terça-feira, 2 de novembro de 2010

Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri - Parte 2


Estatuinha (Se a mão livre do negro) (Edu Lobo/Guarnieri)

1 – A versão de Edu Lobo vem do LP 5 na Bossa - Nara Leão, Edu Lobo e Tamba Trio, de 1965. Dorme-se.

2 – A versão de Elis vem do LP Elis, de 1966. Provável arranjo de Luiz Mocarzel. É de longe a melhor versão da música.

3 – Esta versão de Estatuinha vem do mesmo Reencontro - Silvinha Telles, Edu Lobo, Tamba Trio e Quinteto Villalobos, de 1966. Ele emenda a canção com Zambi, parceria sua com Vinícius. É melhor do que o soporífero Estatuinha do LP com Nara, mas Edu não é exatamente um showman.

Letra:

Se a mão livre do negro tocar na argila
o que é que vai nascer?

Vai nascer pote pra gente beber
nasce panela pra gente comer
nasce vasilha, nasce parede
nasce estatuinha bonita de se ver

Se a mão livre do negro tocar na onça
o que é que vai nascer?

Vai nascer pele pra cobrir nossas vergonhas
nasce tapete pra cobrir o nosso chão
nasce caminha pra se ter nossa Ialê
e atabaque pra se ter onde bater

Se a mão livre do negro tocar na palmeira
o que é que vai nascer?

Nasce choupana pra gente morar
e nascem as redes pra gente se embalar
nascem as esteiras pra gente deitar
nascem os abanos pra gente se abanar

oi que é pra gente abanar
pra gente abanar (bis).


Embolada das Dádivas da Natureza (Edu Lobo/Guarnieri)

1 – A primeira gravação de Edu Lobo para a Embolada está no LP Edu Canta Zumbi. Além do arranjo do grande Guerra-Peixe ter falhado em transmitir a linda simplicidade da melodia, Edu dividia os vocais com um rapaz do grupo vocal 004 (isso mesmo, "004", pra competir com o MPB4) que não conseguia dizer uma única frase sem respirar ruidosamente como um aspirador, o que estragou a música. Talvez por isso Edu tenha resolvido regravar a música exatamente com o mesmo arranjo dois anos depois, no disco Edu, de 1967, versão que apresento aqui. Com Gracinha Leporace e o mesmo sujeito do 004. E o resultado é a mesma chatice.

Mas eu sou suspeitíssimo para falar porque sou fã fervoroso e confesso da versão da Embolada que está na trilha de Arena Conta Zumbi.

Letra:

De toda forma e qualidade tem,
oi tem pindoba, embiriba e sapucaia
tem titara, catulé, ouricurí
tem sucupira, sapucais, putumujú
teu pau-de-santo, tem pau d'arco, tem tatajubá
sapucarana, canzenzé, maçaranduba
tem louro paraíba e tem pininga (x2)

Pare meu irmão
de falar em tanta mata
com tanta planta eu não sei o que fazer
mas diga lá se tem bicho pra comer

De toda forma e qualidade tem,
onça pintada, sussuarana e maracajá
E tem guará, jaguatirica e guaxinim
e tem tatu, tatu-peba, tatu-bola
tem preguiça, tem quatí, tamanduá
E coelho que tem, tem, tem
queixada que tem, tem, tem
caititú oi tem também
oi diz que tem, tem
E tem cotia oi que tem, tem
E paca, será que tem?
oi tem preá, e quandá será que tem
oi diz que tem, tem

Pare meu irmão
de falar em tanta fera
com tanto bicho eu não sei o que fazer
ah, um bichinho pra comer
eu só quisera
com tanto assim eles vão é me comer

Mas tem os peixes que ainda não falei
de toda forma e qualidade tem.
oi tem traíra, tem cará e jundiá
e tem caborge, tem piaba e carapó
e pitú e caranguejo e aruá (x2)

Mas também tem cobra
que é um nunca se acabar
tem jacaré, cobra-rainha e tem muçu
tem caninana, tem jibóia e jericoá
tem jararaca, cascavel, surucucú
e papa-ovo e cobra verde assim não dá

Mas tem sabiá, tem canário e curió
tem passarinho tão bom de se olhar
papa-capim, cardeal e arumará
e tem xexéu, guriatã e tem brejá
E se quiser comer galinha
tem de todas pra fartar
tem pomba de tres côcos e tem pato mergulhão
aracuâ, jaçanã e tem carão
juriti e cardigueira e paturí

Mas e nessa abençoada região
será que tem o que faz falta na verdade

O que é, o que é, o que é?

