No primeiro quarto do século XX o Rio de Janeiro, capital da República, ainda surrava São Paulo em praticamente todas as áreas, inclusive a cultural. Sampa, entretanto, não era mais a cidadezinha de "modesto viver provinciano" como anunciara um jornal, tempos antes, e já experimentava o surgimento de diversos cinemas e teatros. Os subúrbios eram amargamente ignorados e sofriam com o descaso do Poder Público, mas o centro tinha uma vida noturna bastante agitada. Como sempre, é necessário manter em perspectiva que o centro e suas cercanias não eram esse mercado persa, desorganizado, anárquico, lotado e imundo que são hoje. A presença, no perímetro central, da Faculdade de Direito, do Teatro Municipal, da Bolsa de Valores e da Câmara Municipal dava ao centro o status único de meca cultural, intelectual, comercial e política da metrópole.
Abigail Maia, em foto de 1915 |
No THEATRO CASINO ANTARCTICA – que é exatamente o que se imagina: um amplo teatro construído sob os auspícios e o financiamento da Cervejaria Antarctica, em pleno Vale do Anhangabaú, que na época era uma avenida, e não um vale – estava a maior estrela do Teatro de Revista, até então: Margarida Max, que Raimundo Magalhães descreve como sendo "uma atriz italiana, grandalhona e sem graça, mas com um fio de voz". Pra variar, um vômito de azedume desse bilioso escritor. Analisemos: o que se diz por aí é que ela nasceu em São Paulo e fez sua estréia profissional em Franca, no interior paulista; Magalhães é o único que proclama a nacionalidade italiana de Margarida. Até aí, não faz muita diferença. Pode até ser que nascesse em Roma e viesse com a família para Franca ainda na infância. Se ela era "grandalhona" não sei, mas convém lembrar que Magalhães tinha 1 metro e meio de altura, era cabeçudo, atarracado, parecia um tatu-bola, e é natural que qualquer uma das robustas e roliças atrizes da época lhe parecesse grandalhona. Já a qualificação de "sem graça, mas com um fio de voz" me parece se encontrar no campo das subjetividades. A concepção de graça e de potência de voz nem sempre é a mesma para um e para outro. Neste caso particular, é bom ressaltar que Magalhães era complexado, leviano e vingativo, e não me surpreenderia que seus comentários – que apareceram convenientemente quando Margarida já estava morta – fossem conseqüência de algum tipo de frustração, artística (Magalhães tinha fumaças de dramaturgo) ou romântica.
Margarida Max |
O que importa é que Margarida – “a inexcedível”, como chegou a ser chamada – era soprano, uma das primeiras atrizes brasileiras a adotar o revolucionário corte de cabelo a la garçon de Louise Brooks, foi protagonista dos maiores sucessos de público do Teatro de Revista e estava no auge, aos 38 anos, levando uma série de espetáculos de Luiz Peixoto, Marques Porto, Carlos Bittencourt e Cardozo de Menezes, alguns dos mais importantes revisteiros de todos os tempos.
Jardel Jércolis |
No THEATRO COLOMBO, que ficava no Largo da Concórdia, estava a celebérrima Companhia de Revista Tró-ló-ló, fundada três anos antes por Patrocínio Filho – o boêmio e desregrado filho do tigre da abolição – Jardel Jércolis – sobrinho de Chiquinha Gonzaga e pai de Jardel Filho – e o empresário Francisco Serrador. A peça levada (em sessão única, o que causa espécie) é Lua Nova, da portuguesa Auzenda de Oliveira, afamada escritora de revistas e operetas. Como se aproximasse o feriado de Finados, a companhia tratou de não melindrar os mais beatos e demonstrou seu respeito com a encenação de O Martyr do Calvário, escrita pelo também português Eduardo Garrido, e que o próprio autor definia como um "mistério sacro em 5 atos e 16 quadros". Tudo com a iluminação poderosa dos "refletores X-RAY, da General Electric", e com direito, no anúncio, a uma resenha com os bondes que poderiam trazer a população citadina ao Colombo, no coração do Brás.
Platéia do Colombo em 1921 |
Por fim, os maravilhosos cabarés, o divertimento adulto, "impróprio para menores e senhorinhas", trazendo sketches de humor e música politicamente incorretos, picantes, eróticos, subversivos, e a nudez total, escandalosa, lúbrica, indecente (e que hoje vemos até nas versões recentes do Sítio do Pica-Pau Amarelo) de corajosas coristas, atrizes ou coisa que o valha, sob o título de "nu artístico", "arte realista" e até mesmo o "nu artístico parisiense", que é o que anunciava o MOULIN BLEU, de nome plagiado tão descaradamente do Moulin Rouge francês. Infelizmente não pude apurar onde se localizava esse cabaré, mas suponho que fosse, a exemplo de outros, nas adjacências das praças da Sé ou República.
O Moinho do Jéca, contemporâneo e similar do Moulin Bleau |
A beleza moderníssima de Anita Loos, nos anos 20 |
Para pontuar a diferença entre o Moulin Bleu, que era um "cabaré" – estabelecimento onde se bebe, dança e assiste espetáculos performáticos de conteúdo adulto ou não – e um simples puteiro, é só ver as atrações: à parte o tal "nu artístico", que devia ser um desfile de mulheres nuas à meia-luz, com véus pra lá e pra cá, escondendo e mostrando, havia sketches de Anita Loos, a famosa escritora norte-americana que dois anos antes lançara sua obra-prima, Gentlemen prefer blondes; performance da bailarina Vilma (seja ela quem for) e números musicais de Genésio Arruda e Tom Bill, embriões do humor caipira que viriam a desembocar em Alvarenga e Ranchinho e mais tarde no próprio Mazzaropi. E a promessa pra lá de eclética: no sábado, o início da “Semana Napolitana” com “belas cançonetas, bailados, música típica”, em suma, aquilo que o próprio cabaré anunciava como “Piedigrotta no Moulin Bleu”, remetendo à uma antiga festa pagã que ainda existe em Nápoles, e é uma espécie de carnaval em miniatura. Para concluir, a estréia de “Criollito”, que deve ter sido o rei dos tangos só no Brasil, ou veio antes de Carlos Gardel. (Agosto de 2012)
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