segunda-feira, 14 de outubro de 2013

"Todos os Cantos do Vale", de Edson D'aísa


E eu, hoje operário
de um mundo novo
Conto histórias do meu povo
no meu canto popular.
(Edson D’aísa, “Tal Brasil”)

Por volta de 2002, o compositor Edson D’aísa e um amigo, o letrista João Bid, estavam em uma praça de São Roque. João perguntou: “E aí, você está compondo alguma coisa?” “Não”, respondeu Edson, “eu ando meio sem inspiração”. De repente passou um senhor de aparência curiosa, cinco relógios em cada braço, foi até o orelhão, vasculhou-o em busca de fichas, moedas ou qualquer outra coisa, e seguiu seu caminho. João, intrigado, virou-se para Edson: “Quem é esse sujeito? Você conhece?” “Conheço. Esse é meu tio. Uma figura”, esclareceu o compositor, referindo-se ao homem dos relógios. “Ele é assim mesmo, diferente, no mundo da lua”. João plantou a idéia ali mesmo: “Pô, cara! É sobre isso que você tem que falar! Sobre a tua cidade, as tuas verdades, as coisas aqui de São Roque. É sobre essas pessoas que você tem que fazer música!” Edson ouviu atento e gostou do conselho. São-roquense, amava a cidade e experiências pessoais não lhe faltavam para pintar retrato amplo, rico em sentimentos, da velha cidade nascida às margens do Carambeí. O caminho era esse mesmo. A semente frutificou. Tornou-se Todos os Cantos do Vale.
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Edson D'aísa
Edson D’aísa já ultrapassa os 25 anos de carreira, se tomarmos em conta suas vitórias em festivais regionais, desde a década de 80. Compositor completo (músico e poeta), despontou como um dos notáveis valores daquela nova MPB e se salvou, inclusive, de virar “Edjogon”, amálgama de seu nome verdadeiro — Edson João Gonçalves — que lhe foi proposto como nome artístico, à época, por um produtor pouco inspirado. Optou pelo “D’aísa”, em que homenageia a esposa Isabel, e durante a década de 90 foi cuidar de sua vida pessoal, casamento, filhos, casa e tudo mais.

Quando pensava que a música saíra definitivamente de sua vida, eis que surge o Mapa Cultural Paulista, festival que prestigia músicos das mais variadas regiões de São Paulo. Edson lembrou o sucesso de Cavaleiro Errante e Entoada, canções suas que venceram prêmios múltiplos em festivais, anos antes, e resolveu voltar. Compôs Sol do Sentimento, montou o grupo “Videira” com nove pessoas, incluindo talentos como o violonista Carlos Renato, o baixista Fábio Roque, o percussionista Ito Carvalho, a prima Noemi Rocha no piano e Will Gonçalves na flauta, a esposa Isa, Paulo Ribeiro e Valter Lereno (artista plástico) nos vocais. Contou ainda com sugestões de arranjo de João Bid e foi vencendo cada uma das eliminatórias do Mapa. A música acabou em quarto lugar na final, mas a partir daí Edson decidiu retomar a carreira musical. Pouco depois teve a conversa com Bid e o projeto de cantar São Roque começou a tomar forma.

Todos os Cantos do Vale não é obra de exaltação. Edson teve o bom senso de fugir da louvação vazia de São Roque e da transformação dos bandeirantes que fundaram a cidade em santos. Pelo contrário. Faz o trabalho consciencioso do pintor; é paisagista quando descreve as belezas naturais, e retratista quando entra na história e nos costumes. É historiador imparcial e jornalista minucioso. Faz descrição sem apologia. A primeira canção do cd já deixa evidente que o intuito do compositor é cantar a cidade sem decantá-la. No próprio encarte há uma ótima classificação temática dessas pinturas, e O Vale vem classificada como “A História”. Sua origem é curiosa: “Quem me inspirou essa música foi o padre Daniel”, diz Edson, sobre o pároco de São Roque. “Eu estava na missa, faltava pouco pra festa de São Roque, e ele falou ‘bonita essa comemoração, é bonito andar pelas ruas da cidade e ver a homenagem aos bandeirantes, mas não podemos esquecer que tudo isso foi à custa do sangue de muitos índios’. E a gente sabe disso, mas ele falou de um jeito que me tocou, aquela coisa da história dos livros ser uma e a verdadeira ser outra, e decidi que tinha que falar disso”.