Me diga meu irmão
se nessa grande mata
é possível, é possível ter mulher

Aí está uma coisa que não (x2)

Pois sendo assim eu prefiro o cativeiro (x2)

Meu irmão tá com toda razão! (x2)


Pra você que chora - Canção para Gongoba (Edu/Guarnieri)

1 – A atriz Odette Lara gravou essa música para o LP Contrastes, lançado pela Elenco em 1966. Ela não cantava mal. E temos que admitir que foi bem corajosa em cantar uma música difícil como Gongoba acompanhada apenas de um violão.

2 – Olívia Hime gravou a música em seu segundo LP, Segredo do meu coração, de 1982. O arranjo orquestral é bonito e a gravação conta com a participação de Edu Lobo.

Na minha opinião, ainda não houve uma gravação à altura da beleza de Gongoba.

Letra:

Pra você que chora
E sofre há tanto tempo, amor
Vou contar baixinho
Um sonho que nasce de nós dois
Um sonho lindo de nós dois
Você vai ver

Ah, você vai ver
Surgir de nós
Um rei que vai
Ser bem mais que nós
Ser o que eu não pude ser

Enxugue os olhos
Não chore mais, meu triste amor
Pois que desse abraço
É um rei que vai nascer
É um rei, que outra vida vai trazer
Você vai ver

Ah, você vai ver
Surgir de nós
Um rei que vai
Ser bem mais que nós
Ser o que eu não pude ser


Sinherê (Edu Lobo/Guarnieri)

1 – O Embalo Trio (Douglas, Roberto Mancilha, Everson) parece ter estacionado em seu primeiro LP, Embalo Trio. Sua versão de Sinherê é esquecível.

2 – A versão de Bethania é boa e vem do LP Edu e Bethania, de 1966.

3 – Milton Nascimento deve ter ficado tão impressionado com a música que criou sua própria (e esquisitíssima) versão de Sinherê, com acompanhamento de figuras como Wagner Tiso, Toninho Horta, etc. Chamou-a de Leila - Venha ser feliz e a incluiu no LP Minas, de 1975.

Letra:

Venha,
venha ser feliz, ah venha
largue seu senhor e venha
venha que o amor só nasce aqui
venha que essa terra é nossa
e o trabalho é bom, sinherê!

Tenha paz no coração, sorria enfim
venha que essa terra é santa
e melhor não há, sinherê!

Aruanda pode ser a paz
mas não é pra já
paz na terra é um nunca se acabar
do amor que a gente quer, ah venha
vem meu bom irmão, vem ser feliz
Ganga Zumba é moço Ganga é menino rei, sinherê!
Ganga Zumba é moço Ganga é menino rei, sinherê!


Tempo de Guerra (Edu Lobo/Guarnieri)

1 – A versão é de Maria Bethania. Lançada em compacto simples junto com Viramundo, de Gilberto Gil, as músicas provavelmente fizeram parte dos espetáculos Arena Canta Bahia e Tempo de Guerra, estreados respectivamente em setembro e outubro de 1965, no encalço do sucesso de Opinião e Arena Conta Zumbi, e estrelados por Caetano, Gal (ainda chamada Maria da Graça), Gil, Bethania, Tom Zé e Jards Macalé, entre outros. A versão é muito boa, mas ainda fico com a de Guarnieri, na trilha de Arena Conta Zumbi. A letra está na íntegra, como foi cantada em Zumbi.

2 – O mesmo Embalo Trio. Esta até que é melhorzinha.

Letra:

Eu vivo num tempo de guerra
Eu vivo num tempo sem sol
Só quem não sabe das coisa
É um homem capaz de rir

Ah, triste tempo presente
em que falar de amor, de flor,
é esquecer que tanta gente
está sofrendo tanta dor

Todo mundo diz
que eu devo comer e beber.
Mas como é que eu posso comer?
Mas como é que eu posso beber?
Se eu sei que eu tô tirando
o que eu vou comer e beber
de um um irmão que tá com fome,
de um irmão que tá com sede.
De um irmão.

