimentando seu cartel de drogas do lado de fora — e transmiti-la, ipsis literis, ao “advogado”, de nome O’Shaughnessy. Holly, pensando nos cobres e na afeição que até certo ponto desenvolve pelo velho Sally, aceita a incumbência e passa a visitá-lo, na qualidade de sobrinha do mafioso, sem dar maior importância à possibilidade de estar sendo usada como mula de informações criminosas ou estar incidindo no crime de falsidade ideológica.
A Tiffany's de Nova York, nos dias de hoje |
Os acontecimentos se precipitam; Doc Golightly, que longe de ser um caipira pedófilo é um homem simplório, calmo e de bom coração, vai atrás de Holly em Nova York, mas depois de um breve encontro ela o convence que as coisas mudaram, ela não é mais a Lulamae de 14 anos que ele conheceu e que o melhor é que os dois sigam suas vidas. Ele vai embora, pouco depois Holly tem um colapso nervoso ao receber telegrama comunicando que Fred, o irmão que ela venerava, foi morto em combate, e ela descobre que está grávida de José. Planos são finalizados para que eles viajem juntos ao Brasil e no dia anterior à partida ela vai cavalgar com o escritor. Sem qualquer experiência com equitação, ao contrário de Holly, montadora exímia, o escritor sofre um acidente e ela o leva para o apartamento dele, onde cuida de seus ferimentos. No momento em que o escritor estava em sua banheira, a polícia invade a casa e leva Holly. A princípio o escritor tem a impressão de que a vizinha Saphia Spanella, que vivia queixando-se do comportamento de Holly e já tentara inclusive despejá-la com um abaixo-assinado, conseguira finalmente convencer as autoridades da periculosidade das “festas imorais” da moça. Na verdade o problema era bem pior: o esquema de Sally Tomato para dirigir seus negócios de dentro do presídio de Sing Sing fora descoberto e Holly estava sendo presa como cúmplice. Seus planos caem como um castelo de cartas; ela perde o filho naquela noite e José, temeroso de que o escândalo pudesse prejudicar sua carreira política no Brasil, rompe relações com ela através de uma carinhosa carta que o escritor lê para a moça no leito do hospital onde ela ainda se recuperava do aborto.
A 1ª edição de Breakfast at Tiffany's |
No caminho até o aeroporto ela expulsa o gato do carro em uma rua qualquer, dizendo-lhe que aquele será o lugar perfeito para ele, “rats galore, plenty of cat-bums to gang around with”. Seguem por algumas quadras e ela se arrepende do que fez; sai do carro, corre até a rua onde o deixou, grita por ele mas não o encontra mais. Exclama: “Oh Jesus God. We did belong to each other. He was mine”. De volta ao carro, conformada, ela confessa estar com medo: “Not knowing what’s yours until you’ve thrown it away”... e vai embora. O livro termina com o postal que o escritor recebe de Holly meses depois — primeira e última vez que ela se comunicou com ele depois de partir — e a informação dada por ele, de que voltou à rua onde Holly deixara o gato e o encontrara bem instalado em uma das casas. O escritor afirma estar seguro de que “he’d arrived somewhere he belonged”, e termina, com melancólica esperança: “I hope Holly has, too”.
George Axelrod |
Capote lançou Breakfast em 1958, o sucesso foi instantâneo e dois anos depois Hollywood comprou de Truman os direitos para a produção do filme. Segundo se conta por aí, o primeiro diretor envolvido com o projeto foi John Frankenheimer, que teria como roteirista George Axelrod e Marilyn Monroe no papel de Holly (escolha que trazia não apenas o beneplácito mas a preferência pessoal de Capote). Uma combinação excelente: Axelrod era o autor de The Seven Year Itch, sucesso na Broadway em 1952 e três anos depois um dos melhores filmes de Marilyn, roteirizado por ele mesmo e dirigido por Billy Wilder. Não bastasse isso, ele também roteirizou o triunfo seguinte da atriz, Bus Stop, do texto original de William Inge.
