Desenho incluído no livro “São Paulo de
Outrora”,
de Paulo Cursino de Moura (1943)
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Nascido em Leighlelia, localidade próxima a Gênova, em 1798,
Badaró formou-se em Ciências Naturais e Medicina pelas universidades de Pávia e
Turim. Segundo se diz, suas inclinações liberais o puseram em rota de colisão
com o governo de sua terra natal e o levaram a sair do país. A razão para ter
escolhido o Brasil não está clara, mas chegou ao Rio de Janeiro em 1826. Lá
montou clínica e fez contatos com jornalistas e políticos. Dois anos depois
desembarcava em São Paulo.
Não é possível continuar, entretanto, sem que se compreenda
que a São Paulo daquele tempo — lugar comum dizê-lo, embora neste caso seja a
mais cristalina das verdades — era um humilde vilarejo. “Uma cidade obscura e
pobre”, nas palavras de Afonso Arinos. Só fora elevada de vila à cidade, aliás,
pouco mais de cem anos antes, em 1711. Nesse nublado alvorecer do século XIX, com
seus minguados quinze mil habitantes, São Paulo ainda não existia. Era simples
artéria de uma província deserta dentro de uma capitania gigantesca que pouco
ou nada servia ao Brasil. Essa situação ensaiou discreta melhora quando a
família real chegou, em 1808, acelerando, graças à presença dos monarcas, um
processo de desenvolvimento que andava estagnado em todo o país; e continuou a
melhorar depois de uma visita do Imperador Pedro I à província, em meados de
1822. Ele veio para resolver questões de política regional que envolviam os Andradas (a tal “Bernarda de Francisco Ignácio”), e quando estava prestes a voltar ao
Rio recebeu os ofícios de Portugal que o abespinharam e provocaram o “Independência
ou Morte!”. Como se vê, a independência podia ser anseio antigo, mas ela ter
sido proclamada na colina do Ipiranga foi inteiramente acidental.
Pedro I |
São Paulo entrou definitivamente no mapa. Uma conseqüência
direta foi a tentativa de se inaugurar, em solo bandeirante, a imprensa, que
ainda engatinhava no Brasil. Fora tentada no Rio de Janeiro em meados do século
XVIII por um português chamado Antonio Isidoro da Fonseca, que adquiriu um
tipógrafo e chegou a divulgar alguns impressos. Assim que soube da notícia e sem
qualquer interesse em que se disseminasse a cultura e a informação por sua
colônia, a coroa portuguesa mandou queimar tudo e deportou Fonseca. Só com a
chegada de D. João VI, 60 anos depois, inaugurou-se a “Impressão Régia”. Na
Paulicéia o processo claudicou e o responsável pela primeira iniciativa foi Antonio
Mariano de Azevedo Marques, vulgo “mestrinho”. Paulistano, nascido em 1797, Antonio
era um prodígio; autodidata, desde muito novo já ministrava aulas de latim e
retórica. Em 1823 publicou O Paulista,
jornal manuscrito que teve vida curtíssima. Mas a semente foi plantada. Quatro
anos depois, quando nada menos do que oito províncias já possuíam tipografias,
o baiano José da Costa Carvalho finalmente instalou a sua em São Paulo e em
fevereiro de 1827 publicou aquele que é geralmente considerado o primeiro
jornal paulista: o Pharol Paulistano.
