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AS ESTRÉIAS DE BIBI — 2/4
BIBI, CARMEN SANTOS E OS 80 ANOS
DE "CIDADE-MULHER"
Carmen Santos (A Scena Muda, 6/9/32) |
Carmen Santos — não há como fugir deste lugar-comum ao falar dela — foi certamente a figura feminina mais interessante do cinema brasileiro. Não exatamente pelos méritos, mas quase sempre pelas adversidades e pela falta de sorte, bem como pela pertinácia e pela perseverança. Por todas as oportunidades que lhe chegaram a um palmo da mão mas ela não conseguiu segurá-las; enfim, por tudo aquilo que ela poderia ter sido e não foi. Carmen nasceu Maria do Carmo Santos Gonçalves, em Portugal, em 1904 e chegou ao Brasil com oito anos. Em 1919 encantou o americano William H. Jansen, que andava por aqui tentando fazer cinema, e ganhou dele um papel no longa Urutáu. O filme foi projetado duas vezes, uma para os críticos do Rio e outra para os críticos de São Paulo. A reação foi extremamente positiva, mas os patrocinadores se desinteressaram do projeto e retiraram toda e qualquer subvenção de uma hora para a outra, o que levou Jansen e sua família literalmente à miséria. Não se sabe ao certo o que aconteceu com ele, mas comenta-se que voltou para os Estados Unidos. Quanto aos negativos de Urutáu, desapareceram. Carmen não esmoreceu com a estréia frustrada; o prazer de participar daquela experiência e a vontade de ser atriz de cinema a contaminaram para sempre.
Em "A Carne", 1924 |
Cinearte, 9/2/27 |
Em 1929,
Adhemar Gonzaga, ainda sonhando em ter seu estúdio, resolveu tentar a direção
pela primeira vez. O filme era Barro
Humano, com argumento e roteiro do próprio Gonzaga. Ele convidou Carmen
para o mais importante dos três papéis femininos contidos no filme. Ela não
resistiu ao convite. Era tentação demais. Segundo a própria Carmen, “tive um
momento de desfalecimento e fraqueza e cheguei a ir filmar”. A empolgação
passou rapidamente: “Mas, em pouco tempo, a visão amarga de todas as
minhas provações me obrigou a desistir e... desertei, mais e mais convencida de
que o Cinema, embora exercendo sobre mim fascinação irresistível, não passava,
para a minha felicidade, de uma miragem!” (Cinearte,
6/11/1929)
Barro Humano foi um grande sucesso, o
que deve ter doído no ego da atriz e pesado na decisão seguinte tomada por ela,
de esquecer as desgraças e voltar de corpo e alma ao cinema. Semanas depois de
“desertar” do filme de Gonzaga, foi o mesmo Gonzaga que ela procurou,
arrependida, solicitando nova oportunidade. Como era fã confesso de Carmen, a
exemplo de Pedro Lima, Barros Vidal e todo o staff da Cinearte, Gonzaga deu um jeito de encaixá-la no quarto
filme de Humberto Mauro, dirigido e roteirizado pelo próprio, Sangue Mineiro. A expectativa era grande, o presidente de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, em gesto inédito, deixou seus pepinos governamentais de lado para assistir alguns takes e conversar com o elenco, e o trabalho teve uma recepção razoável em seu lançamento comercial, no início
de 1930. Seu único mérito real, com efeito, foi trazer a imagem da célebre
Carmen Santos em movimento pela primeira vez, de corpo inteiro e em close,
matando, por fim, a curiosidade daqueles que há dez anos a conheciam e estimavam
de graça, sem nunca tê-la visto "no écran", como se dizia.
Antes mesmo que
Sangue Mineiro fosse para os
projetores, Carmen já tinha engatado um novo projeto escrito e dirigido por Adhemar
Gonzaga, Lábios sem Beijos. As
filmagens começaram em outubro de 1929 e tudo ia muito bem até que o destino se
interpôs: Carmen levou um tombo e teve que se ausentar das filmagens. Na
seqüência, descobriu que estava grávida. Resultado: foi obrigada a abandonar Lábios sem Beijos. Sem Carmen, Gonzaga ficou
desgostoso com o projeto; deixou-o nas mãos de Humberto Mauro e foi realizar seu
sonho de ter um estúdio. Mauro dirigiu Lábios
sem Beijos com o roteiro de Gonzaga e a atriz Lelita Rosa no lugar de
Carmen. Lançado em 10 de novembro de 1930, foi muito bem recebido e é o primeiro
filme feito oficialmente pela Cinédia, o estúdio fundado, finalmente, por
Adhemar Gonzaga.
Carmen e Paulo Morano em "Lábios sem beijos", 1929 (Cinearte, 30/10/29) |
Carmen em "Limite", 1930 |
Celso Montenegro e Carmen em cena de "Onde a terra acaba" (A Scena Muda, 12/1/32) |
A questão
era simples: com exceção única de Charlie Chaplin, era seguro dizer que os
filmes mudos estavam mortos. Por que o público pagaria para ver atores fazendo
caras e bocas constrangedoras, quando num cinema ao lado podia assistir e ouvir
atores falando e interpretando como no teatro? Era necessário, então, partir
para o cinema falado. Mas Carmen, é preciso que se diga, não era uma boa atriz.
Não possuía o talento sólido de Sarah Nobre ou a beleza estonteante de Belmira de
Almeida, apenas para citar duas atrizes portuguesas, como ela, que alcançaram grande êxito no meio artístico brasileiro. Tinha carisma, uma sensualidade meio fria, um determinado grau de
presença cênica e uma aura de sumidade cinematográfica, por conta de tudo que
passara; ao fim e ao cabo, porém, a propaganda era bem maior do que aquilo que
Carmen tinha, efetivamente, para oferecer.
Cartaz de "Coisas Nossas", 1931 |
Humberto Mauro (Cinearte, 11/12/29) |
Aurora e Carmen Miranda (Correio de S. Paulo, 9/2/35) |
Gazeta de Notícias, 20/07/35 |
Dois rapazes recém-chegados de Paris trazem
maravilhosas idéias civilizadoras dentro do cérebro... Como, porém, voltaram
sem vintém, começaram por apelar para um leilão dos móveis e objetos de arte
que guarnecem sua “garçonniere”, último vestígio da passada opulência. A grande
idéia seria... instalar um cabaré na Favela! Para turistas à cata de novas
sensações e também para os habitantes da cidade. O capitalista seria o Sr.
Palmeira e o Sr. Palmeira ficou encantado com a idéia. No morro famoso, um dos
rapazes experimenta a maior surpresa: encontrou ali, vivendo entre os humildes,
ensinando as crianças a ler, Rosinha, uma princesinha encantada, rainha do
morro e logo — como é uso nos filmes — por ela se apaixonou. (O Radical, 10/10/35)
Rodolfo Mayer em "Favela dos meus amores" |
A parte
musical era rica e seria complementar. Sylvio Caldas cantaria quatro músicas: Arrependimento, Torturante Ironia e Quase que
eu disse, de sua autoria, e Inquietação,
de Ary Barroso; Ao Luar e Quando um sambista morre, também de Ary,
teriam a interpretação de 130 vozes do Orfeão Português; a canção-título, de
Nássara, Favela dos meus amores, seria
cantada por mais de 200 integrantes da Portela e do bloco “Fiquei Firme”,
acompanhados por mais de 40 músicos; Favela,
de Custódio Mesquita, com a dupla Joel e Gaúcho; o samba Cuíca, Pandeiro, Tamborim e Violão, com Liana Gonçalves e orquestra;
um maracatu composto por Aracaty, com Ítala Ferreira e Pedro Dias; a melodia de
Tolinha, de Custódio Mesquita, seria
usada incidentalmente, e a própria Carmen Santos testando seu talento, cantaria
um fado composto pelo maestro Bernardo Vivas.
Antônia Marzullo em "Favela dos meus amores" |
Jayme Costa e Belmira de Almeida (O Malho, 10/10/35) |
Rodolfo Mayer e Carmen (O Malho, 11/7/35) |
L.S.