Mas mesmo assim,
eu como e bebo.
Mas mesmo assim,
essa é a verdade!

Dizem crenças antigas
que viver não é lutar.
Que sábio é o que consegue
ao mal com o bem pagar.
Quem esquece a própria vontade
quem aceita não ter o seu desejo
é tido por todos um sábio
é isso que eu sempre vejo
é a isso que eu digo NÃO!

Eu sei que é preciso vencer
eu sei que é preciso lutar
eu sei que épreciso morrer
eu sei que é preciso matar!

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
sem sol, sem sol, tem dó
sem sol, sem sol, tem dó

Eu vivi na cidade no tempo da desordem
Eu vivi no meio da gente minha no tempo da revolta
Assim vivi os tempo que me deram pra viver

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol

E você que me prossegue
e vai ver feliz a terra,
lembre bem do nosso tempo
desse tempo que é de guerra

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol

Veja bem que preparando
o caminho da amizade
não podemos ser amigos ao mal
ao mal vamos dar maldade!

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol

Se você chegar a ver
essa terra da amizade
onde o homem ajuda o homem
pense em nós só com bondade!

onde o homem ajuda o homem
pense em nós só com bondade!

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol

Essa terra eu não vou ver!


Lá vem o bloco (Carlos Lyra/Guarnieri)

Lyra compôs esta música e pediu a atriz Vera Gertel (sua então namorada) para entregá-la a Guarnieri, que colocou a letra. A música concorreu no II Festival de MPB da Record, em 1966, na bela (e tonitruante) interpretação da grande Leny Eversong (1920/1984), mas perdeu para A Banda de Chico Buarque e Disparada, de Théo de Barros e Vandré, que empataram em 1º lugar. Lá vem o Bloco acabou não se classificando entre as cinco primeiras que, segundo o Dicionário Cravo Albin da MPB foram De amor ou paz (2º lugar, de Luís Carlos Paraná e Adauto Santos, cantada por Elza Soares), Canção para Maria (3º lugar, de Paulinho da Viola e Capinan, também cantada por Jair Rodrigues), Canção de Não Cantar (4º lugar, de Sérgio Bittencourt, cantada pelo MPB4) e Ensaio Geral (5º lugar, de Gilberto Gil, cantada por Elis).

Lyra aparentemente a renega, hoje em dia. Segundo a atual empresária do compositor, “o Carlos estava morando em Nova York. A ex-namorada dele (Vera) deu essa música para o Guarnieri fazer a letra para participarem de um festival. O Carlos não gosta de festival e também não aprovou a letra. Por isso ele não considera essa parceria. Se você procurar no site dele, não vai achar”. Já Vanya Sant’Anna, esposa de Guarnieri, tem recordação bem diferente: “Na minha lembrança era ele (Lyra) que queria participar do festival. A música ficou entre as finalistas e na final coincidiu do Vianinha e do filho Vinicius que era enteado do Lyra – que ainda estava casado com a Vera Gertel – estarem em São Paulo e assistimos todos juntos na nossa casa, torcendo muito por causa da grana. Estava o Torquato Neto também. Acho a música e letra muito ruins. Mas é só esta a minha lembrança”. Ainda mais esclarecedor é o texto de Mateus Augusto Rubim - que desmente basicamente tudo o que disse a empresária de Lyra - encontrado no excelente blog sobre Leny Eversong:

