Para Cecília
Sobre ter nascido em Portugal
Eu nasci em Lisboa, sou lisboeta, alfacinha, pois não. Acidentes acontecem. O meu pai estava com um espetáculo, que foi a segunda peça escrita por ele, o Gimba, com a Companhia da Maria Della Costa, eles estrearam aqui no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, e foram convidados a ir a Portugal. Então viajaram de navio pelo Eugênio C, e naquela época você - até hoje, inclusive - não podia embarcar num navio se você estivesse com mais de seis meses de gravidez. Minha mãe já estava de nove, então acho que ela deu uma forjadinha lá no atestado, ela quase não tinha barriga e acabou embarcando. As viagens eram longas então o risco de você nascer no navio... e os navios não tinham estrutura para isso, pra fazer um parto, essa coisa toda, mas eu acabei nascendo uma semana depois que o navio chegou em Portugal, na comarca de São Sebastião da Pedreira, onde fui registrado e tudo, e fui registrado como português. Hoje sou naturalizado brasileiro.
Se eu tivesse nascido no navio seria italiano por causa da bandeira do navio. Já foi uma tontice minha, na verdade, porque naquela época, se você nascesse a bordo de um navio, da linha Costa, por exemplo, que era o Eugênio C da linha Costa, hoje eu teria passagem gratuita e vitalícia em qualquer navio da linha Costa. Dentro da barriga da minha mãe eu não sabia, ou então dei uma de português e fui nascer uma semana depois... (risos) Brincadeira, viu, com meus patrícios, que eu amo Lisboa, amo Portugal, isso já é que nem clássico Corinthians e Palmeiras, tudo mundo se provoca, não tem jeito.
Guarnieri e David José em Arena Conta Tiradentes |
Agora, tinha coisas da televisão, né? Por exemplo, eu lembro que quando eu assisti A Muralha, na Excelsior, meu pai fazendo, ele tomava uma flechada, e eu vi meu pai tombando e eu vi sangue, e eu falei "meu pai morreu!" Então pra mim, meu pai tinha morrido, então tiveram que me convencer!
Tem uma história que para mim é a mais genial e quase me custa a vida: eu fui assistir, quando eu era pequeno, um espetáculo do meu pai chamado Arena Conta Tiradentes, e no final do espetáculo, claro, a gente foi lá conversar com todo mundo do elenco, era o David José que fazia o Tiradentes, e eu vi o David lá, muito bem, inteirão, depois de ter sido enforcado, e não deu outra; eu fui pra casa e no dia seguinte, subi em cima de um caixote, amarrei o varal no pescoço e pulei (risos), porque eu achava que não ia acontecer nada. Aí meu pai e minha mãe me tiraram de lá, claro que não apertou, então só deu umas ranhuras, mas fiquei assim, pendurado no varal, não era tão alto, mas pra mim era assim, "pô, se ele pôde por que eu não posso, né?", era uma brincadeira bacana, então são essas histórias que de repente rolam, mas teve várias outras, várias, várias, tem muita coisa engraçada...
Flávio, pouco antes de sua estréia profissional |
Eu queria ser médico. Queria ser médico-pediatra, esse era o meu sonho porque eu amo criança, eu adoro criança. Depois eu quis ser piloto de avião, mas também não queria começar por baixo, já queria ser piloto de boeing logo, e depois eu quis ser piloto de automóvel, queria ser de Fórmula 1. E aí você pára pra pensar um dia, na sua vida, que você fala assim: "Qual é a única profissão do mundo em que você pode ser o médico pediatra, o piloto de avião e o piloto da fórmula 1? É a profissão do ator, que você pode ser o que você quiser, sempre". (...) Posso ser o vilão, posso ser o mocinho, posso ser o espadachim, posso ser o romântico, Cyrano de Bergerac, com essa napa que eu tenho, não preciso nem de maquiagem.
Quando a gente resolveu, realmente, ser ator, meu pai se reuniu uma vez comigo e com o Paulinho e apontou também muitas dificuldades, então ele falou assim que é uma profissão onde a concorrência nem sempre é leal, aonde você realmente vai ter momentos em que você vai passar fome SIM, que você vai ter que brigar, que você vai ter que lutar muito, e ele falou "agora, se depois de tudo isso que eu estou colocando vocês ainda persistirem na idéia de serem atores, vocês nasceram para serem atores". Então isso ele compreendia.