Marinho, crítico abalizadíssimo e experimentado em Hollywood afirmou que em
termos de roteiro, pouquíssimo haveria a dizer. E estava certo. Pongetti era um
cronista competente mas não passava disso; como dramaturgo ou roteirista era medíocre. O grande mérito estava na direção de
Humberto Mauro, que realizou uma obra substancial a partir de um roteiro bobo e
raso. Já em se tratando de direção e interpretação, Marinho comentou que "na
indústria cinematográfica brasileira, Favela
dos meus amores é o melhor filme que temos produzido". (O Radical, 1/10/35)
Propaganda de "Favela dos meus amores"
O filme começou em outubro uma carreira vitoriosa pelos cinemas do Rio e do Brasil inteiro. O êxito financeiro não tinha precedentes. Ao invés de parar e pensar com calma no projeto seguinte, afim de não desperdiçar o extraordinário prestígio adquirido com seu último trabalho, Carmen fez exatamente o contrário: avisou Humberto Mauro que começariam a filmar novamente dali a poucas semanas e encomendou a Henrique Pongetti um novo roteiro o mais rápido possível.
Antes, porém, Carmen mudou o nome de sua produtora; os jornais não utilizavam o nome “Brasil Vox Film”, optando pelo simples “Vox Film”. Daí para “Vox Filmes” e por fim, “Fox”, foi um pulo. Os executivos da Fox entraram na justiça mas Carmen se antecipou e mudou espontaneamente para “Brasil Vita Film”. E no início de 1936 Carmen, Mauro e Pongetti mergulharam em uma nova aventura intitulada Cidade-Mulher.
Ironicamente, uma das primeiras notícias que vamos encontrar sobre o filme, em janeiro, nos faz uma revelação das mais alvissareiras:
O filme começou em outubro uma carreira vitoriosa pelos cinemas do Rio e do Brasil inteiro. O êxito financeiro não tinha precedentes. Ao invés de parar e pensar com calma no projeto seguinte, afim de não desperdiçar o extraordinário prestígio adquirido com seu último trabalho, Carmen fez exatamente o contrário: avisou Humberto Mauro que começariam a filmar novamente dali a poucas semanas e encomendou a Henrique Pongetti um novo roteiro o mais rápido possível.
Antes, porém, Carmen mudou o nome de sua produtora; os jornais não utilizavam o nome “Brasil Vox Film”, optando pelo simples “Vox Film”. Daí para “Vox Filmes” e por fim, “Fox”, foi um pulo. Os executivos da Fox entraram na justiça mas Carmen se antecipou e mudou espontaneamente para “Brasil Vita Film”. E no início de 1936 Carmen, Mauro e Pongetti mergulharam em uma nova aventura intitulada Cidade-Mulher.
Ironicamente, uma das primeiras notícias que vamos encontrar sobre o filme, em janeiro, nos faz uma revelação das mais alvissareiras:
A Noite, 15/1/36 |
Bibi,
portanto, de treze para catorze anos estava prestes a fazer uma nova estréia,
desta vez no cinema. Não como especulou a imprensa à época da entrevista de Serrador, e não sob a direção de Roulien, mas com sua participação e quiçá até por sua indicação. O problema é que a notícia não é exata. A filmagem de Cidade-Mulher não havia sido concluída
nessa época, e sim iniciada. Raul Roulien de fato visitou o set e improvisou o
foxtrote que Bibi cantou, mas não foi de Heckel Tavares a outra canção.
Artigo que veio do distante A Notícia, de Joinville, deu o furo com detalhes antes de qualquer jornal do Rio:
Uma das atrações do novo filme de Carmen Santos, a única estrela que possuímos, no momento, é a pequena Bibi Ferreira, filhinha de Procópio, o maior dos nossos artistas. (...) Aproveitando agora as férias colegiais, Bibi quis tomar parte nas filmagens de "Cidade-Mulher", não como profissional, mas como amadora, para prestar assim uma homenagem ao cinema brasileiro. Henrique Pongetto (sic) escreveu-lhe a sketch, que ela representa no filme, em companhia de sua mãe, a Sra. Ida Izquierdo (sic). Raul Roulien compôs, só para ela, um fox em inglês. Noel Rosa dedicou-lhe um samba interessantíssimo. Muraro entrou, para esse seu eclético e curioso repertório de "Cidade-Mulher", com um tango também inédito. Como se vê, a Brasil Vita Filme correspondeu a gentileza de Bibi com outras gentilezas semelhantes, proporcionando-lhe a fortuna de interpretar, com exclusividade, todos esses famosos autores, com o famoso Roulien à frente. (A Notícia, 19/2/36)
Roulien, Noel e Muraro! Um verdadeiro dream tem para a cena de Bibi. Parece que o jornal de Joinville obteve e divulgou as informações antes do tempo, pois as colaborações musicais de Cidade-Mulher só inundariam a imprensa meses depois, como veremos mais adiante. Os primeiros releases do filme, porém, não economizaram elogios à garota:
A Notícia, 19/2/36 |
Uma das atrações do novo filme de Carmen Santos, a única estrela que possuímos, no momento, é a pequena Bibi Ferreira, filhinha de Procópio, o maior dos nossos artistas. (...) Aproveitando agora as férias colegiais, Bibi quis tomar parte nas filmagens de "Cidade-Mulher", não como profissional, mas como amadora, para prestar assim uma homenagem ao cinema brasileiro. Henrique Pongetto (sic) escreveu-lhe a sketch, que ela representa no filme, em companhia de sua mãe, a Sra. Ida Izquierdo (sic). Raul Roulien compôs, só para ela, um fox em inglês. Noel Rosa dedicou-lhe um samba interessantíssimo. Muraro entrou, para esse seu eclético e curioso repertório de "Cidade-Mulher", com um tango também inédito. Como se vê, a Brasil Vita Filme correspondeu a gentileza de Bibi com outras gentilezas semelhantes, proporcionando-lhe a fortuna de interpretar, com exclusividade, todos esses famosos autores, com o famoso Roulien à frente. (A Notícia, 19/2/36)
Roulien, Noel e Muraro! Um verdadeiro dream tem para a cena de Bibi. Parece que o jornal de Joinville obteve e divulgou as informações antes do tempo, pois as colaborações musicais de Cidade-Mulher só inundariam a imprensa meses depois, como veremos mais adiante. Os primeiros releases do filme, porém, não economizaram elogios à garota:
Jayme Costa em "Cidade-Mulher" |
O novo
roteiro de Pongetti não se distanciou muito de Favela, em termos de simplicidade: um empresário teatral em
dificuldades financeiras e sua filha tentam utilizar o fascínio de uma baronesa
pelos cães para produzir uma revista com o dinheiro dela. O empresário seria
vivido por Jayme Costa, em pleno fastígio cinematográfico e requisitado a torto
e a direito. A filha é Carmen, seu namorado é Mário Salaberry e a baronesa é a
veterana Sarah Nobre. O conhecido escritor e ensaísta Bandeira Duarte faria sua
estréia como ator, no papel cômico do afeminadíssimo cabeleireiro Clô-Clô. Os releases também lhe despejavam encômios, dizendo que ele "se revelou um comediante moderno, mesmo chaplinesco, dentro do seu estilo satírico". (Diário Carioca, 1/7/36)
Segundo
Carmen, em entrevista ao Correio da Manhã:
“O cinema falado não pode improvisar artistas com facilidade. Necessitamos da
colaboração do teatro. Favela
revelou-nos Jayme Costa, que ficou sendo o melhor artista cômico do cinema
brasileiro. Seu papel, em Cidade-Mulher,
vai agradar ainda mais, mesmo porque, neste nosso novo filme, muitos dos
defeitos de Favela já estão sendo
abolidos, sobretudo quanto ao som e à difusão da luz”. Ela continua:
Sarah Nobre em 1919, quando ainda trabalhava na Companhia Nacional de Operetas (O Malho, 22/3/1919) |
Sarah Nobre e Mário Salaberry, ele bonito e
elegante como galã, e ela uma grande atriz cômica. Sarah Nobre é uma baronesa
que faz girar sua atividade social em torno de uma sociedade de proteção aos
vira-latas, aos cachorros deserdados da sorte, que ela manda recolher ao seu esquisito
[no sentido de “excêntrico”] hospital
para salvá-los da miséria e do vício... Jayme Costa é um empresário arruinado,
que salva seu teatro da falência, organizando um espetáculo em benefício dos
cães da baronesa, que nele descobre profundas semelhanças com o falecido
barão... (...) Sou a filha de Jayme Costa, a idealizadora, com meu noivo, que é
aí Mário Salaberry, desse "assalto" à bolsa da baronesa, que tudo dá
pelos cães vagabundos e pelos que deles também se condóem... (...) Compõem-se
de bom humor, de alegria carioca, de sambas, melodias agradáveis, e dos idílios
indispensáveis para contentar o público... (Correio da Manhã, 2/2/36)
Mário Salaberry (Fon Fon, 16/12/39) |
Malgrado o
comentário que era seu calcanhar-de-aquiles, pois Procópio era considerado um
homem engraçado e feio e Bibi era sempre referida como “a cara do pai”, ela começava
no cinema com a dupla mais prestigiada do momento: Carmen Santos e Humberto Mauro.
