terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um presidente que fala (bobagens) demais

Lula foi entrevistado pelo jornalista Kennedy Alencar no último dia 15 de novembro. No meio de uma cascata de perguntas sobre o mensalão da qual evidentemente não tinha como sair, Lula resolveu debitar a coisa toda à uma tal “conspiração” de uma elite “empodrecida” (sic) que não suportou ver uma pessoa simples chegar à Presidência da República. Até aí tudo bem. Não se esperava que Lula admitisse ter aboletado sponte propria esse bando de ladrões no próprio núcleo do governo brasileiro. Em outra tangente, procurou comover os catadores de papel. E foi aí que disse o seguinte:

Eu vou num catador de papel, eu falo pra eles: “Vocês podem chegar a presidente da República... não por ser catador de papel, porque vocês têm que se preparar pra chegar lá, acabar”... ninguém diz que o país tem que ser presidido por alguém que tem diploma universitário, por alguém que é ex-fazendeiro, por alguém que é empresário. Eu também não quero que o Brasil seja presidido por alguém que não conheça nada. Mas esse país já teve presidente que não conhecia nada de país. Nada! Eu não vou citar nomes aqui, mas tem presidente que não conhecia mais do que a Vila Maria em São Paulo. E foi presidente da República. E não certo.

Foi muito simpático de Lula não querer citar nomes. Muito inútil, também, porque mencionar um presidente brasileiro que “não conhecia mais do que a Vila Maria” é o mesmo que não querer mencionar o nome de um presidente brasileiro “que era analfabeto, chegou à Presidência e continuou analfabeto”.

Lula em entrevista a Kennedy Alencar

Há duas maneiras de interpretar a referência de Lula a Jânio. A primeira é piedosa, se compadece da ignorância histórica, a pobreza vernacular e o jeito tosco e quase sempre equivocado com que o nosso presidente se expressa; por esta maneira de ver as coisas, Lula, na verdade, queria apenas dizer que Jânio era um político provinciano. Nada mais verdadeiro. Jânio era, mesmo, provinciano, e em seus sete meses de presidência se deixou levar, muitas vezes, por vícios e cacoetes adquiridos especialmente em sua experiência municipal. O problema é que Lula não tem estofo intelectual suficiente para conhecer o significado da palavra “provinciano”, então somos obrigados a entrar na segunda interpretação de seu comentário. Esta é bem menos piedosa, e, infelizmente, mais verdadeira. O que ele tentou, de fato, foi jogar sobre Jânio a pecha de despreparado, que o persegue desde sua primeira campanha presidencial, em 1989. Nada mais falso.

Não falemos de diplomas. Juscelino, por exemplo, era médico e a saúde pública em seu governo chegou a um tal estado de calamidade, que o governo seguinte (o de Jânio, por sinal) teve sorte de ainda encontrar os móveis no prédio do Ministério, em Brasília. Jânio era advogado da mais prestigiosa escola de Direito do Brasil, o Largo São Francisco, e no entanto seu escritório esteve às moscas durante o tempo em que advogou. Falemos de carreira política.

Jânio se elegeu vereador em novembro de 1947 com 1.707 votos. Chegou em 41° em uma disputa de 45 cadeiras. Sem partido – o PDC era nanico, fisiológico, se alternava entre a oposição e a composição com Adhemar, e não lhe deu qualquer ajuda durante a campanha – sem patronos, patrocínios ou patronímicos. Não era líder sindical, líder religioso, líder do bairro. Não era líder de nada. Era um desconhecido professor secundário e advogado. Com apenas três anos de mandato, se candidatou a deputado estadual. Teve dez vezes a votação de vereador. Dez vezes. 17.840 votos. Foi o deputado estadual mais votado não só daquela legislatura, mas da seguinte também. Seu recorde foi quebrado em 1958 quando Hilário Torloni se elegeu com mais de 20 mil votos. Só que Torloni era líder de Adhemar na Assembléia e deputado estadual há sete anos. Era amplamente conhecido por sua excelente atuação parlamentar. Jânio se elegeu em 1950 da mesma forma que se elegeu em 1947. Com o mesmo partido fisiológico que não lhe dava qualquer assistência, sem patronos, patrocínios ou patronímicos. Recebeu aquela votação recorde porque foi um extraordinário vereador. Sua atuação de três anos na edilidade paulistana é um estudo ininterrupto, meticuloso e dedicado a todos os bairros de São Paulo. Ao contrário do que pensa nosso desavisado presidente – e a maioria dos brasileiros, diga-se, por justiça – a Vila Maria sequer teve posição de destaque nesse mandato. Foi tratada como todos os bairros de São Paulo, que Jânio varejava diariamente, de domingo a domingo.

