sexta-feira, 29 de abril de 2011

Documentário sobre "Ponto de Partida", do grupo Nohgátikus


Em 2005, trabalhando temporariamente no colégio Guilherme Dumont Villares, dirigi o grupo de teatro que reunia os alunos do colegial, e no fim da exitosa e gratificante montagem de Pedreira das Almas, de Jorge Andrade, cogitei de juntar os melhores atores daquele elenco e montar Arena Conta Zumbi ou Ponto de Partida, de Guarnieri e Sérgio Ricardo, no ano seguinte. Na ocasião deixei o livro com a peça nas mãos do talentoso Pedro Braga, o “Vasconcelos” de Pedreira, mas os afazeres de sempre abortaram esse projeto futuro. A idéia, porém, floresceu na mente criativa de Pedro, que entrou na ECA tempos depois, e tive a satisfação de ser informado, há meses, que seu trabalho de graduação seria a montagem de Ponto de Partida. Eis o que ele anunciou, no início do trabalho:

Natália Sanches

Minha pesquisa é sobre teatralidade no Japão e esse ano [2010] vou unir minha pesquisa ao meu TCC, e montar “Ponto de Partida” a partir de princípios do teatro japonês. É uma proposta de encenação intercultural que visa encontrar pontos de contato entre a teatralidade arquetípica do Japão e a cena contemporânea. O texto foi escolhido não só por sua potência política e poética, mas também por sua contemporaneidade, seus personagens arquetípicos, sua estrutura simples e por se passar numa aldeia “perdida no tempo e no espaço” o que me permitirá situá-la longe, bem longe, no Japão medieval. Como em Brecht, a idéia de transportar uma história tão próxima a um lugar e cultura tão distantes é provar sua universalidade e sua potência.

Juliana Ladeira
Perdi a estréia do grupo no teatro da USP, em outubro do ano passado, mas tive a oportunidade de acompanhar a temporada realizada em março e abril, no SESC Consolação. Sem ter maior idéia do que é o teatro clássico japonês – seja Kabuki, Butô ou Nô, sendo este último, aparentemente, o mais antigo dos três – além de um interessante caleidoscópio de cores, roupões, maquiagens e perucas, assisti desarmado e curioso esta inusitada montagem Nô de Ponto de Partida. Segundo Pedro, a presença de um fantasma em cena (Birdo) e a base arquetípica dos personagens – Ainon (o “pai”), Maíra (a “namorada”), Félix (o “guerreiro”), etc. – representam importantes semelhanças entre a dramaturgia Nô e a dramaturgia de Guarnieri, facilitando a simbiose entre as duas formas de arte. Com efeito, o que se viu foi o casamento da dramaturgia do brasileiro com elementos da encenação Nô, japonesa.

Larissa Alvanhan

Fiquei prazerosamente impressionado. A montagem foi enxuta, impactante, bem dirigida e bem interpretada. O cenário é limpo e prático, os figurinos são bonitos e vistosos, sem atrapalhar em nenhum momento a movimentação dos atores, e as máscaras são expressivas e bem-feitas. O que se destaca, sobretudo, é o estupendo trabalho das três atrizes do grupo. Larissa Alvanhan (por sinal virando do avesso a filosofia Kabuki de que homens interpretam mulheres), fez o papel de Don Félix, o comandante e senhor da fictícia aldeia. Sua voz tonitruante, perfeitamente impostada, aliada aos movimentos seguros, resolutos e marciais do imponente senhor feudal, tornaram sua interpretação um show de talento e técnica. Natália Sanches (Maíra), transbordando carisma, representou admiravelmente a metamorfose da personagem, de singela e doce namorada para a guerreira assomada e destemida.

Juliana Ladeira
E Juliana Ladeira – talvez a mais “Nô” das atrizes – transmitiu com absoluto comedimento e eficiência os complexos e as frustrações da atrabiliária Aida, em um crescendo que melhorava a cada uma de suas entradas em cena. Juliana foi, aliás, protagonista de dois dos mais extraordinários momentos do espetáculo: a confissão final de Aida, brandindo a máscara de Hanya (um "espírito do mal", entre outras coisas, no teatro Nô) e misturando sua voz com a voz dos homens, criando o que parecia, de fato, ser a voz de uma entidade maligna que nela habitava; e a “dança” de Hanya, uma criação do diretor, espécie de auto-execração, ou de celebração dos vícios da personagem. Uma beleza. Mas não me alongarei nos méritos da montagem, que são muitos e muito claros, ou eu não teria assistido o espetáculo três vezes e nem produzido um documentário de uma hora e vinte minutos sobre o trabalho.

A seguir veremos esse documentário, feito com base na temporada do SESC e em entrevistas exclusivas de Pedro, Natália, Larissa, Tiago e Juliana. Há também um depoimento exclusivo da atriz Sônia Loureiro, que criou a personagem Maíra na montagem original de 1976:



Vamos à uma pequena análise dos aspectos negativos, que serão, quiçá, úteis para aqueles que estão atualmente se aventurando pela primeira vez na direção teatral.

