Ira Aldridge como Othello, ca. 1830 |
Ira Aldridge
A abolição da escravatura no Brasil pode ter demorado, mas em termos práticos ela se deu em três movimentos: Lei do Ventre Livre em 1871, a Lei dos Sexagenários em 1887 e a Lei Áurea em 1888. Nos Estados Unidos as coisas foram bem mais complicadas. O movimento abolicionista existia por ali há décadas mas o período que vai do fim do século XVIII até o início do século XIX foi de extrema turbulência política, social, geográfica e demográfica. Entre a declaração de Independência em 1776, a Constituição de 1787, a ridícula guerra de 1812 com os ingleses e o sistema de confederação, onde cada estado tem suas próprias leis, o processo de abolição seguiu um lerdo efeito dominó. Massachusetts deu o pontapé inicial, em 1783; New Hampshire estabeleceu o processo “gradual” no mesmo ano, assim como Connecticut e Rhode Island no ano seguinte, e assim por diante, entrando pelo novo século. Desnecessário dizer que esse “processo gradual” durou quase setenta anos, atravessou a guerra com o México em 1846, a guerra de secessão em 1860 e a escravidão nos Estados Unidos só acabou mesmo com a Declaração de Emancipação de 1863 e a 13ª emenda à Constituição, ambas assinadas ou redigidas por inspiração de Abraham Lincoln, que infelizmente não viveu para ver o país completamente livre desse flagelo. No estado de Nova York, a abolição foi proclamada em 1799. Com o adendo de que escravos nascidos antes desse período só receberiam sua liberdade ao completar 28 anos, ou seja, no fim daquilo que se acreditava ser a parte mais produtiva de sua vida.
Culturalmente, os negros nova-iorquinos seguiam a tradição medieval dos menestréis, cantando, tocando banjo, percussão, piano e clarinete e fazendo sketches cômicas e recitais de poesia em seus guetos ou ao ar livre, quando a atmosfera escravagista começou a arrefecer.
Interior do Park Theatre
Aqueles que desejavam ir ao teatro tinham que se conformar com o espaço reservado para os negros nas galerias do Park Theater, inaugurado em 1798. Lá, entretanto, eram brindados com o supra-sumo do teatro inglês, e no início do século XIX os negros espremidos naquelas galerias tiveram o privilégio de ver Edmund Kean, Charles Macready, James William Wallack (1795/1864) e George Frederick Cooke (1756/1812) interpretando seus grandes papéis shakespearianos. Um desses negros era William Alexander Brown, negro livre que viera do Caribe e se utilizara de sua profissão de marinheiro para assistir espetáculos em todos os lugares por onde passou.
Pouco se sabe sobre ele, assim como pouco se sabe sobre James Hewlett, outro negro livre e alfaiate de profissão, que não perdia uma apresentação dos grandes atores ingleses no Park, e – segundo dizem – chegou a trabalhar para Cooke durante sua turnê americana, de 1810 a 1812 (que por sinal seria sua última, tendo o velho e desregrado ator morrido de cirrose em Nova York, antes de poder voltar à Inglaterra). Além de Brown e a Hewlett há um terceiro negro livre, quinze ou vinte anos mais novo do que os dois. Nasceu em 24 de julho de 1807, em Nova York, filho de dois pastores calvinistas, apenas oito anos depois da abolição no estado. Seu nome era Ira Frederick Aldridge. Juntos, deram uma contribuição que não tem preço ao teatro americano, e através de Aldridge, mundial.
Em 1821, cansado de ver seu povo a um tempo se espremendo em um teatro de brancos e desperdiçando seu talento em ruas e guetos, já que não era permitida a entrada de negros nos parques tradicionais de Nova York, Brown transformou o quintal de sua casa em um modesto recanto para saraus, incluindo leituras poéticas e interlúdios dramáticos. Batizou-o, sem maior sutileza, de African Grove (“bosque africano”). O expediente não era estranho aos negros; o próprio Aldridge, na época com 14 anos, terminava seus estudos na segunda African Free School de Nova York (de dezenas que surgiriam por todo o país), que a comunidade negra acabou criando quando não suportou mais a desigualdade racial nas escolas que já existiam. A imprensa não se calou diante do African Grove, mas seus comentários estavam entre a diplomacia e o escárnio. Elogiava-se a empreitada de Brown, enquanto designava-se o salão, basicamente, como um local para abrigar escravos endinheirados em seus momentos de laser irresponsável. Não demorou para que o quintal se tornasse pequeno, reclamações pelo barulho excessivo surgiram aqui e ali, e, incentivado por Hewlett, Brown resolveu levar o Grove para um prédio de dois andares. Passou a morar com sua esposa no térreo e no segundo andar montou um teatro.
