sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Anna Friel: o desperdício de uma atriz – Parte 2


Terá sido o efeito provocado pela mistura de seus papéis em The Tribe, The Land Girls, Our Mutual Friend e St. Ives que levou o dramaturgo inglês Patrick Marber a escalar Anna no papel da prostituta Alice, para a montagem norte-americana de sua peça Closer. O texto teve sua estréia na Inglaterra, em 1997 e fez um grande sucesso. Viajou pela Europa, foi traduzida para vários idiomas e em março de 1999 iniciou sua vitoriosa temporada no Music Box Theater, em Manhattan. No elenco, feras como Natasha Richardson – que vinha de uma premiada reprise de Cabaret – o renomado ator irlandês Ciarán Hinds, Anna, em seu debut teatral e um desconhecido chamado Rupert Graves.

O tema da peça todo mundo já conhece graças ao tenebroso filme de Mike Nicholls produzido em 2004 com Julia Roberts, Clive Owen, Natalie Portman e Jude Law. O grande Nicholls, cineasta de tantas obras-primas, devia estar em um momento particularmente ruim de sua vida, porque conseguiu piorar aquilo que já não é bom. Patrick Marber não passa de um David Mamet sem talento e Closer são duas horas e meia de masturbação mental, diálogos imbecis e um emaranhado de conflitos idiotas, pequeno-burgueses, de gente bonita e rica, sem nada na cabeça e que tem tesão em discutir relação.

Closer (Music Box Theater, 1999)


No filme – um dramalhão brega e intolerável, cujo mérito único é mostrar Natalie Portman de fio dental – isso ficou dolorosamente patente. No teatro, porém, a abordagem foi diametralmente oposta. Em primeiro lugar porque Closer, ao contrário do que pensam aqueles que só o viram no cinema, é uma comédia! Foi escrita como uma “comédia de costumes”, encenada como tal e premiada na Inglaterra dentro da categoria “melhor comédia”. Marber, que já dirigira o espetáculo em sua estréia mundial no West End londrino, assinou a direção também nos Estados Unidos, e o viés cômico num texto pesado e pretensioso, unido à performance exemplar do elenco, transformaram Closer num grande sucesso também na Broadway.

Anna no papel de Alice, em Closer.
Com Natasha Richardson
 e Ciarán Hinds

Em geral, todo o elenco foi fartamente elogiado, mas quem roubou a cena, em todos os aspectos, foi Anna, inaugurando seu cabelo “joãozinho” que só fez aumentar sua beleza e sensualidade. Segundo Donald Lyons, do New York Post:

Anna Friel estoura no céu da Broadway como a explosiva Alice, uma jovem curvilínea e selvagem, cheia de mistério e da experiência que adquiriu nas ruas. Oferecida, atrevida, linda e parecendo um garoto (ela tem uma fala muito engraçada sobre a atração dos homens por mulheres com cara de menino, mas, como 99% da peça, é impublicável), a Alice de Friel é ao mesmo tempo disponível e esquiva, uma criatura estranha, com uma estranha propensão para se envolver em acidentes de carro. (...) Friel, que foi vista na PBS, em Our Mutual Friend, não é nunca menos do que magnética.

Elyse Sommer, do site teatral Curtain Up, foi ainda mais enfática: “A performance que se destacou vem da estreante nos palcos Anna Friel, que interpreta a stripper exclusiva emocionalmente frágil com charme sofisticado e angústia. (...) Conquanto não seja uma novata no cinema, a estréia da Srta. Friel dá aos espectadores de teatro a oportunidade de dizer Eu a vi em sua primeira peça na Broadway”.

Anna e Rupert Graves
Foto promocional de Anna, em Closer
Anna teve, em Closer, seu segundo grande momento. Só que desta vez ela estava sendo festejada por seu talento na Meca do show-business mundial, e não pela controvérsia do beijo lésbico em uma novelinha adolescente só conhecida na Inglaterra. Na platéia de Closer e mais tarde, no camarim, cumprimentando-a e rasgando elogios à sua performance, estiveram Tom Cruise, Al Pacino, Leonardo DiCaprio, Steven Spielberg, e vários outros. Jack Nicholson, como sempre a personificação do velho tarado, declarou que não descansaria enquanto não transasse com ela. Se conseguiu, não se sabe, mas Anna deixou de lado os namorados medíocres que tivera até o momento, como o patético apresentador da TV inglesa Darren Day, e o roqueiro mauricinho Robbie Williams – duas relações marcadas pelo vício de ambos com as drogas – e adicionou a seu currículo, segundo os tablóides da época, casos com atores como Christian Bale, Joaquim Phoenix e George Clooney.