Como deputado ele ficou ainda menos tempo. Dois anos. Se candidatou a prefeito pelos nanicos e antagônicos PDC, agora menos fisiológico e mais carola, e o PSB, que aliás se assemelhava muito ao PT, no radicalismo de sua teoria e na inocuidade de sua prática. Venceu uma coligação de doze partidos. Foi eleito porque não havia vilarejo, azinhaga ou esconderijo nesta cidade que ele não conhecesse e que já não tivesse visitado duas ou três vezes, e para os quais não tivesse solicitado melhorias como vereador ou deputado. Na prefeitura ficou um ano e meio. Período em que a Vila Maria entrou definitivamente em seu radar político e sentimental. Lançou-se candidato ao governo enfrentando Adhemar de Barros e Prestes Maia. Seus partidos? O PSB, radical e inócuo, e uma nulidade chamada “PTN”. Foi eleito, derrotando Adhemar, que a esta altura já governara São Paulo duas vezes, e Prestes Maia, prefeito operoso e honesto durante sete anos, de 1938 a 1945. Teria a modesta e pantanosa Vila Maria eleito Jânio ao governo de São Paulo? Teriam a capital e o interior derrotado dois políticos profissionais com mais de 20 anos de carreira apenas para beneficiar quem conhecia só a Vila Maria?


O governo estadual Jânio exerceu do início ao fim. Em 1960 Jânio se candidatou à Presidência. Sua candidatura foi lançada pelo PTN e mais uma penca de partidos, inclusive a UDN. Não tinha qualquer importância, pois naquele momento já se sabia que o povo ia eleger Jânio a despeito dos partidos, e não graças a eles. Teve quase o dobro da votação do segundo colocado, o marechal Lott, candidato de Juscelino.
 
Agora façamos um rápido – porque é curto, mesmo – retrospecto da carreira de nosso atual presidente. Dirigente sindical, renegou a política no começo mas depois decidiu participar da fundação do Partido dos Trabalhadores. Em 1982 concorreu ao governo de São Paulo, apenas para popularizar a si próprio e ao partido, e sabia que seria derrotado, como de fato foi. Em 1986 se elegeu deputado federal com grande votação. Foi um constituinte medíocre, e por pouco o PT deixou de assinar a Constituição, em um dos repentes de infantilidade e estupidez dos quais o partido é constantemente acometido. Promulgada a Constituição, ele se afastou do Congresso. De 1989 a 2002, Lula se candidatou quatro vezes à presidência. Contra Collor, Lula perdeu no segundo turno. Contra FHC, foram duas derrotas consecutivas no primeiro turno. Em 2002, Lula bateu Serra no segundo turno e em 2006 bateu Alckmin no segundo turno.
 
Até chegar à Presidência, Jânio só sentiu o gosto da vitória consagradora, fácil e limpa, municipal, estadual e federal. Lula, com exceção de sua eleição para deputado federal, tem um currículo que mistura derrotas fragorosas e vitórias obtidas nos pênaltis.
 
