segunda-feira, 1 de agosto de 2011

As Eleições Municipais de São Paulo em 1928 e 1936 — Parte 1/2


Antônio da Silva Prado

O 30 de outubro, vivido em São Paulo em 1928, era página inapagável no livro da consciência de qualquer homem de bem. Fôra a subversão total da moralidade pública.
(Paulo Nogueira Filho, 1958)

O Executivo e o Legislativo paulistanos têm uma história no mínimo irregular durante a primeira metade do século XX. A Lei Municipal nº 374, de 29 de novembro de 1898, reorganizou o Poder Executivo e criou o cargo de “Prefeito Municipal”, escolhido pelos vereadores entre os membros da própria Edilidade, com mandato de um ano. O primeiro foi Antônio da Silva Prado, reeleito pela Câmara nove vezes. Em 1907, a Lei Estadual nº 1.103 instituiu eleições diretas para a prefeitura, aumentando o mandato para três anos, o que o igualava ao mandato dos vereadores. O eleito foi o próprio Silva Prado, que permaneceu na prefeitura até janeiro de 1911. Em outubro de 1910, entretanto, baixou-se a Lei Estadual nº 1.211, que restabeleceu as eleições indiretas e diminuiu novamente para um único ano o mandato do prefeito. Os vereadores elegeram Raymundo da Silva Duprat — dito “Barão de Duprat”, graças ao título que recebeu do Papa Pio X em 1907 — reeleito sucessivamente até janeiro de 1914, quando foi sucedido por Washington Luís. Só que o Paulista de Macaé não foi eleito para o costumeiro mandato anual porque em dezembro de 1913 veio uma nova Lei Estadual, de nº 1.392, que reinstituiu o triênio para o mandato do prefeito.

Provavelmente exausto com esse vai-e-vem de leis, Washington aproveitou que seu amigo Altino Arantes tomara posse no governo de São Paulo em maio de 1916, e insistiu com ele para que as eleições executivas municipais voltassem a ser diretas. Altino concordou e a Lei Estadual nº 1.501, de 30 de setembro de 1916 pôs fim nas mudanças sucessivas, instituindo eleições diretas para a prefeitura, com mandato de três anos. Outra sugestão de Washington acatada por Altino na mesma lei foi a de que não houvesse mais necessidade do candidato a prefeito ser vereador, podendo disputar a eleição qualquer um que morasse em São Paulo há mais de um ano, sendo eleitor inscrito. No pleito de outubro do mesmo ano, para o triênio seguinte, Washington foi o vencedor. Era candidato único. Exerceu o cargo até 1919, quando se tornou governador. Seu vice, Álvaro Gomes da Rocha Azevedo — mais conhecido hoje como “Ministro Rocha Azevedo”, por seu cargo no Tribunal de Contas do Estado — completou os últimos quatro meses do mandato.

Altino Arantes e Washington Luís
Apesar do voto popular, a máquina perrepista continuou trabalhando sem parar, e durante a década de 20, São Paulo teve apenas dois prefeitos: Firmiano de Moraes Pinto, eleito em 1919 e 1922, e José Pires do Rio, eleito em 1925 e 1928. Com o golpe de 1930, São Paulo despencou da previsível gangorra perrepista para um grotesco festival de nulidades promovido pelo governo ditatorial, com raríssimas exceções. Em 32 anos, o município tivera cinco prefeitos e uma rápida interinidade; já nos primeiros quatro anos da ditadura getulista, a capital do Estado teve que engolir nada menos do que 11 prefeitos diferentes. A palhaçada foi interrompida com a nomeação de Fábio da Silva Prado — sobrinho do primeiro prefeito de São Paulo — em setembro de 1934, e as coisas voltaram aos eixos com o seu sucessor, Francisco Prestes Maia, nomeado em maio de 38, para um mandato que só terminaria sete anos depois, com a queda de Vargas. São Paulo veria eleições diretas para prefeito somente em 1953, 25 anos depois da eleição de Pires do Rio. O eleito, depois desse imenso hiato: o mato-grossense Jânio da Silva Quadros.

A Câmara, por sua vez, percorreu doze triênios amorfos de eterna e fraudulenta predominância do PRP desde sua reinstalação em 1892, em plena República, até o pleito de outubro de 1928. As eleições a bico de pena, mortos votando e urnas trocadas à luz do dia ocupavam todo o cenário eleitoral, mas concentravam-se geralmente nas eleições presidenciais, como as que elegeram Hermes, Epitácio e Arthur Bernardes. Nas três eleições, no entanto, tivemos elementos oriundos das mesmas hostes partidárias ou políticas se confrontando. Com o advento de uma dissidência do partido governista, açulada pelas revoltas de 22 e 24, e que acabou transformando-se no Partido Democrático, fundado em 1926, novas lideranças estaduais e municipais começaram a surgir, novas mentalidades, novos objetivos, representando pedra cada vez maior no sapato perrepista e transferindo definitivamente a fraude, da metrópole para o campanário. Fechadas todas as Casas Legislativas com a ascensão de Vargas e os golpistas da Aliança Liberal, a Câmara teve um curto interregno democrático de março de 36 até a decretação do Estado Novo, em novembro de 37, e só retornaria à legalidade exatos dez anos depois, no pleito de novembro de 1947, que foi, aliás, o ponto de partida da carreira política de nenhum outro senão o mesmo mato-grossense, Jânio da Silva Quadros.

Mas este modesto artigo, não fala de Jânio e sim dessas duas eleições municipais — a de 1928 e a de 1936 — hoje esquecidas, obumbradas pelas ocorrências anteriores e posteriores. Um personagem, contudo, participa como protagonista nos dois pleitos: o advogado e parlamentar José Adriano Marrey Junior.

 
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Marrey Jr., pouco depois de formado
Marrey era mineiro de Itamarandiba e nasceu em 7 de agosto de 1885. Seu pai foi chefe do Partido Liberal Mineiro e mais tarde presidente da Câmara Municipal de Teóphilo Ottoni por muitos anos. Curiosamente, foi para não imiscuir-se em política, por saber o quanto seu pai sofrera nos sucessivos cargos que exerceu, que Marrey saiu de Minas, ainda garoto. Não adiantou. Em São Paulo militou no jornalismo acadêmico, formou-se com louvor pelo Largo São Francisco na turma de 1906, e não sendo nomeado promotor de nenhuma comarca pela inimizade que lhe votava Washington Luís, então Secretário de Justiça e Segurança Pública do governo de Jorge Tibiriçá — segundo diria Marrey, em tom jocoso, no futuro — dedicou-se exclusivamente à advocacia. E foi advogando a anulação da eleição de um Juiz de Paz no distrito paulistano de Santa Efigênia que acabou eleito para esse mesmo cargo, no início da década de 10. Em 1913 veio a primeira eleição para vereador. Três anos depois se reelegeu.