E a canção, de fato, não é a história tradicional de um lugar que se descobre e civiliza, mas de um vale que é invadido. É quase um protesto tardio. Em meio à melodia dolente, começa a descrição: “No vale por onde caminho/ De onde sou filho aonde nasci/ Na terra dos Taxaquaras/ Da beleza rara do Carambeí./ A ave que voa gritando (tradução de “Carambeí”)/ Do ribeirão até o Saboó/ E canta pedindo socorro de cima do morro/ Lá vem Vaz-Guaçú”. A ave não anuncia, prazenteira, a chegada do homem branco, no caso, Vaz-Guaçú, ou Pedro Vaz de Barros, o bandeirante que fundou São Roque. Ela pede socorro. Teme a extinção do vale e a exterminação dos taxaquaras, primeiros habitantes da região. O compositor lhe faz coro: “Eu fico pensando na gente/ Índios inocentes os donos do vale/ Um sentimento tristonho/ Que eu me envergonho, não vou me orgulhar”. No fim, o lamento poético: “O vale hoje tem outro nome/ Da crença dos homens que vivem aqui/ O vale por onde caminho/ Não é mais chamado de Carambeí”.



Por Todos os Cantos é “O Lugar”. É a “herança da beleza tupi-guarani” na paisagem de São Roque. A melodia jazzística, sofisticada, acompanha a enumeração dos bairros, rios e tribos do vale. Edson brinca com o idioma ameríndio, faz bela poesia e utiliza prodigiosamente aquilo que Plínio Ayrosa descreve como “a curiosa mobilidade” das palavras e frases dessa língua, comum aos habitantes primitivos de toda a costa brasileira nos séculos XVI e XVII, “nossos antepassados brasílicos”: “Eu sou Capoava, eu sou Butantã/ Rio dos Araçás, sou teu Goianã/ Eu sou Cambará, subindo o Ibaté/ No escurão da noite, Pirapora a pé./ Araçariguama, eu sou Caête/ Sou Carambeí, Guaçú Tietê/ Sorocamirim e sou Potribu/ Sou Curuperê que deságua no Itu”.

Mais brilhante ainda é a reprise dessa idéia, na última faixa do cd, Por Todos os Cantos II, com a tradução da letra anterior. Com classificação exata de “Poetas da Natureza”, é declaração tácita de co-autoria, feita por Edson aos índios, e linda homenagem à riqueza lírica e descritiva do tupi-guarani. A melodia é um primor de nostalgia e o acordeom que atravessa a música rescende ao “verde manto forrageiro/ o pico mais alto/ a pé no caminhar/ pra ver peixe pular”. É o próprio pássaro do “bando de aves/ partilhando o fruto” e “o grito dos pássaros/ lá do ribeirão”. A canção ainda traz a participação especialíssima de Lula Barbosa, amigo a quem Edson admira desde seu primeiro grande momento com Mira Ira, no Festival dos Festivais, da Rede Globo, em 1985.

Em determinado momento a cunhada de Edson, Mãe Ofá, apontou uma lacuna no projeto: “Está tudo muito bom, mas você está falando dos índios e não falou nada da história dos negros aqui da cidade”. Ela fazia referência ao bairro de São Roque até hoje conhecido como o “Quilombo do Carmo”. Não tendo suficiente conhecimento do episódio, Edson deixou-o de lado, até que sua sogra, certo dia, mostrou-lhe um artigo escrito pelo jornalista Roque Alves de Lima, falando em detalhes sobre a criação desse quilombo.

Segundo Edson, “o que é que a história dizia? Essa terra pertencia à igreja, à uma ordem de carmelitas e eles arrendaram o local para um barão do Rio de Janeiro, o Barão de Bela Vista. O cara veio e trouxe esses negros escravos, com ele, pra produzir ali. Passou um tempo, o investimento dele ficou inviável, e ele largou os negros aí, à própria sorte”. Por isso, aliás, o primeiro verso diz “como se fosse um quilombo”, porque não se tratava de um grupo de escravos foragidos, e sim um agrupamento de pessoas. Ou “Um Povo”, conforme o tema da música Quilombo. Daí em diante foi só versejar: “Plantado lá no pé da serra passando por Una (Ibiúna) enfim/ Escravos do Rio de Janeiro vieram a Sorocamirim/ Das mãos do Barão Bela Vista que não agüentando até o fim/ Lançou-os à sua própria sorte e ergueu-se o quilombo assim”.