Só que os festejos de Momo daquele ano de 1936 se aproximavam e Carmen foi mais
uma vez relegada a segundo plano para dar lugar à estréia, em 20 de janeiro, de
Alô, Alô, Carnaval!, novo projeto
conjunto da Cinédia e da Waldow, com mais um roteiro de Braguinha e Alberto
Ribeiro, desta vez com direção do próprio Adhemar Gonzaga. E tome Carmen e
Aurora, Lamartine Babo, Chico Alves, Linda e Dircinha Batista, entre muitos
outros, além do entrecho cômico com Oscarito, Barbosa Junior, Pinto Filho e — ele
mesmo — Jayme Costa, pulando de um protagonista para o outro. Na parte musical,
quem estava no filme de Gonzaga e participaria também de Cidade-Mulher eram Heriberto Muraro e as Irmãs Pagãs.
O público
compareceu em peso; não importava a história porque era impossível não sucumbir diante do absoluto encantamento das talentosas e adoráveis irmãs Carmen e Aurora Miranda.
Para a crítica, porém, era mais do mesmo.
Carmen Santos em "Cidade-Mulher" |
Carmen Santos planejou uma super-produção. Iniciara a construção dos estúdios da Brasil Vita
Film e como eles não ficariam prontos a tempo de filmar Cidade-Mulher ela alugou o Theatro Casino, no Passeio Público (onde
Bibi se apresentou no evento em benefício à Casa do Pobre, em dezembro de 32) e
o artista plástico Arnaldo Rosenmayer se encarregou da recriação de parte da
praia de Copacabana e dos arcos da Lapa, para a porção do filme que envolveria a
apresentação da revista. As chamadas girls mais importantes do teatro e uma
série longa de artistas de rádio foram contratados. Em fevereiro o crítico
Pedro Lima assistiu à gravação de uma cena no Theatro Casino. Seu primeiro
comentário é ácido e questiona a escolha de muitas dessas girls: “Tratava-se de uma seqüência representando um palco de
revista com doze girls recomendadas
profissionalmente como bailarinas do Municipal, mas sem outros méritos senão a
beleza do rosto e das formas”. Na seqüência enumera os artistas que viu por lá:
Elvira e Rosina, as Irmãs Pagãs (O Cruzeiro, 1/8/36) |
Era justamente
a impressão que Mauro e Pongetti não queriam transmitir, ou seja, de que Cidade-Mulher
era mais um amontoado de girls e cantores
sem qualquer história relevante como fio condutor. Mas havia releases do estúdio
que tentavam explicar o título “Cidade-Mulher” fazendo uma analogia com a “feminilidade” do Rio, que acabavam beirando
o erótico e prejudicando a percepção geral:
Gazeta de Notícias, 23/1/36 |
Assim, no fio cintilante do filme, nas suas
cenas admiravelmente movimentadas pela técnica de Humberto Mauro — o nosso
"as" nº1 da direção — borbulha, flui, espouca, de fato, toda a
versatilidade do nosso espírito, a cor local desta cidade feminina de tão
sensual na sua beleza arredondada como um corpo adolescente, cheia de
"sex-appeal" na sua topografia, na expansão voluptuosa de seus
ritmos, de sua alma sonora e colorida... O caráter de comédia musical moderna —
com uma história a entrelaçar os seus quadros de música, de dança e de diálogos
— que lhe imprimiram os seus autores, serviu para localizar, assim, numa só
película, toda a intensidade psicológica e objetiva de nossa existência, no Rio.
(Diário Carioca, 23/6/36)
Pongetti e Mauro
entraram em cena para esclarecer as coisas. Disse o roteirista:
Escrevendo "Cidade-Mulher", Carmen
Santos, Humberto Mauro e eu quisemos fazer uma tentativa: superar o gênero
"music-hall" exploradíssimo nos nossos filmes pré-carnavalescos,
afrontando as dificuldades seriíssimas da revista numa cidade sem girls aprovadas
pela tela... Posso garantir-lhe que conseguimos o máximo possível: em
"Cidade-Mulher", a comédia e os quadros de revista formam um
espetáculo divertido, higiênico, honesto, que agrada aos fãs do cinema
brasileiro porque marca uma etapa de progresso artístico e técnico indiscutível
entre os filmes ligeiros produzidos no país. (Diário Carioca, 28/6/36)
Mauro seguiu
a mesma linha em suas declarações sobre o filme:
Bandeira Duarte (A Batalha, 16/7/36) |
Partitura de "Dama do Cabaré" |
A parte
musical era especial. As orquestrações eram do Maestro Bernardo Vivas sob a regência do Maestro Bichara Jorge. Mara Costa Pereira cantava a canção “A Macumba”, de seu
irmão Waldemar Henrique; filhos da cantora lírica Zola Amaro, os irmãos José e
Maria Amaro cantaram “Luar de Copacabana”, aparentemente escrita para o filme,
mas não pude apurar por quem; e “Adeus Rio”, de Assis Valente, foi cantada pelo
grupo do qual o compositor fazia parte, na época, a Banda Carioca. Carmen e
Humberto chamaram Noel Rosa e lhe pediram algumas músicas para serem cantadas e
utilizadas na trilha incidental. Até onde pude apurar Noel colaborou com quatro
músicas novas: “Cidade-Mulher”, que dá nome ao filme e foi cantada por Orlando
Silva acompanhado das Irmãs Pagãs; “Dama do Cabaré”, cantada apenas por Joel,
da dupla Joel e Gaúcho, “para um dos instantes dramáticos que Carmen Santos
vive no filme, sob a legenda Cabaré da Lapa, num cenário maravilhoso de
Rosenmayer, sintetizando aquele trecho do Rio, pela madrugada”. (A Ofensiva,
18/7/36); “Tarzan, o filho do alfaiate”, parceria com Vadico, cantada pelo
comediante José Vieira, acompanhado de Sylvia Drummond, Mary Kler e duas girls; e “Na Bahia”, parceria com José
Maria de Abreu, cantada por Bibi.
Orlando Silva canta "Cidade-Mulher", de Noel, acompanhado das Irmãs Pagãs |
O número dedicado à "Tarzan, o filho do alfaiate". Da esquerda para direita, Sylvia Drummond, Mary Kler, o comediante José Vieira, Carmen e Alice Figueiredo (O Cruzeiro, 7/3/36) |
Noel, em foto autografada de maio de 1936 |
"Cidade-Mulher" (...) apresenta
ainda a atração de seu fundo de revista, com os mais vistosos números de canto
e dança, quer em solos, quer em conjunto, (...) além da presença altamente
expressiva de Bibi Procópio Ferreira, que ali interpreta um "sketch"
em três idiomas, junto com sua jovem mãe, a Sra. Aída Izquierdo Ferreira, e de
outros estreantes em Cinema, que se revelam perfeitos artistas. (A Ofensiva, 18/7/36)
Assim é que nessa produção colaboraram Noel
Rosa, Waldemar Henrique, José Maria de Abreu, Muraro e até o querido astro
patrício Raul Roulien, que, com o seu “panache” habitual, tendo ido visitar,
certa vez, o set de "Cidade-Mulher", compôs de improviso um fox do
outro mundo, "Come on, Baby", para Bibi Procópio Ferreira. A jovem
filha do maior ator brasileiro, desse glorioso Procópio, conhecido até
além-fronteiras, apresenta em "Cidade-Mulher", continuando desse modo
as brilhantes qualidades de sua família de artistas, uma atuação de elástico e
expressivo mérito artístico; o seu "sketch", onde também aparece a
senhora Aída Izquierdo Ferreira, que gentilmente prestou esse favor à Vita, é
um conjunto de dança, comédia e canto, no qual Bibi interpreta um tango de
Muraro, também composto de improviso, no mesmo dia em que o foi o de Roulien;
um samba a caráter, "Bahia", e o referido fox". (A Batalha, 19/7/36)
Bibi herdou
o grande talento de seu pai, com a vantagem de fazer uma coisa que ele não sabe
fazer: cantar em inglês...