Uma coisa que sempre foi muito importante: por mais que a gente se falasse muito e conversasse muito sobre a profissão, sempre, tanto eu quanto o Paulo quanto o meu pai, era cada um na sua área, entendeu? Não tinha essa coisa de interferência, não. O que a gente achasse que era melhor pra gente, ele respeitava e era muito bacana.
Sobre a estréia
Eu freqüentei muito estúdio de televisão, muito bastidor de teatro, e tudo, mas eu comecei na escola fazendo teatro amador, com aula de teatro, mas não era uma coisa que eu falava assim, "ah, vou ser ator". Acabei sendo, acho que meio por acaso, porque veio uma diretora da França que se chamava Therese Thieriot, ela veio dirigir um espetáculo aqui em São Paulo chamado Sonata sem dó pra três executantes, do Marcilio Moraes, e tinha um ator que saiu do espetáculo antes do espetáculo estrear. E a Therese então me fez esse convite, falou assim "você não quer substituir ele, já que a gente não estreou?", eu falei assim "ah, vamos experimentar, vamos ver qual que é". Fiz esse espetáculo, acabei estreando exatamente no Teatro de Arena, onde meu pai estreou, minha estréia acabou sendo lá e foi emocionante, e com esse espetáculo eu ganhei meu primeiro prêmio de ator revelação da APCA, em 1977.
Tudo que eu faço na minha vida é com paixão. Eu só faço, realmente, aquilo que eu acredito. Primeiro que representar é minha vida, é minha vida. Eu acho que eu não seria nada e ninguém se não fosse a minha arte, se não fosse representar seja em que veículo for, seja no teatro, no cinema, na televisão, o meu ofício é esse, o meu ofício é representar, e representar, pra mim, só com paixão.
Sobre a cobrança do sobrenome
Já fui, já fui muito mais, e não só pela mídia mas também pelo público, era uma coisa muito engraçada. Porque quando eu estreei no Arena, e isso eu me lembro realmente como se fosse ontem, e olha que foi 77, eu estava chegando no teatro e ouvi duas senhoras conversando, e ouvi uma dizendo assim: "O pai é maravilhoso, vamos ver como se sai o filho". Isso foi uma coisa que eu ouvi muitas vezes, e era uma bobagem, porque você comparar o trabalho do meu pai com o meu, que estava apenas começando, não tinha sentido nenhum, como acho que ainda não tem hoje em dia, porque se eu chegar um dia no dedinho mindinho do meu pai eu já vou ser o maior ator do Brasil, porque realmente pra mim ele era extraordinário. Então essa cobrança existia bastante, no começo, sim, e pior do que essa, foi quando o meu irmão - porque nós estreamos praticamente juntos, eu e o Paulo, e existia também uma comparação muito grande entre a gente, entre eu e o Paulo, e uma competição que não existia entre a gente, parecia que as pessoas queriam estimular que a gente competisse, o que também era outra bobagem.
Paulo, Flávio e Guarnieri, 1980 (Blog Revista Amiga e Novelas) |
Mas isso há muitos anos atrás, coisa que nunca existiu, realmente coisa que nunca existiu, o Paulo é o meu grande incentivador, o meu irmão é a paixão da minha vida, mesmo, é um cara que nunca competiu comigo e que jamais vai competir, e eu jamais com ele, e isso era ridículo, mas eram coisas que aconteciam. (...) O Paulo é a minha referência, hoje, e é meu irmão mais novo. É minha referência, minha vida. Meu irmão é minha vida! Dou minha vida pela dele.
Sobre Os Adolescentes
Julia Lemmertz, Flávio e Tássia Camargo |
Os Adolescentes foi a primeira vez em que a televisão tratou de assuntos que eram considerados tabu, porque eram cinco adolescentes com vários problemas, então você tinha o menor infrator, você tinha a Julinha Lemmertz, foi a estréia dela, fazendo a Bia, que engravidava, você tinha a Majô, que era a Tássia Camargo, que se apaixonava pelo professor da faculdade, se apaixonava pelo homem mais velho, e eu que fazia o Caíto, que era um jovem homossexual. Então foi a primeira vez que a novela tratou de uma forma séria a questão do homossexualismo, sem esse caricato que as pessoas fazem hoje, não era uma "bichinha", era um homossexual. E foi a primeira vez que a televisão tratou isso de forma séria, a novela no início era da Ivany Ribeiro, que depois largou a novela porque a censura começou a cair de pau em cima e ela não tinha mais condições de escrever, porque eles realmente não deixavam ela colocar nada. Uma novela muito boa. Quem assumiu depois a autoria foi o Jorge Andrade.
