quinta-feira, 23 de julho de 2020

Minestrone Cultural XVIII


EDIÇÃO PANDEMIA


DISCOS (1972/1982)

Instado pelo Alexandre, entro na brincadeira que vem rolando há tempos no Facebook, de escolher dez discos e postá-los, um por dia, sem quaisquer explicações. Mas vou ter que mudar duas regras:

a) Não vou postar os dez discos mais importantes da minha vida porque não consigo escolher apenas dez. A música, para mim, é tão fundamental quanto respirar e são milhares os discos que forjaram meu gosto musical e estão guardados com carinho em minha memória. Escolherei apenas dez discos que me marcaram profundamente até eu completar dez anos, com a triste certeza de que pelo menos outros vinte ficarão de fora. Sobretudo os internacionais, que neste primeiro momento optei por não incluir, ou esta lista não teria mais fim.

A infância, como se sabe, é o período em que somos um livro aberto, em branco, pronto para receber todas as influências artísticas e de qualquer outro tipo (daí a imperiosa necessidade de expor a criança somente àquilo que é benéfico e produtivo). Graças a Deus tive em meus pais duas pessoas que amavam música e possuíam um gosto musical refinadíssimo, então meu próprio gosto se formou a partir do contato com o que havia de melhor.

b) Vou fazer um pequeno comentário sobre cada um porque não vejo qualquer graça em postar dez capas sem nenhuma explicação. É o que torna o Facebook uma vitrine sem charme e sem valor: a publicação inconseqüente de fotos sem texto. Amanhã ninguém nem lembra que isso foi postado. Por isso tenho saudades do Orkut.

Deixo de fora LPs de Moraes Moreira como Lá vem o Brasil descendo a ladeira e Bazar Brasileiro - provavelmente os mais importantes de minha infância - porque já estou falando deles em minha última postagem do Minestrone Cultural.

01 - Guilherme Arantes (1976)

Esse LP na verdade pertencia ao meu irmão e eu, com quatro ou cinco anos, adorei as maravilhosas melodias compostas por Guilherme e não me esqueci jamais delas. Todas me marcaram de uma maneira ou de outra. Esse foi o primeiro LP do grande pianista e ele trazia fresca, jovem e pulsante sua inspiração musical e poética. Poderia comentar todas as canções. "A Cidade e a Neblina", "Águas Passadas", "Não Fique Estática"... canções tão pessoais, tão inocentes e românticas. "Meu Mundo e Nada Mais" explodiu na trilha sonora da novela Anjo Mau, de Cassiano Gabus Mendes, "Cuide-Se Bem" explodiu em Duas Vidas, de Janete Clair, e Guilherme cimentou ali seu caminho vitorioso como um de nossos melhores compositores.

O encontro com o querido Guilherme nos bastidores do Jô, em 1993

02 - Roberto Carlos (1977)

Meu pai ganhou esse LP do irmão, que ao presenteá-lo escreveu-lhe uma dedicatória linda, aludindo à amizade, à camaradagem e à cumplicidade que os dois compartilhavam há quase quarenta anos. O tema de tudo, evidentemente, era a belíssima canção "Amigo", escrita por Roberto para Erasmo. Eu pessoalmente, chegando aos seis anos, preferia "Muito Romântico" (que só anos depois vim a saber que é de Caetano) e "Pra Ser Só Minha Mulher" (que também só descobri muito tempo depois ser música do mestre Tony Osanah). Minha mãe, fã de Roberto desde a Jovem Guarda, contentava-se com "Falando Sério" e "Jovens Tardes De Domingo". Infelizmente meu pai se foi, inesperadamente, cinco meses depois, e a canção "Outra Vez", de Isolda, passou a ser um verdadeiro tabu para ela.

03 - Ópera do Malandro (Chico Buarque e outros, 1979)

Não há como falar de Chico e de sua presença basilar na minha vida sem citar Meus Caros Amigos, de 1976, e Chico Buarque (o proverbial "disco da samambaia"), de 1978. Amei todas as músicas, decorei todas, cantava todas e não há uma única canção desses dois LPs que eu tenha gostado menos. Mas como esta lista fatídica só pode acomodar dez LPs, serei obrigado a uma escolha pior que a de Sophia: um único disco de Chico para constar aqui, e escolho a Ópera do Malandro.

Minha mãe costumava fazer uma gambiarra com um dos vendedores da HiFi, no Iguatemi, e ao invés de comprar o LP ou a fita originais, ela adquiria uma fita gravada do LP, por um dos vendedores, a um preço reduzido. Era a pré-história da pirataria. E dentre as inúmeras fitas que ela comprou assim, veio a "Ópera do Malandro", de Chico. Foi uma paulada em minha inocência. As músicas eram espetaculares. "O Malandro" (letra de Chico para a música de Kurt Weill), com o MPB4, começava com o acompanhamento único de uma caixa de fósforo e terminava com uma orquestra. Um verdadeiro deleite.

O "Hino de Duran" trazia Chico junto à "Cor do Som" (cujo LP Frutificar, de 1979, tive que deixar de fora desta lista) e eu viajei com o teclado de Mú e a guitarra de Armandinho. As letras fortes e marcantes de "Uma Canção Desnaturada" e "Pedaço de Mim" ainda não faziam sentido para mim, mas as melodias me maravilharam. Os artistas, os arranjos, tudo. Decorei todas. Cantava todas. O "Tango do Covil" era uma de minhas favoritas, assim como a poderosa "Geni e o Zepelim". Também amei Moreira da Silva dando uma aula de malandragem na "Homenagem ao Malandro". Mas como não podia deixar de ser, já que meu inusitado registro de barítono surgiu cedíssimo, eu amava acompanhar Paulo Fortes na "Ópera", em que Chico misturou, brilhantemente, as músicas de Bizet, Verdi e Wagner com suas próprias letras, pertinentes ao espetáculo teatral do qual eram trilha.