Para
começar, a história era boba demais. Escrita para ser um contraponto à Favela,
no sentido de mostrar o Rio turístico, aproximava-se mais de algo burguês e
esnobe. É a própria Carmen quem o declara, em uma de suas primeiras entrevistas
sobre o filme:
Em segundo,
Carmen, aos 32 anos, não se sentia bem interpretando as mocinhas previsíveis e
vazias escritas por Pongetti. Em poucas
palavras, seu próprio trabalho não lhe agradava. E estava certíssima em sua
percepção, mas isso não era exatamente um bom augúrio para alguém procurando
promover seu novo filme. Mais uma vez, é Carmen quem o diz:
Para piorar, repetiu a mesma coisa de maneira ainda mais contundente em entrevista publicada exatamente um mês antes da estréia:
Dentro de poucas semanas a Brasil Vita começará "Ouro Verde", sob a direção de Humberto Mauro. Será o drama do café, vivido nas fazendas mineiras e paulistas, com um papel que se adaptará ao meu temperamento romântico e cigano, porque eu não gosto, saibam vocês, do que fiz nos meus dois últimos filmes, "Favela" e "Cidade-Mulher"... (O Jornal, 27/6/36)
Como se não bastasse, Humberto Mauro fez coro, afirmando que Cidade-Mulher era um “gênero de filme que não permite a Carmen Santos um trabalho de interpretação de acordo com as suas possibilidades de atriz dramática. Seu primeiro importante trabalho nesse gênero, na Brasil Vita Film, será Ouro Verde". (Diário Carioca, 28/6/36) Ambos comentários que não podiam ter sido feitos pela atriz principal e pelo diretor de um filme prestes a estrear.
Também não ajudava em nada que Carmen declarasse, orgulhosa, já ter sido fotografada 5.300 vezes e que sua imagem com expressão eternamente lânguida e com os olhos semi-cerrados estampasse todas as propagandas de Cidade-Mulher, referida como uma comédia "alegre e sentimental". Isso pode ter sido muito bom quando o cinema era mudo e os filmes dela eram sempre dramalhões românticos, mas não naquele momento em que os brasileiros estavam hipnotizados pela vivacidade e os sorrisos lindos das irmãs Carmen e Aurora Miranda (sem falar que Ouro Verde ficou só na idéia e nunca foi produzido).
No dia 7 de
julho Carmen promoveu um jantar em homenagem ao
casal Raul Roulien e Conchita Montenegro. O brasileiro e a argentina eram
naquele momento duas das maiores estrelas sul-americanas do cinema e receberam
inúmeras homenagens durante o tempo em que estiveram casados. Mas aquilo era uma evidente mistura de provocação à ACPB e à DFB, e desagravo pelos episódios recentes. O evento,
ocorrido na casa de Carmen, começou com o jantar e durante os discursos
louvando a carreira de Roulien e sua esposa, a anfitriã falou sobre a
necessidade de ser criada uma "Escola Técnica Cinematográfica
Brasileira", idéia que foi aceita e apadrinhada por todos e uma das iniciativas na qual ela desejava que fossem aplicados os lucros auferidos injustamente pela DFB. Por isso mesmo em seguida ela propôs
a doação dos lucros de Cidade-Mulher
à futura instituição e foram todos para o jardim, onde um telão foi montado
para uma avant-première. Estava presente a nata da crítica cinematográfica.
O rádio já era um veículo
bem difundido mas a imprensa escrita ainda era o verdadeiro chamariz de público
para o cinema. Era normal, portanto, que eles estivessem lá não só para homenagear Roulien e desagravar Carmen, mas para ver o filme. A inovação de
Carmen, nesse caso, foi que terminada a projeção havia uma câmera montada no
jardim para que eles pudessem dar sua opinião ali mesmo, na hora. Falaram Rachel Crotman, de A Noite Ilustrada, a já conhecida Zenaide Andrea, da Gazeta de Notícias, Raymundo de Magalhães Jr., de A Noite e Carioca, Mário Nunes, do Jornal do Brasil, Alfredo Sade, de A Batalha, Celestino Silveira, da Rádio Mayrink Veiga e L. S. Marinho, do Correio da Manhã e de O Radical.
A primeira crítica
publicada veio de Raymundo Magalhães, dez dias antes da estréia. Foi positiva e citou Bibi, embora tenha metido-lhe
o invariável chute no calcanhar-de-aquiles: "Há no filme cenas ótimas.
Entre essas, destaco a da Macumba,
cantada pela grande cantora regional Mara da Costa Pereira, e a do bazar de
bonecos, em que aparece, numa estréia brilhante, a filha do notável comediante
brasileiro Procópio Ferreira, a Bibi, mostrando ser uma legítima herdeira da
cara e do talento paterno. Há detalhes nesse quadro que valem um filme, como,
por exemplo, o dos brinquedos, animando-se, colaborando na cena, com a
pequenina artista".
A Brasil Vita
ainda produziu dois filmes. Em 24 de setembro de 1952, aos 48 anos, Carmen morreu
de câncer. Seis anos depois, o destino lhe pregou uma última peça: um incêndio aniquilou parte dos estúdios da Brasil
Vita, e nele foram destruídas as únicas cópias de Favela dos meus amores, Cidade-Mulher
e Inconfidência Mineira. A posteridade,
portanto, só conhecerá esses trabalhos de Carmen pelas fotos e pela imprensa.
No dia 27 de julho, tanto o lançamento de Cidade-Mulher quanto a estréia de Bibi no cinema completam 80 anos.
Um release mandado ao Diário Carioca detalha e fornece importantes informações sobre a cena de Bibi:
Raul Roulien (O Malho, 9/7/32) |
Bibi
declama, canta e dança.
Em
"Cidade-Mulher" ela é uma menina que se revolta por não haver um
teatro infantil no Rio de Janeiro. Por isso improvisa no seu quarto, cheio de
bonecas e bichos de alma mecânica, um teatrinho de emergência, de que ela é a
estrela exclusiva, no seu papel multiforme de Lili, a transformista sem
rival...
Cinco
"ases" reuniram-se aí para preparar o espetáculo que Bibi Procópio
Ferreira oferece às crianças brasileiras em "Cidade-Mulher": Humberto
Mauro, que a dirigiu na filmagem; Henrique Pongetti, que lhe escreveu a
seqüência; Roulien, que lhe dedicou um "fox"; Muraro, que lhe compôs
um tango, e Noel Rosa, que lhe compôs um dos seus melhores sambas
"filosóficos".
Bibi
declama, canta e dança, e as suas bonecas e os seus bichos de alma mecânica
aplaudem-na ou vaiam-na, segundo suas preferências... (Diário Carioca, 24/7/36)
Diário Carioca, 24/7/36 |
Correio da Manhã, 15/7/36 |
Pela
descrição, deve ter sido uma cena fantástica. Bibi — apesar da péssima foto escolhida para seu release, em que aparece séria, com um boné esquisito, parecendo um garoto, ao invés de valorizar sua beleza adolescente — tinha um número solo dedicado ao público infanto-juvenil (com
Aída na coadjuvância), oportunidade de mostrar vários
talentos e ainda por cima interpretando canções inéditas do respeitado Muraro,
do famosíssimo Roulien e do maior compositor brasileiro de então, Noel Rosa. Prazer e honra indescritíveis para a menina de treze anos. Entrevistada por Lima Duarte no Programa Som Brasil, de 1984 — uma das poucas vezes em que falou sobre Cidade-Mulher, e não por guardar qualquer reserva em relação ao assunto, mas pela simples razão de que ninguém, nem repórteres teatrais e nem sua própria assessoria, tem sequer noção de que ela fez esse filme — Bibi deu precioso depoimento:
Com o Noel foi engraçado; eu tinha onze anos, doze anos, e eu fui fazer um filme, um filme nacional chamado "Cidade-Mulher". Naquela época, o grande cartaz do Brasil era o Orlando Silva. Arrancavam as coisas do Orlando, o Orlando não podia andar no meio da rua, arrancavam a gravata, pedaço do terno, não sei o quê, o pobre rapaz — era muito jovem naquela ocasião —
chegava, enfim, mutilado, né? E esse ídolo fez esse filme, uma produção de Carmen Santos, e minha mãe — não fosse minha mãe eu não teria sido nada, sabe?, na vida, não tinha sido artista, não — minha mãe me empurrou. Disse "ah, Bibi vai cantar", não sei o quê. E Bibi começou a cantar o negócio ali, o Noel que ia fazer a parte musical da peça, disse "bem, vamos ver". Ele não gostou muito não, sabe? Disse "criança dá muito trabalho! Isso aqui já dá trabalho em si, se ainda bota uma criança, vai ser pior".