Na área profissional, contudo, não se pode dizer que convites choveram para que ela fizesse filmes nos EUA. Naquele primeiro momento, ela lançou quatro filmes; um que já estava feito, um segundo que fez semanas antes da peça estrear, e os dois últimos como conseqüência (nefasta, conforme se verá adiante) de seu trabalho em Closer. Vamos a eles:

Rogue Trader (1999)

O filme conta a história real de Nick Leeson, um bancário que resolve um pepino de seu banco – o Barings, tradicionalíssimo banco inglês com 233 anos de história, em cuja lista de clientes se encontrava a rainha da Inglaterra – na Indonésia e é promovido a líder dos investimentos do Barings na Simex, Bolsa de Valores de Cingapura.

Cheio de poder e prestígio, Leeson começa a manipular a Bolsa com jogadas especulativas gigantescas, até que a coisa toda explode em sua cara. O roteiro do filme vem da auto-biografia de Leeson e foi escrito pelo inglês James Dearden (roteirista de Fatal Attraction, hoje meio sumido), que também assina a direção.

Como tudo gira em torno de cifras, negócios, bancos, ações e bolsa de valores, a crítica especializada condenou o formalismo do filme. Achou-o seco, quadrado, didático, não entrando de cabeça no drama. Em outras palavras, as peripécias de um investidor desonesto (a tradução literal de Rogue Trader seria algo como "comerciante vigarista") precisariam de um cobra como Oliver Stone na direção, para ultrapassar os números e transmitir com mais violência a tragédia profissional e pessoal na qual Leeson acabou se metendo. Eu pessoalmente gostei do filme, embora concorde que ele poderia ter sido muito melhor. É uma história empolgante, existe tensão do início ao fim, Anna e Ewan trabalham bem juntos e Macgregor tem uma boa performance.


Anna e Ewan em cenas
 de Rogue Trader

Anna faz Lisa, a assistente que ele conhece ainda na Indonésia, e com quem se casa. Os dois vão juntos para Cingapura e, a princípio mantida ao largo das trampolinagens do marido, ela eventualmente acaba testemunhando a ascensão e queda de Nick. Não sei se é vício de interpretação que ela carregava na época ou um pedido objetivo do diretor, mas Anna fala com voz de menininha o filme inteiro. Não chega a irritar, mas sabemos que a voz dela é bem diferente e não entendi as razões pra ela falar daquele jeito.

Com o cabelo loiro, pelo ombro (prova de que o filme já estava feito quando ela estreou em Closer) desnecessário dizer também o quanto está linda e como compreende-se perfeitamente o fascínio exercido sobre quem a assistiu ao vivo no teatro. Mesmo assim, seu papel mal qualifica para uma coadjuvante do protagonista absoluto, que é Ewan. Produção da HBO feita para TV a cabo, Rogue Trader estreou em 25 de junho de 1999 e foi rapidamente esquecido.

(spoilers) O papel de Lisa Leeson acabou sendo alvo de uma controvérsia, porque o filme, baseado no livro de Nick, é evidentemente simpático a ele, e a esposa, que jurou amor e fidelidade ao marido, acaba deixando-o pouco depois que ele vai para a cadeia. Isso gerou revolta do público, que criticou Lisa por abandoná-lo em seu momento mais crítico. Para piorar, no terceiro ou quarto ano de cadeia, Nick Leeson descobriu que tinha câncer no intestino, provocando ainda mais piedade do povo inglês. Acusada de ser uma esposa desnaturada, Lisa declarou que deixou Leeson quando soube que tinha sido traída inúmeras vezes, durante as viagens comerciais do marido, fato esse que é convenientemente ocultado pelo filme. No mais, Leeson saiu da cadeia no quarto ou quinto ano de sua sentença e casou-se com outra mulher, com quem teve filhos. Está vivo e bem, e continua tratando-se regularmente de seu câncer. Era ligeiramente parecido com Ewan, antes da doença. Lisa segue casada com seu segundo marido e teria que nascer de novo umas dez vezes para poder parecer-se de longe com Anna.

Mad Cows (1999)

Já tenho esse filme em mãos e incluirei um comentário brevemente.


Sunset Strip (2000)

Sunset Strip foi a única produção norte-americana entre os quatro filmes feitos por Anna na seqüência de Closer. O diretor é o desconhecido Adam Collis, cuja careira secou depois deste e de um outro filme, mas a história e o roteiro são de Randall Jahnson, que roteirizou The Doors, de Oliver Stone e A Máscara do Zorro, anos antes. O co-roteirista é Russell DeGrazier, tão desconhecido quanto Collis.