Além dos já citados, esse musical de Chico me introduziu à Marlene, Alcione, Gal Costa, Elba, Zizi Possi, As Frenéticas, João Nogueira e toda nossa melhor MPB. A "Ópera do Malandro" foi uma das maiores riquezas da minha infância.

04 - Realce (Gilberto Gil, 1979)

Gil, com trinta e sete anos, terminou a década de 70 energizado e renovado. Soube se modernizar sem que sua obra perdesse um pingo de seu valor. Realce é um extrato de seu momento musical, impregnado de samba e Reggae. A canção-título parece homenagem à década que se encerra e um chamamento à nova ordem musical; "Realce" tem a cara dos anos 80. Já "Superhomem, a canção" (preferida inconteste de minha mãe), é balada atemporal e um hino ao lado feminino dos homens, tão decantado por Gil, Caetano e Pepeu, naquela época. Em "Marina" Gil revoluciona, transformando a canção escrita em 1944 por Dorival Caymmi em um reggae da melhor qualidade. "Rebento" é um samba lindíssimo, também inteiramente atemporal, que seria reverenciado como uma composição perfeita em qualquer época. Minha preferida é "Toda Menina Baiana", outra perfeição.

05 - Gal Tropical (Gal Costa, 1979)

Gal Costa está em situação semelhante à de Chico. Era uma das artistas preferidas de minha mãe, que comprava seus LPs assim que eram lançados. É difícil, portanto, falar dela sem mencionar Água Viva (1978), Aquarela do Brasil (1980) e Fantasia (1981). Mas ficarei neste momento com Gal Tropical porque não creio que ela tenha mostrado melhor a mistura de seu talento superior de cantora (a maior do Brasil, junto à Elis) com sua faceta de intérprete, como neste disco. E Gal é tão talentosa, tão versátil, que passeia pela MPB brasileira dos últimos cinqüenta anos, espanando-lhe o mofo e dando-lhe feição moderna e atual. Com sete anos, eu adorei "Balancê", com seu refrão fácil e sua melodia cativante, sem saber que Gal exumava um sucesso que Braguinha compusera para o carnaval de 1936!


Também não sabia que a lindíssima "Estrada Do Sol" era parceria de Tom e Dolores Duran. Só sei que fiquei encantado com a sutileza da melodia, como também me encantou a "Juventude Transviada" de Luiz Melodia. Outras canções que me impressionaram muito pela da interpretação de Gal e dos arranjos perfeitos de Antônio Perna Fróes foram "Índia", que eu ouvia ali pela primeira vez, e "O Bater Do Tambor", excelente frevo de Caetano que me fazia sentir em Salvador, nos becos e nas reentrâncias que os trios não invadiam, nas noites de carnaval. E ouvi "Meu Nome É Gal" pela primeira vez, nessa nova versão da música-homenagem de Roberto e Erasmo, muito melhor do que a versão original de 1969.

06 - Cinema Transcendental (Caetano Veloso, 1979)

Como se vê, a MPB estava no auge quando se encerrou a década de 70. Cinema Transcendental traz pérolas que me acompanham até hoje. "Lua de São Jorge" é adorável, mas a "Oração ao Tempo" é uma das composições mais lindas que já ouvi em minha vida. É uma jóia na coroa de Caetano. "Beleza Pura" está lá para constar mas já era sucesso no cardápio de Armandinho e A Cor do Som, assim como "Menino do Rio" virou trilha do filme inesquecível de André de Biasi, na interpretação perfeita de Baby Consuelo. "Trilhos Urbanos" é uma beleza e há espaço para o divertido "Vampiro" de Jorge Mautner, mas junto à "Oração", minha canção preferida desse álbum é provavelmente a "Elegia", que tem poesia de Péricles Cavalcanti e Augusto de Campos, e suponho que a música seja de Caetano. Mas eu só iria realmente conhecer Caetano a partir de Uns, em 1983.

07 - Rita Lee (1980)

Há pessoas que criticam Rita por essa fase de sua carreira, que consideram não estar à altura de seus LPs com o Tutti Frutti. Discordo frontalmente. A obra de Rita é toda boa, em geral, mas Roberto de Carvalho trouxe uma riqueza melódica que acho inegável e da qual sou fã. Com efeito, a impressão que dá é de que ela foi atacada simplesmente porque virou uma usina de sucessos. Desde o primeiro LP que lançou com Roberto (em 1979, ano abençoado), seguindo por este e pelo próximo, temos uma verdadeira coleção de ótimas canções. Me faz lembrar Elton John ou Billy Joel, em que não há como ter favoritas porque são todas boas. "Lança Perfume", "Baila Comigo" e "Nem Luxo, Nem Lixo" não são apenas fáceis de recordar e gostosas de cantar. São músicas excepcionais, retratos de sua época e seriam standards em qualquer lugar do mundo. Rita é uma grande compositora e sua obra, seja com Os Mutantes, com o Tutti Frutti ou com Roberto trouxe sempre a marca de um talento sem igual.