No mais, Marilyn era amiga de Capote e parecia haver em Holly traços inequívocos da própria atriz, como a infância infeliz, sua entrada no cinema e no high society e sobretudo no trecho em que Capote descreve Holly inteiramente deslocada na biblioteca pública de Nova York, procurando informações sobre o Brasil, já que está de caso com José: “She sped from one book to the next, intermittently lingering on a page, always with a frown, as if it were printed upside down. She had a pencil poised above paper — nothing seemed to catch her fancy, still now and then, as though for the hell of it, she made laborious scribblings”, em imagem que nos remete aos recém-nascidos interesses literários de Marilyn, que mergulhou nos livros quando se casou com Arthur Miller, em 1956, e foi obrigada a sair de sua roda social de banalidades hollywoodianas para o seleto e exclusivo círculo de intelectuais que rodeava Miller. A mudança de comportamento da atriz evidentemente foi visível e teve um preço. Como Capote analisa, pouco depois no mesmo trecho, Holly não poderia nunca mudar, porque desenvolvera sua personalidade muito cedo. Qualquer alteração na imagem já conhecida, “like sudden riches, leads to a lack of proportion”.
Marilyn
Marilyn Monroe |
No mais, Marilyn era amiga de Capote e parecia haver em Holly traços inequívocos da própria atriz, como a infância infeliz, sua entrada no cinema e no high society e sobretudo no trecho em que Capote descreve Holly inteiramente deslocada na biblioteca pública de Nova York, procurando informações sobre o Brasil, já que está de caso com José: “She sped from one book to the next, intermittently lingering on a page, always with a frown, as if it were printed upside down. She had a pencil poised above paper — nothing seemed to catch her fancy, still now and then, as though for the hell of it, she made laborious scribblings”, em imagem que nos remete aos recém-nascidos interesses literários de Marilyn, que mergulhou nos livros quando se casou com Arthur Miller, em 1956, e foi obrigada a sair de sua roda social de banalidades hollywoodianas para o seleto e exclusivo círculo de intelectuais que rodeava Miller. A mudança de comportamento da atriz evidentemente foi visível e teve um preço. Como Capote analisa, pouco depois no mesmo trecho, Holly não poderia nunca mudar, porque desenvolvera sua personalidade muito cedo. Qualquer alteração na imagem já conhecida, “like sudden riches, leads to a lack of proportion”.
Marilyn e Truman |
Marilyn e Lee Strasberg |
Influências
Christopher Isherwood |
Carol Grace |
Truman Capote |
O filme de Blake Edwards, com Audrey Hepburn
Audrey Hepburn como Holly Golightly |
Um erro fundamental do filme é mostrar Holly como alguém que se apaixona pelo escritor, o seduz, passa a noite com ele e depois some, sendo mais tarde obrigada a desiludi-lo com rispidez, o que lhe causa lágrimas e uma profunda crise de consciência. Nada mais distante da realidade. Em nenhum momento do livro Holly dá qualquer sinal de ter atração pelo escritor, ou corresponder seus sentimentos, e muito menos de ter um caso com ele. Da mesma forma, a índole interesseira e gananciosa de Holly não vê sentimentos, e mal tendo demonstrado um mínimo de consideração pelo escritor, é evidente que jamais verteria uma lágrima por ele.
George Peppard e Audrey Hepburn |
No mais, personagens queridos e divertidos como Joe Bell e Saphia Spanella são impiedosamente cortados; outros como Rusty Trawler (Stanley Adams) e Mag Wildwood (Dorothy Whitney) são relegados quase que à figuração, Sally Tomato (Alan Reed), que no livro é apenas referido, tem uma única e esquecível cena, e personagens inexistentes no conto de Capote são criados sem qualquer necessidade, como é o caso do vendedor da Tiffany’s e a funcionária da biblioteca. Por outro lado, algumas das falas e reclamações da Sra. Spanella são fundidas ao personagem do Sr. Yunioshi, coadjuvância de luxo para o então famosíssimo Mickey Rooney.