Tiago Nogueira
Ressalto três defeitos. Em primeiro lugar, o elenco masculino: Carlos Gontijo foi um Dôdo medíocre e plano. Sua voz é fraca e sem modulação. Não empolgou e não emocionou em nenhum momento. O papel, que provocava a Guarnieri aplausos em cena aberta diversas vezes por apresentação, passou em brancas nuvens. Tiago Nogueira, em que pese seu esforço, não tem maturidade, experiência ou talento para interpretar Ainon. Gritou a peça inteira. Seu berreiro – em frontal contraste com as vozes potentes, límpidas e trabalhadas de Larissa, Natália e Juliana – foi o ponto dissonante do espetáculo. Não só pelo absurdo de se esgoelar dentro de um teatro tão pequeno, onde até os murmúrios se ouvem, mas por violar duas leis muito simples: 1) Gritar é uma coisa, falar alto e incisivamente é outra. 2) O teatro Nô pressupõe a comunicação de emoções de forma sutil, em que o corpo, inclusive, tem papel superior à voz. Tiago fez o contrário; supriu sua carência de inflexões dramáticas ou linguagem corporal com a gritaria. No mais, pouco ajudava olhar para o lado e ver o ator sentado, a caráter, bebendo conspicuamente água de uma garrafinha de plástico, como se estivesse em uma academia de musculação.

Em segundo lugar, embora tivesse o privilégio de contar com um violinista, um guitarrista e um baterista, o espetáculo pecou pela ausência de um diretor musical. Ponto de Partida evidentemente não é um musical nos moldes da Broadway, mas é um texto que nasceu da junção entre a indignação pelo assassinato de Herzog e a canção “Ponto de Partida”, de Sérgio Ricardo. É pacífico que as músicas têm um papel decisivo em todo o desenrolar da história (como tem, de resto, em praticamente toda a dramaturgia de Guarnieri). Cortá-las, podá-las ou encaixá-las aleatoriamente me parece uma licença grande demais. Para começar, na peça, a canção “Ponto de Partida” é o elogio fúnebre a Birdo feito pelas pessoas mais próximas a ele. Cantá-la de forma naturalista, simplesmente olhando o público com um sorriso apatetado no rosto, subtrai-lhe qualquer significado e importância. Torna-se meramente um interregno musical bem-humorado e deslocado, dentro de peça dramaticíssima. No texto original essa música está misturada às recordações de Dôdo, Maíra e Ainon sobre Birdo. Retirando tudo isso, não ficou claro o laço de afeto e solidariedade que une esses três personagens.

Larissa Alvanhan
“Menino Pássaro” é indispensável na medida em que depinta, num paroxismo de tristeza, a dor do pai pela perda do filho. Sim, é uma música difícil de cantar e de difícil execução. Para isso, justamente, existe o diretor musical. Para adaptar aquilo que é demasiadamente pedregoso ou complicado para músicos em início de carreira. E quanto à “Prece”, é música fundamental na delineação de cada personagem. Suas cinco estrofes são a descrição definitiva e contrastante dos envolvidos. Félix, que não vê literalmente um palmo a frente de seu rosto ou de sua empáfia, ora pela “justiça e pelo retorno da calma”. Aida, o demônio recalcado e invejoso, atrela-se justamente ao poder ilusório da religião junto às massas e conclama que “contritos todos oremos, Deus nos livre de aflição”. Ainon, ferido de morte pelo assassinato do filho, não se dá o trabalho de clamar por justiça mas por sua própria morte, quando diz “foge minh’ama co’a dele, co’a dele foge minh’alma”. Maíra, inconformista e subversiva, canta, a plenos pulmões, “oremos pela vingança, numa revolta incontida”. E Dôdo traduz o vazio anímico de quem já se insensibilizou diante de tanto sofrimento, dizendo que “sozinho que nem um morto, eu só minto de viver”. Como deixar de fora tais pérolas da poesia de Guarnieri? Maior é o lamento por essa série de cortes quando verificamos que o grupo se deu o trabalho de ensaiar e incluir a inútil “incelência” – uma rubrica genérica e inoperante do texto original – no início da peça; precisamente aquilo que poderia e deveria ser ignorado, como efetivamente foi, na montagem de 1976.

Natália Sanches

Por fim, a controversa e altamente discutível
 “desconstrução do espetáculo”. A peça vinha sendo ensaiada de forma tradicional, com as máscaras, em consonância com a proposta do teatro Nô. Próximo à conclusão do processo, Antônio Araújo, orientador do grupo na USP, questionou o diretor, conforme nos conta Pedro Braga:

Ele falou “falta eu ver na peça o que vocês querem dizer com a peça, não em termos de o que vocês querem dizer com a peça hoje, somente, mas por que essas máscaras? O que essas máscaras alteram na relação entre os personagens?”, e daí a gente foi trabalhando, “ué, mas e se o ator tirar essa máscara, o que acontece?” e a peça foi quebrando. E isso veio a calhar em termos de encenação e de proposta de encenação, que é: o reino rui. Então o cenário também rui. Então as máscaras também ruem. A relação entre os personagens também rui. A voz impostada do ator de teatro também rui. Tudo rui. O teatro rui. O teatro, não o teatro como instituição, mas o teatro da vida rui. Então a peça vai acabando até que chega no final e os atores vão falando “mas espera aí, a peça acabou? Eu não sei”. “E aí? Você tem mais alguma coisa para falar?”, que na verdade é teatro, porque aquilo é tudo combinado, mas ao mesmo tempo isso cria no espectador uma ansiedade sobre “meu Deus, o que é que está acontecendo aqui? Será que esses atores estão interpretando, ou será que isso é improvisado? Cadê o teatro?” Acho que essa é a pergunta: “Cadê o teatro? O que aconteceu com o teatro?”

Juliana Ladeira e a "dança" de Hanya
Como teoria a idéia é excelente. Na prática, seu efeito foi destrutivo. A peça não foi “desconstruída”. Foi destruída. Os atores se desvestirem arbitrariamente de seus personagens e saírem do teatro antes do final, deixando Maíra sozinha, provocou um anti-clímax. O fim do inquérito, o aborto e a última fala de Maíra são elementos dramáticos poderosos que desembocam em violenta catarse. Roubando-se o espetáculo dos atores ou da tensão e da ilusão entre público/atores/texto, roubou-se o público de sua catarse. Quando o espetáculo termina há uma sensação de que algo deu errado, e não de que tudo ruiu com o reino. Os aplausos são murchos e frustrados, quando deveriam vir intensos, cheios de lágrimas e da emoção que o público compartilha com os atores. No entanto é como se nos últimos 5 minutos de peça os atores tivessem abandonado o trabalho sem terminá-lo. É uma pena, porque a confissão de Aida, a dança de Hanya e Félix realizando o aborto, enquanto grita, angustiado, que “haverá paz e trabalho! Viveremos em ordem” e que seu “sangue não se abastardará” são arrepiantes. São grandes momentos dessas atrizes e teriam encontrado seu desfecho e reação propícios em uma encenação tradicional.

Não obstante, o resultado é muito positivo. Foi uma belíssima montagem, Pedro é um diretor criativo e inteligente, as três atrizes são talentosíssimas e esperamos que todos eles realizem um novo trabalho o quanto antes.
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Fotos de Dhyana Mai, Isabela Figueiredo e Samara Takashiro

Um comentário:

  1. O Grupo Nohgátikus apresentou sua peça Ponto de Partida no FITUB -- Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau --, cidade que fica em SC e que é onde moro.

    De modo geral, eu estava gostando da peça. Mas de repente, pela disposição dos assentos que me permitia ver todos os outros espectadores, comecei a notar que muitos colegas estavam enfadados com a peça antes mesmo d'ela ter chegado na metade. Culpo o grupo? Culparia se o ar de enfado fosse mostrado ao final da peça, mas foi algo que ocorreu já no início. Muitas pessoas não tem perspicácia apurada para dar conta de sutilezas e acham qualquer história espiralada maçante (o que me faz perguntar se essas pessoas são leitoras de clássicos do teatro; imagino que não avancem muito quanto tentam ler obras em que as falas têm acento/palavras dramáticas típicas das artes cênicas). Essa situação ocorre quando o público parece despreparado para a linguagem e a "vida" teatral. Uma vez, assistindo à peça Esperando Godot, dividida em duas partes, num desses festivais onde os ingressos a preços módicos não "filtram" os espectadores (muita juventude vai porque é baratinho e aprecia em nome do entretenimento vazio), pude ver que na segunda parte da peça mais da metade do público tinha ido embora. (Creio que muitos se foram porque acharam que a peça terminava naquela parte I, mesmo.) Desanimadora ocasião. Fez com que eu me perguntasse o que as pessoas esperavam de Beckett. Impacto? Falas de humor fácil? [...] Todavia, se o enfado viesse ao final, eu entenderia. Fiquei, sim, com aquele ar de "Nossa, o que está acontecendo? Isso faz parte da peça?" porque de repente foi usado um recurso de metalinguagem que não foi aproveitado linearmente: houve uma quebra -- a peça ia num dado ritmo, de repente a fórmula mudou, houve uma mistura de falas, o ritmo acelerou subitamente dando um mal estar de "vamos acabar logo com essa trama". É estranho. Assemelha-se a esses livros que a gente lê... no final, a velocidade do enredo muda, coisas abruptas acontecem: parece que o autor está desesperado para terminar a história. Não pega bem. Isso não é moderno: qualquer um nota certo despreparo.

    Apesar disso, gostei da peça, gostei dos amálgamas estilísticos, gostei de algumas composições. (Mas concordo quando você diz que aquela espécie de samba no meio de uma tragédia não pegou bem.)

    [Achei essa postagem sua porque estava à procura de críticas à peça. Até onde fui -- página 3 do Google -- só achei o seu blog comentando seriamente Ponto de Partida.]

    Até.

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