08 - Cauby! Cauby! (Cauby Peixoto, 1980)

Cauby foi o maior cantor brasileiro da segunda metade do século XX (e em minha opinião, do século inteiro), portanto era natural que fosse um dos favoritos de meus pais. Até mesmo meu pai, que não gostava dos maneirismos do cantor, seus lenços, sua maquiagem, suas desmunhecadas, deixava isso de lado e admitia o imenso talento de Cauby. Em 1980 a Som Livre lançou um LP de homenagem a seus trinta anos de carreira, reunindo canções que os maiores compositores brasileiros - todos seus fãs confessos - fizeram para ele, ou foram celebrizadas por sua interpretação. Na ocasião fiquei impressionado com o vibrato de Cauby em "Bastidores", de Chico, gostei muito do "Cauby! Cauby!", de Caetano e "Ronda", de Paulo Vanzolini (malgrado a breguice do arranjo).


Com os anos fui aprendendo a apreciar a bonita e simples "Oficina", de Tom Jobim e "Não Explique", de Eduardo Duzek. Há uma curiosa versão ao vivo de "Chão de Estrelas" cantada por Cauby, Sílvio Caldas e ninguém menos que o saudoso Jessé, procurando não fazer feio em meio aos mestres. Mas nem tudo é perfeito; Roberto e Erasmo, que começaram suas carreiras com Cauby, colaboraram com a perfeitamente esquecível "Brigas de Amor". Jorge Ben colabora com a sem-graça "Dona Culpa" e inclusive canta com Cauby. Terrível. Os arranjos do talentoso e saudoso Lincoln Olivetti estão datados e são irregulares; por vezes funcionam lindamente, por vezes trazem uma certa cafonice daquele início de década de 80. É, contudo, pérola rara de nosso cancioneiro e recordação docílima de minha infância.

09 - A Arca de Noé (Vários, 1980)

Sob a batuta do grande Augusto Cesar Vanucci, a Globo produziu o especial "A Arca de Noé", obra-prima realizada a partir dos poemas infantis de Vinícius, musicados por Toquinho. A direção foi de Evaldo Rui e o programa foi ao ar em outubro de 1980. Difícil descrever algo tão maravilhoso. É necessário ter sido criança naquela época, para entender. A introdução - nunca esqueci - era uma narração de Chico para este poema: Sete em cores, de repente/ O arco-íris se desata/ Na água límpida e contente/ Do ribeirinho da mata. Já me arrepiou naquele momento. Na seqüência entrava Milton cantando E abrem-se as portas da arca/ Lentamente surgem francas/ A alegria e as barbas brancas/ Do prudente patriarca, e assim por diante. Para mim, aos oito anos, aquilo era o paraíso musical das crianças. Alceu Valença cantando a divertidíssima "A Foca"; meu ídolo Moraes Moreira cantando "As Abelhas" e o MPB4 - meus já conhecidos dos discos de Chico - nos fazendo rir às casquinadas em "O Pato", com direito a Miltinho fazendo com perfeição a voz do pato. Ney Matogrosso, com "São Francisco" e Elis, com "A Corujinha", traziam um tom mais sério, mas nossa alegria estava no Boca Livre cantando "A Casa", nas Frenéticas e Martim Francisco - o "Padilha" do Planeta dos Homens e de Viva o Gordo - na "Aula de Piano", e etc.

O que posso dizer de algo tão bom? Da beleza de Aretha, uma verdadeira boneca viva, filhinha de Vanusa e Antônio Marcos? Que o programa fez tanto sucesso que a Globo o reprisou, semanas depois, e eu pedi à minha mãe que transcrevesse a narração de Chico? Que eu decorei o poema da Arca, cantado por Milton, e três anos depois, aos onze anos, recitei em aula suas dez estrofes, para o completo basbaque de minha professora de português? Que conheci ali o gênio de Vinícius e Toquinho?... não há o que dizer. Como disse antes, só quem foi criança naquela época entenderá.

10 - Wilson, Geraldo, Noel (João Nogueira, 1981)

Outra jóia que devo - como todas desta lista - à minha mãe. Atenta ao que de melhor se produzia em nossa MPB, ela comprou a fita Wilson, Geraldo, Noel, onde João Nogueira homenageava os compositores Wilson Batista, Geraldo Pereira e Noel Rosa. Mais uma vez ressalto a importância de expor a criança a coisas boas: essa fita foi meu primeiro contato com qualquer um dos três compositores, e 1) a riqueza das composições, 2) a perfeição dos arranjos (mérito de Cristovão Bastos, Geraldinho Vespar, Nelsinho e Paulo Moura) e 3) a interpretação de João, me tornaram fã eterno dos três (de João eu já era fã desde a Ópera do Malandro). E durante anos eu escutei essa fita de cabo a rabo. Em 1996 comprei o CD e continuo escutando-o até hoje.

Alcione e João em desfile da Portela, 1984
Considero todas as faixas excelentes, mas admito que tenho minhas favoritas: de Noel, o partido-alto "De Babado" não é só uma delícia, mas ainda traz Alcione dividindo os vocais com João. Ainda de Noel posso citar a impagável e altamente curiosa (para uma criança) "Positivismo", com letra inspiradíssima de Orestes Barbosa. E "O Maior Castigo Que Eu Te Dou", que gosto muito e hoje, infelizmente, seria espinafrada pela patrulha PC. Wilson Batista, como na vida, roça ombros com Noel, nos lindos sambas "Louco", o "Samba do Méier" e o "Largo da Lapa", cartões postais do Rio cantados, sentidos e poetados. Mas também patenteia seu bom humor, na divertidíssima "Esta Noite Eu Tive um Sonho", parceria que não poderia ser com nenhum outro senão Moreira da Silva. E Geraldo não fica a dever nada a seus dois colegas e contemporâneos, com as ótimas "Bolinha de Papel" e "Você está sumindo".