Carvalho nasceu em Salvador, em 1796, formou-se advogado pela
Universidade de Coimbra em 1819 e veio para São Paulo em 1821 exercer as funções
de juiz de fora e de ouvidor. Esteve envolvido nos tumultos políticos que desembocaram
na vinda de Pedro I, em 1822. “Ambicioso e jovem”, nas palavras de Pedro
Calmon, Carvalho tornou-se redator-chefe do jornal pioneiro, tendo a seu lado o
mestrinho Azevedo Marques. Abertamente
oposicionista, mas moderado em sua crítica, o Pharol Paulistano passou a congregar a fina flor da “reação liberal
à política absolutista de D. Pedro I” (Spencer Vampré, 1924). Seu time de
redatores incluiu algumas das maiores cerebrações nacionais: Nicolau de Campos
Vergueiro, Manoel Joaquim de Amaral Gurgel, Vicente Pires da Motta, Antonio
Manoel de Campos Mello, João da Silva Carrão e Manoel Odorico Mendes. O elenco
é notável por duas razões: primeiro porque a maioria ocupava ou ocupou,
futuramente, cargos da maior relevância política no senado, nos conselhos,
governos e ministérios. E segundo porque praticamente todos estudaram, lecionaram
ou se tornaram diretores da embrionária Faculdade de Direito, outra das grandes
conseqüências de São Paulo ter passado a existir, com a Independência.
José Fernandes Pinheiro, mais tarde
Visconde de São Leopoldo
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A Indicação que deu origem a tudo foi escrita pelo deputado José
Feliciano Fernandes Pinheiro, e enviada durante a Assembléia Constituinte, em
junho de 1823, mesmo ano em que Mestrinho
tentou parir a imprensa paulista. As razões para que se criasse de uma vez uma
escola de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil eram óbvias, o país carecia de
tudo, ninguém se formava aqui, quem quisesse ser advogado tinha que ir para
Coimbra onde brasileiros eram maltratados e segregados, e assim por diante. Mas
foi a escolha de São Paulo — feita por Fernandes Pinheiro — e Olinda — aditada
dois meses depois pela Comissão de Instrução Pública — para sediarem as escolas,
que acirrou o ânimo dos parlamentares. Curioso que Olinda não foi tão
discutida, mas desde o início, deputados de outras províncias cobraram a
construção das faculdades em locais mais civilizados e influentes, como o Rio
ou a Bahia. Fernandes Pinheiro respondia com tranqüilidade, justificando sua
opção por São Paulo: “Considerei principalmente a salubridade e amenidade de
seu clima, sua feliz posição, a abundância e barateza de todas as precisões e
cômodos da vida”. Concluía com frase que hoje causa triste hilariedade: “O
Tietê vale bem o Mondego do outro hemisfério”, referindo-se ao rio português
que corta Coimbra.
É bem verdade que a Indicação primitiva de Fernandes
Pinheiro teria que suportar a dissolução da Assembléia por Pedro I e anos de
discussões, na reformulação posterior do Poder Legislativo, até que fosse
promulgada a lei de 11 de agosto de 1827, instituindo os cursos jurídicos de
São Paulo e Olinda. Mas entre a fundação do Pharol
Paulistano, em fevereiro de 27, e o início do curso de Direito no Largo São
Francisco, em março de 28, temos basicamente o mesmo rol de personagens, hoje
verdadeiro guia de ruas: Vergueiro, Carrão, Amaral Gurgel, Arouche (José Toledo
de Arouche Rendon, primeiro diretor da faculdade), e Costa Carvalho. Este
último — alternando agora sua atividade jornalística com o cargo de deputado,
na côrte — tem papel decisivo, pois foi quem trouxe Líbero Badaró para São
Paulo, em julho de 1828.
José de Costa Carvalho
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Desde sua chegada o médico dá provas de invulgar formação
cultural e disposição para o trabalho, como atesta a carta do diretor Rendon ao
ministro do Império, Pedro de Araújo Lima, comunicando a vinda de um professor
e cinco estudantes do Rio, “e bem assim um médico italiano, formado em Pávia,
de nome João Baptista Badaró, o qual anunciou que estava pronto a ensinar
gratuitamente aritmética e geometria, enquanto não vinha o professor daquela
cadeira. (...) Não tendo ele casa suficiente, por estar hospedado na casa do
deputado Costa Carvalho, se lhe arranjou lugar no mesmo palácio do governo,
onde estão outras aulas, com utensílios próprios daquela ciência, que aqui
havia do tempo em que se ensinou geometria” (Almeida Nogueira, 1908).