Marrey em 1919
Escorado na fama que granjeou pelo denodado trabalho na edilidade, e prestigiado pelo chefe perrepista Olavo Egydio, Marrey se elegeu deputado estadual pelo 1º Distrito, em 1919 (naquele tempo o Estado era dividido eleitoralmente em 10 distritos). Permaneceu na Assembléia Legislativa por três triênios, mas no fim do segundo cansou-se do domínio absolutista do PRP e começou a articular a fundação de um novo partido, que fizesse oposição àquele situacionismo eterno. A idéia foi de encontro às aspirações de outros políticos, como o velho ex-prefeito de São Paulo, Antônio Prado, e o professor Waldemar Martins Ferreira, da Faculdade de Direito. Juntando os três grupos, que incluíam ex-monarquistas como Francisco Morato e Luiz Augusto de Queiroz Aranha, ex-perrepistas como Prado, Marrey e Paulo de Moraes Barros, advogados como Prudente de Moraes Netto e Cardozo de Mello Netto, e latifundiários como Paulo Nogueira Filho, entre outros, surgiu o Partido Democrático, fundado no dia 24 de fevereiro de 1926 na Chácara do Carvalho, vivenda de Antônio Prado, que mantinha o vigor e o idealismo para orientar aquele corajoso grupo de resistentes.

Caricatura de Antônio Prado


Em termos programáticos, o PD não representava nenhum tipo de revolução ideológica. Pugnava apenas “pela reforma eleitoral, no sentido de garantir a liberdade de voto, reclamando para isso o voto secreto e medidas asseguradoras do alistamento, do escrutínio, da apuração e do reconhecimento” e demais reivindicações pontuais relacionadas à indústria e à lavoura (sobretudo o café) que vinham de encontro àquilo que o PRP já preconizara desde sempre. A diferença — e razão de ser do PD e de qualquer oposição — é que o Brasil vivia uma mentira democrática com o PRP. Havia uma alteração saudável de governantes mas os candidatos vitoriosos raramente contavam com o sufrágio ou o apoio legítimo do povo, e no Congresso as questões se resolviam pelo simples acordo entre a maioria, que era indefectivelmente perrepista. Outra proposição do PD era lutar “pela independência econômica da magistratura nacional e pelo estabelecimento de uma organização judiciária em que a nomeação dos juizes e a composição dos tribunais independa, completamente de outro qualquer poder político”, o que, como sempre, em tese é belíssimo, mas provoca risos hoje, quando lembramos do que aconteceu com a justiça nos tenebrosos 15 anos passados sob a escuridão getulista.

A magnífica propaganda colorida
do Partido Democrático, desenhada
por Belmonte

O primeiro teste eleitoral do PD aconteceu na eleição para o Congresso, que se realizaria exatamente um ano depois, em 24 de fevereiro de 1927. Modestamente, o partido apresentou quatro candidatos a deputado federal: Marrey, Morato, Moraes Barros e Luiz Aranha, e um candidato ao senado: Luiz Barbosa da Gama Cerqueira. Eis o que conta Paulo Nogueira Filho sobre aquela eleição: “Em meio da peleja evidenciara-se que o alvo mais visado pelo adversário era Marrey Junior. A princípio, a atrabiliária direção do perrepismo paulistano não acreditara na eficiência da nossa incipiente organização. Quando, porém, lhe chegaram aos ouvidos os ecos dos sucessos que os nossos tribunos alcançavam na praça pública e o efeito que os primeiros cartazes coloridos de propaganda política produziram, resolveu reagir à sua moda. Dentre as providências que os chefes ordenaram a seus sequazes, figurou a de impedir a afixação de nossos cartazes. Não conheciam nossos adversários o ânimo e a decisão que nos levavam à luta”. (Ideais e Lutas de um Burguês Progressista, José Olympio, 1965). Marrey não era o alvo principal à toa; Antônio Prado e Moraes Barros foram perrepistas a vida inteira mas o primeiro estava com 86 anos e o segundo com 61, portanto em fim de carreira. Marrey tinha 42 anos, estava no auge de seu prestígio popular e de seu relevo eleitoral, e aquilo indignava o PRP, partido onde o mineiro nasceu, politicamente. Mas a retaliação não ficou somente na proibição dos cartazes; no Ipiranga houve um confronto armado que deixou o saldo de um morto e vários feridos.


Propagandas coloridas do Partido Democrático


Realmente, considerando que era uma agremiação nova, o PD exibia estrutura partidária invejável. No dia do pleito o partido contava com um numeroso grupo de fiscais, mesários, olheiros e inclusive uma força bruta para o caso da “capangada” governista partir para a violência, o que era perfeitamente comum nas eleições da época. Não foi necessário; embora houvesse a costumeira fraude, o PRP foi pego de surpresa e não conseguiu evitar a brilhante eleição de três, dos quatro candidatos a federal: Marrey, Francisco Morato e Paulo de Moraes Barros. O trio — sobretudo Marrey, pela oratória privilegiada e explosiva — passou a verberar sem descanso, na tribuna do Palácio Tiradentes, os desmandos da política perrepista. O PD se nacionalizou, recebeu milhares de adesões e virou trincheira de todas as oposições isoladas pelo país. Em 27 de abril morreu o governador paulista Carlos de Campos, cerca de um ano antes do término de seu mandato. Eleições foram convocadas para junho do mesmo ano e durante alguns dias, a empolgação contagiou os Democráticos. Porém, em convenção, o partido decidiu não concorrer, pela simples razão de que Júlio Prestes já havia sido escolhido por Washington Luís e o PD ainda não tinha dinheiro suficiente em caixa para bancar uma eleição estadual perdida. (Mesmo com essa resolução, o Democrático Domingos Rubião Meira recebeu alguns votos no dia da eleição, que vinham de eleitores que se recusavam a sufragar Júlio Prestes e não desejavam se abster de votar).