O fim do filme é um golpe final no livro; ao invés de expulsar o gato, ter a epifania da inevitabilidade de pertencer a alguém e a fuga melancólica para o Brasil, a Holly de Audrey Hepburn e George Axelrod expulsa o gato, leva uma carraspana do escritor, vai atrás dos dois, encontra o gato e o filme termina com o beijo de Holly e o escritor, sinalizando que ela resolveu ficar e casar-se com ele. Ou seja, um final plenamente hollywoodiano, oposto ao livro. O saldo positivo foi a beleza antológica e eterna de Audrey Hepburn — não importando que ela nada tivesse a ver com Holly — e a magnífica Moon River, composta por Henry Mancini e Johnny Mercer especialmente para Audrey cantar ao violão. No Oscar de 1962 o filme recebeu cinco indicações: melhor atriz (Audrey), roteiro (Axelrod), direção de arte (Hal Pereira, Roland Anderson e cenários de Sam Comer e Ray Moyer), música (Mancini e Mercer por Moon River) e trilha sonora (Mancini, pela orquestração de Moon River). Ganhou os dois últimos.
O jovem Norman Mailer
Há duas análises que podem ser feitas sobre o filme de Blake Edwards: aqueles que não leram o livro de Capote foram brindados com uma comédia romântica leve e meio piegas, no estilo dos filmes estrelados por Tom Hanks e Meg Ryan (com a inenarrável vantagem de trazer Audrey e não Meg). Quem leu o livro pode até ter gostado de ver Audrey Hepburn espalhando sua beleza e carisma ao som de Moon River, mas fica uma sensação incômoda de que a adaptação está a anos-luz do conto original e não fez jus à prosa de Truman, a quem Norman Mailer considerava “o mais perfeito escritor da minha geração”.
Há duas análises que podem ser feitas sobre o filme de Blake Edwards: aqueles que não leram o livro de Capote foram brindados com uma comédia romântica leve e meio piegas, no estilo dos filmes estrelados por Tom Hanks e Meg Ryan (com a inenarrável vantagem de trazer Audrey e não Meg). Quem leu o livro pode até ter gostado de ver Audrey Hepburn espalhando sua beleza e carisma ao som de Moon River, mas fica uma sensação incômoda de que a adaptação está a anos-luz do conto original e não fez jus à prosa de Truman, a quem Norman Mailer considerava “o mais perfeito escritor da minha geração”.
Truman Capote |
O Musical da Broadway, com Mary Tyler Moore
Capote continuaria ganhando milhões em royalties pelas adaptações de sua obra, o que não significa que elas seriam melhores ou mais fiéis que a de George Axelrod. Em 1966, o excêntrico e competentíssimo produtor teatral David Merrick fechou uma parceria com o escritor Abe Burrows — libretista dos mega-sucessos Guys and Dolls e How to succeed in business without really trying — para transformar Breakfast at Tiffany’s em um musical da Broadway. A equipe envolvida parecia ser propositalmente à prova de fracassos: Burrows seria o libretista e o diretor; no papel de Holly, Mary Tyler Moore, no auge de seu sucesso televisivo no programa de Dick Van Dyke; músicas e letras seriam compostas por Bob Merril, ainda colhendo os louros da fama pelo sucesso que emplacara com Barbra Streisend em Funny Girl; na coreografia o grande Michael Kidd, ganhador de dezenas de Tonys, e o escritor seria feito por Richard Chamberlain, que assim como Mary, era figura das mais queridas dos Estados Unidos, pelo seu papel protagonista na série de TV Dr. Kildare.
Não seria exagero dizer que na junção de pessoas tão competentes, trabalhando matéria-prima da melhor qualidade, absolutamente tudo deu errado. O espetáculo, que tinha quase quatro horas de duração, começou suas pré-estréias no segundo semestre de 66. A repercussão foi desastrosa. Ninguém gostou da música, do libreto, dos cenários, e o público ficou particularmente chocado ao ver a então namoradinha da América interpretando uma prostituta. Apavorado com a perspectiva de um flop milionário, Merrick dispensou Abe Burrows. Para substituí-lo na direção do musical chamou o experiente Joseph Anthony, e para reescrever o libreto de Burrows — que continha anacronismos patéticos como o fato de Holly ser uma prostituta virgem — entrou em cena ninguém menos do que o afamado dramaturgo Edward Albee. Não adiantou. O libreto foi reescrito, músicas foram trocadas, o elenco recebia alterações de manhã para incorporá-las à performance da noite, e a reação continuava sendo de total reprovação por parte do público, que, segundo Richard Chamberlain, por vezes chegou a xingar o elenco em cena.