Que mais posso dizer?

Valeu a pena ser criança com essa MPB.

Quantas gerações depois da minha poderão dizer o mesmo? (30 e 31/05/2020)

ANTÍPODAS SIAMESES

Dois ignorantes e seu exército de idiotas.




(1, 7 e 21/05/2020)

SAMBA DA PERGUNTA

           

Samba da Pergunta
(Pingarilho/Vasconcellos)

Ela agora mora só no pensamento
Ou então no firmamento
Em tudo que no céu viaja

Pode ser um astronauta
Ou ainda um passarinho
Ou virou um pé de vento

Pipa de papel de seda
Ou, quem sabe
Um balãozinho

Pode estar num asteróide
Pode ser a Estrela Dalva
Que daqui se olha

Pode estar morando em Marte

Nunca mais se soube dela
Desapareceu... (19/05/2020)

MENCKEN E O "COMPLETO IDIOTA"

Há alguns anos está rodando a internet uma citação do jornalista norte-americano H. L. Mencken (1880/1956), que termina com uma frase considerada profética: "Em algum grandioso e glorioso dia, os cidadãos comuns de nossa terra atingirão, finalmente, o desejo de seus corações, e a Casa Branca será ocupada por um categórico burro e um completo idiota narcisista".

O trecho final foi utilizado inicialmente para caracterizar George W. Bush, que realmente se enquadrava com facilidade no quesito "burrice". Mais à frente foi a vez dos republicanos utilizarem a frase para ressaltar o narcisismo de Barack Obama. E atualmente a frase corre a internet como a qualificação perfeita de Donald Trump, ao mesmo tempo burro e narcisista.

Entretanto, como a frase soava perfeita demais para caracterizar Trump, entraram em ação os fact-checkers da internet, a fim de verificar se a citação é real e se foi, de fato, escrita por Mencken. O resultado é interessante. Ela é 90% real. Escrevendo para o Baltimore Evening Sun de 26 de julho de 1920 - portanto há quase exatos cem anos - Mencken discorria sobre campanhas eleitorais regionais e nacionais, e o quanto era difícil que um homem íntegro e preparado conseguisse transmitir sua mensagem em um país tão grande. Suas colocações são absolutamente lapidares, e trazem assustadora ressonância com nosso país, e especificamente os nossos três últimos presidentes eleitos:

Quanto maior a massa, mais difícil o teste. Em pequenas áreas, diante de pequenos eleitorados, um homem de primeira classe luta para abrir seu caminho, carregando ocasionalmente até mesmo a massa com ele pela força de sua personalidade. Mas quando o campo é nacional e a luta deve ser travada principalmente em segunda e terceira mão, e a força da personalidade não pode ser tão facilmente sentida, então todas as probabilidades estão no homem que é, intrinsecamente, o mais desonesto e medíocre - o homem que mais facilmente pode dispersar a noção de que sua mente é, virtualmente, um vácuo.

Depois desse diamante de lucidez, ele conclui:

A Presidência tende a ir, ano após ano, para tais homens. À medida que a democracia é aperfeiçoada, o cargo representa, de forma cada vez mais fiel, a alma interior do povo. Nós nos movemos em direção a um ideal elevado. Em algum grandioso e glorioso dia, os cidadãos comuns de nossa terra atingirão, finalmente, o desejo de seus corações, e a Casa Branca será adornada por um completo idiota.

Como se vê, nem "burros" e nem "narcisistas". Os espalhadores de memes aumentaram um pouco a verdade e the White House will be adorned by a downright moron se tornou the White House will be occupied by a downright fool and a complete narcissistic moron. Um pecadilho, que não obstante retrata Trump com clareza, e, retroativamente, acerta Lula em cheio, por narcisista e burro, e Dilma e Bolsonaro igualmente, no quesito "burrice".

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É preciso ter cuidado para não cair em algumas armadilhas, na hora de analisar Trump:

1º - Em primeiro lugar ele não criou nada e não é um self-made man. Seu pai já era um próspero empresário do ramo imobiliário quando Trump apareceu e encontrou tudo feito e encaminhado. Ele apenas se aprofundou no lado sujo dos negócios e ao longo dos anos, quando não se cercou da patuléia mais abjeta e perigosa dos Estados Unidos - avalistas permanentes de seus desatinos - foi um homem de negócios medíocre, ridículo e falastrão. Abriu falência SEIS vezes. Perdeu bilhões, e - é lógico - nunca de seu próprio dinheiro, mas daquele que conseguiu através de facilidades junto a amigos no governo e a negociatas escusas com gente que esteve sempre nas franjas da lei. Podemos citar dezenas de multi-milionários (sobretudo no Brasil) que não fizeram sua fortuna de uma maneira honesta, ou graças a um bom tino comercial. Aliás, são provavelmente a esmagadora maioria.

2º - Não se deve confundir "inteligência" com "esperteza", ou "carisma" com uma personalidade espalhafatosa e desavergonhada que acaba agradando uma parcela mais ignorante da população (no que ele guarda espantosa semelhança com Lula, conforme já consignei até em artigo do meu blog). O que Trump foi, de fato, é um sujeito esperto e imoral, que deu todos os jeitos do mundo, legais e ilegais, para se manter em evidência, não importando a quem ou o quê ele destruísse no caminho. Mesmo às custas de sua própria reputação, porque ela sempre foi ruim. Ele é tosco e primário, não é capaz de concatenar um raciocínio sem dizer alguma asneira, e lida com seus negócios do mesmo jeito superficial e performático com que apresentava aquele reality. Ele é um artista de TV e maneja o público assim como um youtuber de 20 anos, ou as Kardashians. Isso não é inteligência. Isso é a esperteza para saber manipular um público que é ainda mais burro do que ele.