O filme mostra 24 horas na vida de seis personagens cuja vida gira em torno de Sunset Strip – trecho da gigantesca Sunset Boulevard, em Los Angeles – que vai de Hollywood a Beverly Hills e é geralmente associada ao glamour e aos artistas. O elenco é um desfile de atores e atrizes que brilhavam naquele período ou começariam a brilhar pouco depois. Michael (Simon Baker) é um fotógrafo profissional, Tammy (Anna) é a estilista dos roqueiros, Glen (Jared Leto) é um roqueiro a caminho da fama, Shapiro (Adam Goldberg) sonha em empresariar todos eles, Felix (Rory Cochrane) é o compositor de sucesso que nunca aparece e Zach (Nick Stahl) é o garoto que sonha em ter uma banda. Michael é apaixonado por Tammy mas agüenta calado o fato de que ela é a groupie tradicional, namorada freqüente do famoso roqueiro Duncan (Tommy Flanagan) e flerte ocasional de Bobby (Darren Burrows), Glen ou de qualquer outro roqueiro que apareça.

Jared Leto e Anna
Shapiro, por sua vez, é o branco que se identifica com os negros, usa cabelo black power e não consegue fazer decolar sua carreira de empresário. Felix é alcoólatra, suicida e vive frustrado por compor as canções que vão se reverter em fama para aqueles que as interpretam. E enquanto Zach espera sua grande chance, do terraço onde toca guitarra, ouve acordes que não consegue descobrir de onde vem.

Brilhando ou em vias de brilhar. Em sentido horário, Simon Baker,
 Adam Goldberg, Nick Stahl
 e Jared Leto

Anna é a atriz principal (e única) do filme, mas ao contrário do que se possa imaginar, o protagonista masculino não é Jared Leto – ator convidado – e sim o australiano Simon Baker, que, a exemplo de Anna, também teria que amargar a geladeira durante mais sete anos até conseguir sua grande chance na série de TV The Mentalist. Michael administra sua paixão incontrolável por Tammy, ao mesmo tempo em que trabalha na criação da foto que vai na capa do LP de Glen, e cuida para que Felix não se suicide. No meio ainda tem que lidar com uma sessão fotográfica em que vê Glen engraçando-se com Tammy e a gonorréia que lhe foi passada por uma mulher contaminada por Glen, que também vai e contamina Tammy, que por sua vez contamina Duncan. Tammy começa o dia contratando Michael para a sessão fotográfica com Glen, expulsa Bobby de sua cama, coordena, junto a Shapiro, o figurino de um grupo a la Commodors, transa com Duncan na hora do almoço, transa com Glen durante a tarde e ainda encontra tempo para ir até o estúdio de Michael e reclamar pelo ataque de ciúme do fotógrafo durante a sessão. Tudo num único dia. E o clímax é a apresentação de Duncan à noite, em um bar de Sunset Strip, com abertura da banda de Zach.

Em termos de roteiro e argumento, o filme deixa a desejar, especialmente 
considerando que Randall Jahnson já roteirizara filme de temática relativamente semelhante; a história é magra, os personagens são clichês e os diálogos são bobos. A reconstituição de Sunset Strip nos anos 70 é fake; a loja de roupas de Tammy até guarda um pouco a confusão psicodélica de cores da época, mas tanto Glen quanto Duncan – conquanto o último tenha algo próximo a Jim Morrison – se parecem bem mais a roqueiros dos anos 80. Jared Leto, aliás, por vezes se parece mais a Axl Rose do que a qualquer roqueiro alternativo da época. No mais, os personagens do próprio Glen, de Felix e de Shapiro são superficiais e se perdem na dinâmica das outras tramas. Nota-se de cara que o objetivo do roteirista não era aprofundar o drama e sim manter a o filme num patamar de entretenimento leve que agradasse a todos. Só que Felix, para dar um exemplo do personagem menos explorado, é um músico talentoso que vive às voltas com a insatisfação crônica, garrafas de bebida e barbitúricos. Teria sido conveniente descer um pouco ao inferno do compositor e conhecer melhor os motivos de sua perene infelicidade, ao invés de mostrá-lo em doses homeopáticas, em momentos de crise que vem e vão sem maior explicação.

Anna e Simon Baker
O conflito de Zach corre por fora, paralelo, e tem seus momentos (sobretudo quando agradece a Bobby por Califórnia Dreaming e outras músicas dos Mamas & the Papas, acreditando que ele é John Phillips). (spoilers) Decepciona, no fim, contudo, quando encontra finalmente o sujeito que extraía da guitarra elétrica os acordes que ele ouvia em seu terraço. Esperava algo menos clichê. Solução magnífica seria que ele descobrisse, no fim das contas, que os sons que ouvia eram sua própria inspiração. E também não seria ruim que ele ficasse com a simpática garçonete do diner freqüentado por todos, interpretada por Judy Greer, hoje com múltiplas participações em filmes e seriados.