Aí, ele disse "bom, eu tenho que escrever uma música pra essa menina cantar". Escreveu a música, levei pra casa, fiquei lá tentando tirar a musiquinha, música fácil, "aonde é que o nosso Brasil principia, na Bahia, na Bahia". Aí quando eu fui ensaiar, toda maquiada de baianinha branca, e depois cantava a mesma coisa de baianinha preta, a branca pintadinha de preto, e a preta vestidinha de branco, quando eu fui cantar ele disse: "Não é nada disso, menina! Não é nada disso! É aqui, ó: Aonde é que o nosso grande Brasil princi — pia!" Eu digo, "ih", "aonde é que o nosso grande Brasil principia", "Não! Princi — pia! tarara, princi — pia!", ele queria uma divisão, tinha que estar acostumada a cantar, uma profissional, eu tinha onze anos, mas gravei, tudo bem, o filme passou.
Ela entrava com o pé direito no cinema... Ou não. Tudo parecia extraordinário, os releases dizendo maravilhas eram publicados às dezenas nos mais variados jornais, mas a verdade é que desde o início havia algo fundamentalmente errado com Cidade-Mulher. Seja pela pressa com que foi produzido, seja pela repetição de Pongetti — exaurido depois de parir Favela dos meus amores — e Jayme Costa — pela super exposição, estando em três ou quatro filmes ao mesmo tempo — ou qualquer outra coisa, o filme não estava empolgando nem seus produtores.
Bibi em 1984, contando a Lima Duarte como foi trabalhar com Noel em "Cidade-Mulher" |
chegava, enfim, mutilado, né? E esse ídolo fez esse filme, uma produção de Carmen Santos, e minha mãe — não fosse minha mãe eu não teria sido nada, sabe?, na vida, não tinha sido artista, não — minha mãe me empurrou. Disse "ah, Bibi vai cantar", não sei o quê. E Bibi começou a cantar o negócio ali, o Noel que ia fazer a parte musical da peça, disse "bem, vamos ver". Ele não gostou muito não, sabe? Disse "criança dá muito trabalho! Isso aqui já dá trabalho em si, se ainda bota uma criança, vai ser pior".
Aí, ele disse "bom, eu tenho que escrever uma música pra essa menina cantar". Escreveu a música, levei pra casa, fiquei lá tentando tirar a musiquinha, música fácil, "aonde é que o nosso Brasil principia, na Bahia, na Bahia". Aí quando eu fui ensaiar, toda maquiada de baianinha branca, e depois cantava a mesma coisa de baianinha preta, a branca pintadinha de preto, e a preta vestidinha de branco, quando eu fui cantar ele disse: "Não é nada disso, menina! Não é nada disso! É aqui, ó: Aonde é que o nosso grande Brasil princi — pia!" Eu digo, "ih", "aonde é que o nosso grande Brasil principia", "Não! Princi — pia! tarara, princi — pia!", ele queria uma divisão, tinha que estar acostumada a cantar, uma profissional, eu tinha onze anos, mas gravei, tudo bem, o filme passou.
Ela entrava com o pé direito no cinema... Ou não. Tudo parecia extraordinário, os releases dizendo maravilhas eram publicados às dezenas nos mais variados jornais, mas a verdade é que desde o início havia algo fundamentalmente errado com Cidade-Mulher. Seja pela pressa com que foi produzido, seja pela repetição de Pongetti — exaurido depois de parir Favela dos meus amores — e Jayme Costa — pela super exposição, estando em três ou quatro filmes ao mesmo tempo — ou qualquer outra coisa, o filme não estava empolgando nem seus produtores.
Carmen em cena de "Cidade-Mulher" (O Cruzeiro, 7/3/36) |
Creio que “Cidade-Mulher” fará sucesso por
ser o primeiro filme verdadeiramente elegante no Brasil. “Favela” nos mostrava
um Rio de Janeiro típico, sentimental, com os seus morros e os seus sambistas. “Cidade-Mulher”
cuida de um outro lado do Rio; do Rio encantador de Copacabana, do Rio galante
que encanta os turistas. Os cenários são moderníssimos, retratando ambientes de
luxo. E as toilettes que os artistas apresentam serão, decerto, um lindo
espetáculo para os olhos femininos... Vestirei, em “Cidade-Mulher”, talvez uns
vinte modelos de Paris. (Jornal das
Moças, 23/1/36)
Uma das
cenas que mostrava o canil da baronesa serviu para que aparecessem, em cameos, as esposas de atores e pessoas
envolvidas com a produção, além da crítica teatral da Gazeta de Notícias, Zenaide Andrea: "Em certo quadro, aliás de
muito sense of humour, desse filme da
Vita, aparecem, então, as Sras. Ayda Conceição, Hortência Lisboa, Esmeralda de
Monteiro, Margarida Bandeira Duarte, Dalila Rossi, Ayda Pongetti e a jornalista
Zenaide Andrea, atuando todas no ‘laboratório para cães de luxo’ da baronesa
filantrópica e pitoresca, que é a dama central do enredo"... (A Batalha, 23/7/36)
Como piada interna era interessante mas para o público significava um desfile de desconhecidas e um jabá inconfesso à crítica da Gazeta. Não que fosse uma coisa do outro mundo; a mesma Zenaide também participou de Bonequinha de Seda, que a Cinédia vinha produzindo ao mesmo tempo, com direção e roteiro de Oduvaldo Vianna. Apenas imaginava-se que o filme de Carmen teria qualidade suficiente para não precisar agradar quem quer que fosse a priori.
Como piada interna era interessante mas para o público significava um desfile de desconhecidas e um jabá inconfesso à crítica da Gazeta. Não que fosse uma coisa do outro mundo; a mesma Zenaide também participou de Bonequinha de Seda, que a Cinédia vinha produzindo ao mesmo tempo, com direção e roteiro de Oduvaldo Vianna. Apenas imaginava-se que o filme de Carmen teria qualidade suficiente para não precisar agradar quem quer que fosse a priori.
O Cruzeiro, 18/4/36 |
Lá no meu íntimo ainda não estou satisfeita,
como artista. (...) Tenho tido nelas [suas produções] função de estrela, mas sinto que não desperte no público um entusiasmo
correspondente à publicidade que se faz do meu nome. (...) É que meu tipo não
se adapta bem a papéis ingênuos como o de Rosinha, em “Favela”, ou frívolos
como o da Dóris, em “Cidade-Mulher”. Aceitei-os porque não me parece também
aconselhável fazer agora experiências com estreantes, inteiramente
desconhecedoras do cinema. Pelo que já tenho vivido e sofrido, pelas minhas
expressões fisionômicas, pela minha maneira de falar, por tudo, enfim, devo
empolgar mais o público em papéis mais graves e emocionais, desses de mulher já
feita, em luta aberta com todas as paixões humanas, por mais violentas que elas
sejam. Aí sim eu me sentiria à vontade, dando amplas expansões ao meu
temperamento artístico. (Jornal do
Brasil, 16/2/36)
Fon Fon, 5/10/35 |
Dentro de poucas semanas a Brasil Vita começará "Ouro Verde", sob a direção de Humberto Mauro. Será o drama do café, vivido nas fazendas mineiras e paulistas, com um papel que se adaptará ao meu temperamento romântico e cigano, porque eu não gosto, saibam vocês, do que fiz nos meus dois últimos filmes, "Favela" e "Cidade-Mulher"... (O Jornal, 27/6/36)
Como se não bastasse, Humberto Mauro fez coro, afirmando que Cidade-Mulher era um “gênero de filme que não permite a Carmen Santos um trabalho de interpretação de acordo com as suas possibilidades de atriz dramática. Seu primeiro importante trabalho nesse gênero, na Brasil Vita Film, será Ouro Verde". (Diário Carioca, 28/6/36) Ambos comentários que não podiam ter sido feitos pela atriz principal e pelo diretor de um filme prestes a estrear.