Zoroastro Gouvêia
Em 24 de fevereiro de 1928 houve novo teste, desta vez para a renovação da Assembléia Legislativa (que ainda era bicameral, consistido em câmara dos deputados e senado estadual), e o PD se sentiu confiante para submeter uma chapa mais numerosa de candidatos. O PRP, por sua vez, continuava desarvorado com o crescimento vertiginoso do partido oposicionista. Desferido o pleito, uma grande vitória: passando novamente por cima do aparato fraudulento do PRP, os Democráticos elegeram seis deputados estaduais, o que equivalia a 1/10 do número de parlamentares. Eram eles: Luiz Barbosa da Gama Cerqueira e Antônio Feliciano pelo 1º distrito, Luiz Aranha pelo 6º, Vicente Dias Pinheiro pelo 7º, Pedro Krahenbul pelo 8º e Zoroastro de Gouvêia pelo 10º. Podia parecer pouco, mas na verdade tratava-se de triunfo inaudito para um país que eleitoralmente vivia há décadas o regime do cabresto, de norte a sul. Como se não bastasse, um dos braços do PCB, o Bloco Operário Camponês absteve-se de apresentar candidatos próprios e hipotecou apoio aos Democráticos naquela eleição. O PRP acordou. Subestimara o poder dos Democráticos a nível federal e estadual. Era preciso contê-los no município, e como isso não era possível numa disputa justa e limpa, métodos bem mais agressivos seriam adotados.

O prefeito e os vereadores eleitos em outubro de 1925 estavam chegando ao final daquele triênio. Novas eleições para a prefeitura e para a 13ª legislatura da Câmara ocorreriam no dia 30 de outubro de 1928. Animados com o êxito da refrega estadual de fevereiro, os Democráticos articularam suas chapas municipais e consultaram suas bases sobre o candidato ideal para o Executivo paulistano. Advogado competente e abnegado, edil combativo e honesto, tribuno de brilho e eloqüência invejáveis tanto na Assembléia Legislativa quanto na Câmara Federal, Marrey foi o escolhido. Dez foram os candidatos do partido à Edilidade: Prudente de Moraes Netto, Plínio de Queiroz, Bertho Condé, Manfredo Antônio da Costa, Nicolau de Moraes Barros, Carlos de Moraes Andrade, Fábio Camargo Aranha, Waldemar Ferreira, Henrique de Sousa Queiroz e Fonseca Telles.

Os perrepistas apresentaram — praxe da época — 16 candidatos, o número exato de vereadores que compunham a Câmara: Ulysses de Lima Coutinho, João Baptista Leme do Prado, Luiz Antônio Pereira da Fonseca, Antônio Simões Carvalho, Diógenes Ribeiro de Lima, Synésio Rocha, Nestor Alberto de Macedo, Manoel Pereira Netto, Nestor de Barros, Joaquim Álvaro Pereira Leite, Almeirindo Meyer Gonçalves, Goffredo da Silva Telles, Austin de Almeida Nobre, José Vieira Couto Magalhães, Daniel Cardoso e Alexandre Albuquerque, alguns estreando na política, outros pleiteando a reeleição e outros, ainda, voltando à Câmara depois de alguns anos.

José Pires do Rio candidatou-se à reeleição. Esse paulista de Guaratinguetá, nascido em 26 de novembro de 1880, é um exemplo, entre tantos naquela conturbada contextura política, de como a batalha pela perpetuação no poder era capaz de prejudicar a atuação administrativa de um excelente profissional como ele. Pires se formou em Engenharia e em Farmácia em Ouro Preto, trabalhou na obra dos portos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, lecionou hidráulica na Escola Politécnica da Bahia e foi inspetor federal nas estradas de ferro Madeira-Mamoré e Belém-Bragança (DHBB, volume V. FGV, 2001). Pela operosidade e pelos bons serviços demonstrados nessas múltiplas atividades, foi nomeado ministro de Viação e Obras Públicas do governo de Epitácio, em 1919. Destacou-se no ministério por obras voltadas a conter a seca no nordeste, construiu a ponte sobre o rio Paraná e promoveu uma expansão inédita nos Correios e Telégrafos do Estado de São Paulo. No último ano daquele quatriênio presidencial, Pires ainda exerceu interinamente uma segunda pasta, a da Agricultura, Indústria e Comércio. Findo o mandato de Epitácio, Pires voltou para São Paulo e se candidatou a deputado federal, cargo que exerceu até outubro de 1925, quando candidatou-se a prefeito.

José Pires do Rio
No Executivo paulistano fez um ótimo trabalho, construiu o Mercado Municipal, “as pontes artísticas do rio Tamanduateí”, a Ladeira do Carmo e assim por diante. Foi Pires do Rio que deu o pontapé inicial no processo de modernização da Capital, contratando o engenheiro e arquiteto amparense Prestes Maia para que este elaborasse o célebre “Plano de Avenidas”, peça urbanística que recebeu elogios do engenheiro francês Alfred Agaché, teve aclamação internacional no IV Congresso Pan Americano de Arquitetura e seria, anos mais tarde, uma espécie de manual de todos os prefeitos de São Paulo. Pires era um grande administrador e nada havia que pudesse desaboná-lo no aspecto ético e moral. Infelizmente, porém, ele era peça da engrenagem perrepista, delegado de Júlio Prestes no município e sua permanência na prefeitura significava a continuidade de um sistema de fraudes e mentiras eleitorais que o PD pretendia aniquilar. Escoimando-se o viés político, a disputa entre Marrey e Pires do Rio era benéfica e saudável, porque representava o embate entre dois políticos da melhor qualidade.


Em meio à apresentação das chapas do PRP e do PD, salta aos olhos o destaque dado pela Folha da Manhã ao candidato único do Bloco Operário Camponês:

Everardo Dias

Entre os partidos que concorrem às eleições de hoje, um há, novo e vibrante, o Bloco Operário Camponês, ramificado pelo Rio, Santos e Pernambuco. (...) Entre os muitos candidatos à Vereança da Câmara paulista, um apareceu, apresentado pelo Bloco Operário Camponês, que vale sozinho por um programa: Everardo Dias.