Sunset Strip tem uma estética cinematográfica semelhante à dos filmes de Cameron Crowe, de quem Adam Collis é contemporâneo (e provável admirador). Um dia, uma semana ou uma temporada na vida de um grupo de jovens independentes e cheios de ilusões que se conhecem ou moram perto, como se viu em Singles, e vivem toda a comédia humana nesse espaço de tempo. Almost Famous (lançado no mesmo ano) é outro exemplo, pegando inclusive o dia-a-dia de uma banda de segunda dos anos 70 em turnê, com direito a Kate Hudson como groupie. Também a exemplo de Singles, há o roqueiro apalermado (Matt Dillon naquele, Leto neste) e o elenco todo está perfeitamente afinado. Só que os filmes de Cameron (que em geral tem roteiros melosos cheios de mensagens bregas, unidos a diálogos pretensamente inteligentes que acabam caindo em cheio no gosto do público feminino ou pré-adulto) bem ou mal, têm início, meio e fim, e os personagens descem ao inferno antes de chegar ao céu. Randall Jahnson e Russell DeGrazier falham tristemente nessa área.

(spoilers) A trama é apresentada e desenvolvida mas não é concluída de forma satisfatória. Shapiro, Felix e Glen somem e Tammy – já decidida a viajar com Duncan – se apaixona por Michael de uma hora para outra. Não era necessário que ela se arrependesse ou fosse punida por seu estilo de vida promíscuo e frívolo a fim de entrar purificada em uma relação monogâmica, mas o final é feliz sem que antes haja verdadeiro drama.

Anna está irresistível com o cabelo curto e vermelho. Mais do que uma groupie dos anos 70, com esse corte ela por vezes lembra mais uma mulher fatal dos roaring twenties, e sua esplêndida expressividade faz lembrar uma atriz do cinema mudo. Seu personagem vai do cômico ao drama, sem grandes vôos, mas vale dizer, como sempre, que por muito menos, Kate Hudson foi indicada a um Oscar por Almost Famous. O mesmo não ocorreu com Sunset Strip, que teve lançamento tímido no cinema em agosto de 2000 e hoje só é relativamente cultuado pelas fãs de Jared Leto e acabou de ser descoberto pelas fãs de Simon Baker.


Curioso é que sem ser uma maravilha, Sunset Strip é uma “sessão da tarde” bastante agradável, pela presença de Anna. Entretanto, não bastasse o filme ter recebido uma distribuição capenga, ele também teve um lançamento extremamente limitado em DVD e hoje é praticamente impossível de encontrar. Não existe para locação, cópias em VHS são vendidas no e-Bay e aqui e ali encontramos versões em DVD dubladas em italiano ou francês.

An Everlasting Piece (2000)

É curioso como algo tão ruim e tão idiota pode dar margem a tanta discussão. Não seria preciso gastar sequer um parágrafo para descrever este lixo, mas conhecendo toda a história da pré e pós produção, algumas explicações se fazem necessárias, até para tentar isentar Anna da culpa por participar de mais este abacaxi.

O jovem ator irlandês Barry McEvoy fazia pontas em teatro e no cinema desde o início dos anos 90. No fim da década, apresentou ao diretor Barry Levinson (Rain Man) o roteiro de um filme baseado na história de seu próprio pai, um barbeiro católico irlandês que vendia perucas tanto a seus patrícios como aos ingleses protestantes. Vislumbrando o sucesso que o filme poderia obter entre a vasta população irlandesa que vive nos Estados Unidos, Levinson aceitou realizar o projeto e acionou, para tanto, nada menos do que a Dreamworks, de Steven Spielberg. McEvoy ganhou o papel principal (Colm) e dividiu a cena com o também irlandês Brian O'Byrne (George), e com Anna Friel, que ainda desfrutava de fama nos Estados Unidos pela irretocável performance em Closer.

Anna, Barry McEvoy e Brian O'Burne
Anna já mostrava na ocasião não ser um exemplo de critério na escolha de seus trabalhos, mas também não se pode negar que Barry Levinson é um diretor conceituado em Hollywood (e que talvez tenha chegado a ela pela boa impressão causada por Closer a Spielberg, há tempos ligado a Levinson), e que à primeira vista, aquilo parecia ser uma ótima oportunidade. No mais, ela é inglesa mas seu pai é irlandês, então não teve qualquer problema em incorporar o sotaque irlandês às falas de sua personagem, Bronagh, namorada de Colm.