3º - Sua ascensão à presidência é tristemente fácil de compreender: os democratas não tinham, em Hillary, a melhor candidata. Pessoalmente, lamento até hoje que Elizabeth Warren tenha se recusado a competir naquela eleição, pois sua estrela estava brilhando intensamente (ao contrário de hoje, em que é carta fora do baralho) e ela teria sido uma candidata perfeita para substituir Obama. Não obstante, Hillary VENCEU a eleição e não tomou posse pela mesma razão que Gore não tomou posse em 2000: as eleições presidenciais norte-americanas ainda tem seu martelo batido pela instituição mais vetusta e corrupta da civilização ocidental: o colégio eleitoral. Fosse pela vontade do povo, Trump não teria jamais espalhado sua morrinha pela Casa Branca. (19/07/2020)

APANHADO CINEMATOGRÁFICO INCOMPLETO NA PANDEMIA

Por razões óbvias, tenho assistido mais filmes em uma semana do que assisti o ano passado inteiro. Não tenho como resenhar todos então me limitarei aos que me recordo no momento. Também tentarei não me estenderei nos comentários:

GREYHOUND (2020) - Direção do desconhecido Aaron Schneider, e mais um ótimo trabalho de Tom Hanks. Ele é o capitão que vai comandar (pela primeira vez) uma frota de navios até a Inglaterra para ajudar os aliados, sendo que grande parte do trajeto é feito sem retaguarda aérea, o que torna os navios presas fáceis dos submarinos alemães. O filme se passa justamente no período em que a frota é obrigada a enfrentar inúmeros desafios. Belíssimo filme de guerra, um verdadeiro pé-de-vento, valorizado pelo ritmo dinâmico, a direção e a interpretação de Hanks. Recomendo.

THE OLD GUARD (2020) - Baseado no HQ de Greg Rucka e Leandro Fernandez, com direção da também relativamente desconhecida Gina Prince-Bythewood. Um grupo de mercenários que passa a vida combatendo o mal tem em comum o fato de que - sabe-se lá o porquê - são imortais. Para piorar, são perseguidos por agências governamentais e empresários inescrupulosos que querem utilizar esse dom para o bem ou para o mal. Gostei. Filme de ação padrão e considerando aquilo que é produzido pela Netflix, está acima da média. E é sempre bom ver Charlize Theron. Só.

THE BROWNING VERSION (1951) - Sobre este, precisarei fazer alguns comentários. Conhecido no Brasil pelo cretiníssimo nome de "Nunca te amei", o filme é baseado na peça de Terence Rattigan, com roteiro do próprio e direção de seu maior colaborador, Anthony Asquith. No papel principal, do professor Andrew Crocker-Harris, o tão subestimado Michael Redgrave.

Simplesmente magnífico. Tenho raiva de mim mesmo por não ter visto este filme antes. Trata da vida de um professor que vai se aposentar depois de muitos anos de trabalho e se vê diante da terrível e objetiva realidade de que ele é desprezado por seus alunos e por sua própria esposa. A aposentadoria o colocará face a face com seu fracasso e o que lhe restou de todos esses anos.

Redgrave tem uma performance que traz ao lume aquilo que ele tinha de melhor: a capacidade de transmitir sentimentos profundos e perturbadores com a mais sublime sutileza. Enquanto Olivier fazia tremer teatros com sua energética interpretação de fora para dentro; enquanto Gielgud provocava suspiros com sua voz poderosa, tremelicosa e declamatória; e enquanto Richardson conquistava público e crítica com seus maneirismos cômicos e bonachões, Redgrave corria por fora, calmo, tranqüilo e brilhante.

Jean Kent (Millie) e Michael Redgrave (Andrew)

The Browning Version teve duas outras versões nos últimos trinta anos, contando com craques como Albert Finney e (o recentemente falecido) Ian Holm. Não assisti e não duvido que sejam bons. Mas não creio que alcancem a riqueza dramática, sincera e pungente, de Redgrave. Recomendo enfaticamente.

EU NÃO QUERO SER HOMEM (Ich möchte kein Mann sein, 1918) - Ernst Lubitsch tinha vinte e seis anos quando dirigiu este filme e fazia cinema há apenas três. Ainda engatinhava na arte da qual tornou-se mestre inconteste. Não obstante, os quarenta e cinco minutos da comédia muda "Ich möchte kein Mann sein" são muito divertidos e trazem um assunto que talvez fosse normal na época, depois virou tabu, depois ficou normal, virou tabu, ficou normal, e é assim até hoje: uma mulher (Ossi Oswalda, a primeira grande estrela de Lubitsch e chamada, na época, de "A Mary Pickford alemã") que se cansa de receber ordens de seu tutor - por quem, aliás, é apaixonada - e resolve se vestir de homem, para experimentar as mesmas liberdades do sexo masculino.

Uma vez que leva a cabo seu plano, passa por diversas situações inusitadas (como despertar a paixão de outra mulher, ou tornar-se "amigo" de seu tutor, que encontra em uma festa) e percebe que ambos os sexos tem suas dificuldades. Recomendo pela curiosidade do tema e pela interessante atualidade da trama.