Márcia de Windsor |
Eu tenho que contar uma porque era uma pessoa que eu amava muito, que era Márcia de Windsor, que fez a novela Ninho da Serpente comigo, fazia minha mãe, e eu só conto isso porque na verdade, quando você está fazendo uma novela, você mais convive com essas pessoas do que com a tua própria família. Então durante o tempo da novela, pô, Márcia era uma pessoa que eu almoçava junto, jantava junto, porque a gente trabalhava o dia inteiro junto, e faltavam três dias pra acabar as nossas gravações do Ninho da Serpente, eu indo pra Bandeirantes gravar, no táxi, e eu ouvi a notícia no rádio, de que a Márcia tinha falecido. Isso pra mim foi terrível inclusive porque as minhas últimas cenas seriam com ela, e aí eu tive que gravar sozinho, tipo, dizendo como se a gente tivesse mudado, já conseguido sair daquela casa, que era o ninho da serpente, tudo, e eu tinha que dizer várias vezes assim "não, o lugar que a mamãe está agora está muito melhor, é um lugar muito mais gostoso", e era difícil, era difícil dizer isso porque eu sabia que a Márcia estava num lugar muito melhor e muito gostoso, mas não estava mais perto da gente.
Flávio e Nice Marinelli |
O filme era Janete, um filme do Chico Botelho, que eu fazia um trapezista e o palhaço do circo, era um filme com a Nice Marinelli fazendo Janete, com a saudosa Lilian Lemmertz fazendo uma diretora do presídio feminino, que era fantástico o trabalho da Lilian, Luis Armando Queirós, Cláudio Mamberti, um elenco show de bola, show de bola. E eu passei um tempão da minha vida naquele circo, e era um circo assim... simples, realmente um circo simples, e tudo, mas foi muito gostoso, muito gostoso. Agora um frio, um frio de rachar, nesse circo. E foi neste filme que eu comecei com a desgraça da minha vida: foi aí que eu comecei a fumar. Com 21 anos de idade, olha que besteira! Por que a gente quando é velho comete burrice? Eu não entendo isso.
Você sabe que tinha nesse circo uma macaca chamada Emanuelle, se eu não me engano era o nome dessa macaca, e ela pra não atrapalhar as filmagens ela ficava dentro da jaulinha dela, lá. E uma coisa que era muito legal de fazer, é que como ela sabia dar laço em sapato, era muito bacana porque você desamarrava o sapato, colocava na jaulinha, botava na frente dela, pedia, e ela dava o lacinho. E eu fiz isso acho que umas dez vezes. Umas dez vezes. E aí o Chico me chamou pra filmar. Quando ele me chamou pra filmar eu virei e me estabaquei no chão. Mas me estabaquei legal! Ela ficou irritada que eu estava pedindo muito pra ela dar o laço, que ela desamarrou o meu outro pé e uniu os dois tênis. Ela começou a dar um montão de nó, pra justamente prender os meus dois tênis. No que eu virei eu tropecei e caí. E ela ria - depois fala que o macaco não pensa - mas ela ria, mas ela ria demais, e batia palma...