Barry McEvoy e Anna
Na trama, o protestante Colm vai trabalhar na barbearia de um hospício e lá faz amizade com o barbeiro católico George. Os dois então conhecem um louco que é chamado de "o escalpelador" – o famoso ator escocês Billy Conolly (Mrs. Brown) – que tinha um próspero comércio de perucas, até que enlouqueceu e literalmente escalpelou alguns de seus fregueses. A ação se desenrola a partir do momento em que os dois conseguem com o louco a sua lista de fregueses e montam seu próprio negócio de venda de perucas. É daí que vem o nome do filme, An Everlasting Piece, que soa como "Uma paz eterna", mas na verdade é um trocadilho infame com duas palavras que tem pronúncia idêntica, peace, paz, e piece, que entre outras coisas quer dizer "aplique" (hair piece), ou peruca. O filme, portanto, se chama "Um aplique eterno". Em português recebeu o título ainda mais lamentável de "A Guerra das Perucas".
 

Anna, em foto promocional de
An Everlasting Piece

O filme é tão absurdamente ruim que chega a chocar. O roteiro é cretino, raso e marcado por um humor tão imbecil que beira o retardamento mental. A trama é mal urdida e inverossímil; os personagens são todos boçais e ignorantes; a presença de Billy Conolly é inútil e inexplicável, já que ele é uma espécie de símbolo da Escócia e nada tem a ver com a Irlanda. A própria Anna força demais o sotaque irlandês e comentários da época dão conta de que ela se parece mais a uma nativa de Blackburn, na Escócia, do que a uma irlandesa de Belfast. Para piorar, McEvoy teve a patética idéia de querer inserir um subtexto político na trama, traçando um paralelo entre a venda indiscriminada de perucas tanto ao exército britânico quanto aos insurgentes do IRA, o que corresponde mais ou menos a querer falar das torturas e dos calabouços da ditadura de 64 em um filme sobre surfistas de Saquarema. O resultado é o pior possível. Nem um filme amador de alunos ginasiais é tão mal feito. Tolera-se com o mais profundo esforço porque Anna está adorável, no quarto e último filme em que ostentou o cabelo curto, e porque como sói acontecer quando algo é tão péssimo, há uma curiosidade mórbida de saber como aquilo vai acabar. Nada se salva neste filme. NADA.

Houve uma grande celeuma de bastidores quando o filme foi lançado, de 2000 para 2001. Por razões desconhecidas – mas muito provavelmente pelo fato de que os produtores perceberam tardiamente a porcaria que haviam acabado de patrocinar – a Dreamworks se fingiu de morta e não deu qualquer respaldo ao lançamento do filme, o que ocasionou seu fracasso total nas bilheterias.

Indignado, Barry Levinson acusou Spielberg publicamente, afirmando que o famoso diretor não queria promover um filme que falava, ainda que timidamente, da rivalidade entre ingleses e irlandeses porque acabara de ser laureado Sir pela rainha da Inglaterra (o que realmente ocorreu em janeiro de 2001). E An Everlasting Piece desapareceu, para a extrema sorte dos cinéfilos.


Curiosamente, Barry Levinson acertou por vias tortas a sua previsão inicial: o filme foi adorado pelos irlandeses. Não só isso; apesar do fracasso de bilheteria, o filme teve críticas mais positivas do que negativas. Seja porque na sua esculhambação, retrata os irlandeses com alguma fidelidade, seja porque o diretor é famoso nos Estados Unidos, An Everlasting Piece transformou-se em cult para uma pequena porção de irlandeses espalhados por aí. No IMDB há uma proporção de dez comentários elogiosos para um insatisfeito. O que eles vêem de bom nesse filme, só Deus sabe.

Fica a dúvida: por que os filmes feitos por Anna na seqüência de sua avassaladora performance em Closer foram todos fracassos de crítica e público? Volta-se ao início. Falta de critério na escolha dos papéis, ausência de agentes com alguma inteligência para impedir a atriz de entrar em canoas furadas, a vulgarização de sua imagem pelos papéis picantes, os namoros trash, e/ou o mais rematado azar. A título de cruel curiosidade, vale ressaltar que Anna perdeu para sua colega de Land Girls, Rachel Weisz, o papel da divertida arqueóloga Evelyn Carnahan no filme A Múmia, que fez decolar a carreira de Weisz. Perdeu para Helena Bonhan Carter o papel de Marla no perturbador Clube da Luta, perdeu para a insignificante Heather Graham o papel de Mary Kelly em From Hell e perdeu para Cameron Diaz o papel de protagonista feminina em Gangues de Nova York (ok, esse foi até sorte de Anna, já que trata-se de um dos piores filmes de Scorsese), entre outros.


Em entrevista, a própria atriz fala sem rodeios sobre sua constante preterição: "Toda vez que eu e outra pessoa somos as duas mais cotadas para um grande, grande filme, a outra pessoa ganha porque tem o nome mais famoso. E isso, para ser sincera, me deixa totalmente puta da vida". Seu filme seguinte seria uma compensação simbólica por essa maré de azar.