Tudo começou quando Leny, em janeiro de 1966 (...) fora convidada por Elis Regina e Jair Rodrigues para participar do programa "Fino da Bossa" que ambos comandavam. (...) E Leny fez grande sucesso no programa. Tanto fez que foi lá pela segunda vez em maio de 1966, e quem estava lá eram: Carlos Lyra, Tom Jobim, Nara Leão e Edu Lobo. Leny cantou Arrastão, Mal-Me-Quer, esta junto com Nara e Aleluia, esta, logo depois de ser interpretada por Leny, Carlos Lyra lhe atirou uma música, dele e de Gianfrancesco Guarnieri, que havia pouco tempo lançada ali mesmo no "Fino da Bossa". Carlinhos Lyra começou a cantarolar e a tocar a música ao violão, com os versos "Moça, abre a janela, lá vem o bloco... Gente cantando alegre, sem ser feliz..." e Elis o acompanhava cantarolando junto e Leny também. E assim Leny descobriu Lá vem o Bloco. (...) Na terceira vez que foi lá, em agosto, Leny cantou Lá vem o Bloco junto com Elis e também cantou Canto de Ossanha. Mas, ninguém sabia que Leny iria arriscar essa música e inscrevê-la no II Festival da Record, que foi um sucesso. E assim ela o fez. Chamou Carlinhos Lyra e anunciou para a imprensa: Iria sim defender Lá vem o Bloco no II Festival da Record.

Letra:

Moça, abre a janela
Lá vem o Bloco
Gente cantando alegre
sem ser feliz

Porque é preciso cantar
quando o que resta é cantar
Moça, abre a janela
Lá vem o bloco

Gente, quanta gente
a querer se esquecer
de que o dia nada lhe traz
senão um dia de tristeza
e nada mais

Querer o mundo
só pra ter
um mundo seu para querer
e não viver só por viver

Moça viu da janela
passar o bloco
Gente cantando alegre
sem ser feliz

Porque é preciso cantar
cantando é possível sonhar
só o luar na janela,
mais um no bloco.


Espanto (Théo de Barros/Guarna)

O competentíssimo Théo de Barros é carioca, contemporâneo e colega de grandes músicos como Hermeto Pascoal e César Camargo Mariano. Ao contrário de Arena Conta Zumbi, que teve somente Edu Lobo como compositor, o Arena Conta Tiradentes teve quatro: Caetano, Gil, Sidney Miller e Théo de Barros. Ele vinha de compor com Geraldo Vandré a célebre Disparada e em Tiradentes, de 1967, ele compôs Espanto, com Guarna. A letra é engajadíssima e tivesse sido lançada um ano depois seria censurada com certeza. Misturando subversão com um patriotismo meio ufano (muito apropriado para a época e para o tema da peça), Guarnieri põe lado a lado movimentos heróicos como Palmares, movimentos republicanos e abolicionistas como Alfaiates, com outros de ideologia duvidosa (ou inexistente) como a Balaiada maranhense de 1838. Como propaganda subversiva, entretanto, é uma pérola.

1 – Maria Odete começou sua carreira apadrinhada por Caetano Veloso, nos festivais da Record e em 67 estava casada com Théo. Sua versão – constante de um compacto simples de 67 que trazia Espanto no lado A e João e Maria, de Vandré e Hilton Acioly no lado B – é contundente, visceral, e tem o acompanhamento do Trio 3-D. Maria Odete é uma grande cantora. É pena que esteja esquecida, atualmente.

2 – A versão de Théo só foi gravada em 1981, em seu primeiro disco, intitulado sem muita originalidade de Primeiro Disco. É uma música linda e a versão de Théo agrada bastante. O que eu não consigo entender é o porque do arranjo ter sido feito à moda andina, com charangas e kenas. Quando a ouço não penso em Tiradentes e a Inconfidência Mineira, mas em índios de poncho na cordilheira.

Letra:

Espanto que espanta a gente
tanta gente a se espantar
que o povo tem sete fôlegos
e mais sete tem pra dar

quanto mais cai mais levanta
mil vezes já foi ao chão
De pé!
Mil vezes já foi ao chão
povo levanta na hora da decisão

Espanto que espanta a gente
tanta gente a se espantar

não é de hoje que esse povo
vem dando demonstração

Alfaiates na Bahia
Balaios no Maranhão
Cabanada no Pará
Palmares no sertão

Não só contra os de fora
foi o povo justiceiro
contra a fome e a miséria
levantou-se o garimpeiro
contra os fortes desta terra
levantou-se o conselheiro

De pé!
Contra toda a tirania
sempre de pé está o povo brasileiro


Memórias de Marta Saré (Edu Lobo/Guarnieri)

