domingo, 5 de janeiro de 2014

O "Macbeth" de Orson Welles

O Macbeth de Orson Welles
Meus caros,
no fim da década de 40 ocorreu um terremoto no cinema mundial, com o lançamento quase simultâneo do Hamlet de Olivier e do Macbeth de Orson Welles. Olivier era um expoente do teatro e já trabalhava como ator em Hollywood há mais de quinze anos; vinha do sucesso estrondoso que foi seu Henry V, no qual estreou como diretor e que lhe valeu um Oscar especial. Já Welles alimentava sua reputação de “boy genius” desde que assombrou os ouvintes com a irradiação dramatizada da Guerra dos Mundos de H. G. Wells, em 1938 (com apenas 23 anos), e maravilhou crítica e público com Cidadão Kane, em 1941. Graças, contudo, ao gigantismo de sua personalidade e de seu ego, ele passou os sete anos seguintes em uma sucessão de brigas, excentricidades, maluquices e fracassos. Lançados os dois filmes quase ao mesmo tempo, as comparações foram inevitáveis.

Macbeth de Welles — tema deste post — foi a primeira das três obras shakespearianas que ele realizou no cinema. Não darei aqui a minha opinião sobre o filme, que mereceria trabalho exaustivo e caudaloso. Deixarei isso para dois dos mais abalizados críticos cinematográficos que já tivemos. O primeiro é o carioca Alex Viany (1918/1992), talvez o primeiro correspondente brasileiro em Hollywood. Embora seu veículo principal fosse a revista “O Cruzeiro”, ele escreveu um interessante comentário sobre o filme para o nº35 da revista “A Cena Muda” (30/8/49). Alex foi um grande estudioso. Tentou ser cineasta mas seu verdadeiro talento estava no estudo do cinema como arte e como história. Em seu artigo ele faz um comentário detalhado sobre a carreira de Welles e traça um rico painel comparativo entre Macbeth e dois filmes de Eisenstein.

Alex Viany, em 1945

O texto de Viany seria perfeito como análise e crítica se ele não fosse tão manifestamente fã de Welles. Seu deslumbramento com o artista e seu despeito a tudo que não seja alternativo e pretensamente artístico fazem com que ele perca, por vezes, a objetividade. Causa risos ler frases como esta: “Não quero entrar aqui em comparações estéreis entre o Hamlet de Olivier e o Macbeth de Welles. Estou certo, entretanto, de que o filme de Welles é mais importante sob todos os aspectos: é mais cinema, é mais Shakespeare, é mais fascinante”. Conversa de tiete, que Viany foi esperto o suficiente para desbastar, quando lançou essa crítica em uma separata de um tal “Círculo de Estudos Cinematográficos”, tempos depois.

Moniz Vianna
O baiano Antônio Moniz Vianna (1924/2009) foi crítico do Correio da Manhã por mais de 25 anos. Assim como Alex, era uma fábrica de resenhar filmes e escreveu mais de seis mil críticas. Seu texto sobre Macbeth vem em duas partes (Correio da Manhã, 18 e 21/12/49) e ele começa fazendo uma valiosa retrospectiva dos Macbeth já filmados até aquele momento. Mais equilibrado que Viany — a quem por sinal Vianna se refere elogiosamente em seu artigo — o crítico do Correio da Manhã se mantém em um patamar de sobriedade que não pende nem para Olivier e nem para Welles. Ressalta corretamente que o norte-americano se encontra “entre duas correntes, uma que o ataca impiedosa e, via de regra, gratuitamente, outra que o defende não menos fanaticamente”, e à frente afirma que “com Macbeth, Orson Welles parece ter iniciado uma revisão cinematográfica da obra de Shakespeare, paralela à que Laurence Olivier, a partir de Henry V, vem empreendendo na Inglaterra e que já lhe valeu o título de cineasta”.

Enfim, vamos às críticas de Viany e Vianna a esse controverso trabalho de Orson Welles.