Só que a história desses negros continua. Os versos que dizem “negro não tem que fugir/ Agora tem seu tesouro, negro já não cai no choro/ Negro agora já tem seu patrimônio”, ironizando o condomínio de luxo existente no local (“Patrimônio do Carmo”), são também prenúncio da disputa jurídica que se travou a seguir, na tentativa dos gananciosos carmelitas de reaver a gleba, que por justiça deveria ter sido dada aos negros. “Passou um tempo, a igreja entrou com um processo pra tirar a terra dos negros. E eles não tinham como se defender, falavam dialetos, aí o processo foi julgado à revelia e eles perderam”. Ou, como Edson consigna na letra: “Mas os carmelitas do Carmo de posse do que não era seu/ Tentaram um acordo com os negros mas que não se assucedeu/ E sem conhecer seus direitos foi que à revelia correu/ A causa da terra dos negros que era um presente de Deus”.

Nas três canções seguintes Edson deixa momentaneamente a raiz social e mergulha de cabeça na raiz familiar. Falando sobre o tema “A Estação”, ele compõe No Teu Trilho, homenagem comovente ao pai ferroviário, morto em 1999. A família vivia perto dali, e para chegar ao trabalho, o velho Juvenal descia uma rua. “Quando chegava à estação”, conta Edson, “ele parava e dava pra ver minha casa lá em cima, então a gente ficava no muro, esperando ele passar pra ir pra estação, acenávamos para ele e ele acenava de volta. Foi um jeito de homenagear a estação, mas pondo uma verdade minha, então pra mim a estação é meu pai”.

O mais é ouvir a música, executada como uma oração por cello e piano, e cuja beleza só é superada pela poesia inspiradíssima de Edson, verdadeiro diamante de sentimento: “Lembro do teu gesto no caminho pra estação/ Onde agora é rua, me acenava com a mão/ Hoje o apito é como um grito/ Se perdendo no infinito/ Te chamando, mas em vão./ Sigo no teu trilho, herança viva/ Mas vou sem locomotiva, eu apenas sou vagão./ Pois o trem que fez a travessia/ Foi cortando a noite e o dia/ Me deixando na estação”.

Assim como Juvenal personificou a estação, a mãe de Edson, Lourdes, personifica “A Brasital”, a velha tecelagem fundada por Enrico Dell’aqua em 1890, e que transformou São Roque em pólo industrial da região. Lourdes — que morreu em 2000 — e suas irmãs foram funcionárias da Brasital nas décadas de 50 e 60 e a canção Tal Brasil descreve, de forma bem-humorada, em samba que remete a Noel Rosa e Wilson Batista, a rotina daquelas operárias incansáveis que ajudaram tanto a promover o progresso do município.

A fonte principal da poesia é uma tia de Edson: “Ela é minha madrinha, tem uma memória fabulosa e me contou muitas histórias. Ela foi funcionária da Brasital muito tempo e mora naquelas casinhas da Vila Aguiar, que era dos operários. Então falei ‘tia, queria fazer uma música sobre você, sobre minha mãe, como era trabalhar lá’, e ela foi contando”. E a letra foi surgindo: “Desperta, levanta às cinco, fica logo esperta/ Se faz bonita, prepara a marmita/ Pega a sombrinha e vai trabalhar”.

Diz a letra: “Chegando e o apito já está chiando/ E as mocinhas o passo apertando/ E o porteiro querendo fechar”. Edson explica: “Sabe o que é ‘o apito chiando’? Pro apito funcionar a caldeira vai liberando vapor, então ele começa a chiar antes de apitar, e era aquele barulho gigante, shhhhhhh. E elas entravam pela rua Ruy Barbosa e ouviam o chiado, ‘já vai apitar, o apita está chiando’, e tinha um cara que era porteiro, esses puxa-sacos de patrão, que ficava na entrada e ia ameaçando de fechar a porta, e as mulheres corriam para entrar, tinham que bater cartão, ou ponto, minha tia contou e eu falei que tinha que incluir isso na música”.

A composição seguinte, Atrás de Morro Vem Morro, classificada como “Um Reencontro”, tem, na música e na poesia, ecos sertanejos do interior de Minas Gerais: “Um ramo de oliveira atravessou a fronteira/ Numa saudade tropeira deixando Minas pra trás/ O vale está no destino, o amor também estava lá/ E foi que plantou sementes, atrás de gente vem gente”.