Sobre as leis de incentivo
Eu acho que são leis, primeiro, que ninguém entende, já começa por aí. Acho que são leis absolutamente complicadas, acho que essas leis deviam ser muito mais simples, e aquela coisa, eu acho que a gente tem que procurar ver, porque são sempre os mesmos, né? (risos)... uma coisa que acontece é que são sempre os mesmos, são sempre os mesmos, e, por exemplo, você tem projetos fantásticos às vezes que não são aprovados e você não sabe por quê, entendeu? Então eu acho que tinha que ter uma agilidade, principalmente na lei Rouanet, tinha que ter uma agilidade, porque às vezes você já tem o cara que está interessado em te dar o dinheiro, e você não tem a lei, então o cara não pode te apoiar porque você ainda não tem a tua lei aprovada, e tudo. Então acho que nesses casos, quando você já tem onde captar, você já tem como captar, deveria ter uma agilidade maior, de você só chegar com o projeto lá, eles já aprovarem teu projeto pra você poder captar. Agora, eu acho que tem que simplificar essas leis, eu acho que essas leis têm que ser um pouco mais simplificadas porque até as pessoas que trabalham com isso hoje não entendem, é que nem as leis brasileiras, né, você tem várias interpretações, tem vários buracos, acaba complicando tudo.
Apoios, tem vários. A gente chega no teatro, eu me apóio às vezes numa cadeira, às vezes eu me apóio numa coluna (risos), apoio a gente tem, onde se apoiar, vários. Agora, apoio financeiro, nothing, nothing, nothing. Nada. Você tem hoje leis que possibilitam o empresário a chegar e investir o seu dinheiro. Aí você tem, por exemplo - não tô desmerecendo ninguém, muito pelo contrário, gosto muito dela - mas você tem por exemplo, Cláudia Leite, que consegue aprovar o seu projeto na lei Rouanet, por seis milhões de reais. Entendeu? E obviamente que a Cláudia Leite tem muito mais cacife de conseguir captar esses seis milhões de reais, do que eu, por exemplo. Por quê? Porque ela tem uma visibilidade, no show dela, de trinta, quarenta mil pessoas por dia, então o cara que vai patrocinar, ele vai patrocinar o show da Cláudia Leite, porque ele vai ter a marca dele visível por trinta mil pessoas, coisa que eu não faço em um ano de teatro. Então eu acho que se não existir uma divisão realmente muito clara na própria lei Rouanet, "patrocínio pra show é uma coisa, patrocínio pra teatro é outra"... porque são veículos totalmente diferentes, gente, não dá pra colocar tudo no mesmo saco.
Também tem que se ver o seguinte: "é patrocínio da empresa tal". Na verdade é patrocínio do governo, se você for pensar; o patrocínio é do governo. Porque a empresa tal está te dando aquele dinheiro mas está descontando aquele dinheiro do seu imposto de renda, então a empresa não está te dando nada, e ainda por cima está veiculando a marca dela. Então a empresa está ganhando do governo, e está ganhando de você. Entendeu? E aí, fica parecendo, quando você chega numa empresa, que você está lá com o pires na mão, e falando assim "ai, por favor", tal. Não, querido. O interesse é mais deles do que meu.
Flávio e Othon Bastos em "Mortos sem Sepultura" |
Agora, o que eu gostaria de verdade, é que o teatro no Brasil fosse respeitado a tal ponto que a gente não precisasse de leis; que a gente pudesse viver, realmente, da bilheteria, que a gente pudesse viver do nosso trabalho, como a gente vivia alguns anos atrás. Porque a gente não ia atrás de patrocínio pra tudo, não. A gente tinha alguns apoiadores e só. E você conseguia pagar o teatro, você conseguia pagar o teu elenco, com bilheteria. O espetáculo era de terça a domingo, fiz várias vezes, duas sessões no sábado e duas no domingo, e o teatro lotado. Eu fiz um espetáculo chamado Mortos sem sepultura, do Jean Paul Sartre, no Maria Della Costa, que era abarrotado de terça a domingo, com sessão no sábado às oito e dez e meia da noite, e no domingo às seis e às nove, e ainda fazia um infantil, com uma sessão no sábado e duas sessões do infantil no domingo, também, fazia quatro sessões no domingo.