Divirtam-se.
Bernardo


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O “MACBETH” DE ORSON WELLES

por Alex Viany

Não se contando os filmes que devem ter sentido a influência diretorial de Orson Welles — Jane Eyre,[1] Cagliostro,[2] etc. — Macbeth é a sua sétima realização em dez anos de cinema. Dessas, vimos seis, já que It’s All True,[3] sua primeira e única experiência documental, continua guardada nos cofres da RKO. E lá também criam mofo os dois cenários com que Welles pretendia iniciar as suas atividades em Hollywood: Heart of Darkness, baseado na famosa novela de Joseph Conrad,[4] e The Smiler with a Knife, versão de um romance policial de Nicholas Blake.

A Cena Muda - 30/8/49
Em tão curta carreira, muitos têm sido, portanto, os tropeços — e não menores as controvérsias provocadas pelo homem que assustou meio mundo com a sua travessura de A Guerra dos Mundos. Antes mesmo de dar ao público uma demonstração de seu talento cinemático, Welles já afrontara todos os gênios locais de Hollywood com a barba que ostentava ao chegar lá; cultivara-a carinhosamente para Heart of Darkness, e sem intenção de trocadilho, serviu de bode expiatório para o despeito daqueles que nunca tinham visto um novato conseguir contrato tão vantajoso da parte de um estúdio americano.

Com o passar do tempo, e com a publicidade que foi recebendo, Welles chegou a ser odiado gratuitamente em Hollywood, antes e depois de lançar Cidadão Kane. Tal ódio manifestou-se na distribuição dos prêmios da Academia. Enquanto os críticos de Nova York não hesitaram em dar a Kane o prêmio merecido de “o melhor filme de 1940”, a Academia num ano bastante fraco, em que a obra inicial do “gênio” destacava-se ainda mais, resolveu ignorar todos os valores do afrontoso neófito, dando-lhe apenas meio Oscar pela parte que teve no roteiro do filme. Herman Mankiewicz, disseram muitos, era o verdadeiro responsável pelo tratamento cinematográfico da história.

Fora de Hollywood, porém, Cidadão Kane consagrou Orson Welles, imediatamente como um dos cineastas mais promissores dos últimos anos. E Soberba,[5] que fez a seguir, confirmou tudo o que dele disseram os apologistas do primeiro. Aí, então, Welles entrou em maré de azar. Os inimigos do diretor viram em Jornada do Pavor[6] — um filme de suspense muito bem feito (dirigido por Norman Foster, com roteiro e supervisão de Welles) — o princípio da derrocada daquele homenzarrão irritante. As brigas subsequentes com a RKO por causa de It’s All True, deleitaram os despeitados. E, por causa disso, durante três anos, uma espécie de boicote foi estabelecido contra o diretor. Como ator, apesar das muitas restrições que fazem a seu talento histriônico, ainda era ele aceito. Tinha algum público. Mas Orson Welles, o cineasta, estava acabado.

Somente os que acreditavam nele viram em O Estranho[7] e A Dama de Shanghai[8] — as películas essencialmente comerciais com que voltou a dirigir — os indícios bastante óbvios de que Welles não estava nem adormecido nem decadente: esperava apenas uma oportunidade de dirigir com a liberdade que tivera inicialmente, e que perdera por causa de seu temperamento irrequieto, dispersivo, e pela coragem abusiva com que enfrentara os tabus sacrossantos daquela colônia de avestruzes.

Por isso, Macbeth deve ter sido o supremo insulto para as nulidades glorificadas de Hollywood. Welles não só conseguira readquirir a sua liberdade, mas também ousara fazer um filme shakespeariano num estúdio pequeno, conhecido por suas epopéias cavalares, por uma quantia mínima e num período mínimo de filmagem. Antes de ser lançado, Macbeth já não prestava para os inimigos que o talento do cineasta faz com tanta facilidade. E os inimigos lá estavam, em peso, para gozar o fracasso, quando a Republic mostrou Macbeth aos jornalistas e demais interessados no cinema da Academia. Houve uma manifestação quase geral de desagrado, e muitos saíram antes que a exibição estivesse terminada.