Considerando que o pai de Edson, Juvenal, era de Coroados, no interior paulista, pergunto sobre sua mãe. O compositor esclarece que Lourdes era de Olímpia, também no interior de São Paulo, mas estava em sua ascendência a história de Atrás de Morro Vem Morro. É uma das histórias mais saborosas por trás das composições de Edson: “Meu avô era mineiro de Oliveira, tropeiro, levava carga em lombo de mula, e morava com a irmã e a mãe. O pai já tinha morrido. Aí um dia ele decidiu tentar a vida em São Paulo e não voltou mais. Com o tempo começou a dar aquele desespero na irmã, o cara não voltava, mas imagina naquela época pra você se comunicar, década de 20, até antes disso”.

Judite — a irmã — nunca desistiu de procurar notícias do irmão, mas se conformou com a ausência, casou-se e seguiu com a vida. Juracy — o irmão — também seguiu sua vida e se casou em Olímpia, onde começou sua família, e mais tarde se estabeleceu em São Roque.

Judite, por sua vez, quando constituiu sua própria família, saiu de Oliveira e foi para uma cidade na grande BH, Capim Branco: “Ela tinha um pequeno comércio, uma venda de interior”, conta Edson, “e chegavam aqueles caixeiros viajantes, mascates, e tal, e quando vinha alguém de São Paulo ela perguntava ‘ô moço, você está vindo de São Paulo, você não conheceu lá um senhor chamado Juracy Silvino?’, não tinha a menor noção. E não é que numa dessas ela perguntou e o sujeito respondeu ‘olha, engraçado a senhora perguntar. Eu conheci um senhor numa cidade chamada São Roque, ele falou que era mineiro, que era tropeiro, sim, e o nome dele era Juracy’. Deu certo!”

A poesia segue, preparando o terreno para o reencontro: “A outra parte da história/ Ficou por trás da estrada/ Nas mãos das meninas de Minas/ Juntar o fio à meada/ Viajante trouxe a notícia/ Que conhecia o tropeiro/ E foi que partiu ligeiro/ Atrás de mineiro, mineiro”. O que a licença poética não revela é que as meninas de Minas não incluíam Judite, neste caso; quase vinte anos haviam se passado e, não tendo coragem de viajar, ela pôs as três filhas adolescentes num ônibus e mandou-as para São Roque atrás de Juracy.

A sorte estava com elas. Segundo Edson, “elas chegaram, desceram do ônibus, foram até o balconista e perguntaram: ‘Oi, a gente é de Minas, estamos procurando um tio nosso, que mora aqui, e tal, não sei se o senhor conhece, se chama Juracy Silvino’. O cara que estava no balcão respondeu: ‘Esse homem que vocês estão procurando é meu pai’. O balconista era meu tio, irmão da minha mãe”.

A família se uniu novamente, décadas depois. “Por isso eu fiz essa música”, diz Edson, “porque daí fui pra lá várias vezes, e é um carinho muito grande que existe nessa história. E a família cresceu porque a irmã do meu avô teve um monte de filhos, e meu avô teve um monte de filhos aqui também, e esses primos também tiveram um monte de filhos, e eu sou dessa geração. A ligação é muito forte”. Como reza a canção, “foram tantas emoções/ Que sobrou muito carinho/ Pra todas as gerações”. Mais à frente, a homenagem, que aumenta a cadência da música num quase forró: “Eu quero ouvir as batidas de Minas na minha canção/ Eu quero ouvir os tambores de Minas no meu coração/ Lembro as meninas de Minas/ Lembro as meninas daqui/ Lembro Tereza, Zefina/ Conceição não me esqueci/ Lembro de Lourdes, Nesica/ De Nenê Leila e Darcy/ Lembro da tia Judite/ Lembro do vô Juracy”.

A Valsinha Para Praça é auto-explicativa. “O tema — ‘A Praça’ — pedia uma coisa mais nostálgica”, conta Edson, e de fato ela sabe àquelas valsas dos anos 40, celebrizadas por Galhardo. É canção, aliás, que embalaria lindamente casais daqueles bailes de antanho, na voz tonitruante de tenores como Celestino.

O compositor faz aqui um misto de crônica e poesia: “Os velhos que chegam primeiro/ Pro dia inteiro poder barganhar/ Canários, relógios, chaveiros/ Não pelo dinheiro, só pro tempo passar”. E continua, com fina percepção poética, a descrição do cotidiano na praça da matriz, passando pela tarde: “Desse carrossel inconstante/ Cenário de amantes de tempos atrás/ Um gira á direita outro gira pra esquerda/ E eu zonzo de tanto olhar”.