Edward Albee |
O fracasso estrepitoso do musical não foi suficiente para desestimular a rede de televisão ABC, que em 1969 chegou a gravar o piloto de um futuro sitcom intitulado Holly Golightly, que mostraria Holly mudando-se para um novo apartamento onde viveria vida tão glamourosa quanto no livro, e seria baseado na relação de Holly com Joe Bell. No papel de Holly estaria a linda e jovem Stefanie Powers e o ator canadense Jack Kruschen interpretaria Bell. O piloto acabou engavetado para sempre.
As primeiras fotos promocionais de Anna
como Holly, ainda em maio
Diante de tudo isso, era natural que tanto Anna quanto Mathias deixassem claro para a imprensa, no período de ensaios que antecedeu as pré-estréias, que a adaptação de Samuel Adamson viria do conto de Capote e nada teria a ver com o filme. Mathias foi taxativo: “Precisamos refazer no palco algo que teve tanto sucesso no cinema? Meu primeiro instinto foi ‘não, não precisamos!’ Por melhor que tenha sido o filme, porém, há muitos elementos do romance que são diferentes”. Dito isso, era hora da propaganda: “Tenho sido um ávido fã de Capote e espero que minha produção de seu deslumbrante conto Breakfast at Tiffany’s seja uma noite despudorada e glamourosa de inteligência, estilo, ternura e música, com a dinâmica de Nova York dos anos 40 como pano de fundo. E estou maravilhado de trabalhar com a linda e talentosa Anna Friel em seu retorno aos palcos londrinos”.
como Holly, ainda em maio
Diante de tudo isso, era natural que tanto Anna quanto Mathias deixassem claro para a imprensa, no período de ensaios que antecedeu as pré-estréias, que a adaptação de Samuel Adamson viria do conto de Capote e nada teria a ver com o filme. Mathias foi taxativo: “Precisamos refazer no palco algo que teve tanto sucesso no cinema? Meu primeiro instinto foi ‘não, não precisamos!’ Por melhor que tenha sido o filme, porém, há muitos elementos do romance que são diferentes”. Dito isso, era hora da propaganda: “Tenho sido um ávido fã de Capote e espero que minha produção de seu deslumbrante conto Breakfast at Tiffany’s seja uma noite despudorada e glamourosa de inteligência, estilo, ternura e música, com a dinâmica de Nova York dos anos 40 como pano de fundo. E estou maravilhado de trabalhar com a linda e talentosa Anna Friel em seu retorno aos palcos londrinos”.
Anna foi igualmente cuidadosa, repisando o que já dissera Mathias sobre a admiração de todos pelo livro que, segundo ela, “foi sempre um dos meus romances favoritos”. Sobre o prazer de interpretar Holly, o curioso é que Anna não se refere a ela como uma personagem trágica, sofrida ou controversa; primeiramente definindo-a de maneira hilária como uma bad little good little girl (qualquer coisa como "menininha malvadinha boazinha") a atriz prefere ressaltar as qualidades da socialite — “ela é a mulher mais valente e corajosa que já vi escrita” — e pensar nela como uma “heroína”, parafraseando-a: “Holly é a heroína de todas as mulheres. Ela nunca tem pena de si mesma. Ela simplesmente diz, ‘uh, se você tem merde no seu sapato, é só limpá-lo’. Ela sabe exatamente o que quer e, o mais importante, sempre consegue tirar o melhor dos homens”. Lembrando, como sempre, que “a inspiração para a peça é o livro original, e não o filme”, ela acrescenta: “Creio que esta Holly será uma personagem muito mais dura e complexa do que a da versão cinematográfica. Ela é uma escorte que recebe 50 dólares por sua companhia. É o público que deverá imaginar até onde ela vai com esse dinheiro”. Anna teve medo da sombra de sua lendária antecessora: “Uma das coisas assustadoras para mim, no começo, foi pensar ‘meu Deus! As pessoas vão pensar que estão vindo assistir uma imitação de Audrey Hepburn’, e isso não vai acontecer”. Seus comentários sobre Hepburn vêm repassados em humildade e admiração: “Ninguém poderia fazê-la [Holly] como Hepburn. Ela interpretou aquele papel à perfeição. Ninguém pode copiar aquilo e eu jamais sequer pensaria em fazer tal coisa”. Anna conclui: “Ela era uma líder mundial em moda e beleza. Eu ficaria parecendo uma cópia mal-feita”.