Caricatura de Carmen feita pelo gênio cearense Mário Mendez (O Malho, 10/10/35) |
Terceiro e
último, na véspera do lançamento de Cidade-Mulher
Carmen se meteu numa briga horrorosa com duas instituições burocráticas do
cinema nacional: a ACPB, Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros e
a DFB, Distribuidora de Filmes Brasileiros. Resumindo, em 1932 Vargas criou o
decreto 21.240, que regulamentava as atividades do cinema no país e, entre
outras coisas, obrigava os cinemas a incluírem a exibição de filmes
brasileiros. Pouco depois surgiram essas duas instituições para atuar como
braço administrativo no trabalho artístico dos cineastas. A associação
congregava os artistas e a distribuidora levava os filmes até o maior número de
localidades, fazendo o possível para que fossem
priorizados sobre os estrangeiros. Os lucros decorrentes seriam destinados a
uma “obra protetora do cinema nacional em formação”, segundo Carmen, que
ingressou na associação a convite de Adhemar Gonzaga.
O Jornal, 27/6/36 |
Só que os burocratas da DFB se tornaram gananciosos, pretendendo “colher
os resultados dos esforços dos que vêm durante toda uma existência querendo
criar um cinema brasileiro no Brasil”. Aproveitaram que o decreto os eximia de lutar pela exibição dos filmes nacionais, agora obrigatória, e
transformaram a DFB em uma sociedade por quotas, ficando com o controle de seus
capitais. Carmen explica, em entrevista a O Jornal de 27 de junho:
Instituído assim esse monopólio sob bases
individuais, trataram de renovar o convênio anterior, pelo qual seus
signatários se obrigavam a só entregar seus filmes aos exibidores através da
distribuidora primitiva, que era uma dependência direta da nossa associação.
Não concordando com isso, desliguei-me da associação e me recusei a aderir ao
novo convênio, por divergir dessas suas novas e secretas finalidades. Que é
realmente a distribuidora senão um monopólio? O governo baixa um decreto
excelente, tornando obrigatória a exibição em todos os cinemas brasileiros de
filmes feitos no Brasil e um grupo de comerciantes se atribui o direito de só
eles negociarem esses filmes... Isso é monopólio, evidentemente.
O Malho, 26/9/35 |
O caso era
escabroso. Carmen nunca pedira um centavo ao governo para fazer seus filmes e
agora um bando de mascates arrivistas, parasitas e vagabundos exigia que ela
fechasse um contrato de exclusividade de exibição de todos os seus filmes com a
DFB, que aliás fizera (e ainda fazia) uma fortuna com Favela dos meus amores. Carmen tinha toda razão para estar
indignada e foi incisiva na qualificação que fez deles:
Os donos da distribuidora, que hoje se
intitulam defensores exclusivos do cinema brasileiro, que montaram uma empresa
para colher os frutos da árvore que outros denodadamente plantaram, nada de
útil têm feito para que seus nomes apareçam na história do nosso cinema. Na sua
maioria, dedicavam-se antes de 1930 à indústria dos pequenos filmes de
propaganda comercial e de bajulação a presidentes da República e a
governadores, tudo isso sob encomenda e a preços ótimos...
Em seguida
Carmen revela um fato estarrecedor: a DFB exigia 20% da receita bruta dos
filmes em São Paulo e Rio, e 30% no interior do Brasil. E isso “quando é sabido
que em 98% dos nossos cinemas apenas nos dão 30% do produto das suas
bilheterias... Com que, depois, remunerar condignamente os autores, os
compositores, os artistas, os técnicos, os operários? E as montagens? E os negativos?”
(O Jornal, 27/6/36)
Francisco Serrador (O Malho, 4/6/36) |
Consumado o
desligamento de Carmen e a recusa em assinar o contrato, seguiu-se uma troca
azedíssima e virulenta de cartas entre ela e o diretor da DFB. Raul Roulien e seu
câmera William Gericke, Alberto Byington (de Coisas Nossas), Antônio Leal (português de nascimento, mas produtor
de alguns dos mais antigos filmes nacionais, remontando a 1903) e outros a acompanharam.
A vingança da ACPB foi de uma baixeza que ninguém poderia esperar: uma carta
foi mandada ao venerando Francisco Serrador, sugerindo que “para evitar futuros
dissabores”, deveria revogar seu acordo com Carmen, impedindo a exibição de Cidade-Mulher no Alhambra. Ou seja, sem
qualquer disfarce ou rodeio tentavam chantagear aquele que menos de um mês
antes fora homenageado com uma placa de bronze fixada em frente a seu cinema,
com a presença de Vargas, por suas múltiplas contribuições ao cinema nacional.
Serrador, que antes mesmo de qualquer decreto já passava por cima dos lucros para exibir não um — como mandava o decreto — mas dois filmes brasileiros
por mês na sua prestigiosa casa de espetáculos.
Serrador não
se intimidou e deu publicidade à carta. A imprensa imediatamente se colocou ao lado
dele e de Carmen. Lygia Salles, diretora de Publicidade da DFB, ficou tão ultrajada com a atitude seus superiores que se demitiu sumariamente do cargo em solidariedade ao empresário e à produtora. Fosse qual fosse o problema, não havia desculpa para que alguém
tão benemérito quanto Serrador ou tão operosa quanto Carmen fossem tratados assim. O jornalista
Celestino Silveira foi arrasador em sua crônica lida na Rádio Mayrink Veiga: “Nós
que sempre combatemos o trust,
nocivo, pernicioso, absorvente, dos exibidores que açambarcam grande número de
cinemas, não podemos silenciar diante de um trust
semelhante, que se está formando, e o que mais importa, escudado em um simples
favor do governo”. E fulminou, na conclusão:
Gazeta de Notícias, 14/7/36 |
Carmen Santos pode ter todos os defeitos,
mas é uma esforçada. Faz filmes com o seu capital e não amparada por decretos.
Serrador tem um cinema que bafeja o filme brasileiro e não conta com favores do
governo. Só a Associação Cinematográfica dos Produtores Brasileiros e a DFB
vivem à sombra do decreto 21.240. (...) Ainda é tempo da Associação
Cinematográfica reconsiderar a deselegância, a falta de ética e o ridículo em
que está incorrendo. Principalmente a falta de ética. (O Jornal, 24/6/36)
Não sei se a chantagem da ACPB era real ou blefe, mas passados alguns dias, não
se falou mais do assunto e a estréia de Cidade-Mulher
continuou sendo divulgada no Alhambra para o dia 27 de julho. Uma coisa, entretanto,
era certa: a partir daquele momento Carmen teria que se virar para que seus filmes pudessem ser vistos pelo resto do Brasil. E sua relação com Adhemar Gonzaga, que seguiu ocupando o mesmo cargo na direção da ACPB, nunca mais foi a mesma. A admiração prosseguiu. A amizade acabou.
Diferentes propagandas de "Cidade-Mulher" nos jornais de julho |
Roulien e Conchita (O Cruzeiro, 26/10/35) |
Gazeta de Notícias, 9/7/36 |
A reunião dos depoimentos seria editada junto ao trailer do filme,
que começaria a ser mostrado no Alhambra no dia 21. Todos falaram, tecendo elogios. Se
estavam sendo sinceros ou foram pegos de surpresa e não tiveram coragem de
falar aquilo que mais tarde pretendiam escrever, só Deus sabe. Foram poucas as
críticas dos presentes no evento que encontrei nos jornais pesquisados. Imagino
que muitos deles tenham evitado de publicar o comentário, uma vez que já o
haviam feito em viva voz. Ou os percalços desgastaram Cidade-Mulher e fizeram o assunto envelhecer antes dele estrear.
A Noite, 17/7/36 |
"Legítima herdeira da cara e do talento paterno"... perversidade típica de Magalhães. Diz, ainda, o crítico:
"Mas onde o filme supera quaisquer outros é na apresentação dos lindos
aspectos panorâmicos da cidade. Maravilhosas, as fotografias que Humberto Mauro
enquadrou. Cidade-Mulher é um cartaz
vivo, animado, fulgurante da nossa metrópole feiticeira". (A Noite, 17/7/36)
No dia 27 de julho de 1936, Cidade-Mulher finalmente estreou no Alhambra. Celestino Silveira deixou um microfone aberto no hall do cinema para que fosse irradiada, ao vivo, a impressão dos espectadores sobre o trabalho de Mauro e Carmen, mas aconteceu o que se esperava: a estréia foi decepcionante, a reação do público e da imprensa foi decepcionante e o filme em si decepcionou. As opiniões convergiram nas qualidades e nos defeitos. Jayme Costa, Sarah Nobre e Bandeira Duarte foram bem; Carmen e Mário não convenceram como casal; os números musicais agradaram sem ser espetaculares.