A noite dá ao compositor a oportunidade de alçar seu estro a vôos mais altos, na descrição das “estrelas no teto” e na outorga da praça aos “bêbados e vagabundos”, donos legítimos do local: “E a noite então cai de mansinho/ E os passarinhos já foram dormir/ Silêncio agora é completo/ Estrelas no teto já podem sonhar/ Teus bêbados e vagabundos/ São donos do mundo e desse lugar/ Te guardam pela madrugada/ Até a alvorada vir te despertar”.

A valsa é interregno para que Edson faça uma última incursão familiar nesta sua notável observação poético-musical de São Roque. E o título da canção, Amar o Planeta, tratando de “Um Personagem” da cidade, é trocadilho que só os são-roquenses, e mais especificamente quem chegou a ver esse personagem, vão reconhecer. Porque “Amar o Planeta” não é sobre a natureza ou ecologia. É a junção de um nome, “Amaro”, e de um apelido, “Planeta”.

Voltamos à conversa de Edson e João Bid, que deu origem a todo este trabalho: “Amaro na verdade é meu tio”, revela Edson. “E planeta era um apelido dele. Porque ele tinha um problema mental, então as pessoas falavam que ele andava meio no mundo da lua, fora da órbita, e apelidaram-no de ‘planeta’. Aí fiz o trocadilho”. Como se viu no início, ele andava com vários relógios em cada braço, o que deu a Edson a inspiração para os versos iniciais desta que foi, efetivamente, a primeira música que ele escreveu para o projeto: “Ele carrega nos braços as horas do mundo/ Traça o seu destino feliz, vagabundo/ Vagando no mundo, no mundo da lua”.

Mas o bom “Planeta” tinha outros hábitos que marcavam muito, como por exemplo andar com um molho de chaves no bolso: “Ele carrega nos bolsos as chaves de todas/ As portas que abrem pro bem e pro mal/ Na tela dos sonhos do Cine Central”. Segundo Edson, o molho não era para nada, era só para poder carregar o chaveiro com as chaves, provável nostalgia de seu tempo de porteiro no Cine Central.

“Tinha aula ali no Bernardino”, continua Edson, “as crianças saíam da escola, o Planeta pegava um cavalete, fechava o trânsito, punha um quepe, apito e atravessava a molecada da escola. Simples assim. Ninguém intervinha, nada, e estava tudo certo. E era bacana, ele dava a contribuição dele para a sociedade”. O fim da canção, que tem uma batida de um rock dos anos 70 e início dos 80, é o compositor entrando no universo desse tio, que viveu para receber e apreciar a homenagem do sobrinho, e morreu em 2007: “Dou um salto para o alto e agarro um cometa/ Cruzando as estrelas chego de repente/ Dentro da tua mente, onde habita o Planeta”.

Darcy Penteado
A última composição do cd (sobre o epílogo Por Todos os Cantos II já falamos), versando e versejando sobre “A Arte”, só poderia ser dedicada aos dois mais célebres filhos do Vale: o artista plástico e escritor Darcy Penteado (1926/1987), e o ator e dramaturgo Juca de Oliveira (1935): Tua Obra, Teu Pão. “O Juca assisti em Saramandaia quando era criança, e o João Gibão me marcou muito”, diz Edson, relembrando o personagem do ator na novela surrealista de Dias Gomes.

De Darcy Penteado Edson guarda uma recordação fugaz da infância: “Eu vi o Darcy uma única vez, de longe na praça, muito elegante, já senhor, cabelo branco, barba branca, um pulôver vermelho, bem charmoso, e eu era moleque, estava passando na praça e minha mãe virou pra mim e disse ‘sabe quem é aquele lá? É o Darcy Penteado, aquele artista famoso’. Nunca me esqueci dele”. A canção começa com uma engenhosa exposição poética do imenso talento de ambos: “Plantando poesia na vida gente/ Pintando na tela virando aquarela/ Pintor da palavra, poeta da cor/ Artista da vida, tua obra, teu pão./ De cima do palco encena a partida/ Os filhos do Vale te acenam com a mão/ Compondo a textura, entalhando a canção/ Artista da vida, tua obra, teu pão”.

Juca de Oliveira
O que vem a seguir, permeando e ponteando a belíssima melodia, é uma fantasia, um diálogo etéreo e original, entre ambos, no qual Edson brinca com o Pavão Misterioso, de Ednardo, música de abertura de Saramandaia: “Saramandaia, eu sou pavão/ Misterioso sou teu irmão/ Tenho a imagem, eu sei voar/ Sou as batidas do coração/ Pássaros soltos batem no céu/ Sempre voando na contra-mão/ Um personagem da ficção/ Pousando leve no meu quintal”.