Desde então, Macbeth começou a correr o mundo. E a controvérsia é maior ainda do que a provocada por Cidadão Kane — já hoje, passados apenas dez anos, um clássico do cinema. Pois, como Cidadão KaneMacbeth é, acima de tudo, um filme ousado, 100% Welles e nem um pouquinho americano.

Nos Estados Unidos — e, se não me engano, também na Inglaterra — não foi ainda exibido para o público por causa do pesado sotaque escocês que o cineasta deu a seus intérpretes. Esse, aliás, tem sido o maior pomo de discórdia entre os que já o viram nos países de língua inglesa. E, realmente, é um dos pontos mais controversos do filme. Quer-me parecer, entretanto, que Welles quis apenas aumentar, assim, a sensação de primitivismo que procurou dar à sua obra, sem dúvida a que mais o aproxima do expressionismo, e, ao mesmo tempo, a que o põe no caminho aberto por Eisenstein em Alexander Nevsky[9] e Ivan, o Terrível.[10] O cineasta deve ter visto a peça de Shakespeare como um drama quase bárbaro, e assim pretendeu mostrá-la na tela. Suas personagens, apesar da magnífica e simples estilização que há em certas roupas, vestem-se como homens e mulheres há pouco saídos das cavernas; na verdade, ainda vivem em palácios que muito têm de cavernas.

Não houve, aí, uma tentativa de realismo, mesmo porque Welles confessou em fins de 1948, numa entrevista concedida à “La Revue du Cinéma”, que “o realismo não existe, o realismo não me interessa”. E isso depois de ter chegado muito perto da apresentação de um perfeito realismo cinemático em certas cenas de Cidadão Kane.

Aqui no Brasil, as críticas que já ouvi parecem-me falhas. Disse alguém que o diretor plagiou Eisenstein cena por cena. Outra pessoa disse que não conseguiu imitar o Eisenstein de Ivan, o Terrível — enquanto o filme russo tem poucos movimentos de câmera dependendo grandemente do dinamismo intrínseco no próprio enquadramento, Welles foi obrigado a movimentar a câmera o máximo possível, procurando compensar pelo movimento a falta de dinamismo de seus enquadramentos. Por outro lado, houve quem achasse Macbeth monótono, assim como houve quem dissesse que é extremamente desrespeitoso para com Shakespeare.

Sem dúvida, Orson Welles foi influenciado por Eisenstein, assim como o tem sido, desde Cidadão Kane, por outros mestres do cinema. Diz-se até que, antes de ir para Hollywood, estudou detidamente os clássicos da filmoteca do Museu de Arte Moderna de Nova York tirando dos mesmos muitas idéias. Isso não é plágio. É um estudo consciente de estilos e técnicas. Raro é o romancista ou contista capaz de escrever bem sem antes ter lido e estudado os estilos e as técnicas dos escritores consagrados. Ao estudá-los, o neófito vai automaticamente selecionando os ensinamentos que se aplicarão a seu temperamento e ao gênero de história que pretende contar. Todos os artistas tendem a imitar, ou a aproveitar exemplos daqueles que admiram. Se a imitação é servil, ele é um plagiário, um homem sem personalidade. Se, porém, é dominada por seu próprio talento, é um aluno, um seguidor, que mais cedo ou mais tarde, provavelmente deixará o caminho indicado pelo mestre, abrindo a sua própria trilha.