Por um tempo, como se vê, Badaró hospedou-se com Costa Carvalho
e depois no Palácio do Governo (localizado no Pátio do Colégio), até fixar
residência na rua São José. A via foi aberta entre 1786 e 1788, por José
Raymundo Chichorro da Gama Lobo, governador interino da capitania entre as
gestões de Francisco da Cunha Menezes (1782/1786) e Bernardo José de Lorena (1788/1797).
Ia da confluência entre o Largo São Francisco (onde então havia só o convento e
a igreja dos franciscanos) e o Largo do Capim (encontro das ruas São Francisco e Ouvidor) até o Largo São
Bento, paralela pelo lado direito à rua São Bento, e pelo lado esquerdo ao vale
onde passava o rio Anhangabaú. Era cortada pela rua Direita e pelo Largo do Acú
(hoje a continuação da São João depois de atravessar o vale). Badaró
estabeleceu-se em uma pequena casa térrea próxima ao início da rua, de frente
para ladeira de Santo Antônio (hoje Dr. Falcão). Durante um ano ministrou aulas
de geometria, classificou plantas, utilizando seu conhecimento de botânica e
clinicou, “aplicando sangrias e experimentando os sudoríficos brasileiros,
visitando solícito a clientela, montado no indefectível cavalo branco de que os
nossos esculápios de outrora faziam gáudio” (Cursino de Moura, 1943).
Em 1829 o médico mergulha de cabeça no jornalismo. Funda, com Luis Monteiro d’Ornellas, sob os auspícios (e provavelmente o patrocínio) de Costa Carvalho, o Observador Constitucional, segundo jornal produzido em São Paulo e folha oposicionista bem mais agressiva do que o Pharol, em cujas oficinas era impresso. Imagina-se que, não podendo enfiar o dedo na ferida por estar investido de cargo que o obrigava à hipocrisia das boas relações políticas, Carvalho tenha incentivado o amigo politizado e corajoso à lide jornalística (Monteiro d’Ornellas colaborou só até meados do ano seguinte). O primeiro número do Observador saiu em 23 de outubro de 1829 e passou, a partir de então, a vergastar — às vezes com humor, às vezes com acidez — quaisquer desmandos que visse pela frente, desde a política conservadora de Pedro I até problemas mais provincianos. Uma estupenda blague do jornal foi a publicação, em julho de 1830, de uma propaganda em letras garrafais anunciando a encenação de duas peças na Casa da Ópera, único teatro da cidade, localizado ao lado do Palácio do Governo: O cabido escolhendo um prebendado e Os badalos fugidos e um Tenente-General pedindo uma guarda para eles.
O título da primeira peça é impagável: vagara a função de tesoureiro da catedral de São Paulo e coube ao bispo da Diocese, Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade — que ocupava interinamente, como em várias outras ocasiões, o governo da província — escolher entre dois candidatos: Joaquim José Carlos de Carvalho, apoiado por Líbero Badaró, e Antonio Paes de Camargo, apoiado pelo bispo. O cabido (conselho de cônegos) escolheu Camargo para receber a prebenda (renda eclesiástica, mas que figurativamente pode significar uma sinecura, função em que se trabalha pouco e se ganha muito).