Marília e Edu
Não sei quem veio antes, a peça ou a música. Só sei que o IV Festival de MPB da Record foi em 1968 e a peça em 69. Talvez as composições já estivessem em preparo e Edu aproveitou para inscrevê-la no festival. Não há palavras para descrever o absurdo de uma obra-prima como Memórias de Marta Saré ficar em segundo lugar, atrás de uma bobagem como São São Paulo meu amor, de Tom Zé. Na votação do júri popular quem venceu foi Bemvinda, de Chico Buarque, melhorzinha do que a composição de Tom Zé, mas ainda assim, intensamente inferior a Marta Saré, que abocanhou o segundo lugar em ambas as votações.

1 - Versão oficial de Edu Lobo e Marília Medalha incluída no LP duplo do Festival da Record em 68, e no ano seguinte no LP Marília Medalha. O arranjo é do tropicalista Rogério Duprat, arranjador de todo o LP de Marília. Boa, embora no início de sua carreira Edu tivesse, de vez em quando, o vezo de cantar com uma voz cavernosa e impostada que em nada auxilia a interpretação.

2 - A versão de Elis vem do LP Elis, como e porque, de 1969. Infelizmente, por melhor que fossem os arranjos de Duprat e os vocais de Edu e Marília, Elis Regina é Elis Regina e sua versão de Marta Saré, com o estupendo e moderníssimo arranjo Roberto Menescal para a orquestração de Erlon Chaves, passa como um trator sobre a versão oficial.

3 – A versão instrumental do Zimbo Trio vem do LP Elizeth e Zimbo Trio balançam a Sucata, gravado ao vivo em 69. Linda, mas eu lamento profundamente que Elizeth não a tenha cantado. Seria muito bom poder ouvi-la interpretar essa grande canção de Edu e Guarnieri.

4 – Menescal (arranjo) e Erlon Chaves (orquestração) foram os responsáveis pela magnífica versão de Elis Regina para Marta Saré, que ela gravou em 69. Não é coincidência, portanto, que exatamente no mesmo ano Menescal tenha incluído a versão instrumental dessa mesma música, com o mesmo arranjo – só que sem a orquestração de Erlon, o que fez a música perder uma de suas pernas – em seu Roberto Menescal e seu conjunto. Muito boa, mas quem quiser se arrepiar, mesmo, escute Elis.

5 – O pernambucano Eduardo Conde (1946/2003) ficou famoso por ser o Jesus Cristo da montagem brasileira de Jesus Cristo Superstar e por novelas que fez nos anos seguintes. Começou como cantor, entretanto, descoberto por Beth Carvalho e em 1969 lançou um interessante LP de estréia intitulado Minha Chegada. Sua versão mistura Memórias de Marta Saré e Marta e Romão, como se fossem uma única composição. Muito bonito, ele tinha uma bela voz, embora eu considere Marta e Romão uma jóia que não deve ser maculada com misturas de qualquer tipo. Eduardo morreu jovem, infelizmente, aos 56 anos, vítima de câncer no pulmão.

6 – Assim como seu xará Paul Winter, o californiano e também saxofonista Paul Desmond (1924/1977) tinha grande afinidade com a música brasileira. Para gravar seu LP From the hot afternoon, lançado em 1969, ele chamou alguns músicos brasileiros, entre eles, Edu Lobo, para o violão, e Wanda Sá para os vocais. Em Memórias de Marta Saré os dois cantam, reprisando o tradicional dueto com Marília Medalha, só que desta vez em inglês, na versão traduzida pela cantora Lani Hall, que a batizou de Crystal Illusions. Acho fraca. Edu não empolga, Wanda não empolga, o inglês é castigado, e aquele chocalhinho que acompanha a música inteira é de doer.

7 – Edu regravou a versão inglesa no LP Sérgio Mendes presents Lobo, de 1970. Vide comentário anterior.