Macbeth é apenas influenciado por Eisenstein. Nem sequer é uma imitação. Em certas cenas de composição vertical — como aquelas da aproximação do exército de Macduff e Malcolm com os seus estandartes — nota-se a influência de Alexander Nevsky. Nas cenas mais estáticas, de grandes e ousados close-ups, a influência é de Ivan, o Terrível. “Nós somos, os dois”, declarou Welles à “La Revue du Cinéma”, “filhos do mesmo pai, nós somos, os dois, herdeiros de Griffith”. Partindo de uma base comum, e tendo um objetivo semelhante, é apenas natural que Welles e Eisenstein tenham pontos de contato. Eisenstein, falecido quando se preparava para novas e mais avançadas experiências, talvez seja o maior gênio, ou o único gênio (como querem muitos) até agora produzido pelo cinema. Welles é um de seus seguidores — e um dos mais talentosos, sem dúvida. Em Macbeth ele também se deixou influenciar por outros mestres: a sombra de Dreyer,[11] especialmente do Dreyer de O Martírio de Joana d’Arc,[12] é facilmente notada em muitas cenas, assim como a fotografia lembra, muitas vezes, em sua profundidade, de Gregg Toland.[13] Mas o todo é tipicamente Orson Welles — se é que alguma coisa num talento tão dispersivo, de crescimento tão irregular, pode ser considerada típica.

O milagre de Macbeth é que, ao contrário do que dizem certos críticos esquecidos de Shakespeare, consegue contar toda a história original em cerca de duas horas de bom cinema. Pouco foi cortado por Welles, um velho amigo de Shakespeare. Nenhuma personagem eliminada chega a fazer falta: Donalbain, o outro filho de Duncan, Menteith, Angus e Caithness, nobres da Escócia, um sargento, um velho e Hécate. Aí nem sequer existe o sacrifício de Shakespeare em benefício de uma melhor unidade cinemática. Welles fez um corte lógico, econômico. Mas nem por isso desperdiçou as melhores linhas dessas personagens reunindo-as, juntamente com outras, roubadas das personagens restantes, na nova figura do padre, que Alan Napier interpreta. A economia do realizador — e não me refiro ao custo relativamente pequeno do filme — faz-se sentir em muitos pormenores. Macbeth tem duas horas de projeção, enquanto que o Hamlet de Laurence Olivier tem três. No entanto, Olivier não contou mais e cortou tanto ou mais do original shakespeariano. Ao invés de entregar-se a furores pirotécnicos de câmera, como aquelas evoluções perfeitamente dispensáveis de Hamlet, Welles filmou tão somente o que era necessário à estrutura de sua obra. Pode ter filmado bem ou mal, mas foi de uma economia que, francamente, eu não esperava de seu temperamento exuberante.

O Hamlet de Olivier
Não quero entrar aqui em comparações estéreis entre o Hamlet de Olivier e o Macbeth de Welles. Estou certo, entretanto, de que o filme de Welles é mais importante sob todos os aspectos: é mais cinema, é mais Shakespeare, é mais fascinante. E marca a volta de Orson Welles ao bom caminho, depois do desvio forçado que tomou depois de SoberbaHamlet, creio, está muito perto do limite máximo de Laurence Olivier. Macbeth, pelo contrário, como hão de concordar todos os que se têm dedicado a estudar a obra de seu realizador, está muito longe do limite máximo do talento de Orson Welles.

Não que Macbeth seja um filme perfeito, ou quase perfeito. Acho mesmo que seus defeitos são maiores e mais óbvios que os de Hamlet. A meu ver, Welles errou na escolha de Roddy Macdowall para o papel de Malcolm, e errou também na escolha de Peggy Webber para o de Lady Macduff. Ambos estão fracos, principalmente o primeiro, que dá uma tonalidade quase ridícula às cenas em que aparece. É ele, por exemplo, o principal responsável pela cena mais fraca da película: aquela em que Malcolm e Macduff recebem as terríveis notícias trazidas pelo padre.