Número do Observador Constitucional |
Qualquer pessoa minimamente informada compreenderia se
tratar de uma palhaçada de Badaró, pilheriando fatos recentes, não só pelo
ridículo dos títulos mas pelo simples fato de que a Casa da Ópera não estava só
caindo aos pedaços, mas também alugada a um comerciante espanhol que a
utilizava para outros fins. Pedro I, porém, na total desorientação que marcou
os meses anteriores à sua abdicação, baixou decreto a 21 de julho proibindo a
encenação das peças. Coube ao bispo entender-se com Carneiro de Campos, Marquês
de Caravellas, novo responsável pela pasta do Império. Nas palavras azedas e
preconceituosas do clérigo ao ministro, em carta de 12 agosto, já se nota o
fundo desprezo que o nome do italiano inspirava aos governantes:
O bispo Manoel |
Um vômito de bile desse bispo que ninguém mais lembra. Em
frontal contradita, baseando-se no depoimento dos “coevos”, como se dizia na
época, Almeida Nogueira afirma que Badaró, “além de instruído, era bondoso e
tratava com carinho os seus discípulos. Estes estimavam-no, chasqueavam com ele
e chamavam-lhe o Botas, por usar de
calçado muito grosso e ter um pisar pesado e estrepitoso”. Segue o bispo em sua
verrina:
O velho José Arouche
de Toledo Rendon
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Por fim, não se
verificando nele o verso latino Dat Galenus opes,
etc.,* passou por acesso a redator daquela folha, que tem extração pelos
continuados ataques e chincalhações (sic) às autoridades e pelas
correspondências das intrigas, de que é cheia, sendo estas as matérias que a
gente miúda lê com apetite, ao menos por ser o que pode entender. (Almeida
Nogueira, 1908) * Dat
Galenus opes, dat Justinianus honores, sed Moses sacco cogitur ire pedes.
"Dá Galeno a riqueza, dá Justiniano as honras, mas Moisés vai a pé pedindo
esmola". (Robert Burton, filósofo e clérigo inglês — 1577/1640)
Mais uma vez, ao contrário do que diz esse bispo puxa-saco, Badaró nunca
deixou a medicina e seguia utilizando-a de forma benemerente. Prova disso é a
carta que mandou à Câmara Municipal de São Paulo em 21 de outubro de 1830,
mostrando que sabia quando era o momento para a pugna política e quando era
hora de baixar as armas, “persuadido de que os prejuízos do vulgo cessam em
face de uma autoridade paternal, e tão respeitável, como a da Câmara
Municipal”. Mostrava também sensibilidade e preocupação com as tenebrosas
epidemias de varíola que ainda eram tristemente comuns em São Paulo: “Tenho a
honra de remeter a Vossas Senhorias dezenove lâminas de ótimo pus vacínico, por
mim coligido nesta cidade, a fim de que Vossas Senhorias as façam distribuir
pelas diferentes vilas, que mais necessitarem. Pode a Câmara contar que eu não
me descuidarei, e continuarei a coleção de pus; portanto, se, por ventura,
precisar para o futuro ainda algumas lâminas, terei a honra de lh’as
apresentar” (Jacyntho Ribeiro, 1899).
Sobre isso, fala com muita propriedade o douto Spencer
Vampré, autor de estupenda obra sobre a Faculdade de Direito: “Reflita-se que
Jenner, o inventor da vacina, falecera há sete anos, em 1823; que a sua descoberta
encontrava tenazes opositores (...) e poder-se-á aquilatar da cultura e da
iniciativa do médico italiano” (Spencer Vampré, 1924).
Quadro de 1945, de autoria de Nair Opromola |
Interessante que Badaró tratasse com tanto carinho a Câmara
Municipal. É, no mínimo, indicativo de que ele fazia uma distinção clara entre
os diferentes ramos do poder. A partir de abril de 1830, por exemplo, sua
artilharia pesada esteve constantemente voltada para o ouvidor da província,
que seria algo próximo do secretário estadual de Segurança de hoje. Tratava-se,
à época, do advogado e médico Cândido Ladislau Japi-Assú de Figueiredo e Mello,
baiano nascido em 1799. Sendo Badaró liberal e libertário, era natural que se
insurgisse contra os abusos de Japi-Assú, que agia como um xerife da coroa, na
província. Referia-se a ele como “caligulazinho” no Observador, e não lhe dava trégua. Em setembro, ecos da Revolução
dos Três Dias, que depôs Carlos X provocaram grande euforia entre a juventude
brasileira, sobretudo aquela que freqüentava a Faculdade de Direito. Em parecer
da Câmara dos Deputados, citado por Octavio Tarqüínio, falou-se em “luminárias,
bandas de música e mais demonstrações de alegria praticadas pelos habitantes de
São Paulo pelo derrubamento do governo tirano e anti-constitucional da França”.