Parte do elenco de Breakfast, em sentido horário: James Bradshaw (Rusty Trawler), Gwendoline Christie (Mag Wildwood),
Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), o adaptador Samuel Adamson, David Phelan (Sid Arbuck) e Nicholas Goh (Mr. Yunioshi)
Esgotado esse tópico e fazendo questão de não assistir novamente o filme para não se deixar influenciar por Audrey, Anna atirou-se nos ensaios, que incluíam não só o mergulho na profundeza psicológica de Holly, mas aulas de canto, violão, números de dança e toda a imensa estrutura de um espetáculo centralizado nela, e na qual está presente em 99,9% das cenas. Fiel ao livro, o diretor decidiu que Holly seria loira e alternaria o cabelo comprido do começo com o curto e discreto da segunda metade da peça, quando se junta com o brasileiro. Mas tudo seria feito através de perucas, para não prejudicar os compromissos cinematográficos de Anna, até porque muitos deles ocorreram ao mesmo tempo que os ensaios. “É um desafio massivo, massivo”, comentou Anna, “e estou trabalhando uma hora por dia para fortalecer minha voz e alcançar o sotaque correto. Holly é de Tulip, no Texas, mas quando chega a Nova York seu sotaque já se tornou meio-atlântico (“mid-atlantic”, referente às cidades costeiras do leste norte-americano). Junto à Anna estava Joseph Cross, ator jovem com carreira cinematográfica incipiente, no papel do escritor, que na adaptação de Adamson recebeu o nome de William Parsons. O resto do elenco era composto por Dermot Crowley (Joe Bell), James Dreyfus (O. J. Berman), Gwendoline Christie (Mag Wildwood), James Bradshaw (Rusty Trawler), John Ramm (Doc Golightly), Suzanne Bertish (Saphia Spanella), Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), Nicholas Goh (Mr. Yunioshi) e David Phelan (Sid Arbuck). Na figuração estavam também Paul Courtney Hyu, Annie Hemingway, Sam Hoare e Natalie Klamar.
Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), o adaptador Samuel Adamson, David Phelan (Sid Arbuck) e Nicholas Goh (Mr. Yunioshi)
Esgotado esse tópico e fazendo questão de não assistir novamente o filme para não se deixar influenciar por Audrey, Anna atirou-se nos ensaios, que incluíam não só o mergulho na profundeza psicológica de Holly, mas aulas de canto, violão, números de dança e toda a imensa estrutura de um espetáculo centralizado nela, e na qual está presente em 99,9% das cenas. Fiel ao livro, o diretor decidiu que Holly seria loira e alternaria o cabelo comprido do começo com o curto e discreto da segunda metade da peça, quando se junta com o brasileiro. Mas tudo seria feito através de perucas, para não prejudicar os compromissos cinematográficos de Anna, até porque muitos deles ocorreram ao mesmo tempo que os ensaios. “É um desafio massivo, massivo”, comentou Anna, “e estou trabalhando uma hora por dia para fortalecer minha voz e alcançar o sotaque correto. Holly é de Tulip, no Texas, mas quando chega a Nova York seu sotaque já se tornou meio-atlântico (“mid-atlantic”, referente às cidades costeiras do leste norte-americano). Junto à Anna estava Joseph Cross, ator jovem com carreira cinematográfica incipiente, no papel do escritor, que na adaptação de Adamson recebeu o nome de William Parsons. O resto do elenco era composto por Dermot Crowley (Joe Bell), James Dreyfus (O. J. Berman), Gwendoline Christie (Mag Wildwood), James Bradshaw (Rusty Trawler), John Ramm (Doc Golightly), Suzanne Bertish (Saphia Spanella), Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), Nicholas Goh (Mr. Yunioshi) e David Phelan (Sid Arbuck). Na figuração estavam também Paul Courtney Hyu, Annie Hemingway, Sam Hoare e Natalie Klamar.