Welles e a Lady Macbeth de Jeanette Nolan
Por outro lado, entretanto, considero as qualidades de Macbeth muito superiores às de Hamlet, ainda que o nível geral desse seja melhor. Se errou nas escolhas de Macdowall e Webber, Welles acertou em todos os outros casos. Jeanette Nolan, vinda do rádio, é uma surpreendente estréia cinematográfica no dificílimo papel de Lady Macbeth. E Dan O’Herlihy, que muito lembra o Cherkasov[14] de Nevsky e Ivan, é um excelente Macduff. Edgar Barrier, velho companheiro de Welles, é um ótimo Banquo. Até a filha do diretor, Christopher Welles, justifica o protecionismo paterno no pequeno papel do filho dos Macduff.

Viany e Orson Welles em Hollywood
Quanto ao ator Welles, é outro pomo de discórdia. Cá, de minha parte, acho-o exuberante e bom. Mas ele próprio reconhece que suas interpretações podem ser irritantes para muita gente. Em fins de 1946, quando já fazia A Dama de Shanghai, declarou a um repórter do “Times” de Nova York: “Tenho agora um pequeno público, cujo interesse em mim é suficiente para tornar a minha aparição na tela um adjunto necessário a meus cenários e direção. Mas nenhum crítico jamais gostou de minha interpretação. Tenho uma personalidade infeliz. Posso mostrar-lhe quadro por quadro, que as minhas sobrancelhas mexem-se menos que as de Ray Milland em Farrapo Humano.[15] Se eu me permitisse um décimo de suas expressões naquele excelente desempenho, seria posto para fora do teatro debaixo de vaias. Basta que eu fique ao alcance da câmera para que os críticos se convençam de que sou um canastrão. Sou um ator da velha escola. É a única maneira por que posso explicá-lo”.

Convite para o que parece ter sido uma sessão exclusiva de Macbeth,
patrocinada pela antiga revista "Parents"

Numa equilibrada crítica para “Sight and Sound”, revista do Instituto Cinematográfico Britânico, John Wayne comparou Orson Welles, como ator, a um pintor de gênio que não sabe parar de pintar. Pinta toda a tela, depois a moldura, depois a parede, e também qualquer pessoa que entre desprevenida em seu estúdio. A comparação é feliz sem dúvida, mas pode ser também aplicada a Orson Welles como diretor e como personalidade. Evidentemente, ele não sabe onde parar. Macbeth, porém, pode ser uma indicação de que seu grande talento para o cinema tomou um rumo definitivo.

Alex, Orson e Vinícius de Moraes
É um filme desigual, quase sempre brilhante e intempestivo, por vezes tão parecido com a obra de um amador entusiástico que chega ser desfrutável. Tem algumas das melhroes composições que já vi em cinema, e, indubitavelmente, a melhor fotografia de foco absoluto que já foi obtida desde as primeiras experiências de Gregg Toland. É uma interpretação respeitosa e ao mesmo tempo original de Shakespeare. É econômico, efetivo, bonito. E é Orson Welles à solta, com gestos largos, largo talento, e mais largos horizontes.

Macbeth. Produção Mercury-Charles K. Feldman (Hollywood), 1947-48. Distribuição da Republic. Produção, direção e cenário de Orson Welles, baseado na peça de William Shakespeare. Cinegrafia de John L. Russel e William Bradford. Efeitos cinegráficos especiais de Howard e Theodore Lydecker. Sonografia de John Stransky Junior e Garry Harris. Direção artística de Fred Ritter. Vestuário masculino de Orson Welles e Fred Ritter. Vestuário feminino de Adele Palmer. Partitura musical de Jacques Ibert, regida por Efrem Kurtz. Coordenação de Louis Lindsay. Elenco: Orson Welles, Jeanette Nolan, Dan O’Herlihy, Edgar Barrier, Alan Napier, Roddy Macdowall, Erskine Sanford, John Dierkes, Keene Curtis, Peggy Webber, Lionel Braham, Archie Heugly, Christopher Welles, Jerry Farber, Morgan Farley, Lurene Tuttle, Brainerd Duffield, William Alland, George Chirello, Gus Schilling.
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Correio da Manhã - 18/12/49