COHERENCE (2013) - Nunca sequer ouvira falar de Coherence ou de seu escritor/diretor, James Ward Byrkit, até que um dia, vendo um video sobre filmes de ficção  científica que mereciam mais notoriedade, Coherence foi citado e resolvi assisti-lo. E foi uma excelente surpresa. O filme lida com o conceito do multiverso quântico a partir da passagem de um cometa, e considerando o quanto o tema vem sendo banalizado, nos últimos tempos, impressiona a qualidade do roteiro, da direção e dos atores (todos praticamente desconhecidos). Aquilo que começa como o mais alegre e despretensioso jantar entre amigos se torna uma montanha russa arrepiante. Recomendo.

ARCHIVE (2020) - Reciclagem de Transcendence, Ex-Machina e The 6th Sense (e, cá entre nós, a capa me fez pensar que era um remake de Enemy Mine). A esposa morre, o marido armazena sua memória em um HD e tenta construir um corpo para ela. Não é um fracasso completo, mas quando você começa a amar os dróides e desprezar o personagem principal (o sempre chato e desagradável Theo James), algo está muito errado. Há um plot twist legalzinho, mas só o que consegui pensar foi "que desperdício da linda Rhona Mitra".

BECOMING (2020) - Assisti pensando que seria um alentado documentário sobre a vida de Michelle Obama, já que traz o título de sua auto-biografia best-seller, Becoming. Não é. Trata-se, na verdade, de um documentário da turnê de lançamento do livro que a ex-primeira dama fez pelos Estados Unidos, e em meio aos grandes eventos, ficamos sabendo um pouco mais sobre ela. Embora não seja completo como eu desejaria, é um documentário interessante e ver uma mulher admirável e inteligentíssima como Michelle expendendo conceitos sobre a vida, é um prazer.


ON THE RECORD (2020) - Documentário da HBO que conta o caminho trilhado pela executiva Drew Dixon até que ela tivesse coragem de falar sobre ter sido drogada e estuprada por Russell Simmons, famoso produtor de rap dos anos 90. Sua acusação abriu uma porteira e várias outras mulheres acusaram Russell. Dirigido por Kirby Dick (duas vezes indicado ao Oscar por documentários) e contando com Oprah Winfrey entre suas produtoras executivas e incentivadoras de todo o projeto, On the record tinha tudo para se tornar um grande alerta sobre aspecto abertamente deletério do chamado "rap de ostentação": mulheres sendo abusadas e tratadas como mero produto, mas quando o documentário estava em vias de ser lançado, Oprah retirou seu nome do projeto, não se sabe até hoje por quê. Seja qual for a razão (em entrevistas ela diz acreditar e endossar o que dizem as mulheres), ela retirar seu beneplácito fez com que o documentário caísse no vazio. É uma pena, porque se trata de um bom trabalho e que merece ser conhecido. (19/07/2020)

BAD EDUCATION (2019) - Segunda direção de Cory Finley, depois de sua estréia com o interessante Thoroughbreds, de 2017, com Olivia Cooke e Anya Taylor-Joy. A história é real o roteiro de Mike Makowski se baseia em um artigo escrito para a New York Magazine por Robert Kolker. Fala sobre a maior fraude do sistema educacional norte-americano empreendida pelo inspetor de ensino Frank Tassone (Hugh Jackman) e sua assessora, Pam Gluckin (Allison Janney). É um dos melhores filmes de 2020, até o momento, e não tenho visto maiores comentários sobre ele. Hugh interpreta à perfeição o empertigado, empoado e vaidosíssimo Frank Tassone, imoral e corrupto até a medula, e que vê ameaçado de ruir o castelo de cartas de suas trampolinagens pessoais e profissionais, no momento em que uma aluna adolescente e curiosa se mete a fazer perguntas sobre a reforma de sua escola. Recomendo.

EL HOYO (2019) - Goreng (Ivan Massagué) acorda em uma cela junto a outro preso (Zorion Eguileor). A prisão, porém, é vertical, tem mais de 100 andares e cada andar é uma cela para dois presos. Um elevador de comida é abastecido no topo uma única vez, começa a descer andar por andar e fica dois minutos em cada andar. É a única refeição que o preso terá no dia e é fácil imaginar o que vai sobrando para os andares inferiores, e o que isso causará no corpo e na mente desses presos. Para piorar, os presos são mudados randomicamente de andar, mensalmente. É uma premissa sensacional e o filme tem provocado centenas de interpretações diferentes. Recomendo muito. O próximo comentário trará spoilers, então quem não viu deve pular para o próximo filme. (spoilers) Eu não seria justo se não avisasse que embora seja um excelente filme, o fim é altamente decepcionante. Como aliás costuma acontecer, com filmes que são feitos a partir de uma idéia extremamente original.

EL CIUDADANO ILUSTRE (2016) - Brilhante. Como tantas outras jóias, descobri inteiramente sem querer e ainda pensei que se tratava de um lançamento. Só quando fui procurar mais informações sobre o filme é que descobri ser uma produção argentino-hispânica de 2016. Enquanto me deleitava assistindo El Ciudadano Ilustre, da dupla de diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn, não pude deixar de me perguntar inúmeras vezes, e de lamentar o porquê do Brasil não conseguir fazer algo tão bom. Especialmente depois de ver aquela bosta de nome Bacurau, incensada de forma tão postiça e irreal, pela mídia.