Não suportando ver o povo feliz, e associando o júbilo pela
queda do tirano de lá ao que seria um movimento subversivo com vistas a depor o
imperador daqui, que por sinal também já era visto como um tirano — “e um
tirano estrangeiro”, como observou Tarqüínio — Japi-Assú mandou processar
alguns dos estudantes de Direito envolvidos nas manifestações. Líbero Badaró
assumiu in limine a defesa dos
processados, pelas páginas do Observador.
O fim se aproximava. Na noite de sábado, 20 de novembro de 1830, Japi-Assú
jogava cartas em sua casa com alguns alunos e professores da Faculdade de
Direito. Em meio à conversa sobre a situação do país e os ataques do Observador, Japi-Assú resmungou, como se
falasse consigo mesmo: “Não tardará muito a que pague Badaró as injúrias que
têm vomitado”.
Badaró, por Tancredo do Amaral |
Não muito longe dali, na rua São José, o italiano voltava
para sua casa depois de um dia normal de trabalho. Aquela noite, segundo se
diz, estava claríssima, razão pela qual os lampiões não estavam sequer acesos.
Dois sujeitos escondiam-se nos desvãos da rua, onde hoje seria a esquina da
Líbero Badaró com a Praça da República. Fingiam-se de bêbados para não atrair
suspeitas e balbuciavam bobagens aos transeuntes. O problema é que determinado
transeunte reconheceu um dos bêbados, que era o alemão Henrique Stock, e lhe
respondeu: “Stock, vá cozinhar a bebedeira em casa. Não é decente curti-la aqui
na rua”, e seguiu andando. Stock e seu comparsa se calaram imediatamente. Pouco
depois veio o italiano. Assim que passou, Stock saiu do escuro e o chamou:
— O senhor é o jornalista e
doutor Líbero Badaró?
— Sou.
— Sr. Dr. Badaró, quero que Vossa
Senhoria ponha na sua folha o ouvidor Japi-Assú, que me lesou em um negócio de
farinha de trigo.
Cansado, Badaró replicou:
— Amigo, é um pouco tarde para
tratarmos disso. Venha depois de amanhã, segunda-feira, e então arranjaremos.
— Pois virei.
— Bem, então boa noite.
O outro sicário então saiu do
escuro, tirou uma arma debaixo da japona e disse:
— A correspondência contra o Dr.
Japi-Assú é esta!
Aquarela de Hércules Florence (1804/1879) de Badaró moribundo. É a única imagem do italiano. Todos os desenhos e pinturas de Badaró vêm desta aquarela.
Atirou uma vez no estômago de Badaró, que caiu, agonizando. O tiro atraiu quem estava por perto e assim que o italiano foi reconhecido, a rua São José virou um pandemônio. Um dos primeiros a acudi-lo foi o estudante Emiliano Fagundes Varella (filho do professor Luiz Nicolau Fagundes Varella e pai do poeta Fagundes Varella). Uma multidão se aglomerou em volta de Badaró e nas ruas adjacentes, enquanto era chamado às pressas o médico Joaquim Antonio Pinto, para tentar salvar o colega. Badaró foi carregado para sua casa e esse médico, junto a outros que iam chegando, examinaram o italiano, que estava lúcido, mas cujo estado terminal era irreversível. Ciente de que ia morrer, disse: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”. Morreu no domingo, 21 de novembro. Segundo o necrológio algo exagerado do Observador Constitucional de 26 de novembro, cinco mil pessoas (ou seja, um terço da população citadina), oitocentas delas brandindo tochas, estiveram no enterro de Badaró.