MACBETH
(Macbeth – Charles K. Feldman – Republic – 1948)

por Moniz Vianna

Talvez tenha sido a de Mario Caserini, produzida na Itália em 1906, a primeira versão cinematográfica de Macbeth. O velho diretor também filmou, dois anos mais tarde, o Hamlet, que já havia, é verdade que parcialmente, inspirado a Meliès um filme curto, de cento e vinte metros. Em 1908 aparece o Macbeth da Vitagraph, supervisionado por Stuart Blackton, e três anos depois, o primeiro Macbeth inglês, de F. R. Benson, que, a rigor, é apenas a fixação do celulóide de alguns trechos da representação do Shakespeare Memorial Theatre de Stratford. Benson, ator e metteur-em-scène, leva à tela ainda Julius CaesarThe Taming of the Shrew e Richard III, o último, em duas partes, e o mais importante, aparentemente, na evolução do então muito atrasado cinema britânico. O Macbeth de Benson tinha aproximadamente 1.300 pés, o que, traduzido em tempo, dá quinze minutos de projeção. Segundo Rachel Lowe (The History of the British Film, 1906-1914), esses filmes tiveram uma recepção polida, porém nada entusiástica. Alguns livros fazem uma breve referência a uma versão alemã de Macbeth, que teria sido dirigida pelo extraordinariamente prolífico Richard Oswald. Nos Estados Unidos, em 1916, John Emerson realiza, sob o patrocínio da Triangle, o último Macbeth catalogado do cinema silencioso.[16]

O Macbeth de 1916, que traz os grandes Herbert Beerbohm Tree e Constance Collier
no elenco. Tree morreu no ano seguinte, e o filme hoje está perdido.

Antes de aparecer o de Orson Welles, trinta e dois anos depois, alguns amadores de Chicago fizeram uma experiência em 16m, dirigida por Thomas A. Blair e, segundo se diz, a tragédia shakespeariana recebeu um tratamento estranhadamente expressionista.

Welles e Jeanette Nolan
Expressionista é, também, o Macbeth de Welles, sem sombra de dúvida a maior prova de audácia desse desconcertante cineasta, desde o seu Citizen Kane. Welles, ao contrário de Cukor (Romeo and Juliet)[17] e de Olivier (Henry VHamlet), não hesitou em apresentar uma interpretação livre da obra shakespeariana, muito embora não a tivesse desfigurado nem transtornado seu ritmo interior e a sua estrutura. Os tradicionalistas e os inimigos de Welles não o pouparam, e foram realmente muito poucos os que, como o crítico francês Jacques Bourgeois, disseram que o seu Macbeth, “realizado fora de toda tradição, com perturbações evidentes na ordem de certas cenas e nos décors e costumes de pura fantasia, é bem mais fiel ao espírito de Shakespeare que o Hamlet de Laurence Olivier”.

Essa afirmativa, aliás inaceitável mesmo por muitos dos que, como Bourgeois, têm o filme de Welles em boa conta, reflete com nitidez a situação em que se encontra o cineasta de The Magnificent Ambersons, entre duas correntes, uma que o ataca impiedosa e, via de regra, gratuitamente, outra que o defende não menos fanaticamente.

Censuram a Welles, entre outras coisas, a supressão de muitos personagens da tragédia — Donalbain, o outro filho de Duncan, Hécate e alguns nobres escoceses. Mas o mesmo não fez Olivier, eliminando do seu Hamlet, Rosencrantz, Reynaldo e Fortimbras, assim como alguns monólogos e réplicas famosas? E não inverteu também a ordem de certas passagens, fazendo o “To be or not to be” suceder, em vez de preceder o encontro de Hamlet e Ophelia?