As pré-estréias no Haymarket começaram no dia 9 de setembro de 2009, um burburinho correu Londres como uma corrente elétrica e na segunda semana o tablóide News of the World (que provavelmente jamais publicara uma notícia sobre teatro) publicou uma reportagem com direito a fotos, revelando que a montagem de Breakfast trazia uma cena de nu frontal com Anna. O furo foi noticiado em todos os jornais, expressões como “theatrical viagra” foram vistas aqui e ali, e a produção da peça começou a confiscar câmeras e celulares na entrada do teatro, apavorada com a possibilidade de se repetir o desastre de The Blue Room, peça de David Hare protagonizada por Nicole Kidman na Broadway, dez anos antes; havia erotismo por todo o espetáculo, e em uma das cenas Nicole ficava nua e o público via sua bunda por alguns segundos. Foi o suficiente para que os jornais em uníssono dissessem coisas como “não estou 100% certo, mas esta pode ser a primeira vez na história da Broadway em que os espectadores pagavam 60 dólares cada para ver a bunda de uma estrela de cinema” e “The Blue Room, uma peça cujo grande atrativo é uma olhada de relance no bumbum nu de Nicole Kidman”.
Nicole Kidman em cena de The Blue Room |
Por sorte, o vazamento das fotos mostrando Anna nua na peça (uma única cena, assim como no livro) não provocou o “efeito The Blue Room”. No dia 29 de setembro, diante de uma casa lotada de amigos, artistas e celebridades, Anna estreou como Holly Golightly dando início a uma temporada de quatro meses, e desencadeando uma verdadeira catarata de elogios e críticas positivas. Kelly Pentland, do site Show and Stay UK admitiu que a experiência era inédita pois não lera o livro de Capote e não vira o filme com Audrey. Segundo ela, “a protagonista Friel teve uma performance impressionante como Golightly. Trazendo o estilo glamouroso da garota despreocupada e charmosa, Friel estava fabulosa. Adicionando um viés picante ao espetáculo, Friel até apareceu nua. Seus doces vocais acompanhados ao violão foram encantadores e entendia-se claramente porquê os homens se jogavam aos seus pés”. Michael Billington, do The Guardian, diz que Anna compõe Holly “com uma graça delicada e charme displicente. Ela dá duro, atua bem e até posa confortavelmente nua em pêlo, em uma espreguiçadeira. É um prazer assistir Friel”.
O adjetivo “elfin”, aliás — relativo a “pequeno e delicado” (como um elfo) ou “mignon” no Brasil — , parecia ser a palavra de ordem para caracterizar a beleza de Anna em Breakfast. Em comentário no qual criticou diversos aspectos do espetáculo, Henry Hitchings, do London Evening Standard diz que “a graça salvadora foi Friel. Brincalhona e cativante, ela lida muito bem com a contingência de ter que se vestir e despir continuamente. Ela traz aos atos mais comezinhos um charme delicado e travesso, e é honestamente poderosa quando o papel requer”. Alice Jones, do The Independent, também diz que Anna, “nossa delicada atriz”, “é uma gamine divinamente embrulhada, como um mimo da Tiffany’s, em um desfile cada vez mais extravagante de vestidos curtos. Ela tem uma presença de palco que enfeitiça, a um tempo perigosamente provocante e infantil”.
Charles Spencer, do The Telegraph, era o mais empolgado de todos. Começa perguntando “como poderia qualquer peça querer se igualar ao texto de Capote ou ao brilho de Hepburn?”, e responde, logo em seguida: “Ainda assim, contrariando as chances, esta provou ser uma noite explosiva”. E prosseguiu:
A performance de Anna Friel como Golightly vai capturar até os corações mais duros. Ela pode não ser tão linda quanto Hepburn, mas alcança maior profundidade dramática, capturando o medo e a solidão que jazem por trás da imagem cintilante de Holly, a mistura fascinante de calor e calculismo em seus relacionamentos, assim como o puro encanto da personagem. E apesar de seu sotaque ir do Texas até o subúrbio de Surrey, até isso parece se encaixar em uma personagem que essencialmente foi inventada por si mesma.