Flávio como o "Gato de Botas", direção de Paolino Raffanti, 2013 |
Eu adoro trabalhar com criança porque eu sou alucinado por criança, né? É o público mais sincero que você tem, porque criança quando não gosta, não gosta. E quando gosta, gosta mesmo. E vem e tira foto, e dá beijo, e te abraça, é muito legal, é muito gostoso. Enquanto ator de teatro, eu encaro da mesma forma que o teatro adulto. Eu acho que o profissionalismo é o mesmo, a seriedade é a mesma e eu acho até que às vezes você trabalhar pra crianças é uma responsabilidade muito maior. Eu acho que muitas vezes, aqui no Brasil, o teatro infantil foi tratado como uma arte menor. Entendeu? Então se montava qualquer coisa, se monta qualquer cenário, ah, não, "pecinha". Primeiro que falou "pecinha" eu já fico pau da vida, entendeu? Não é "pecinha", não, que "pecinha"? E você fazer teatro infantil é uma responsabilidade muito grande porque você está formando inclusive o público do teatro adulto de amanhã. Você está incutindo o gosto na criança, pelo teatro. (...) Então você tem que ter produções de qualidade, sim, pra que essa pessoa tenha gosto, e fale assim "nossa, teatro é isso? Eu vou sempre ao teatro". Agora, se ela entra e vê uma produção de nada, entendeu, uma coisa ruim, que não encante, ela vai chegar e falar "teatro é isso? Nunca mais vou ao teatro!"
E criança é sincera pra caramba. Eu vi um espetáculo uma vez, que eu não lembro qual que era, não vou lembrar agora, mas tinha uma fadinha que ela falava assim pra criança, (faz voz fina, de boneca) "nhe nhe nhe, e eu tô indo lá na casinha", não sei quê, o molequinho virou e falou assim, "ô mãe, ela tá pensando que eu sou o quê, débil mental?" (risos), entendeu? Por que que você tem que falar com criança desta forma, esse tatibitati, não tem necessidade, entendeu? Criança ouve, criança é inteligente, criança é esperta, entendeu, você não precisa falar assim.
Sobre Cultura
Eu vou dizer que existe a boa vontade, eu seria leviano se falasse que não existe uma boa vontade em relação a essas coisas. O meu pai foi secretário municipal de Cultura há muito tempo, e é complicado, é uma coisa complicada, eu acho, inclusive, que foi a época em que o meu pai foi mais infeliz porque não é às vezes da vontade de quem está no cargo, o problema é o que rodeia, é a máquina, é a corja, são aqueles que não querem que o negócio vá pra frente, entendeu, os perpetuados do poder, esses são perigosos, esses são perigosos, são aqueles que não vão sair nunca do cargo. Então a boa vontade existe, os atores têm ido à Brasília, têm conversado, eu acho que estão procurando movimentar mais esse tipo de coisa. Eu acho que enquanto realmente não houver uma compreensão, mesmo, e uma união entre os poderes e quem exerce a arte no Brasil, a coisa vai ficar meio parada.
Outra coisa: a gente fala muito em cultura. Fala que o brasileiro é um povo que não tem cultura. O problema do brasileiro é que ele tem FOME, o problema do brasileiro é que ele não tem SAÚDE. Esse é o problema do brasileiro, de maneira geral. O problema do brasileiro é que ele trabalha dez, doze horas por dia, e ganha um salário que é uma miséria. Você quer que este povo tenha cultura? Como? Não há um incentivo, realmente, não há uma coisa de estimular as pessoas.
Agora, em contra-partida, isso eu também falo, e aí eu acho que seja um pouco de falta de cultura, mesmo, que é o seguinte: os cinemas estão lotados. Com ingressos muito mais caros do que os de teatro. Porque o povo fala assim: "O teatro é caro". Querido, tem cinema aí cobrando pra você assistir um filme 3D, 60 reais! Entendeu? O ingresso, por exemplo, do nosso infantil, é metade disso, sendo que a meia é um quarto disso, e aí fala que teatro é caro? Eu também não entendo. Então eu falo, os cinemas estão lotados. É falta do hábito, mesmo. É falta de hábito de ir ao teatro. Agora esses, que você fala, que pegam ônibus, não sei o quê, e tudo, é perfeitamente compreensível. Ele não tem dinheiro pra comer! Esse não vai nem no cinema. Esse vê, lá, mal e mal uma televisãosinha que ele tem ali, porque todo mundo tem televisão, e mal servido pra caramba, porque a televisão, também, hoje em dia, pelo amor de Deus...