Como Olivier e como todos os que até então filmaram Shakespeare, viu-se Welles na necessidade de adaptar muitas situações e providenciar o desaparecimento de personagens supérfluos ou sem função imprescindível. Irrecusavelmente, isto pode ser feito sem que a essência da obra se desmantele, ou Shakespeare seja ofendido. Diante do problema “Shakespeare ou cinema”, o cineasta não deve ter muitas dúvidas, e, se quisermos concordar com Laurence Olivier, não tem dúvida alguma, porquanto não existe tal problema — “Shakespeare escreveu para o cinema”. Olivier contraria em parte este seu conceito, é verdade, não seguindo passo por passo a marcação original. Mas se ele deseja ser, além de um discípulo fiel de Shakespeare, um criador cinematográfico, não é possível proceder de outra forma.

Correio da Manhã - 21/12/49

Orson Welles já se havia inclinado, e muito menos respeitosamente do que agora, sobre esta tragédia shakespeariana. Quando nem sonhava entrar para o cinema, levou ao palco, em 1936, no Teatro Lafayette do Harlem, um Macbeth negro, em que a Escócia era substituída pelo Haiti.[18] A inovação foi recebida com assombro geral, com repulsa pelos tradicionalistas, e os críticos se mantiveram, na maioria, em posição cautelosa. Mas este foi seu primeiro passo na direção da fama que algum tempo depois lhe garantiriam a irradiação da Guerra dos Mundos e o escândalo ocasionado pelo aparecimento de Cidadão Kane não só em virtude do extraordinário valor artístico desta fita, como também pela verdadeira batalha travada entre Welles e as forças de Hearst,[19] o potentado da imprensa, impiedosa, porém acertadamente retratado pelo jovem e indômito cineasta.



Cenas raras do chamado "Voodoo Macbeth" de 1936, dirigido por Welles

A sua versão cinematográfica de Macbeth, considerada por alguns “obra estéril e de involução” é, não obstante, um atestado seguro de sua grande inteligência, bem como de seu conhecimento do “assunto Shakespeare”, conhecimento que o capacita a inverter a ordem de alguns trechos ou a eliminar e mesmo criar um personagem novo — padre, em cuja boca são postas as palavras de personagens desaparecidos, como Ross, substituindo este último na cena em que Macduff vem a saber do que acontecera aos seus — sem diluir ou sequer arranhar o espírito da tragédia.

Welles se permitiu também — e isto foi o que mais irritação causou a algumas pessoas — uma apresentação pessoal dos décors e do vestuário. Os castelos são rudes e primitivos e com eles não entram em choque as roupas (como alguém insinuou); só o vestuário feminino não parece coadunar-se com o traje dos homens. Esse primitivismo, esses castelos pesados, sombrios, mal esculpidos na rocha, funcionam como um elemento dramático de primeira ordem, ou mais exatamente, fornecem o ambiente ideal para as ações que entre suas paredes são praticadas; reiteram o crime e a ambição, a covardia, a vingança e o medo. São ainda eles que ajudam a construir o clima expressionista tão caro a Welles, sem dúvida um seguidor da velha escola alemã, como se pode observar em muitas passagens de Cidadão KaneO Estranho e A Dama de Shanghai.

De par com esses sinais expressionistas, verifica-se certa influência eisensteiniana. Alex Viany, no excelente “O Macbeth de Orson Welles” inserido na Cena Muda de 30/8/49, compara as cenas estáticas do filme de Welles a Ivan, o Terrível, e as que nos mostram o exército de Macduff acercando-se do castelo de Inverness a Alexander Nevsky. A comparação é válida, mas no “montage”, ao contrário de Eisenstein, Welles nem sempre opera com segurança. É possível que aí se encontre a principal falha da película. Entretanto, há momentos em que o corte é empregado com grande senso rítmico; por exemplo, na construção da seqüência da execução do Barão de Cawdor, e também na impressionante final, quando uma série muito precisa de cortes nos distancia do castelo em que Macduff e Malcolm são aclamados pela multidão.