Edson chegou a esse ponto da composição e empacou. Não conseguia terminá-la. Um belo dia apresentava uma espécie de avant-premiere com as músicas do cd ainda não lançado, e no fim do show foi abordado por Roberto Godinho, o grande poeta e contador das coisas de São Roque e de todo o Vale. Godinho é autor do livro Ida e Volta, onde esmiúça, com talento e sensibilidade, as sensações, prazeres, tristezas e experiências de sua vida em uma analogia com as estações de trem por onde viajou na infância e juventude.

É Edson que conta: “Aí me apresentei, cantando e falando sobre São Roque — e eu falo muito no show — e aí terminou e o Roberto Godinho chegou e me falou (imita perfeitamente a voz de Godinho): ‘Puta merda, você gosta das coisa de São Roque? Vou te dar um livro que eu fiz falando das coisa de Cangüera, Goianã, Mairinque, e tal, você vai gostar’, daí ele fez esta dedicatória, aqui: ‘Ao companheiro Edson, quem anda no mesmo trem sempre acaba se encontrando em alguma estação’. E eu precisava terminar a música, e esse era o final que eu estava precisando. Devo ao Roberto Godinho”.

Eis a última estrofe, baseada na dedicatória de Godinho: “E quem viaja no mesmo trem/ Um dia se encontra numa estação/ O personagem João Gibão/ Pousando leve no meu vagão”. “Encontro” é a palavra perfeita. Encontro da poesia de Godinho com a poesia de Edson, encontro de dois trovadores, o encontro pessoal deles com o público e obras que são ponto de encontro para quem aprecia o “poetar”, essa sutileza artística na descrição dos fatos comezinhos da vida cotidiana. Eu mesmo, que acabo de chegar ao “Vale”, sinto que já estou no mesmo trem e já tive o prazer de encontrar ambos, às vezes em estações diferentes, às vezes na mesma.

João Bid e Edson D'aísa
Na hora de gravar, Edson chamou João Bid — que lhe inculcara a idéia inicial de um trabalho sobre sua cidade — para um dueto em Tua Obra, Teu Pão.

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A recompensa por esse trabalho dedicado e brilhante de composição musical e poética não se fez esperar: pouco depois do lançamento de Todos os Cantos do Vale, Edson foi avisado pela Câmara Municipal de São Roque de que haveria um concurso para a escolha do novo hino oficial do município, como parte das comemorações dos 350 anos de sua fundação. Embora pudesse pinçar entre várias das canções do cd aquela que melhor representava a cidade, Edson preferiu uma composição original. Escreveu o hino em parceria com o maestro Cândido Francisco Camargo Neto e venceu o concurso. Se Todos os cantos do Vale já transformara Edson no arauto de São Roque, o hino em parceria com o Maestro Cândido veio apenas oficializar esse título.

O próximo trabalho de Edson também tem ecos nessa pintura de São Roque: em 2004 a então secretária municipal de Cultura, Sílvia Melo, deu a idéia para que se fizesse um musical sobre a vida de Darcy Penteado. O professor e diretor teatral Humberto Gomes foi destacado para a criação e direção cênica, e Edson foi chamado para toda a parte musical. O projeto acabou não se concretizando, mas deitou raízes profundas em Edson. “O Humberto me chamava”, conta o compositor, “e dizia ‘olha, vamos fazer uma cena sobre o episódio tal da vida do Darcy, e precisamos de uma música’, e aquilo jorrava de mim. Eu considero essas composições verdadeiras parcerias que tive com o Darcy, e foi muito bacana”. Edson está trabalhando no arranjo das canções com o filho Mateus e está em vias de gravá-las em cd.

Edson, Natália e Bernardo
Aguardamos ansiosamente. Edson é um talento como poucos que temos visto. E está mais do que na hora de homenagear o grande esquecido Darcy Penteado.

Bernardo Schmidt e Natália Negro
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Ficha Técnica

Todos os Cantos do Vale
Canções de Edson D’aísa

Voz e Violão — Edson D’aísa
Contrabaixo, Violão Aço, Piano e Clarineta — Alex Silva
Flautas e Violão Nylon — Fábio Gouvêa
Cello — Jefferson Perez
Bateria e Percussão — Jackson Goulart
Acordeom — Beto Corrêa
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CD e Contatos para Shows:

D'aísa Produções Culturais
Tel: 11 99795 0117

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