The War Bride (2001)

Depois de uma experiência frustrante - Rogue Trader - e uma série tripla de fracassos, com a qual Anna jogou no lixo o prestígio adquirido com Closer, ela até que merecia algo melhor. Essa compensação veio na forma de um filme agradável e despretensioso sobre a II Guerra, chamado The War Bride, conhecido nos Estados Unidos também pelo nome de Love and War.

O diretor é um ilustre desconhecido chamado Lyndon Chubbuck, que até aquele momento só dirigira programas esquecíveis de TV (triste constante na carreira de Anna). A roteirista é outra absoluta desconhecida chamada Angela Workman, que escreveu uma trama sobre soldados canadenses servindo na Inglaterra, onde conhecem jovens inglesas por quem se apaixonam e se casam antes de ir para o front de batalha. Felizmente, aquilo que teria pouquíssima chance de dar certo acabou se tornando um dos melhores filmes de Anna.


A história se concentra em Lily – Anna – uma jovem e linda inglesa que conhece o soldado canadense Charlie. Ele conta que é um próspero fazendeiro no Canadá, ela se empolga e eles se casam rapidamente, como aconteceu a tantas centenas de casais de namorados, por conta da guerra. Passam alguns dias juntos e segundos antes dele ir para o front, ela lhe avisa que está grávida. Dias se passam até que ela recebe a notícia de que o governo canadense estava financiando, para as jovens inglesas casadas com soldados daquele país, a viagem de navio da Inglaterra para o Canadá. Ela vai com a filha recém-nascida, separa seus melhores vestidos, vislumbrando um futuro confortável na fazenda do marido, enquanto aguarda seu retorno. O que a espera no Canadá, entretanto, é um sítio tosco e pobre no meio de lugar nenhum, e uma sogra e uma cunhada caipiras, ignorantes e hostis.

A maneira pela qual Lily vai lidar com a nova situação e reverter o comportamento de sua sogra e cunhada – além do resto dos caipiras da cidadezinha canadense – por meio de sua doçura e de sua maravilhosa simpatia é a linha mestra de War Bride. O filme é simplesmente delicioso. Anna está maravilhosa, com alguns quilos propositalmente a mais, o cabelo ruivo (com apliques, já que seu cabelo ainda estava curto) e idêntica às pin-ups dos anos 40. Sua caracterização é irretocável. Quando a personagem de Molly Parker – a cunhada que tem uma perna dura, vítima da pólio – lhe diz, ressentida, “you’re perfect”, o tom é de absoluta naturalidade. Não há exagero. War Bride em momentos chega a lembrar aqueles dramalhões de superação dos anos 40, com Bette Davis ou Joan Crawford, feitos para que elas interpretassem heroínas e brilhassem da primeira à última cena; Anna está em todas as cenas do filme – trunfo extraordinário de War Bride – e brilha com o carisma e o talento de uma grande atriz, trazendo ainda de quebra a beleza e o glamour de uma pin-up. É a perfeição.

Brenda Fricker e Anna

(spoilers) E embora o roteiro abuse das cenas melodramáticas, não se pode negar que em momentos Anna atinge picos belíssimos de dramaticidade, como na cena em que grava o LP pedindo ao marido que volte logo, expressando dolorosa solidão. Também violenta é a cena em que se deixa seduzir pelo namorado de sua cunhada, não sem antes dizer, desfigurada, que não consegue sequer lembrar mais do rosto de seu marido. A trilha sonora complementa as cenas sem poluí-las; as reconstituições de época são críveis e bem feitas; o roteiro é enxuto; o elenco coadjuvante é ótimo. O talento de Brenda Fricker e Molly Parker todos já conhecem, mas até mesmo o geralmente insípido Loren Dean está bem como Joe, e a cara de nerd de Aden Young acaba sendo adequada para seu papel de Charlie. A Lily de Anna é um deleite. Um grande trabalho, mesmo sendo simples e despretensioso. E uma daquelas pequenas jóias que o main stream cinematográfico hollywoodiano sequer sabe que existe. Estreou no Canadá em março de 2001 e só ano seguinte, no resto do mundo.

Lulu (Almeida Theatre, 2001)


Anna, no papel de Lulu
Se a fama adquirida por Anna na peça Closer e em filmes como Sunset Strip era de uma atriz jovem, liberada e disposta a fazer papéis que outras atrizes não aceitariam, pelo forte teor sexual, seu próximo trabalho foi um verdadeiro mergulho nessa fama. No mês em que War Bride estreou nos cinemas, Anna fez sua estréia teatral na Inglaterra, com o espetáculo Lulu. O alemão Frank Wedekind (1864-1918) escreveu duas peças no fim do século XIX – Earth Spirit (1893) e Pandora's Box (1894) – e as batizou The Lulu Plays. O dramaturgo Nicholas Wright transformou-as em um único espetáculo, Lulu, e chamou Anna para encabeçar o elenco, que trazia ainda Samia Akudo, James Faulkner, Tom Georgeson, James Hillier, Alan Howard, Leon Lissek, Anna Maguire, Oliver Milburn, Sid Mitchell, Francesca Murray-Fuentes, Marella Oppenheim, Jason Pitt, Imogen Slaughter, Johanna ter Steege, Peter Sullivan, Roger Swaine e Andrew Ufondu, sob a direção de Jonathan Kent.