Cartaz anunciando o Ricardo III de Hewlett no Grove
Entre setembro e outubro de 1821, pouco depois do próprio Edmund Kean terminar uma turnê americana, James Hewlett e Charles Taft inauguraram o African Grove Theater de William Brown com Ricardo III (Hewlett) e cenas de Othello (Taft). Taft, um simples garoto e conhecido à época como “the little negro tragedian”, meteu-se em alguma enrascada com a justiça e ficou preso por anos, o que pôs um fim em sua nascente carreira e o jogou sem qualquer distinção na vala comum da história. Mais do que esquecido, é um desconhecido. Já Hewlett causou sensação com seu Ricardo. Não tanto pela excelência de sua performance, visto que geralmente limitava-se a copiar as interpretações de Kean e Macready, mas pelo absoluto ineditismo da peça de Shakespeare ser levada por um elenco integralmente negro. Além das tragédias, o Grove apresentava sketches cômicos, números musicais e todo tipo de entretenimento. Na platéia, ansiando deixar sua condição de espectador e assumir a posição de ator, Ira Aldridge, com apenas 14 anos.
O Ricardo de Kean e abaixo o Ricardo de Hewlett
Entra em cena o racismo e a canalhice. Stephen Price, gerente do Park Theater – que os próprios historiadores descrevem como um racista asqueroso e um administrador desonesto e de maus bofes – ficou indignado ao ver um bando de negros encenando Shakespeare, e o que é pior, com sucesso de público. Até a imprensa local, quando transcendia o pânico de elogiar negros, fazia comentários bastante positivos sobre as montagens daquele grupo de “gentlemen of colour”, o que levou os brancos a se deslocarem até o Grove, para ver do que se tratava. Price começou a engendrar pequenas sabotagens. Contratou pessoas para provocar desordens nos espetáculos do Grove, o que levava a polícia a prender os atores, muitas vezes até durante o espetáculo. O estratagema funcionou, no sentido de que Brown teve que sair daquele local. Mas o tiro saiu pela culatra quando, em janeiro de 1822, ele alugou um pequeno hotel na mesma rua do Park Theater e mudou para lá seu grupo de teatro. O repertório do grupo se estendeu. Além de Hewlett interpretando Ricardo, havia também cenas de Macbeth, a peça The Drama of King Shotaway, original de William Brown (primeira peça escrita por um negro nos Estados Unidos, e que, infelizmente, não chegou aos nossos dias) e a tragédia Pizarro, tradução de Richard Brinsley Sheridan para o inglês a partir do alemão de August Von Kotzebue, que marcou a estréia de Ira Aldridge, com apenas 15 anos, no papel do soldado Rolla (pronuncia-se “Roja”).
Richard Brinsley Sheridan
Não por coincidência, o primeiro ator a ficar famoso nos Estados Unidos interpretando o soldado foi James Wallack, que fazia turnês constantes pelo país. No ano em que Aldridge debutou no Grove, Wallack teve um acidente com sua carruagem a caminho de uma temporada na Filadélfia, o que o obrigou a uma convalescença de 18 meses em Nova York. Segundo se crê (já que pouquíssimo se pode comprovar sobre a juventude de Aldridge e basicamente tudo está no terreno da dedução e da especulação), foi ali que o negro e o ator travaram conhecimento e se tornaram amigos. Assim como Hewlett teve em Cooke seu patrono e incentivador, agora Aldridge também tinha o seu.
Stephen Price estava no inferno. O Park saíra de um reforma cara depois de um incêndio em 1820, o African Grove Theater ganhava fama e prestígio a cada dia, e produções de Ricardo III com Hewlett e Romeu e Julieta com Aldridge estreavam em franco desafio à montagem das mesmas peças, sendo levadas no Park. Como se não bastasse, projetos andavam adiantados para a construção de mais dois teatros populares na mesma região, o Chatham Garden e o Bowery.