Retrato post-mortem de Badaró,
com a frase que o eternizou
Como sucede com aqueles sobre quem só se faz um levantamento biográfico várias décadas após seu desaparecimento (os primeiros relatos mais ou menos detalhados sobre a vida de Badaró começam a aparecer quase cinqüenta anos depois de sua morte, em O assassínio de João Baptista Badaró, de J. A. Pinto Junior — filho do médico que primeiro tratou do italiano — em 1876, nos Apontamentos Históricos, Geográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo de Azevedo Marques — sobrinho de Mestrinho — em 1879, e em Alguns apontamentos biográficos de Líbero Badaró, de Argemiro da Silveira, em 1890), toda essa parte final levanta controvérsias. Há quem fale de dois, três e até quatro alemães. Os nomes vão de Stock e Storck até Stockler. A celebérrima frase de Badaró, que eternizou sua existência e transformou-se em lema democrático e humanista, também tem variações. O Pharol Paulistano do dia 23 consignou que Badaró dissera “não importa, morre um homem livre mas fica a liberdade”. No dia 26 foi o redator do Observador Constitucional, em texto cheio de emoção e indignação, que afirmou ter ouvido dos lábios do próprio Badaró a frase textual, “morre um liberal, mas não morre a liberdade”.
A defesa de Cândido Japi-Assú. O
ex-ouvidor
foi absolvido por falta de provas
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Houve quem imputasse a Pedro I a autoria intelectual do
crime, o que não deixa de ser uma maldade com o imperador, que podia ser um
estróina, mas não era um assassino. A morte de Badaró, por sinal, contribuiu
para o desgaste total de seu reinado e em uma de suas últimas viagens como Imperador,
a Ouro Preto, em fevereiro de 1831, houve constrangimento quando se ouviu o
acintoso dobrar de sinos em exéquias a Líbero Badaró. Desgostoso, Pedro I
abdicou ao trono dois meses depois, em 7 de abril.
Passadas duas décadas, muito se falou sobre a possibilidade
de um desastroso erro judicial, que teria mandado à forca o alemão mas deixado
livre o homem que efetivamente puxou o gatilho. Essa história surgiu quando
várias pessoas declararam ter conhecido um velho mendigo, em Santos, que
confessou, pouco antes de morrer, ter matado Líbero Badaró para agradar os
governantes e obter ascensão em sua carreira militar, o que evidentemente não
ocorreu.
Epílogo
José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo,
morreu em 1847, aos 73 anos. Muitos foram os serviços que esse eminente
brasileiro prestou à pátria (inclusive a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, em 1838), mas foi sua Indicação de 14 de junho de 1823,
responsável pela criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, “o ato que
reputo o mais glorioso de minha carreira política, e que me penetrou do mais
íntimo júbilo, que pode sentir o homem público no exercício de suas funções”
(Vampré, 1924).
O Observador
Constitucional encerrou suas atividades em 1832. Não havia razão para sua
existência sem seu fundador. O Pharol
fechou no ano seguinte. A tipografia foi comprada pelo governo e continuou
imprimindo jornais por muitos anos.
O mestrinho
Antonio Mariano de Azevedo Marques, da primeira turma da Faculdade de Direito,
abandonou o curso depois de um ou dois anos porque, assim como Lincoln,
aprendera sozinho a ciência do Direito. Sua saúde frágil não o impediu de ser
advogado, juiz de paz, vereador, deputado provincial e membro do conselho do
governo. Em 1839 foi secretário no governo de Manoel Machado Nunes e em 1842 no
governo do amigo Costa Carvalho. Mudou-se para o Rio por motivos de saúde e lá
trabalhou no ministério da Justiça, do Império e na secretaria de estadual dos
Negócios do Império. Morreu aos 47 anos, em 1844.