Sobre a carreira
Ter corpão pode fazer sucesso, eu quero ver é manter. Porque o corpão um dia acaba, não é assim. Eu quero ver manter. Abrir portas é muito fácil. Manter as portas abertas é complicado. Aí, meu amor, vai ser com talento, e com talento MESMO. Eu sou de uma época em que a classe teatral, a chamada classe teatral realmente eram os grandes nomes de teatro, né, Sérgio Britto, Lima Duarte, meu pai, Laura Cardoso, é só fera. É só fera! Hoje em dia eu nem discuto essa história de BBB, nem discuto, porque pra mim atriz é uma coisa, celebridade é outra, celebridade instantânea. (...) Então eu nem discuto essa bobagem. O grande erro é: os atores hoje entram em escolas de teatro achando que eles vão sair dessa escola e vão estrelar a próxima novela da Rede Globo, no horário das oito. Isso é uma mentira. Isto não é assim, isso não é assim. Então qual é o conselho que eu dou pra quem está começando? Estude. Mas estude, leia teatro, procure um curso de teatro sério, sério, nós temos vários aqui. O Teatro Escola Célia Helena, por exemplo, é um que eu aposto, porque é que nem uma faculdade, é realmente uma escola onde você aprende tudo, então procure uma boa escola de teatro, ou faça faculdade, faça EAD, agora, leia, leia muito texto de teatro, e comece com humildade. Porque você tem que decidir: ou você quer ser ator e atriz, ou você quer ser conhecido e dar autógrafo; são coisas absolutamente diferentes, então se prepare para ser ator, atriz.
Bibi Ferreira e Flávio, 2014 |
Sobre casamento
Eu fui casado dez anos, foi o meu único casamento, eu casei até muito tarde, porque realmente eu queria ter muita certeza de que era a mulher com quem eu queria me casar, mesmo. Infelizmente não deu certo, né, quando a gente casa é pra vida toda, e às vezes não dá certo... aliás, "não dá certo", não, deu certo, durante dez anos, eu fui extremamente feliz e tenho certeza de que fiz a ela muito feliz também. (...) Um relacionamento, pra mim, pra dar certo, tem três palavrinhas que são fundamentais: cumplicidade, verdade, confiança. Se você não tiver essas três, você não consegue ter amor. Porque o amor, pra mim, vem de uma base da amizade, mesmo. Você tem que ser amigo, antes de mais nada. Tanto é que hoje nós estamos separados e eu não deixei de ser amigo da minha ex-mulher. Nunca. Eu jamais vou virar inimigo da mulher que me fez mais feliz neste mundo.
Sobre o pai
Tem coisas engraçadas, né, porque do que eu me lembro, realmente, quando era pequeno, era muito mais aquela coisa de escola. As pessoas, quando sabiam que eu era filho do Guarnieri, nossa, as pessoas falavam maravilhas, maravilhas do meu pai, "nossa, que homem fantástico!", e não sei o quê, e pra mim, eu entrei, realmente, eu acho que num processo meio de endeusamento, mesmo, sabe, era a coisa do mito, né, era a coisa do ídolo, então era complicado porque o ídolo não tem defeitos, né? O ídolo não tem defeito nenhum então o meu pai, pra mim, não tinha defeito nenhum, era Deus no céu, meu pai na Terra e ponto final. E aí, conforme os anos vão passando você vai percebendo que reconhecer defeitos não é deixar de amar, muito pelo contrário, é amar muito mais, é amar respeitando muito mais, reconhecendo defeitos e qualidades.
É a pessoa talvez que tenha me apresentado esse mundo de magia, de coisas fantásticas, essa profissão que eu amo tanto. (...) O maior orgulho do mundo, de ser filho de Gianfrancesco Guarnieri. Não só como dramaturgo, não só como grande ator que foi, como grande diretor, grande produtor, mas sobretudo como grande homem, como pai, como amigo, pela postura política, pela sua determinação, pelo brasileiro de verdade que era, porque ele era italiano mas vivia no Brasil e sempre lutou pelo povo brasileiro, então é o maior orgulho ser o filho deste homem, que sempre lutou com o coração. Faz muita falta, muita falta. (...) O que extraí dele? O caráter. Eu acho que o caráter. O caráter, realmente... a humildade, a seriedade e a dedicação. Eu acho que eu extraí muito mais coisas do homem Guarnieri do que o ator Guarnieri.