O nome deste candidato soa, nos meios operários de São Paulo, como o de um clarim que nunca se calou, fosse formidável a refrega ou tenacíssima a pugna. Pela pena, no livro, no jornal; pela palavra, nos comícios e nas confabulações; pelo exemplo, nas truculências da polícia, nas prisões do país, nos desterros até, sempre encarnou a figura mais ardorosa dos ideais socialistas no Brasil. Apesar de brasileiro, teve que abandonar forçosamente a pátria. Apesar de cidadão, na plena função dos direitos que as leis garantem a todos, nunca pôde manifestar livremente as suas idéias, sem que logo os cárceres não se abrissem para tragá-lo.

O Bloco Operário Camponês, apresentando-o como o seu candidato, nada mais faz do que dar um testemunho público de aprovação aos seus atos, à sua vida toda, elegendo-o para ser, na Câmara Municipal, a voz que falará pelas suas aspirações. (...) Dadas as grandes probabilidades de que dispõe aqui e em Santos, é de esperar-se que o nome do Sr. Everardo Dias seja consagrado nas urnas, hoje, ele que sempre foi a grande vítima de quantos quiseram espezinhar os ideais do mundo operário paulista. (30/10/1928)

Clero, burguesia e militarismo, os inimigos do proletário, em "A Plebe", 1927

Para ser exato, Everardo não era brasileiro. Ele nasceu na Espanha, em 1885, e chegou ao Brasil dois anos depois. O resto da apresentação é a mais absoluta expressão da verdade. Com 17 anos Everardo já era redator de O Livre Pensador, jornal anti-clerical. Nos anos seguintes expôs com brilho e coragem suas idéias anarquistas em jornais do operariado, ou de orientação anarquista como A Plebe e Spartacus. Por culpa desses artigos foi preso em outubro de 1920, depois de uma malfadada tentativa de greve geral em Santos. Passou o inferno. Ficou dois dias nu em uma solitária imunda e minúscula, ao fim dos quais o levaram para um pátio e lhe aplicaram 25 chicotadas nas costas. De Santos foi levado ao Rio e, aproveitando-se de que ele era espanhol, e outros anarquistas também vinham de lá, de Portugal e demais países europeus, a Polícia os meteu no porão de um navio e tentou deportá-los, não fazendo qualquer diferença o fato de Everardo ser casado com uma brasileira e pai de seis filhas também nascidas em solo nacional. Um habeas-corpus foi impetrado a favor dele, e denegado dias depois. O navio aportou na Ilha da Madeira, em Lisboa, em Vigo, Le Havre e Rotterdan, onde vários dos anarquistas deportados foram sendo deixados. Everardo não chegou a sair do navio e começou a pensar no que seria o inverno europeu lá dentro, com as vestimentas exíguas que lhe deram. Pouco depois, em dezembro, veio a notícia de que o governo revertera sua deportação e em janeiro de 1921 ele voltou ao Brasil. Nem por isso — ou provavelmente por causa disso — sua vida deixou de ser uma luta constante.

Arthur Bernardes

Prosseguiu na mesma lida, foi aos pouco abandonando a anarquia e abraçando o comunismo (uma vez que o Partido Socialista ainda era inócuo e incipiente), e em fins de 1923 auxiliou, com comunicados clandestinos, os partidários de Isidoro Dias Lopes, que já começavam a articular o movimento revolucionário que seria deflagrado em julho do ano seguinte. Com a derrota do levante, Everardo se escondeu no Rio, mas não se furtou de dar sua contribuição à insurreição naval que vinha sendo planejada por lá. Depois de imprimir manifestos favoráveis a esse movimento, foi novamente preso e mandado com sete outros para o presídio da Ilha Rasa. Vivia-se o governo de terror de Arthur Bernardes  e meses depois, sem ter sido sequer interrogado, o removeram para outro presídio, na Ilha das Flores. Já estava há mais de um ano e meio preso quando o transferiram, junto a extenso grupo de comunistas e anarquistas, para um inferno chamado “Centro Agrícola Clevelândia”, no meio do Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa. Não há muito que dizer sobre esse lugar, a não ser que era um campo de concentração com o acréscimo de insetos e doenças tropicais. Calcula-se que centenas de presos — políticos e não-políticos — tenham morrido na Clevelândia durante o governo de Arthur Bernardes. Everardo e os prisioneiros anarquistas que sobreviveram à Clevelândia só foram soltos nos primeiros meses de 1927, quando Washington Luís ocupou a curul presidencial no lugar de Bernardes, que passou a ser chamado, desde então, pelos comunistas e anarquistas, de “o tarado de Viçosa”.

Propagandado BOC carioca em 1928, que elegeu Minervino de Oliveira para a Câmara do Distrito Federal

Era nessas condições, depois de passar anos em “lôbregos presídios” e nas “mais infectas bastilhas” que Everardo virou o candidato único do BOC. Sabia não ter chance de vitória, mas marcava presença. Por outro lado, Washington Luís não parecia terrivelmente disposto a soltar as rédeas da repressão aos comunistas. Em primeiro lugar não quis anistiar os presos políticos das revoltas militares ocorridas nos últimos anos. Em segundo lugar, sancionou a chamada “Lei Celerada”, do deputado perrepista Aníbal de Toledo (com a discordância manifesta de Marrey, no Congresso), que além de tornar inafiançáveis crimes como proibir por meio de constrangimentos ou ameaças os trabalhadores que não desejavam aderir a uma greve (este, o item mais equilibrado da lei), ainda concedia ao governo o direito de fechar quaisquer instituições — desde jornais até partidos, passando por sindicatos, centros e entidades — que fossem considerados subversivos ou atentatórios à segurança pública. O PCB entrou em uma fase de “semi-legalidade” e não perdeu tempo em apodar o Paulista de Macaé como alguém “mil vezes pior” do que Arthur Bernardes porque, com efeito, a lei perpetuava aquilo que o “tarado de Viçosa” só conseguira com o estado permanente de sítio. (Dulles, John Foster. Anarquistas e Comunistas no Brasil. Nova Fronteira, 1977)

Bernardes e Washington Luís

Quando se fala, hoje em dia, no “voto de cabresto”, em “eleições a bico de pena”, em “urnas roubadas à luz do dia”, fica a sensação de um passado romântico e ingênuo, apaziguado pela distância, no tempo. Imaginamos imediatamente aqueles bandidos de terno, gravata e chapéu, posando para fotos ao lado dos policiais, como era a praxe, antigamente. A verdade não era nem um pouco romântica ou ingênua. O interior de São Paulo em nada diferia do pior sertão nordestino, em termos de coronelato e das iniqüidades cometidas pelos chefes políticos locais. Bandos de sicários ficavam armados nas ruas e estradas para impedir a tiros a aproximação de eleitores da oposição. Ou então coagiam esses mesmos eleitores ao “voto descoberto”, obrigando-os a votar nos senhores feudais de cada região. E se nada disso funcionasse, mapas, votos e urnas eram alterados sem qualquer cerimônia, finda a votação. Havia mortes em dia de eleição, seqüestros, intimidações, revistas vexaminosas, prisões, invasões noturnas a domicílios particulares, espancamentos, e tudo com a chancela do Poder Público.