Fica a pergunta ao presidente Lula: foi a Vila Maria que deu a Jânio os 5.636.623 de votos que o elegeram presidente? Cidades onde obteve 100% da votação (como a antiga “Pinhalzinho”, atual “Janiópolis”, no Paraná) teriam se curvado a ele por seu conhecimento de um único bairro de São Paulo? Se seu nome não fosse conhecido e respeitado nacionalmente ele teria essa votação? Um político que não conhece mais do que um bairro obtém esse tipo de reconhecimento do Oiapoque ao Chuí? Ou terá passado alguma vez pela ressentida e invejosa cabeça de nosso presidente que Jânio foi vereador, deputado estadual, prefeito e governador antes de chegar à Presidência? Terá o presidente meditado sobre o fato de que Jânio se dedicou intensamente à vida pública durante todo o período que precedeu sua presidência, ao contrário dele, que passou 20 anos se candidatando e jamais movendo uma palha para se educar e se preparar para o cargo que ocupa neste momento? Considerou alguma vez que se tivesse começado pela prefeitura de São Bernardo, ao invés de passar 13 anos flanando e vivendo às custas de seu partido, talvez não precisasse ser humilhado por Fernando Henrique durante toda a década de 90? Pensou alguma vez que só venceu em 2002 porque não teve que enfrentar Mário Covas, morto no ano anterior?
 
Jânio deixou o governo de São Paulo em glória, amado e festejado por seu povo. Elegeu seu sucessor, o ínclito e discreto Carvalho Pinto, com facilidade, utilizando seu nome e sua estupenda administração como penhor. Renunciou em 1961 e se candidatou novamente em 1962. Teve 1.125.941 votos, 120 mil a menos do que Adhemar, que finamente o venceu. É um prestígio que Lula nunca conhecerá. Porque sua vida pública se resume ao ataque e à injúria, como essa que assacou contra Jânio, e nunca ao estudo, ou à revisão de seus próprios – e inúmeros – defeitos.
 
Lula deve tentar não dizer bobagens sobre políticos cuja história desconhece, e se concentrar mais em sua própria história. Antes de dizer uma asneira como essa, sobre Jânio, deve olhar, se ainda conseguir, para seu próprio umbigo. Deve se perguntar por que a classe artística, um esteio eterno e inexplicável de sua candidatura, hoje se envergonha dele e se refere a ele como um burro. Deve ler atentamente o que dele disse Lima Duarte, em março de 2006:

Odeio Lula porque faz uma glamourização da ignorância, contra o que tenho lutado a vida toda. Também sou “analfa”, fui criado como ele na roça, mas, puxa vida, descobri o encanto por trás da palavra escrita, a magia. Num país carente de conhecimento, ele não pode ter esse procedimento. É um imbecil, um idiota, um ignorante. Quando ia ao cinema, ia com o cachorrinho no colo. Para quê?

Deve ler atentamente o que disse dele Caetano Veloso, no início de novembro:

Marina (Silva) é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro. Ela fala bem.

Deve, por fim, parar com os gracejos idiotas com que responde qualquer crítica que se lhe faz, e compreender que não existe nenhum mérito em ser ignorante como é. Que Jânio conhecia o Brasil e o mundo melhor do que Lula conhece São Bernardo. Que como vereador e deputado ele lutou intensamente para que retirantes como ele e sua mãe fossem tratados de forma digna no estado de São Paulo. Que o que vimos na entrevista do dia 15 de novembro foi o presidente mais ignorante que o Brasil já teve atacando um dos mais inteligentes. E aí quem sabe um dia ele entenda por que Raquel de Queiroz disse certa vez, em entrevista à Marília Gabriela, que Jânio “era o homem mais inteligente que já conheci”.

Jânio renunciou à Presidência. Sua renúncia foi a maior tragédia da história republicana. Mas renunciante que foi, ciclotímico e instável emocionalmente, em seu pior dia ele ainda estava a anos-luz de Lula em seu melhor. É a pulga falando do gigante. Em comum esses dois têm uma coisa só: o gosto pela cachaça.

7 comentários:

  1. Parabéns pela iniciativa e pelo texto que é inteligente e crítico, diria até que é engraçado, se não tratasse de coisa séria.

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  2. Adorei sua materia bem escrita, Bernardo. Fico feliz em ver um blog seu. Beleza

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  3. Caro Bernardo

    Mais uma iniciativa com marca registrada do seu talento. Parabéns! Estarei por aqui sempre que possível.

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  4. E qual a possibilidade do Lula não estar falando do Jânio?

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  5. Possibilidade ZERO. Jânio foi o único presidente da história republicana que teve qualquer ligação com a Vila Maria.

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  6. Adoro ler o que você escreve... sua humor.... sua alma

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