Esta também é a performance mais sexy que já vi num palco desde Nicole Kidman em The Blue Room. Com seu cabelo curto, franca sensualidade e um script que a obriga a passar grande parte da peça só de lingerie, e, em uma cena, sem nada, Friel cria um arrepiante frisson de erotismo.
Como que penitenciando-se pelo elogio anterior, que engrossa o coro da legião de onanistas que cultiva a atriz únicamente por cenas gratuitas de nudez em seus filmes mais esquecíveis, o jornalista retifica:
Mas a sua nudez emocional é ainda mais contagiante, no que ela permite ao público descobrir a grande dor das mágoas e a vulnerabilidade que se esconde por baixo da alegria cada vez mais desesperada de Holly. Não tenho vergonha de dizer que o coração partido de Friel em sua última cena me comoveu às lágrimas.
Anna e Joseph Cross no papel de William "Fred" Parsons, ela e Dermot Crowley, que interpretou o barman Joe Bell e abaixo com o marido Doc Golightly, feito por John Ramm
Mais moderado, Quentin Letts, do Daily Mail, analisa a personalidade de Holly para explicar seu elogio à atriz:
Anna friel está desconcertantemente adorável como Holly Golightly. Digo “desconcertantemente” porque Holly é uma tal cabeça de vento, com seu cérebro de borboleta e cílios. Ela personifica tudo o que não podemos ter, a provocação, a lasca quebradiça que penetra nossos corações. Se fôssemos sensatos, não teríamos nada com essa farsante com tendências criminais. A Srta. Friel, para seu crédito, torna isso impossível. Com suas noções mínimas de francês, despejadas aos sussurros, dando fragilmente de ombros, há um pouco de Audrey Hepburn nesta performance. Almas superficiais vão derivar excitação do fato de que a linda Sra. Friel aparece como veio ao mundo em uma cena, mas o trunfo de sua performance é a de que ela veste Holly com todas as camadas de ficção que a forçam a levar uma vida transitória.
Também houve críticas que não continham apenas elogios. Natasha Tripney, do site Theater Mania, por exemplo, considerou que na peça, Anna tinha “a língua afiada e era astuta, e ainda assim infantil e desavergonhadamente manipuladora. Por vezes ela também é visceralmente vulnerável, despedaçando-se convincentemente quando descobre que seu amado irmão morreu na Europa. Ela certamente é carismática e tem uma encantadora voz para cantar quando se senta em sua janela e dedilha o violão, mas também pode parecer que lhe falta confiança. Na tentativa de humanizar Holly, Friel quase parece se aninhar dentro da personagem”. Já Benedict Nightingale, do The Times, devia estar de particular mau humor na noite em que assistiu o espetáculo, porque não gostou nem um pouco: “A Holly de Anna Friel não tem o carisma de Hepburn ou a qualidade anárquica, selvagem, que levou Capote a compará-la a um pássaro ou animal que não consegue nem encontrar um lar e nem ser totalmente livre”. Dada a paulada inicial, vem um afagozinho para compensar: “Mas Friel tem seus momentos, sobretudo quando está guinchando de dor pela morte de seu irmão soldado”. E mais uma paulada para concluir: “Mas ela não tem a qualidade emocionalmente perigosa, caprichosa, volátil que Holly precisa, então não é uma porta-voz convincente para a liberação sexual e a tolerância, que ela pode ser”.