Não encontrei a crítica de Zenaide Andrea, mas no dia 28
um articulista com o pseudônimo de "Faustus" fez uma análise coberta de ironia na
Gazeta. Impossível não rir com o que
diz sobre Orlando Silva, ou de ficar na dúvida se ele de fato esqueceu de
colocar o nome “Bibi” quando se refere a ela, ou se chamou-a de “Procópio Ferreira”
por pura maldade:
No dia 27 de julho de 1936, Cidade-Mulher finalmente estreou no Alhambra. Celestino Silveira deixou um microfone aberto no hall do cinema para que fosse irradiada, ao vivo, a impressão dos espectadores sobre o trabalho de Mauro e Carmen, mas aconteceu o que se esperava: a estréia foi decepcionante, a reação do público e da imprensa foi decepcionante e o filme em si decepcionou. As opiniões convergiram nas qualidades e nos defeitos. Jayme Costa, Sarah Nobre e Bandeira Duarte foram bem; Carmen e Mário não convenceram como casal; os números musicais agradaram sem ser espetaculares.
Mara Costa Pereira |
A Brasil Vita Film desta vez fez um
filme-revista. É verdade que o Sr. Henrique Pongetti estava logo à entrada do
Alhambra, junto ao recebedor de bilhetes... Era a hora da exibição... Quando
saímos o Sr. Pongetti continuava no mesmo lugar. Naturalmente ele não viu o
filme... Fez bem!... Gostamos da marcha "Cidade-Mulher", de Noel Rosa, até o
Orlando Silva soltar um "risiste" que teve o efeito de uma bomba.
Depois o "risiste" foi bisado. Gostamos dos números de canto
(composição e interpretação) de Procópio Ferreira. Coitadinha da "macumba"
de Mara! Que frio!... Mara parecia uma boneca de carne espetada, parada, num
"tan-tan" fantástico. (...) A declamação da "Dama do Cabaré", por
Carmen Santos, "ninguém não viram". Em tempo: Carmen Santos não
cantou... (Gazeta de Notícias,
28/7/36)
O número da "Macumba", com Mara Costa Pereira, que tanto agradou Magalhães Jr. e desagradou Faustus (O Cruzeiro, 21/3/36) |
Mais equilibrado,
L. S. Marinho fez sua crítica no Correio da Manhã. Salta aos olhos o tom
de complacência. Marinho parece criticar de um lado e se desculpar pelo outro:
Mário Salaberry, Carmen e Jayme Costa |
A cinematografia indígena ali está
palpitante, nas qualidades e nos defeitos. Muito compreensível que um filme
nacional possua qualidades e defeitos, do que defeitos sem qualidades. Daí
“Cidade-Mulher” estar vencendo em toda linha. (...) Pelo menos, o filme da
Brasil Vita Film apresenta-se num gênero diferente do que temos visto, num argumento
leve e bem dialogado de autoria de Henrique Pongetti, na direção de Humberto
Mauro, músicas originais, boas canções, e um excelente trio de comédia: Jayme
Costa, Sarah Nobre e Bandeira Duarte. Força é dizer que o filme pertence a este
trio. Carmen Santos aparecendo poucas vezes, vai bem em quase todas as cenas,
muito embora a comédia não seja o seu forte. Enfim, lutando-se como se luta no
Brasil na produção de um filme, o brasileiro deve compreender que, mesmo sem
querer entrar em concorrência com os filmes estrangeiros (o que seria ridículo
pensar), este ano somente apresentamos um único filme até então:
“Cidade-Mulher”. Isso prova bastante os obstáculos que os produtores encontram
para a realização de seu ideal. (Correio
da Manhã, 29/7/36)
Importante
essa última colocação, considerando que aquele foi ano de Alô, Alô, Carnaval. Assim como ocorreu à Gazeta, não encontrei a crítica de Alfredo Sade em A Batalha, mas encontrei o comentário
ácido de um articulista que se intitula “Microgênico”:
Lançamento de "Cidade-Mulher" em São Paulo (Correio Paulistano, 30/8/36) |
Aproveitei, então, a folga para ir apreciar
“Cidade-Mulher”. Quando a fita terminou, saí do Alhambra com a impressão de ter
visto mais pernas e curvas femininas do que propriamente arte. E fiquei
pensando seriamente se houve ou não eficiência no auxílio dos artistas do nosso
broadcasting para o sucesso do filme. Cheguei à conclusão de que não houve
eficiência nenhuma, e a razão é simples: o sucesso de “Cidade-Mulher” não
correspondeu à expectativa, a não ser que "sucesso" queira dizer
pernas de fora. Neste caso sim, houve sucesso à beça. (A Batalha, 30/7/36)
A crítica do Diário de Pernambuco seguiu essa mesma linha: "A Brasil Vita Film fez aqui, nesse caso, um prodígio: conseguiu que as mais jovens e galantes das nossas estrelas de rádio aparecessem em Cidade-Mulher em números de conjunto, cantando e dançando como girls, despretensiosamente, em grupos esbeltos, sem nome no cartaz...". (9/8/36)
A crítica do Diário de Pernambuco seguiu essa mesma linha: "A Brasil Vita Film fez aqui, nesse caso, um prodígio: conseguiu que as mais jovens e galantes das nossas estrelas de rádio aparecessem em Cidade-Mulher em números de conjunto, cantando e dançando como girls, despretensiosamente, em grupos esbeltos, sem nome no cartaz...". (9/8/36)
Além dos
elogios serem escassos e genéricos, o vetusto Viriato Corrêa ficou
ofendidíssimo com o cabeleireiro gay de Bandeira Duarte, e queixou-se através
de sua coluna no Jornal do Brasil. Disse que não condenava o filme, mas “o mau
gosto de quem permitiu a apresentação do ator cômico que faz na fita o papel de
cabeleireiro dos cães. (...) Não há defesa possível para esse moço Bandeira
Duarte. Sem a mais vaga veia de jocosidade, apela até para o triste recurso de efeminar
a voz e os trejeitos. (...) Não devemos nunca baixar o nível. A efeminação de
figuras, com o intuito de provocar o riso, atualmente já nem se pode chamar um
remoto lugar-comum da palhaçada, é um processo infeliz que só serve para
desmoralizar as tentativas de arte”. (Jornal
do Brasil, 31/7/36)
Viriato era
opinião única nesse sentido. Como se viu na crítica de L. S. Marinho, Duarte
agradou muito com sua performance. É o que ratifica o espectador Renato
Freitas, em análise interessante que enviou a O Imparcial, e que segue também a linha de Marinho em bater e
assoprar:
Irmãs Pagãs, em cena de "Cidade-Mulher" (O Cruzeiro, 4/4/36) |
Jayme Costa, em torno do qual gira a parte
cômica do filme, tem oportunidade de exibir, mais uma vez, os seus ótimos
predicados artísticos. Sarah Nobre completou com Jayme Costa o “double” cômico
do filme. O par amoroso, formado por Carmen Santos e Mário Salaberry, é bem
inferior à dupla cômica. Carmen Santos, visivelmente deslocada, ainda não
produziu trabalho de grande mérito. (...) O intelectual Bandeira Duarte foi
felicíssimo no seu debut cinematográfico. Foi um tanto exagerado, porém é mais
uma exigência do papel do que um defeito de representação. (...) Entretanto, a
parte mais linda e luxuosa do filme é a revista, à qual não faltam nem melodias
lindas que só o talento de Noel Rosa sabe criar, nem a graciosidade das
pequenas do nosso broadcasting. Nela destaca-se Orlando Silva. A sua atuação na
marcha que dá nome ao filme, ao lado das Irmãs Pagãs, vale por uma notável
performance. (...) O trabalho de Humberto Mauro, conquanto ressinta de um
enredo original e seja inferior à "Favela dos meus amores", agradará a todos os
fãs, sempre condescendentes para com o cinema nacional. (O Imparcial, 4/8/36)
É difícil
dizer se um filme daquela época era ou não um sucesso financeiro. Como os intermediários
eram poucos, é possível que eles dessem dinheiro nas sucessivas exibições nas
capitais e no interior. Ressalte-se também que o ingresso podia ser baixo, mas
cinemas com mais de mil lugares eram comuns. Carmen provavelmente recuperou seu
investimento, embora dinheiro não lhe faltasse e não fosse a razão de seu
sacerdócio cinematográfico. Cidade-Mulher
ficou cerca de um mês no Alhambra. No início de agosto ela soltou um comunicado
“aos exibidores do Brasil”, dizendo que a Brasil Vita “fará diretamente, a
partir de Cidade-Mulher, a
distribuição de suas produções, através de seu departamento de distribuição”.