Francisco Morato
Em outubro de 1928 a fraude ocupou grande parte do interior paulista, mas basta dar um exemplo significativo: Francisco Morato e Paulo de Moraes Barros não eram apenas deputados federais; guardavam a coincidência de serem, também, ambos, piracicabanos. Sabendo que o delegado de Piracicaba era um canalha a soldo do PRP, os dois passaram a semana anterior à eleição tratando de destacar um delegado auxiliar da Força Pública da Capital para garantir a lisura do pleito em Piracicaba. Conseguiram o delegado Laudelino de Abreu, que chegou à cidade no dia 25. Satisfeitos, Morato e Barros emitiram o seguinte comunicado ao eleitorado citadino: “Com a chegada da nova autoridade policial, Dr. Laudelino de Abreu, voltou a tranqüilidade à população piracicabana. As eleições correrão dentro da ordem e da lei”. Eis que, como por encanto, no dia 28 Laudelino foi convocado imediatamente a voltar para a Capital. O PRP local aproveitou para emitir um boletim próprio avisando que Abreu não era mais delegado auxiliar e que Piracicaba permanecia sob “ativa vigilância” do mesmo delegado acanalhado de sempre. Furiosos, Morato e Barros passaram o dia 28 tentando falar com Júlio Prestes, para exigir a volta de Abreu. Receberam, por fim, o comunicado lacônico de que o governador não pretendia providenciar a volta de Abreu à Piracicaba.

No dia 29, véspera da eleição, os dois deputados federais, inteiramente impotentes diante daquele absurdo, não tiveram mais o que fazer a não ser emitir novo comunicado ao povo piracicabano, exortando-os a não participar da eleição, porque “estamos absolutamente sem garantias para exercer amanhã o direito do voto”, e “se levássemos o cumprimento do nosso dever às últimas conseqüências, teríamos amanhã uma hecatombe de sangue”. No fim do comunicado, assinado pelos dois deputados federais e mais sete membros do diretório estadual do PD, o dedo é apontado sem ambages para aquele que os Democráticos julgavam culpado: “As violências continuam. É preciso que o Brasil inteiro tenha conhecimento desse grande crime contra o regime democrático. O primeiro responsável é o Dr. Júlio Prestes, que com estas façanhas pretende preparar sua ascensão à presidência da República”. (Diário da Noite, 30/10/28, 1ª edição). Detalhe: o chefe político perrepista de Piracicaba era ninguém menos do que o ínclito João Sampaio, genro de Prudente de Moraes, respeitado por gregos e troianos, de quem se esperava atitude diversa daquela que caracterizava seu partido, e que, com sua omissão, provocou decepção profunda nos Democráticos.

Júlio Prestes
Na Capital as patifarias variavam, de bairro para bairro. Em 28, especificamente, o Bom Retiro deu um espetáculo de vergonha e cabresto. Dois chefes perrepistas — Múcio Costa e um tal “Major Molinaro” — disputavam o eleitorado das redondezas e naquele pleito Molinaro levou a melhor. Chegou antes com sua camarilha e se instalou no colégio Marechal Deodoro, local escolhido para a votação. Proibiu qualquer pessoa de entrar na escola antes do início dos trabalhos. Com essa ordem, acabaram barrados na entrada deputados federais como Batista Luzardo e fiscais Democráticos como Paulo Nogueira. Quando soube que Sylvio de Campos, também deputado federal (do PRP, enquanto Luzardo formava com os Libertadores de Assis Brasil, atualmente coligados ao PD), estava dentro da escola, o gaúcho mandou-lhe um recado avisando que fôra barrado. A resposta de Campos (que aparentemente muito pouco guardava da honradez de seu pai, Bernardino) foi seca: ele que esperasse até que as portas fossem abertas para a votação. Luzardo só conseguiu entrar porque por ali passava o “Delegado de Segurança Social”, Ibrahim Nobre, que lhe permitiu a entrada. Nobre, por sinal, passou o dia fazendo vista grossa aos absurdos cometidos pelo Major Molinaro e em nada se assemelhava ao que mais tarde se tornou: o destemido paulistano e grande orador da Revolução de 32.

Batista Luzardo

A presença de fiscais como Luzardo e Nogueira Filho era uma formalidade completamente inútil. No fim do dia, terminada a votação, a imprensa toda viu e documentou Molinaro distribuindo dinheiro à farta aos motoristas que levariam os eleitores do PRP de volta às suas casas. Somente naquele bairro havia mais de 50 automóveis para essa tarefa, e alguns desses eleitores podiam até ser legítimos, mas em sua maioria eram os chamados “fósforos”, ou seja, pessoas arrebanhadas em qualquer lugar, de qualquer procedência, inclusive estrangeiros, proibidos de votar, e que depositavam suas cédulas nas urnas sem apresentar “nem o mais desvalioso documento”. A fraude era total. Dentro das salas, mais uma vez sob o nariz de dezenas de repórteres, mesários perrepistas abriram as urnas e começaram a rasgar as cédulas, uma por uma. No fim daquele ritual surrealista, o livro de atas era embrulhado e levado pelo presidente. Em outras seções as cédulas eram rasgadas e o resultado escrito em uma lousa. Números curiosos, Pires do Rio, 1.973 votos, Marrey, 16... e assim por diante. (Diário da Noite, 30/10/28, 2ª edição) Interessante é que a imprensa — com exceção do perrepista Correio Paulistano — descreveu esse esbulho com os mais ínfimos detalhes. As manchetes falavam abertamente da desonestidade na apuração, “a votação correu bem, mas na hora da apuração... o PRP acabou de enlamear-se nas mais indecentes fraudes de que há memória em São Paulo”, que “nunca houve fraudes tamanhas e tão cínicas”, que em São Paulo “os escândalos eleitorais são a norma constante” e daí para baixo. Era uma qualidade paradoxal de Washington Luís. A fraude poderia “campear infrene”, como diria Jânio, mas a imprensa nunca seria proibida de noticiá-la, como de fato, nunca foi, até o último dia em que esteve no Catete o Paulista de Macaé.