Com Macbeth, Orson Welles parece ter iniciado uma revisão cinematográfica da obra de Shakespeare, paralela à que Laurence Olivier, a partir de Henry V, vem empreendendo na Inglaterra e que já lhe valeu o título de cineasta. Recentemente, Welles ultimou a filmagem de Othelo[20] e entre seus planos figura uma nova versão de Romeu e Julieta. O seu Macbeth contudo não tem a mesma estatura do Hamlet de Olivier. A que atribuir isto, se Welles resolveu cinematograficamente os seus problemas mais difíceis? Se até os monólogos foram solucionados de maneira análoga? Evidentemente, não conto com o fator “origem”, invocado por alguns; sinceramente, não acredito na superioridade da peça filmada por Olivier. Soube, porém, este evocar melhor a poesia shakespeariana, ser mais equilibrado (o que a Welles, realmente, era até certo ponto impossível) e, finalmente, não lhe faltaram recursos de ordem material, enquanto o Macbeth era filmado em um estúdio pequeno e no prazo de apenas três semanas.

Como Macbeth, Orson Welles tem uma interpretação convincente, nem sempre sóbria, como é de seu estilo, e, excetuando a de Cidadão Kane, a melhor de toda a sua carreira. Jeanette Nolan é uma impressionante Lady Macbeth, fornecendo ao papel toda a energia necessária. Macduff, a cargo do irlandês Dan O’Herlihy segue-lhes os passos, e de todo o elenco só Roddy Macdowall não tem um desempenho pelo menos adequado; o seu Malcolm é frio e às vezes — principalmente quando ele fala — ridículo. A fotografia, supervisionada por Welles tem ângulos claros-escuros excepcionais, e a partitura, do francês Jacques Ibert, acompanha o ritmo da tragédia, colando-se aos seus acidentes, e emudecendo quando o silêncio deve pesar sobre seus protagonistas.
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“Macbeth” — Atores: Orson Welles, Jeanette Nolan, Dan O’Herlihy, Edgar Barrier, Alan Napier, Roddy Macdowall, John Dierkes, Erskine Sanford, Peggy Webber, Keene Curtis, Lionel Braham, Christopher Welles, Jerry Farber, Morgan Farley, Lurene Tuttle, Brainerd Duffield, Archie Heugly, William Alland. Produção, direção, adaptação e cenário de Orson Welles baseado na peça de Shakespeare. Fotografia de John L. Russel e William Bradford. Música de Jacques Ibert. Direção musical de Efrem Kurtz.




[1] De 1943.
[2] Black Magic, 1949.
[3] Documentário de 1941 sobre filme que Welles não conseguiu fazer no Brasil. O que sobrou desse documentário foi lançado em 1993.
[4] Uma leitura dramática do roteiro de Welles para Heart of Darkness foi feita em 2012.
[5] The Magnificent Ambersons, 1942.
[6] Journey into Fear, 1943.
[7] The Stranger, 1946.
[8] The Lady from Shanghai, 1947.
[9] Александр Невский, 1938.
[10] Иван Грозный, 1944/1945.
[11] Carl Theodor Dreyer, 1869/1968.
[12] Jeanne d'Arcs lidelse og død, 1928.
[13] Diretor de Fotografia de Cidadão Kane.
[14] Nikolai Cherkasov, 1903/1966.
[15] Lost Weekend, 1945.
[16] Segundo o IMDB, o filme de Caserini é de 1909 e não foi o primeiro Macbeth do cinema. O filme de Stuart Blackton é, efetivamente, de 1908, e portanto anterior ao de Caserini. O Hamlet de Meliès é de 1907; o de Cesarini é de 1908.
[17] De 1936.
[18] Chamado na época de “Voodoo Macbeth”.
[19] William Randolph Hearst, 1863/1951, em quem Welles se inspirou para compor Kane.
[20] Curioso ver que o filme já estava em produção em 1949. Foram tantos os problemas financeiros enfrentados por Welles, que o filme só foi terminando e lançado em 1952.

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