A crítica em geral foi azeda com o trabalho de Samuel Adamson, que se manteve fiel a Capote mas teria falhado em reproduzir em dramaturgia o que o escritor imortalizou em romance. Ainda assim, sente-se, em várias ocasiões, que essa crítica se deve muito mais a um apego deste ou daquele jornalista pela Holly de Audrey do que propriamente por algum tropeço do adaptador. Na mesma linha, várias críticas foram feitas aos cenários econômicos de Anthony Ward, que consistiam em duas escadas de incêndio que se moviam conforme a mudança de locais, e a mesa e cadeira do bar de Joe Bell. A tônica é a de que não se transmitiu de maneira adequada “o exotismo picante” nova-iorquino dos anos 40, mais uma noção equivocada deixada pelo filme, que valorizou demais a cidade, quando no conto ela é coadjuvante, quase incidental. Joseph Cross não deixou maior impressão mas houve certo consenso de que, mesmo não tendo carisma ou força para contracenar com Anna, ele não chegou a prejudicar a produção. O resto do elenco foi muito elogiado, principalmente o Joe Bell de Dermot Crowley, a Saphia Spanella de Suzanne Bertish e o O. J. Berman de James Dreyfus.
A temporada foi vitoriosa, a produção teve lucro e viagens à Nova York e Tóquio chegaram a ser cogitadas, quando a peça saísse do Haymarket, em 9 de janeiro de 2010. Infelizmente as temporadas internacionais não vingaram, o que não impediu que Anna e o elenco de Breakfast at Tiffany’s vivessem algumas experiências bizarras no velho teatro fundado em 1720 e funcionando exatamente no mesmo prédio desde 1821. E o mais cômico de tudo é a reação de total simplicidade da atriz, com os absurdos ocorrendo no meio do público ou nos bastidores. Em uma das apresentações, durante a cena em que ela está nua e o escritor lhe aplica bronzeador nas costas, um sujeito teve um colapso e caiu duro no meio do público. A peça continuou mas Anna percebeu o que estava acontecendo: “Foi durante a cena de nudez e eu não sabia se tinha feito algo muito errado ou apenas aconteceu do sujeito ter um colapso naquele momento. Me lembro dele sendo carregado para fora em uma maca, o que me distraiu um pouco”. Em outra ocasião Anna estava no meio de uma das três músicas que cantava ao violão quando um sujeito no mezanino do teatro se levantou e, sem tempo de chegar ao banheiro, acabou vomitando sobre vários pobres infelizes que assistiam o espetáculo nas poltronas mais caras, abaixo. “Achei que eram espectadores atrasados que não deveriam ter sido permitidos de entrar”, disse Anna, “mas pelo que se viu, alguém tinha vomitado, no mezanino, em cima de seis pessoas e estavam todos sendo levados para fora, para se limpar”. Anna não saiu da personagem: “Eu continuei cantando mas quase me perdi porque tinha muito barulho vindo das poltronas. Quase, mas fico feliz de ter mantido minha concentração”.
O velho Haymarket, de tantas lembranças
e tantas histórias
A melhor história de todas foi a suspeita do Haymarket ser assombrado por fantasmas do mundo artístico: “Todo mundo fica falando sobre esse fantasma”, contou Anna. “Supostamente, Capote está num canto ou Audrey Hepburn está lá assistindo, mas nunca a vi. Patrick Stewart, que estava antes em Godot, disse que o viu no palco e que ele saiu de uma caixa. Agora eu fico olhando!” Não se pode dizer que as provas da existência de um fantasma no Haymarket fossem conclusivas: “A música no meu camarim aumentou algumas vezes”, disse Anna, “mas acho que é só uma falha elétrica”.
Nossa! que mega post!!! muito bom. primeira vez aqui. bjs!!!
ResponderExcluirQue fôlego! Brilhante. Devo-te ao google,ao pesquisar sobre Leopoldo Fróes,Procópio Ferreira e Paulo Autran.Estás salvo,ao menos nos meus favoritos.Bravo!!!
ResponderExcluirPost maravilhoso, parabéns, super completo!!!
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluiradorei este seu post e achei muito interessante os trechos de críticas que sairam sobre a peça estrelada pela Anna. Estava procurando algo do gênero para escrever a 4a parte do especial sobre bonequinha de luxo no meu blog.
Obrigada pelo trabalho super minucioso que você fez. um abraço
http://breakfastatoliviasa.blogspot.com.br/2012/05/especial-bonequinha-de-luxo-parte-iv.html