A premissa de El Ciudadano Ilustre é simples: um grande escritor argentino, Dante Mantovani (Oscar Martínez) recebe o prêmio Nobel e ao invés de se sentir orgulhoso e realizado, vê na honraria uma espécie de "institucionalização" de sua obra; está sendo transformado em efígie por uma academia vetusta e embolorada, como se sua obra fosse convencional e sua carreira terminasse ali. Desestimulado, recusando lauréis e eventos pelo mundo todo, ele recebe um convite do prefeito de Salas - a cidadezinha onde nasceu e à qual não retorna há quarenta anos - para palestras e homenagens. Julgando que a volta ao proverbial "torrão natal" lhe devolverá a inspiração, ele aceita o convite, e lá o escritor terá um encontro não apenas com um passado que não necessariamente deseja recordar, mas com o choque brutal de chegar imbuído de uma aura de consagração e fama à uma cidade provinciana, que pouco mudou em quatro décadas.

É importante que se diga: o filme não é o retorno do filho pródigo que vai acertar as contas com o passado. Longe disso. El Ciudadano Ilustre tem uma trama profunda e interessante. Não é de forma nenhuma sentimental e não perde um minuto sequer com bobagens ou contemplações; o que temos é o desenrolar de um torvelinho de acontecimentos que ninguém poderia prever. O IMDB o caracteriza como "Comédia, Drama". Não é comédia. Tem uma ou outra situação risível mas é um drama, em tudo e por tudo. Mas um drama inteligente, dinâmico, sem rodeios e sem ambages, que vai direto ao ponto. O roteiro de Andrés Duprat é da melhor qualidade e o trabalho dos atores é impecável. Não digo mais nada para não dar spoilers e porque recomendo o filme.

Não há negá-lo: os hermanos nos dão uma surra em termos de cinema e estão de parabéns.

PRINCESS CARABOO (1994) - Não sabia que este filme existia e ver seu poster me encheu de nostalgia. Não houve homem da minha geração (ou da geração anterior) que não tenha amado Phoebe Cates. Ela foi uma das atrizes mais lindas e mais atraentes da década de 80, e decidiu abandonar a carreira logo depois deste filme, provavelmente para se dedicar aos dois filhos que teve com Kevin Kline (também conhecido como "o filho da puta mais sortudo deste mundo"). O filme trata da história de uma mulher que é encontrada perdida em uma fazenda, falando uma língua que ninguém consegue entender. Ela desperta curiosidade generalizada e tudo se desenrola a partir daí. É baseado em fatos reais, tem um elenco surpreendentemente bom (Jim Broadbent, John Lithgow, Stephen Rea e o próprio Kline, em um papel coadjuvante) e ver Phoebe Cates - que na época já contava trinta e um anos, apesar de parecer ter dezoito - é o mais agridoce dos prazeres, para um cinéfilo. Recomendo, fazendo a ressalva de que se trata de um filme leve e descompromissado, então não assistam achando que é Schindler's List.


ALL WE HAD (2016) - Em sua estréia como diretora, Katie Holmes conta a história de Rita Carmichael, uma mãe solteira que coleciona namorados inúteis, livra-se deles e perambula de cidade em cidade com sua filha Ruthie. Em uma delas seu carro enguiça e elas são forçadas a trabalhar em um restaurante para se sustentar. E lá elas conhecerão novas pessoas e suas vidas terão uma mudança inesperada. E por falar em Phoebe Cates, toda vez que vejo Katie em algum filme, lamento que sua carreira tenha sido interrompida pelo casamento. Ela é uma atriz brilhante, muito superior a tantas outras da sua geração e deveria estar conseguindo papéis melhores. Sua direção é competente e seu desempenho é impecável. Stefania LaVie Owen, que interpreta sua filha Ruthie, também é muito boa. (20/07/2020)

JERRY LEWIS, CLOWN REBELLE (2016) - Já existia um documentário, digamos, "definitivo" sobre Jerry Lewis, produzido com seu beneplácito e sob seus auspícios, chamado Method to the Madness of Jerry Lewis, de 2011.

É bom, pela extraordinária quantidade de material apresentado e por alguns entrevistados inteligentes e abalizados (e alguns absolutamente inúteis, proverbiais "arroz-de-festa" como Billy Cristal e Jerry Seinfeld), embora a ausência de Jim Carrey, entre eles, tenha sido bastante incômoda. Seja como for, um ano antes de Jerry morrer foi a vez dos franceses prestarem sua última grande homenagem ao comediante, neste modesto mas interessante documentário de uma hora. Jerry desde sempre foi amado e reverenciado pelo franceses, isso nunca foi segredo, mas sua influência transcendeu em muito o mero status de "rei da comédia"; o documentário mostra cenas de arquivo com depoimentos repletos de admiração e respeito por Jerry, vindos de cineastas como Louis Malle e Jean Luc Goddard. Mais do que uma sucessão de idólatras regurgitando elogios hiperbólicos, Clown Rebelle é um estudo real do diretor, criador, pioneiro, e artista cinematográfico que foi Jerry. Para os fãs (como eu), é um prato cheio.

GLORIA: IN HER OWN WORDS (2011) - Gloria Steinem ajudou a redimensionar o movimento feminista nos anos 60 e 70. Atingiu notoriedade, inicialmente, em 1963, quando se empregou como "coelhinha" em um dos night-clubs que Hugh Hefner abriu, na época, para promover sua revista. Mal sabia ele que Gloria era na verdade uma jornalista e depois de trabalhar algumas semanas e recolher todas as informações que desejava, demitiu-se e escreveu um artigo arrasador, acusando todos os abusos e maus-tratos a que as mulheres eram submetidas nesses clubes. O documentário segue, mostrando a fundação da icônica publicação feminista Ms., a amizade de Gloria com luminares do feminismo como Bella Abzug, sua rixa com Betty Friedan, as polêmicas, as alegrias e tristezas, e tudo através de depoimentos antigos e atuais (ou seja, até 2011) da própria Gloria. Detecto dois problemas: primeiro, é gostoso ouvir o biografado em suas próprias palavras, mas Gloria é demasiadamente contemporânea e seria interessantíssimo ouvir suas colegas, amigas, desafetos e etc.