Costa Carvalho, três anos antes de sua morte |
Finda a monarquia, em 1889, os republicanos lembraram da
luta pioneira de Líbero Badaró. A rua São José foi rebatizada com o nome do
médico e mártir italiano, e seus restos mortais foram trasladados da igreja de
Nossa Senhora do Carmo para o cemitério da Consolação. O nome ilustre, tão
representativo e simbólico para o movimento liberal não impediu, todavia, que
na rua que o homenageava se concentrasse a prostituição, no fim do século XIX e
início do século XX. É divertidíssima a descrição dramática e pomposa de Paulo
Cursino de Moura, em 1943, quando comenta que a rua “outrora (...) desnudou-se,
grotesca e imoralmente, aos olhos dos paulistas, como uma chaga no coração da
cidade, arrepiando os cabelos de matronas pudicas e sendo objeto de
recriminações de pais austeros ante a licenciosidade dos filhos-família”.
Segundo Cursino, a rua Líbero Badaró era “uma viela escusa, com paralelepípedos
soltos e cheiro nauseabundo”, enfim, “o receptáculo da miséria moral
paulistana”.
“Mais tarde”, continua Cursino, “o senso moral dos nossos
dirigentes removeu o vício para outro lugar, e como do esterco nasce a linda
flor dos trópicos, da escória de uma viela baixa surgiu a magnificência de uma realização
modelar na planta cadastral da cidade”. Cursino se refere, aí, às
administrações municipais sucessivas de Antônio Prado, do Barão de Duprat e de Washington
Luís, que empreenderam extraordinária obra de urbanização naquela área e
transformaram a Líbero Badaró em uma das ruas mais importantes do centro.
O padre José Marciano Gomes Baptista era calouro do Largo
São Francisco quando Badaró foi assassinado. Ele escreveu um soneto, que bem
representa a dor, a revolta e a saudade que ficaram desse jornalista pioneiro,
operoso e desassombrado, no espírito dos estudantes e cidadãos paulistanos,
paulistas e brasileiros:
Seja-te leve a terra, ó grande, ó justo!
Corajoso escritor, da pátria esteio,
Outrora ela te viu, sem vil receio,
Regar da liberdade o tronco augusto.
P’rigos venceste, subjugaste o susto,
Ao despotismo audaz puseste um freio,
Viste de bênçãos mil, de glórias cheio,
Triunfar a razão, mas não sem custo.
Ah! Se podem soar na eternidade
Os tristes ecos de magoado pranto,
Que em nós excita funeral saudade;
Atende, lá do empíreo sacrossanto,
À dor pungente, à lúgubre ansiedade,
Do Brasil, que, em perder-te, perdeu tanto!
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Bibliografia
- CALMON, Pedro. História do Brasil (Vol. V). São Paulo, José Olympio, 1959.
- LEITE, Aureliano. A História de São Paulo. São Paulo, Martins, 1944.
- MARTINS, Ana & BARBUY, Heloisa. Arcadas — História da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (1827/1997). São Paulo, Alternativa, 1998.
- MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora. São Paulo, Martins, 1943.
- NOGUEIRA, J. L. de Almeida. A Academia de São Paulo — Tradições e Reminiscências (Vol. III, IV e V). São Paulo, 1908.
- RIBEIRO, José Jacyntho. Chronologia Paulistana (Vol. II). São Paulo, Diário Oficial, 1899.
- SCHMIDT, Afonso. São Paulo de Meus Amores. São Paulo, Círculo do Livro, 1954.
- SEMERARO, Cláudia Marino (org.) – História da Tipografia no Brasil – São Paulo, MASP, 1979.
- SESSO JR., Geraldo. Retratos da Velha São Paulo. São Paulo, Maltese, 1987.
- SOUZA, Octavio Tarqüínio de. Diogo Antônio Feijó. São Paulo, José Olympio, 1960.
- TOLEDO, Lafayette. Imprensa Paulista (1827/1896). São Paulo, IHGSP, 1898.
- VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a História da Academia de São Paulo (Vol. I). São Paulo, Saraiva, 1924.
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