Diógenes de Lima e Goffredo da Silva Telles
O resultado foi previsível. Pires do Rio teve 25.700 votos, contra míseros 8.500 de Marrey, e foi reconduzido à prefeitura para seu segundo mandato. Dos 16 candidatos a vereador do PRP, TODOS foram eleitos. Aos democráticos restava continuar reclamando e a Câmara Municipal, que iniciou seus trabalhos em 5 de janeiro de 29, foi obrigada a analisar, já na segunda sessão preparatória, em 14 de janeiro, a contestação impetrada por Bertho Condé, Waldemar Ferreira, Carlos de Moraes Andrade e Manfredo Costa. Os democráticos mostravam à saciedade absoluta o roubo de que haviam sido vítimas, com o acréscimo de 700 a 800 votos em urnas de seções onde só votavam 80 ou 100 pessoas, em favor dos republicanos João Baptista Leme do Prado, Synésio Rocha, Daniel Cardoso e Alexandre de Albuquerque. Luiz Fonseca, presidente da Câmara, submeteu a contestação a duas comissões de verificação, o que até daria a impressão de que ele realmente desejava apurar alguma coisa, se a Câmara não fosse toda perrepista, estando Synésio Rocha na primeira comissão e Leme do Prado na segunda.


Waldemar Ferreira e Manfredo Costa

Lapidar foi o comentário de Francisco Morato no plenário da Câmara Federal, dias depois: “Mente-se com o pensamento, com as ações e com a própria mentira. Comparável à selvageria de que foi vítima o Estado de São Paulo, só há uma coisa, a desfaçatez com que se vem negar aquilo que se passou”. Estava adivinhando o que vinha a seguir. Alexandre Marcondes — “que vivia num pileque deslascado”, nas palavras do saudoso Assumpção Ladeira — encarregou-se de ser o porta-voz dos espíritos de porco no Congresso, e declarou que “o recente declínio do prestígio do PD e sua derrota, em São Paulo, foram decorrências de vários e graves erros políticos”. Para Marcondes, a não-participação do PD no pleito, em Piracicaba, “se destinava apenas a ocultar a derrota”. Na Câmara Municipal as justificativas são nojentas. Comentando as contestações Democráticas, o recém-eleito advogado e jornalista Couto de Magalhães declarou que “se realizava, mais uma vez, a velha fábula de Fedro, porque, apesar do alarido da imprensa do Partido Democrático, ela não passava, em última análise, de um camundongo. Camundongo, realmente, Sr. Presidente, porque a contestação se limita a meras conjecturas, a fatos de somenos importância, peculiares a todos os pleitos animados”. Mais à frente declara, impávido, que “este Estado continua a ser, incontestavelmente, o leader da Federação, pelo respeito escrupuloso dos princípios cardeais da democracia, pelo respeito do direito do voto, e, em suma, pelo respeito de todas as liberdades”.


É de causar espécie que os historiadores não dêem a importância devida ao pleito municipal ocorrido em 30 de outubro de 1928, porque me parece um momento definitivo para o regime. A sorte da República Velha foi selada nesse dia. Fraudes ocorreram desde sempre e a oposição não via nenhum político do PRP com bons olhos, mas Washington Luís era infinitamente mais bem conceituado e respeitado do que Arthur Bernardes e se houve uma última oportunidade da situação demonstrar boa vontade para com a oposição, teria sido essa eleição. A oportunidade, entretanto, foi grosseiramente desperdiçada pelo presidente, e principalmente pelo seu aliado paulista e virtual candidato ao Catete, Júlio Prestes. Na minha concepção, quando se iniciam as démarches para a deposição de Washington Luís após a morte de João Pessôa, se em algum momento os Democráticos foram atormentados por um questionamento moral a respeito da atitude que pretendiam tomar — ou seja, dar à Aliança Liberal o apoio indispensável de São Paulo ao golpe — bastava rememorar esse dia sinistro, que Paulo Nogueira Filho com muita razão batizou de “Bacanal da Fraude”. Nogueira, em seu extenso e extraordinário livro de memórias, foi o único a analisar com a profundidade necessária os acontecimentos daquele dia 30 de outubro e seus desdobramentos:

O que tornou mais monstruoso o conjunto de crimes cometidos nesse dia foi a escandalosa premeditação, o despudor com que foi planificado e a insensibilidade moral com que o executaram. Nem o mais treinado batalhão policial poderia ter agido com maior disciplina quanto a legião de perrepistas, fraudadores eleitorais, o fizeram nesse dia. Foi um assombro!

Paulo Nogueira Filho
Sobre Júlio Prestes, filho do velho Fernando Prestes, que já fôra governador de São Paulo no tempo de Prudente de Moraes, o mesmo comentário que se fez sempre sobre 90% dos grandes políticos da República Velha: moralmente honesto, mas sedento de poder:

O presidente [estadual] Júlio Prestes era um moço inteligente, de relativa cultura e de certo magnetismo pessoal. Nunca fôra negocista, nem “tocaieiro”, ao que se sabia. Boêmio, de coração bem formado, expandia-se tão-só em rodas de amigos seguros. Sua ambição, os vendavais do destino se incumbiram de aguçá-la. Biológica e socialmente, era oligarca e autocrata, com as maiores aptidões para traduzir em atos a vontade da ala ortodoxa, misoneísta e reacionária de sua grei. Com dificuldade, em certas circunstâncias punha a máscara de um liberal. Justiça lhe seja feita, não sabia ser hipócrita. Homem de seu meio, soube-lhe ser fiel.

A conclusão é perfeita:

A jornada de 30 de outubro, se foi um opróbrio para o povo de São Paulo, constituiu um mal irreparável na carreira política do Sr. Júlio Prestes e exerceu influência decisiva em seu destino e no de sua grei. (...) Diante dos excessos ocorridos, o mal estava feito: a conivência do Presidente de São Paulo com os fraudadores tornara-se de tal forma evidente que não havia mais negar os fatos ou escondê-los à vista do Brasil inteiro.