Os teatros Bowery e Chatham
De nada importava que o Chatham anunciasse que a entrada aos negros não seria permitida; o que queimava o intestino de Price não era que os negros fossem a seu teatro ou a outros, mas de que o público branco não fosse mais exclusivamente ao Park, ou, no máximo, aos outros poucos teatros da elite que existiam na cidade, até então. Depois de seis meses, ele armou nova sabotagem, desta vez bem mais pesada. Pagou um grupelho de sicários para que organizassem tumultos sucessivos no Grove. Em um deles o elenco – inclusive Aldridge – foi espancado, em outra ocasião o teatro foi depredado, dias depois houve um quebra-quebra que destruiu os cenários, figurinos e objetos de cena, e assim, sucessivamente, até que Brown não pôde mais arcar com os prejuízos e voltou para o prédio de dois andares.
O ano de 1823 foi melancólico. O Grove seguiu com seu repertório shakespeariano, entreatos cômicos, dramas ingleses e a peça original de Brown, tendo à frente Hewlett e Aldridge como protagonistas, mas as sabotagens de Price conseguiram arruinar-lhe as finanças. O Grove saiu do prédio de dois andares e foi para locais distantes, o último deles quase em meio a uma zona rural. Freqüentadores se afastaram, tal a inconveniência e a dificuldade de chegar ao novo teatro, e no fim de 1823 o Grove foi extinto. A associação daqueles três heróis pioneiros terminava ali. Brown foi cuidar de sua vida e a história não registra o seu destino. Hewlett seguiu trabalhando e tornou-se respeitado e aclamado como um grande ator nos círculos onde os negros eram aceitos. Não se sabe ao certo a data da morte (e nem a de nascimento, aliás) de nenhum dos dois, mas terá ocorrido quiçá 15 ou 20 anos depois do fim do Grove. O Park pegou fogo novamente em 1848 e acabou demolido. E quanto a Ira Aldridge, com 16 anos, o fim do Grove foi meramente o começo de sua carreira.
Ira Aldridge
Mais ou menos na mesma época do ocaso do Grove, quem estava de malas prontas para voltar à Inglaterra era James Wallack, recuperado de seu acidente. Ciente do talento extraordinário e precoce que Aldridge vinha demonstrando, resolveu levá-lo como seu protegido. O inglês e seu irmão Henry, além de atores, eram empresários teatrais, e o jovem negro tinha tudo para atrair boas bilheterias na Meca do teatro. Aldridge, por sua vez, não via maior razão para permanecer nos Estados Unidos, tal o clima de hostilidade em relação aos negros e aceitou o convite. Nunca mais voltou a seu país. Segundo conta um contemporâneo de Aldridge (J. Sheahan, Notes & Queries, 1872), assim que os dois chegaram a Liverpool, no início de 1824, Wallack teria cometido o grave equívoco de apresentar o jovem negro por aí como seu “servente”. O rompimento foi instantâneo. Com o pouco dinheiro que tinha, Aldridge foi para a Escócia e passou aquele ano estudando voz e interpretação na Universidade de Glasgow. Infelizmente essa temporada é nebulosa para os historiadores, e há quem diga que não houve rompimento nenhum e durante aquele ano Aldridge trabalhou como assistente de palco de Henry Wallack. A pecha de “servente” o assombraria, anos depois.
Ira Aldridge
Seja por indicação de James ou Henry, ou por seus próprios meios, no início de 1825 Aldridge travou conhecimento com James Dunn. O empresário teatral inglês tinha sido um dos co-fundadores do Royal Coburg Theatre em 1816 e estava agora gerenciando um pequeno teatro na periferia de Londres chamado The Royalty Theatre. Só que sua realeza estava só no nome; era um teatro eminentemente popular e embora a Inglaterra àquela altura já tivesse uma tradição teatral secular, o Royalty enfrentava problemas semelhantes ao Grove, em Nova York: vivia em pé de guerra com teatros da elite como o Covent Garden e o Drury Lane. Isso podia significar uma escassez de patrocínios, em comparação à gorda subvenção recebida pelos outros através do Chamberlain (oficial do governo responsável pela área), mas também significava que um negro poderia ser contratado e escalado para protagonizar uma tragédia shakespeariana, embora o fato fosse até então inédito no reino.