8 – Aqui temos aquilo que as versões de Paul Desmond e do próprio Sérgio Mendes deveriam ter sido. O LP Foursider, de 1972, é uma espécie de coletânea dos trabalhos de Mendes nos Estados Unidos, de 66 a 72. Ele já havia gravado Crystal Illusions com Edu pouco antes, mas esta versão, em que Sérgio assume os vocais (acompanhado de uma cantora que eu não pude apurar quem é – pode ser Wanda Sá, Lani Hall ou outra – e quem souber, por favor, diga) é uma maravilha! Acredito que seja a melhor das versões de Sérgio para as músicas de Edu e Guarna.

9 – Na época casado com a cantora Wanda Sá, Edu revisitou Marta Saré dividindo os vocais com a esposa, em arranjo diferente, para o LP Camaleão, de 1978. O resultado é excelente. Quem faz côro é o MPB4 e o Quarteto em Cy.

10 – Ana Leuzinger e Luiz Avellar foram escalados por Almir Chediak para cantar Marta Saré no Songbook de Edu, de 1995. Acho bem ruinzinha.

Letra:

A casa lá na fazenda
A lua clareando a porta
Deixando um brilho claro
Nas pedras dos degraus
Cristal de lua

Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro... (x2)

O rosário obrigatório
O jantar, lá na cozinha
Todo dia à mesma hora
As histórias de Dorinha

Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro

A lanterna azul partida
A dor, a palmatória, a raiva
A cantiga mais sentida
Um galope de cavalo
Moço Severino

Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro (x2)

Bate forte o coração
Dor no peito magoado
O sorriso mais sem jeito
Do primeiro namorado

Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré


Na Feira de Santarém (Edu Lobo/Guarnieri)

Da trilha da peça Memórias de Marta Saré, incluída no LP de Edu Lobo, Cantiga de Longe, de 1970. A música toda – que conta com a participação de Cybele Freire e Regina Werneck – é muito boa, mas o início é fantástico. A letra é mais uma maravilha de Guarnieri.

Letra:

Se troca, se vende
quem é que vai comprar
Se troca, se vende
quem é que vai levar

Aqui se compra, troca e vende e ninguém dá
marapuã e moçambiques em colar
angú, fubá, cajú, dendê, maracujá
faca de ponta se é de briga ou de enfeitar

Pano-da-Costa pra vender
pra sinhá lá vem ela, vem comprar
tem tanto enfeite pra se ver
sem achar a quem possa enfeitar
tanta moça namorando querendo, sem nada tocar
sonhando com a festa em outro lugar
Onde é?
Onde é que tá?

Olha a zoada, que zoeira
camará zoá
vem pra dentro dessa feira
camará zoê


Marta e Romão (Edu Lobo/Guarna)

1 – Versão de Marília Medalha, com participação de Edu. Do LP Marília Medalha, de 68, com arranjos de Rogério Duprat.

2 – No mesmo LP em que Paul Desmond toca Memórias de Marta Saré com Edu e Wanda Sá, ele apresenta esta versão instrumental de Marta e Romão. É bem melhor. Versão linda, que valorizou orquestra e composição. Mas eu sou um fã confesso da música cantada pelo próprio Edu, que é a próxima.

3 – Versão do próprio Edu, incluída no LP de Edu Lobo Cantiga de Longe, de 1970. Música maravilhosa e rendição igualmente inspirada.

Letra:

Roda mundo ê, á
Roda mundo ê, ô

Marta Saré sorria
era um sorriso só
sorria, era um sorriso
Saré sorria
era um sorriso só
sorria, era um sorriso


E cada dia passando
cada vez mais demorando
os encontros reencontrando
Marta Saré e Romão

Marta Saré sorria
era um sorriso só
sorria, era um sorriso
Saré sorria
era um sorriso só
sorria, era um sorriso


Em cada beijo deixando
um novo motivo de encontro
dois em mil se transformando
Marta Saré e Romão

Roda mundo ê, á
Roda mundo ê, ô


Cinco Crianças (Edu Lobo/Guarnieri)

Da trilha de Memórias de Marta Saré, que Edu incluiu no LP Limite das Águas, de 1976. Me parece uma composição menor do espetáculo.

Letra:

Cinco crianças sem dono
Querendo enxergar na escuridão
Eá, eô!
Cinco com medo de tudo
No meio do mundo irmão com irmão
Eá, eô!