A derrota de Marrey no pleito municipal foi só o começo. Os Democráticos perderam o apoio e a orientação do velho Antônio Prado, que morreu no ano seguinte, aos 89 anos. Para piorar, em 1º de março de 1930, além de escolher entre Júlio Prestes e Getúlio Vargas, o povo também iria votar para vice-presidente, a renovação da Câmara Federal e 1/3 do senado. Marrey se candidatou  à  reeleição de seu mandato como deputado federal, e apesar de maciça votação, teve seus números fraudados e não se reelegeu.

Houve um arremedo de vingança nisso tudo: o segundo mandato de Pires do Rio e a mamata dos vereadores duraram pouco. Prefeito e Câmara usufruíram de seus cargos por 22 meses, ao fim dos quais foram cassados pelo golpe de 30. Seria preciso uma insurreição dos paulistas, as promulgações de uma nova Constituição Federal em 16 de julho de 1934 e de uma nova Constituição Estadual em 9 de julho de 1935 para que eleições legislativas municipais fossem novamente convocadas.

Marrey foi um revolucionário de primeira hora e participou intensamente das articulações da Aliança Liberal. Vitorioso o golpe de outubro, condenou com veemência a preterição de Francisco Morato na escolha do primeiro interventor paulista, mas permaneceu fiel ao movimento discricionário. Em sua mente, como na mente de tantos outros, o país caminhava para a redemocratização, livre da orgia perrepista. Mal sabia ele que Getúlio e os aliancistas não pretendiam acabar com a fraude, e sim apenas trocá-la de lado. O mineiro acabou sendo o grande artífice na malfadada triangulação com Getúlio e Pedro de Toledo, quando se discutiu a reformulação do secretariado estadual, última tentativa de apaziguamento de São Paulo, antes da revolução constitucionalista. Lutou sozinho contra a formação da Frente Única, que considerou manobra oportunista do PRP para ressurgir triunfante de seu aniquilamento, e foi medularmente contrário à idéia do levante armado. Deu plena ciência disso a Francisco Morato, com quem manteve correspondência constante depois dos horrendos acontecimentos de 23 e 24 de maio de 32. Não encontrando apoio na maioria de seus próceres, resignou-se e escreveu junto a Vicente Rao, Henrique Bayma, Vicente Pinheiro e Cardozo de Mello Netto o anteprojeto do programa do PD que seria implantado caso o governo de Getúlio fosse deposto pelo movimento constitucionalista, documento assinado em 10 de junho. Com a deflagração do conflito, em 9 de julho, manteve-se eqüidistante, amargurado com o que sabia ser fadado ao fracasso. Instado a manifestar-se, algumas vezes, limitou-se a pronunciamentos patrióticos, exaltando a juventude paulista e o futuro.

Em 17 de outubro, o Partido Democrático se reuniu pela primeira vez em São Paulo depois de findo o combate. Marrey não compareceu mas enviou uma longa mensagem com sua interpretação de tudo que ocorrera naquele ano, lida por José Augusto Costa. Na essência do documento, Marrey debitou o malogro das negociações entre Getúlio e Pedro de Toledo à ingerência descabida do PRP, que a seu ver, era o partido que representava tudo contra o qual o PD se insurgira em 30, e que devia aceitar, quando muito, uma participação minoritária no secretariado paulista. Sem declinar nomes, deixou patente sua insatisfação e sua incompatibilidade com o procedimento do grupo de Júlio Mesquita Filho, que advogava sem rebuços a solução pelas armas, o que Marrey julgava um absurdo total e um holocausto inútil de centenas de paulistas em uma batalha perdida desde o início. Lembrou que a eleição para a constituinte já estava marcada, que Getúlio finalmente dava sinais de cooperação diante da revolta de São Paulo, e disse com todas as letras: “Sabia, igualmente, que a revolução, em verdade, não tinha outra causa que não a aspiração de mando dos que a promoveram”.

Em 19 de outubro, o texto estampou quase duas páginas inteiras do Diário da Noite. Foi a gota d’água. No dia seguinte Marrey deixou o partido, levando consigo um pequeno contingente de democráticos. O gaúcho Waldomiro Lima, interventor da vez, começou a temer pelo seu cargo, pois Marrey era Democrático e revolucionário desde o princípio, e seu estremecimento com as hostes constitucionalistas o transformava em candidato perfeito de Getúlio à interventoria paulista, naquele momento conturbado. Waldomiro aproveitou uma onda ocasional de prisões políticas no Rio e em São Paulo e prendeu Marrey em dezembro de 32, garantindo mais dez meses como interventor. A prisão durou pouco, mas Marrey permaneceu fora do radar político de 33 a 35.

As eleições para a Constituinte estavam marcadas para maio de 1933. No início do ano, visando representação sólida e coesa durante a elaboração da nova Carta, Democráticos e perrepistas entraram em acordo e lançaram uma Chapa Única, congregando gregos e troianos para concorrer ao pleito de 3 de maio.

O plano parecia salutar; em tese as mágoas eram postas de lado pelo bem de São Paulo, o Brasil estava indo às urnas livre da fraude pela primeira vez em décadas, participavam das eleições múltiplos partidos, como o comunista, o socialista e o integralista, mas o resultado da eleição mostrou que longe de fortalecer o PD, a Revolução de 32 desgastou o partido. Vargas chegara ao poder com a ajuda dos Democráticos há três longos anos, impingindo humilhações aos paulistas e não dando qualquer sinal de que pretendia fazer o país retornar à normalidade democrática. A própria permanência, no comando de São Paulo, de um milico velho e incompetente como Waldomiro Lima — parente de Vargas — que só fez se desentender com todas as lideranças paulistas em sua interminável interventoria, era a demonstração clara e inconcussa disso. A situação anterior podia não primar pela verdade eleitoral, mas também não era uma ditadura inflexível que aboletava estranhos, parentes e apaniguados nos governos estaduais. Conclusão: o povo brasileiro se deu conta de que substituíra um regime contaminado por outro irremediavelmente podre, e começou a ter saudades do primeiro.