Gloria Steinem
Deixá-la como única voz do documentário me pareceu preguiça, e entramos no segundo defeito: trata-se de um documentário da HBO, provavelmente feito em meio a dez outros. Não há aprofundamento e não há análise, e isso é criminoso em se tratando de uma mulher fantástica como Gloria, conhecida por sua inteligência e pelas posições importantes, corajosas e controversas que defendeu e atacou ao longo de sua vida. Para neófitos no assuntos, porém, vale a pena.

IT IS NO DREAM (2012) - Erram feio aqueles que consideram Ben Gurion o idealizador do Estado de Israel. Esse mérito cabe ao húngaro Theodor Herzl (1860/1904), que se formou advogado mas passou a exercer o jornalismo e, como correspondente do vienense Neue Freie Presse em Paris, assistiu o julgamento de Alfred Dreyfus, um verdadeiro aborto da justiça francesa. Dreyfus era acusado de traição por estar passando segredos militares franceses para os alemães.

Não apenas isso era inteiramente falso, mas cristalizou-se na mente de quem assistiu a execração pública de Dreyfus a certeza de que por trás daquilo havia, na verdade, um forte elemento anti-semita. A condenação de Dreyfus calou fundo na alma de Herzl e a partir daquele momento ele iniciou o seu sacerdócio sionista, pregando o retorno dos judeus à Jerusalém. Eu desconhecia completamente a história de Herzl e sua luta incansável pela criação de um estado judaico, desde seus contatos com multi-milionários como Rothschild (procurando alguém que pudesse bancar esse êxodo), a busca pelo sultão Abdülhamid, a admiração que lhe votava Sigmund Freud, até a oferta dos ingleses para que os judeus ocupassem Uganda. É uma pena que o documentário não se estenda mais no assunto. Uma hora e trinta e sete minutos não são nem de longe suficientes para conhecermos algo tão complexo quanto o sionismo e toda a gênese do que veio a ser Israel. E grande tragédia se abateu sobre a família de Herzl depois de sua morte, o que é apenas pincelado no documentário. Espero que algum diretor talentoso retome a vida desse grande judeu, futuramente. Mas - repetindo-me - para neófitos é muito bom. Narração de Ben Kingsley e narrando as citações de Herzl, está Christoph Waltz.


WHERE'S MY ROY COHN? (2019) - É irônico que logo depois de falar de um aborto da justiça francesa, falemos de quem promoveu a condenação e execução de Julius e Ethel Rosenberg, notório aborto da justiça norte-americana: Roy Cohn (1927/1986). Por alguma razão - provavelmente por Donald Trump ter sido seu último protégé - recentemente foram produzidos, quase que ao mesmo tempo, dois documentários sobre essa escrotíssima figura. Ele surgiu inicialmente como acólito de Joseph McCarthy durante o período negro de perseguição aos comunistas, na década de 50. O macartismo soçobrou no alcoolismo e na imbecilidade fundamental de McCarthy (que morreu desmoralizado e bêbado, em 1957), e Cohn - que além dos comunistas também perseguia e condenava homossexuais como transviados e anormais - acabou sendo chutado para fora de seu armário, quando ficou dolorosamente clara a sua relação amorosa com o soldado G. David Shine, que ele aboletou como aspone em seu gabinete. Cohn desapareceu por um tempo e ressurgiu na década de 60, como representante legal de mafiosos e demais criminosos milionários, e ganhou fama por ser um advogado agressivo, um caloteiro incorrigível, por continuar escondendo a sua homossexualidade (até sua morte, em decorrência da AIDS), por manter, sabe-se lá como, imensa influência nas rodas políticas de Washington, e por representar sempre o que existiu de pior e mais daninho na sociedade.

Começou com McCarthy e terminou (coberto de plásticas) com Trump. Um talento
sem igual para juntar-se com o que havia de mais sórdido

O primeiro documentário, Where's My Roy Cohn?, é excepcional na cronologia e nos detalhes daquilo que expõe. Traz ótimas entrevistas e é perfeito para que conheçamos a vida e a história de Cohn. Quando soube da existência do segundo documentário, Bully. Coward. Victim. The Story of Roy Cohn, portanto, achei redundante e desnecessário, mas como o assunto é rico e envolvente, não resisti e também o assisti. E tive uma grata surpresa, porque a diretora é ninguém menos do que Ivy Meeropol, neta de Julius e Ethel Rosenberg. Seu pai, Michael Meeropol é um dos entrevistados, então todo esse aspecto da vida de Cohn ganha um aprofundamento inédito. Outra coisa que me impressionou neste documentário foi a terrível briga - para mim desconhecida - de Cohn com seu antigo namorado, um desclassificado ainda pior do que ele chamado Richard Dupont, que não é citada no documentário anterior. E há também a presença de Tony Kushner, autor da célebre peça Angels in America, que traz Cohn como personagem. Os dois documentários são complementares e devem ser assistidos. E logo depois, quem se interessar deve assistir Citizen Cohn, cinebiografia algo romanceada, dirigida pelo ótimo Frank Pierson e que traz James Woods em excelente performance no papel de Cohn. Al Pacino também o interpretou, na versão televisiva de Angels, mas não creio que foi feliz em sua interpretação. O filme de Woods é melhor. (23/07/2020)
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