Com Oliver Milburn

A peça conta a arrepiante história de Lulu, que se torna prostituta ainda na infância, tendo no pai seu primeiro cafetão. As experiências dantescas de toda essa época transformam Lulu em uma pessoa amoral, sem caráter e interesseira. Viúva do primeiro marido, um velho depravado que encomendava pinturas dela em roupas obscenas que ele próprio desenhava, ela se casa com o artista que pintava esses quadros. Este, contudo, é bobo e idealista, e acaba se suicidando quando descobre as infidelidades da esposa. O terceiro marido, Dr. Schoning, velho e viciado em heroína, morre assassinado por Lulu em uma reviravolta macabra, quando pede a ela que se mate, e acaba morto por ela.

O quanto marido é o filho de Schoning, Alwa – interpretado por Oliver Milburn, ator que despontava para a fama na época e trabalhou com Anna em seu filme seguinte – com quem Lulu viaja para Paris. Lá as coisas pioram, quando eles perdem tudo num colapso da Bolsa de Valores. Lulu, entretanto, não se abala e aproveita a temporada parisiense para encantar uma condessa alemã, que acaba na miséria tentando conquistá-la. Mas a debacle financeira atinge Lulu, por fim, e na volta à Inglaterra ela começa a se prostituir para ganhar dinheiro, e nesse processo é morta e mutilada por um cliente, que não é ninguém menos do que Jack, o Estripador.

A super-produção, que celebrava a reforma do Teatro Almeida, em Londres, estreou em março de 2001 para uma temporada de três meses, esgotada nos primeiros dias. Entre os meses de junho e julho esteve em cartaz no Kennedy Center, em Washington, com igual sucesso de público. O Curtain Up, tão extasiado com a Alice de Anna, desta vez não ficou satisfeito com sua performance. Segundo o site, “Embora Anna Friel seja linda e pareça uma criança, sua performance me pareceu muito inocente; falta nela a desintegração que precisa possuir. Ela tem que ser uma mulher voluptuosa, amoral na medida em que sua auto-preservação é maior do que qualquer senso de valores, além de uma criança. E é nisso, infelizmente, que essa produção desaba”.

Com Alan Howard
Já Kevin Jackson, do londrino  The Independent, refuta essa noção, indicando que a catarse na interpretação de Anna estava, de fato, no segundo ato:

Durante a primeira metade, na qual ela ginga, rebola e abre suas pernas ao cair das calças de qualquer um, ela consegue ser não apenas altamente sexy (o sine qua non do papel) mas fica infantilmente surpresa e até se diverte pelo seu próprio poder de fascinar a espécie masculina. Qualquer um burro o suficiente para ter ido embora durante o intervalo teria, porém, ficado com uma impressão inteiramente equivocada de sua performance; quanto mais triste e vulnerável Lulu vai ficando, mais ganha sua performance em nuances e profundidade, e a busca sexual dá lugar à carência e a uma hesitação de menina, incluindo - um ótimo detalhe - o tique de puxar nervosamente a barra de sua anacrônica mini-saia. É admirável, e lindamente complementado por um poderoso elenco que inclui Alan Howard (...) e James Hillier.

Outra grande vantagem do espetáculo, segundo Jackson, é que em nenhum momento ele sequer se lembrou de Louise Brooks no antológico A Caixa de Pandora, filme de 1929 do cineasta de G. W. Pabst. Acerto idêntico seria repetido na montagem recente de Breakfast at Tiffany’s – a volta de Anna aos palcos, oito anos mais tarde – quando passou-se inteiramente ao largo do célebre filme de Blake Edwards e a carcaterização lendária de Audrey Hepburn para Holly Golightly.

O filme seguinte de Anna seria outro mergulho em sua fama de atriz para papéis sexualmente intensos. E talvez o maior sucesso dela no cinema, até hoje.

Me Without You (2001)

O que eu sabia de MWY antes de assisti-lo era de que se tratava do proverbial chick flick, um filme exclusivamente para as mulheres. De fato é, e não poderia ser de outra forma tendo sido escrito e dirigido por Sandra Goldbacher e contando a história de duas amigas de infância e sua tumultuada relação ao longo dos anos. Mas essa condição não compromete, porque o roteiro não é maniqueísta e ao invés de um filme feminista vazio, o que temos é um insight interessante, embora pouco original, na vida das antípodas Holly e Marina, no cenário musical londrino dos anos 70, 80 e 90.