Em sentido horário, Carlos Moraes Andrade, Cardozo de Mello Netto, Antônio Carlos de Abreu Sodré e Henrique Bayma 

A apuração dos votos deixou isso meridianamente claro. Dos 17 deputados constituintes eleitos pela Chapa Única, somente TRÊS eram Democráticos legítimos, e sequer foram os mais votados: Carlos de Moraes Andrade, Cardozo de Mello Netto e Antônio Carlos de Abreu Sodré. Henrique Bayma acabou sendo o quarto, mas era suplente e só assomou à Câmara porque Jorge Americano — perrepista — renunciou pouco depois de iniciados os trabalhos. Mesmo descontando Jorge Americano, o PRP levou oito deputados para a Câmara: José Carlos de Macedo Soares, Abelardo Vergueiro César, Rafael de Abreu Sampaio Vidal, Cincinato Braga, Mário Whately, Manoel Hipólito do Rego, José de Alcântara Machado d’Oliveira e Oscar Rodrigues Alves.

Carlota Pereira de Queiroz
Vale um registro especial a eleição da paulistana Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher a pisar num parlamento brasileiro. Ela nasceu em 1892, trabalhou desde cedo como inspetora de diversos educandários, começou a cursar medicina na Faculdade de São Paulo e no início dos anos 20 transferiu o curso para o Rio. Lá, teve aulas com Miguel Couto e colou grau em 1926, apresentando a tese Estudos sobre o Câncer. Fundou e dirigiu clínicas pediátricas em São Paulo e Rio, e em 1929 foi mandada para a Europa pelo governo paulista, a fim de estudar a Dietética Infantil. Esteve na Suíça, França e Alemanha fazendo cursos de aperfeiçoamento e trabalhando com médicos célebres como Widal, Abrami, Aubertin, Sergent, Roussy, Umber, Pende, Artmann e outros. Respeitadíssima, teve atuação notável durante a Revolução Constitucionalista, dirigindo órgãos como a “Oficina de Costura da Cruz Vermelha” e o “Departamento de Assistência aos Feridos”. Em novembro de 32 fez parte da comissão que foi ao Hospital Central do Exército, no Rio, para buscar os últimos prisioneiros constitucionalistas que ainda estavam internados. Foi a única representante das mulheres na Constituinte de 1934. (Campos, Calazans de (org.). Candidatos do Partido Constitucionalista. PC, 1934)

A foto clássica de Carlota, de branco, no meio dos homens, na Constituinte de 34. A seu lado esquerdo está Antônio Carlos de Abreu Sodré, em sua frente está Cardozo de Mello Netto e ao
lado esquerdo de Cardozo está o fantasmagórico Macedo Soares (foto do Blog Tataguaçú)

Berta Lutz em 1925
A bióloga e advogada — e também paulistana — Berta Lutz (filha de Adolfo Lutz) esteve no Congresso naquela legislatura, mas concorreu apenas para a Câmara Ordinária em outubro de 1934, pelo Partido Autonomista do Distrito Federal. Ficou com a primeira suplência, entretanto, e só foi diplomada graças à morte do titular, Cândido Pessôa.

Quanto ao restante da Chapa Única, contava com alguns participantes ativos da Revolução de 32, o que não quer dizer que tivessem qualquer coisa a ver com o PD, já que, àquela altura, a restauração da democracia e a expulsão dos prepostos de Vargas eram anelo tanto de Democráticos quanto de perrepistas. Antônio Barros Penteado e José Ulpiano de Sousa estavam estreando na política e não possuíam qualquer passado partidário. Plínio Corrêia de Oliveira — o deputado mais votado de São Paulo — flertara inicialmente com o recém-nascido Integralismo de Plínio Salgado e acabou eleito pelo seu sólido prestígio junto à Liga Eleitoral Católica.

E por fim, José de Almeida Camargo — filho do ex-interventor Laudo Camargo — é outro que só chegou ao Palácio Tiradentes porque Valdomiro Silveira — apartidário — foi guindado à Secretaria de Educação de Armando de Salles, razão pela qual abdicou ao cargo.

A coisa ia mais longe: Zoroastro Gouvêia, eleito deputado estadual pelo PD em fevereiro de 1928, rompeu com o partido tempos depois e migrou para o Partido Socialista Brasileiro — nascido de inspiração tenentista — pelo qual se candidatou e venceu. Não venceu sozinho, aliás; foi para o Rio com mais dois deputados socialistas, Frederico de Lacerda Werneck e Guaracy Silveira. Em apartes ou pronunciamentos, Zoroastro não tinha o menor pejo de referir-se a seus ex-companheiros de partido como “os plutocratas da Chapa Única”. Para completar a representação de São Paulo naquela Constituinte, havia dois deputados de um efêmero “Partido da Lavoura”, arremedo de agremiação fundado por Waldomiro de Lima com o fito de criar sustentação parlamentar para sua interventoria: Lino de Moraes Leme (mais tarde professor de Jânio no Largo São Francisco) e Antônio Covello.

Uma das maluquices de Waldomiro de Lima para popularizar seu nome e permanecer no cargo de Interventor foi a remodelação do Diário Oficial, transformando-o em Jornal do Estado, nos moldes de um jornal comercial normal, com a diferença de que tecia loas a ele próprio todos os dias. Quando Armando de Salles tomou posse, acabou com a farra e reinstituiu o velho Diário Oficial
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Bibliografia:

  • Annaes da Câmara Municipal de São Paulo. 1929 (1º anno da 13ª legislatura) organizados pelos tachygraphos Gustavo Milliet e Ruy Bloem. São Paulo, Typ. E Papelaria Formosa, Gianotti & Losasso.
  • ABREU, Alzira Alves de & outros. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2ª ed. 2001.
  • CALIMAN, Auro Augusto. Legislativo Paulista – Parlamentares 1835-1998. São Paulo, Imprensa Oficial, 1998.
  • CAMPOS, Calazans de (org.). Candidatos do Partido Constitucionalista. São Paulo, PC, 1934.
  • DULLES, John W. F. Anarquistas e Comunistas no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977.
  • NOGUEIRA FILHO, Paulo. Ideais e Lutas de um Burguês Progressista — Vol. 1. Rio de Janeiro, 2ª ed., José Olympio, 1965.
  • SILVA, Hélio. 1933: A Crise do Tenentismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
  • _____. 1934: A Constituinte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.
  • Folha da Manhã
  • Diário da Noite

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