No mato sem cachorro de ter um filme pronto e estreado e nenhuma distribuidora,
ela foi à luta. Em setembro o filme estreou no Pathé. Em dezembro ela anunciou
um contrato com a desconhecida “DN”, que suponho ser “Distribuidora
Nacional” para a distribuição de seu trabalho mais recente pelo resto do
Brasil. Se isso aconteceu, não sei.
Ao contrário
de Favela, que entraria pela década de
40 sendo considerado o primeiro grande filme brasileiro, lotando cinemas em
sucessivas reprises, e geralmente considerado muito superior a qualquer um dos Alôs, Cidade-Mulher
foi esquecido rapidamente. Humberto Mauro e Carmen pouco falariam sobre o
assunto. Pongetti, eterno espírito de porco, recalcado e infeliz por nunca ter conseguido transcender os
gêneros mais rasteiros da literatura ou da dramaturgia, lançaria anos depois um vômito de
bile sobre suas duas associações com a Brasil Vita, tentando
culpar Mauro e Carmen por suas próprias falhas. Curioso é o depoimento de
Orlando Silva, seis anos depois, à Scena
Muda:
Orlando Silva |
Apareci na tela duas vezes e fiquei
desiludido. Não gostei do que fiz em “Cidade-Mulher” nem do que me mandaram
fazer em “Banana da Terra”. Fui convidado para trabalhar com insistência em
novas fitas nacionais e a todas dei a mesma resposta: Não. Só voltarei a filmar
quando me for permitido ler e analisar com calma a minha tarefa no filme, com a
faculdade de escolher eu próprio meus números musicais e os acompanhamentos,
com o direito imprescindível de julgar o meu trabalho depois de pronto.
(4/8/42)
Ou conseguiu
o que queria, ou voltou em sua palavra, porque ao tempo dessa entrevista
Orlando já trabalhara em Laranja da China,
dirigido pelo mesmo Ruy Costa de Banana
da Terra, e seguiria trabalhando em musicais por toda a década de 40.
Quanto à Bibi, só voltaria ao cinema anos depois. É assunto para outro texto. Vale lembrar, a título de curiosidade, que trabalhou em 1949 com Leo Marten, o diretor de A Carne e Mlle. Cinéma, com Carmen. O filme teve o infeliz nome de "Almas Adversas" e ela contracenou, entre outros, com o ator Fregolente. Pergunto certo dia à Bibi se o filme existe. Sua resposta: "Não tenho idéia".
Quanto à Bibi, só voltaria ao cinema anos depois. É assunto para outro texto. Vale lembrar, a título de curiosidade, que trabalhou em 1949 com Leo Marten, o diretor de A Carne e Mlle. Cinéma, com Carmen. O filme teve o infeliz nome de "Almas Adversas" e ela contracenou, entre outros, com o ator Fregolente. Pergunto certo dia à Bibi se o filme existe. Sua resposta: "Não tenho idéia".
Ouro Verde sumiu no arquivo de idéias
não-realizadas de Carmen. Um mês depois da estréia de Cidade-Mulher ela declarou que "não considero Favela e Cidade-Mulher como realizações definitivas, pois eles são, na verdade, simples experiências de quem quer ir mais longe, e vai com calma, sem vaidade de espécie alguma. (...) Quando ficarem prontos os meus novos estúdios, cuja construção tem sido retardada por exigências burocráticas, iniciarei então uma fase nova de filmagem e aí sim espero fazer qualquer coisa de definitivo, que corresponda à simpatia do público. (A Noite, 7/8/36)
Ela manteve o foco em Minas Gerais e decidiu escrever
e dirigir um épico sobre a Inconfidência Mineira, no qual interpretaria Bárbara
Heliodora, dando vazão, finalmente, ao talento que sentia ter represado até
aquele momento. O projeto foi anunciado no ano seguinte a Cidade-Mulher mas demoraria para decolar. Em 1939 os estúdios da Brasil
Vita ficaram prontos. No ano seguinte, como Inconfidência
não acontecia, ela interpretou a viúva Luciana, em Argila, roteiro e direção de Humberto Mauro, filmado nos estúdio de
Carmen.
Os anos 40 ela passou em uma batalha sem fim para produzir, dirigir e protagonizar Inconfidência Mineira. Conseguiu conclui-lo em 1948. A reação foi fria, semelhante à da crítica de Cidade-Mulher: Carmen era esforçada, batalhadora, perseverante, uma pioneira, etc., mas tanto o filme, quanto o roteiro e sua performance estavam abaixo do esperado. Ela não suportou o golpe da rejeição ao trabalho que lhe consumira tantos anos, e abandonou o meio.
Carmen, no papel de Bárbara Heliodora |
Os anos 40 ela passou em uma batalha sem fim para produzir, dirigir e protagonizar Inconfidência Mineira. Conseguiu conclui-lo em 1948. A reação foi fria, semelhante à da crítica de Cidade-Mulher: Carmen era esforçada, batalhadora, perseverante, uma pioneira, etc., mas tanto o filme, quanto o roteiro e sua performance estavam abaixo do esperado. Ela não suportou o golpe da rejeição ao trabalho que lhe consumira tantos anos, e abandonou o meio.
Carmen Santos (1904/1952) |
“E que é Cidade-Mulher?”, perguntava a Fon Fon de
11 de julho de 1936. A resposta:
Um poema em
celulóide dedicado ao Rio de Janeiro, à galantaria das suas mulheres, ao bom
humor do seu povo, à beleza das suas praias, e tudo isso com palavras amáveis
de Henrique Pongetti e melodias buliçosas ou românticas de Noel Rosa.
O Diário de Pernambuco de 9 de agosto também perguntou: “Que é, afinal, Cidade-Mulher? Uma comédia musicada? Uma Revista? Um cocktail de mil coisas diversas — canções, sambas, bailados, anedotas — feito para divertir o povo?” A resposta:
É uma comédia-revista, porque possui o inteiro arcabouço de uma comédia, dentro da qual se colocaram, como números de atração, mas tudo mais ou menos ligado por um mesmo e único motivo — o elogio do Rio de Janeiro — uma dezena de meninas bonitas, melodias ótimas de Noel Rosa, a brejeirice de Bibi Procópio Ferreira, a voz estranha de Mara, e uma infinidade de outras coisas bem escolhidas e bem dosadas para que mais agradável ficasse esse poema em celulóide feito em homenagem à cidade mais gostosa do mundo...
Sim. Mas foi também a visão única e inimitável de Humberto Mauro, misturada ao sangue, ao suor, às lágrimas e à saúde de Carmen Santos.
É uma comédia-revista, porque possui o inteiro arcabouço de uma comédia, dentro da qual se colocaram, como números de atração, mas tudo mais ou menos ligado por um mesmo e único motivo — o elogio do Rio de Janeiro — uma dezena de meninas bonitas, melodias ótimas de Noel Rosa, a brejeirice de Bibi Procópio Ferreira, a voz estranha de Mara, e uma infinidade de outras coisas bem escolhidas e bem dosadas para que mais agradável ficasse esse poema em celulóide feito em homenagem à cidade mais gostosa do mundo...
Sim. Mas foi também a visão única e inimitável de Humberto Mauro, misturada ao sangue, ao suor, às lágrimas e à saúde de Carmen Santos.
No dia 27 de julho, tanto o lançamento de Cidade-Mulher quanto a estréia de Bibi no cinema completam 80 anos.
FIM DA SEGUNDA PARTE
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VEJA TAMBÉM:
- Bibi Ferreira — JUBILEU DE DIAMANTE (1/4)
- Bibi Ferreira — JUBILEU DE DIAMANTE (3/4)
- Bibi Ferreira e sua recusa no Sion
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BIBLIOGRAFIA
- A Batalha
- A Noite
- A Notícia
- A Ofensiva
- Correio da Manhã
- Correio Paulistano
- Diário Carioca
- Diário de Pernambuco
- Gazeta de Notícias
- Jornal das Moças
- Jornal do Brasil
- O Jornal
- O Radical
- A Scena Muda
- Cinearte
- Fon Fon
- O Cruzeiro
- O Malho
Agradecimento a Laura Macedo e Milton Baungartner
Aplausos maiúsculos. Excelente!
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