Marina é uma catarse para Anna e para seus admiradores. O papel parece ser a epítome de todas as bubbly girls (na descrição da própria atriz, em uma entrevista de 2003) interpretadas por ela, como Lizzie, em The Tribe e Tammy em Sunset Strip. A diferença é que enquanto todas essas personagens eram simplesmente gostosinhas e sensuais, sem maior (ou nenhuma) profundidade e veículos únicos e exclusivos para que Anna exibisse sua beleza, Marina é a rebelde com causa, filha de um lar desfeito e de pais irresponsáveis. Ao invés de sentirmos raiva ou desprezo por suas atitudes, seu egoísmo e sua imaturidade, sentimos compaixão pelo abismo psíquico da personagem. O contraste entre sua beleza, sua personalidade aparentemente vibrante e sua sede de viver, com sua infelicidade, sua carência crônica, suas escolhas sempre equivocadas e seu destino triste e sem amor provocam pena. Por conseguinte, não há um desequilíbrio entre a extrema simpatia que temos pela doce, sensível e frágil Holly, e a reação desencadeada por cada uma das filhadaputices de Marina.

Anna e Michelle Williams
Fica claro desde logo que ambas são vítimas voluntárias de sua própria dependência. Anna nasceu para fazer essa personagem, que (assim como Lulu) deve ter funcionado a um tempo como desafio e como exorcismo de toda a vida que ela própria, como estrela emergente da cena teatral e cinematográfica, levara, de certa forma, até aquele momento, em que contava apenas 25 anos. Não preciso falar de sua performance. Cada cena de que ela participa é um choque elétrico, por vezes até excessivo.

Michelle Williams é fantástica. Nunca pensei que algum dia diria isso, porque durante cinco anos fugi daquela bobagem adolescente chamada Dawson's Creek (aliás, minha adolescência já estava bem longe quando aquilo foi realizado), e se algum dia fosse assisti-la seria por Katie Holmes, que era, então, linda e encantadora. Dou a mão à palmatória. O trabalho de Michelle em MWY é absolutamente brilhante. Suas cenas dramáticas são excelentes. Seu sotaque inglês é irrepreensível, muito melhor que o de Gwyneth Paltrow, que a meu ver foi sempre superestimado. Antes de ver o filme eu sentia uma certa má vontade de saber que no fundo, MWY era mais veículo para Michelle – na época fazendo sucesso com a série – do que para Anna, atriz superior, testada na TV, no palco e no cinema. Hoje penso que a junção das duas foi perfeita.


(spoilers) Em geral, acho que ninguém ficou particularmente satisfeito com o final, que parece apressar as soluções, depois dos problemas terem sido apresentados de forma algo arrastada durante o filme. O ponto mais baixo, a meu ver, é justamente aquele em que Marina tem seu breakdown no fim, depois do joguinho em que tenta seduzir o namorado de Holly. Esperava mais. Muito mais. Não de Anna, mas do roteiro. O acerto de contas entre as duas não poderia ter se resumido à Marina confessando que se sentia vazia e nojenta, e Holly dizendo simplesmente que não gostava daquilo que era quando estavam juntas. Perdeu-se ali a oportunidade de um verdadeiro tour de force entre as duas, que poderia ter se desdobrado em uma memorável e dramática lavagem de roupa suja – a exemplo do que acontece na cena final de The Tribe – onde ambas brilhariam intensamente, encaminhando o filme para seu desfecho.

O flash forward até 2001, com os filhos de Holly e Marina brincando também foi decepcionante e remete ao anti-clímax das últimas cenas de The Land Girls. É evidente que se esperava o final feliz para Holly e um fim trágico ou – como aconteceu – frio e sem amor para Marina, mas a sensação que tive foi a de um balão que se esvaziou antes do ápice final. Não eram necessárias grandes explicações, tudo era bastante claro, mas a cena foi morna e corrida demais para meu gosto.


Enfim, não é uma obra-prima e não estabelece novos padrões de estética cinematográfica, mas é um dos melhores filmes de Anna, entretenimento de primeira, com interpretações sensacionais das duas protagonistas, e também do elenco coadjuvante. A estréia ocorreu na Inglaterra em novembro de 2001 e nos Estados Unidos em julho de 2002 com sucesso bastante considerável. Para concluir, recomendo a vocês a leitura dos comentários postados sobre o filme no IMDB. Procurem abstrair o que foi escrito pelas menininhas que se apaixonaram pelo personagem de Oliver Milburn e concentrem-se no que foi escrito pelos homens, que certamente assistiram ao filme com uma visão muito mais crítica e menos romântica.
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