Sobre a mãe
Paulo, Cecilia e Flávio, 2015 |
Minha mãe é jornalista até hoje, só de Estadão foram mais de 36 anos, foi da Política Internacional, Política Nacional, foi editora daquela coluna São Paulo Reclama, ela praticamente criou aquela coluna. (...) Minha mãe sempre foi uma super mãe, uma pessoa das mais generosas que eu conheço, de uma generosidade extrema, mesmo, é uma pessoa que tem três, te dá dois, fica com um, minha mãe é bárbara, é minha grande amiga, minha grande companheira. (...) Te amo, mãe, não dá pra dizer mais nada além disso. Te amo, te amo. É o mínimo que posso te dizer, mas acho que resume tudo. Te amo.
Sobre ambos
É uma mistura dos dois, porque acho que os dois me deram a mesma base. Primeiro é uma coisa que eu aprendi: não minta. A mentira é imperdoável. Eles sempre falaram isso: se você fez tal coisa e eu perguntar, "foi você?", diga que foi, porque o castigo vai ser menor. Porque se eu descobrir que além de tudo foi você, e você mentiu, vai ser pior. E os dois me deixaram esse espírito de luta, essa crença no ser humano, essa coisa de sempre acreditar que o mundo pode ser melhor, sempre acreditar no melhor, e humildade. Meu pai era uma das pessoas mais humildes que eu já conheci na minha vida. Então humildade, verdade, sinceridade, transparência foram as maiores lições. Se tivesse os dois aqui na minha frente - e na frente da minha mãe eu posso ainda estar, graças a Deus, eu tenho a minha mãe aí - eu não teria nada pra dizer além de "eu amo vocês". Nada. Eu acho que é tudo, obrigado, obrigado, obrigado, eu amo vocês, eu te amo, meu pai, onde você estiver, eu te amo, minha mãe.
Sobre Eu te amo meu Brasil
O Eu te amo meu Brasil conta a história do Brasil do ponto de vista de um narrador que lembra dele quando criança. Então desde a fundação de Brasília até o movimento Vem Pra Rua, nos dias de hoje, passando ali por Jango, Jânio, Bossa Nova, e é uma História do Brasil que as pessoas normalmente não conhecem, né? (...) E eu faço esse narrador e faço também o garoto. (...) Eu sou o Tuco, numa comédia musical do Atilio Bari, texto e direção dele, com um elenco maravilhoso, com a Sabrina Lavelle, Maira Cardoso, Lúcio Dicetaro e o Wagner Vaz, muito gostoso fazer, estou amando fazer esse Tuco, é um espetáculo que faz um relato dos 50 últimos anos do Brasil, de uma forma gostosa, lúdica, claro, tem os momentos barra pesada que o Brasil passou, que foi a época da ditadura, e tudo mais, mas tudo de uma forma bem legal, divertida e emocionante, é um espetáculo feito para você rir, chorar, se emocionar, cantar junto, eu acho que é um espetáculo muito gostoso.
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Eu sei que pra mim jamais vai existir um sonho impossível. Pra mim, tudo que é sonho, é possível. E eu, como um ser apaixonado que eu sou, eu sou um ser movido a paixão, e sempre fui movido a paixão, continuo acreditando no amor, continuo acreditando no próximo, continuo acreditando no mundo, no meu país, e continuo dizendo: sonhar é bom, sonhar é possível. Impossible dream? Never.
Flávio Guarnieri (1959/2016)
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Fontes:
UPTV- Programa ABC Talentos com Liliana Gonçalves (17/08/15)
https://www.youtube.com/watch?v=IzNrOxmyebU
ENCONTRO KAZUAL FLAVIO GUARNIERI - (Abril 2013)
https://www.youtube.com/watch?v=-jpk8hCxEAc
Bate-Papo com Cristina Pinho - JustTV - 18/03/13
https://www.youtube.com/watch?v=ezMG39VrN5w
Flavio Guarnieri - Programa Objetos e Memórias
https://www.youtube.com/watch?v=Zmx02hrw5vQ
Todo Seu - Visão Especial - Dan Rosseto e Flávio Guarnieri - 05/08/2014
https://www.youtube.com/watch?v=iJrkgTGo6PQ
Fotos: Arquivo Flávio Guarnieri, Cecilia Thompson e Bernardo Schmidt
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Ver também:
Belas histórias, gostosas de ler. É uma pena ele ter que ir cedo. Que descanse em paz.
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