Mãos dadas na mesma sorte
Mãos dadas com pedras na mão
Mãos dadas lutando com a morte
Mãos dadas com pedras na mão

Há lugar no céu sereno
Há medo no coração
Cinco crianças sem dono
Susurrando uma canção.


Segue Coração (Edu Lobo/Guarnieri)

1 – Da trilha de Memórias de Marta Saré, que Edu incluiu no LP Limite das Águas, de 1976. Uma bela composição, embora não esteja entre as maiores de Edu e seja um lado B da peça, junto a Cinco Crianças.

2 – Vou resumir o carma que foi conseguir esta versão raríssima de Segue Coração. Pesquisando para o primeiro Cancioneiro, descobri no cliquemusic.com.br um tal Laços Concerto Show – Luiz Eça, Cláudia Versiani e Marcos Paulo, de 1976, trazendo Segue Coração, que jamais imaginei ter sido regravada por quem quer que fosse. Vasculhando os mais obscuros sites estrangeiros que vendem LPs brasileiros, descobri a capa, que traz Eça, Versiani e Marcos Paulo semi-nus (naquele estilo meio hippie dos anos 70), sendo que o tal Marcos Paulo é ninguém menos do que o ator Marcos Paulo, das novelas da Globo. Dei ciência a Zeca Louro da existência deste LP e a necessidade de encontrá-lo, e uns dois anos depois o mistério foi solucionado, quando ele recebeu o disco de presente. Trata-se de um show gravado ao vivo, chamado Laços Concerto, que traz Eça (piano) e Cláudia (voz) como intérpretes principais, Marcos Paulo lendo poesias entre as músicas, e o acompanhamento do Quarteto Laços, que consiste de Cláudio Caribé, Hélio Delmiro, Luizão e Márcio Montarroyos.

O show é esquisito, traz músicas de Edu, Luiz Eça, Chico, Milton e outros, enquanto Marcos Paulo lê poesias que vão de Fernando Pessoa a Ruy Guerra. Antes de Segue Coração o ator recita o texto Psiquiatria em questão, do cultuadíssimo psiquiatra escocês Ronald David Laing (1927/1989). Eu poderia ter cortado o texto e deixado só a música, mas o show inteiro parece ser conceitual, e o mais provável é que existe alguma relação (embora eu não tenha descoberto qual) entre as músicas e os textos que as precedem. Este é o texto de Laing dito por Paulo:

Talvez, numa medida limitada, pudéssemos remediar o mal que nos foi feito, e o que nos fizemos a nós próprios. Talvez os homens e as mulheres tivessem sido feitos pra se amar. Simplesmente. Espontaneamente. E não pra esta “comédia” que ousamos chamar de amor. Se pudéssemos parar de nos destruirmos a nós próprios, talvez pudéssemos deixar de destruir os outros. Mas pra isto, é importante começar por reconhecer e até por aceitar a nossa violência, em vez de a utilizar para nos destruirmos tão cegamente. E ao mesmo tempo nos darmos conta de que temos um medo tão profundo de viver e de amar. Como temos medo de morrer.





Luiz Eça

É uma versão bonita, correta, mas creio que Segue Coração é uma das muitas músicas de Guarnieri que ainda não tiveram sua leitura definitiva. Vamos rezar para que isso aconteça ainda na nossa geração, já que não ocorreu enquanto ele estava vivo.

O brilhante e saudoso Luizinho Eça fez a inqualificável sacanagem de nos deixar em 1992, com apenas 56 anos. Não sei o que aconteceu com Cláudia Versiani, mas existe por aí uma jornalista homônima que declara em seu currículo profissional ser uma “ex-atriz e ex-cantora”. Talvez seja ela. E Marcos Paulo continua fazendo novelas, e a única coisa mais jovem do que sua aparência, são suas namoradas.

Letra:

Já é hora adormece
No acalanto dessa canção
Cai a noite, vira o vento
Voz do medo na escuridão
No teu sono ganha o mundo
E meus sonhos renascerão
Mesmo as flores sufocadas
Dão perfume em sua aflição
Como um grito de esperança
Rasga a teia da solidão
Como as ondas
Simplesmente vai
Segue o coração.

Download da 2ª Parte do Cancioneiro de Gianfrancesco Guarnieri
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