A temporada shakespeariana no Royalty começou em 10 de janeiro com Ricardo III, em maio vieram Macbeth e Ricardo novamente, e para o dia 11 foi anunciada a tragédia Othello, a ser interpretada por “Mr. Keene”, um “gentleman of colour”. Segundo pesquisadores, há duas explicações para Aldridge ter adotado inicialmente o nome de “Keene”; a primeira é a de que isso criaria uma associação fonética óbvia com o nome de Edmund Kean, seguida do “gentleman of colour”, o que deixaria o público no mínimo curioso para saber quem seria esse tal Kean negro. A outra é a de que o nome “Keene” era, de fato, um de seus sobrenomes. Há documentos assinados por ele com variações como Frederick William K. Aldridge e F. W. Keene Aldridge, e ele teria apenas se aproveitado da coincidência para utilizá-lo como propaganda. Bernth Lindfors, biógrafo de Ira e maior autoridade do mundo no assunto, comenta que se a primeira opção é a verdadeira e aquilo foi apenas uma manobra para atrair o público, ela funcionou, porque o teatro lotou.
Um dos Othellos de Aldridge
No dia 13 o Public Ledger, jornal do comércio com circulação limitada publicou uma crítica em geral positiva à performance de Aldridge. Comentou que o ator exibiu uma “emoção sincera” na cena em que Iago instila o veneno do ciúme e mais tarde no rompante de Othello com Desdêmona. “E na cena da cama”, segue o jornal, “ele excedeu todas as nossas expectativas. Sua morte foi certamente uma das mais extraordinárias representações físicas de angústia corporal que já testemunhamos”. Mais à frente o crítico recomenda que “Mr. Keene” tome um pouco mais de cuidado em relação ao texto e às marcações. O tom do alerta foi polido e simpático, mas a culpa não era de Aldridge. O texto foi ensaiado em 48 horas, o que justificaria quaisquer confusões em uma tragédia dessa magnitude. Em todo caso, para a segunda e última representação da peça, dias depois, anunciou-se no Public Ledger a representação do “Melodrama em três atos, baseada em, e chamada Othello”, o que nos leva a crer que na ausência de tempo para ensaiá-lo na íntegra, o texto foi enxugado para evitar erros. No mais, o crítico encerra dizendo que “esperamos ter outra oportunidade para assistir o Sr. Keene, já que há muitos outros personagens de cor que poderão ser interpretados por ele com grande habilidade”.
Nada mal para o garoto que ainda sequer completara 18 anos e que já ostentava o título de ser o primeiro negro a interpretar uma tragédia de Shakespeare na Inglaterra, pátria do próprio Bardo, em um teatro comercial geralmente freqüentado por brancos. E ele seguiu o conselho do crítico. Nos meses seguintes, até setembro, interpretou três famosos papéis negros que até o momento só haviam sido interpretados por brancos com a cara pintada: Gâmbia, na peça de Thomas Morton, The Slave, Hassan em The Castle Spectre, escrita por Mathew Gregory Lewis e outro Hassan, este em um drama contemporâneo chamado The Divan of Blood or The Demon of Algiers, cuja autoria é desconhecida e que não chegou até nós.
O Royal Coburg...
Talvez pelo relativo sucesso da temporada no Royalty, ou pela influência de Dunn, em outubro de 1825 Aldridge começou uma temporada de seis semanas no Royal Coburg Theatre, teatro mais tarde rebatizado com o nome de Royal Victorian Theatre (para puxar o saco da então princesa e depois rainha, quando ela ascendeu ao trono em 1837), e em seguida para The Royal Victoria Hall and Coffee Tavern, razão pela qual no fim do século XIX ele já era referido simplesmente pelo apelido de “Old Vic” (vic de Victoria ou Victorian), que acabou se tornando o nome do teatro até hoje. Aldridge estreou com a peça The Revolt of Surinam or A Slave's Revenge, adaptação da peça Oroonoko, de Thomas Southerne, que por sua vez se baseava no livro do mesmo nome, da escritora Aphra Behn.
... atual Old Vic
Na Inglaterra, o comércio de escravos havia terminado oficialmente com o Slave Trade Act de 1807. Escravos, na época em que Aldridge desembarcou em Liverpool, eram cada vez mais raros e depois de ganharem sua liberdade muitos deles optaram por seguir nas casas onde trabalhavam, na condição de serventes, com um tratamento menos vexaminoso. Isso não significava, entretanto, que não houvesse racismo ou segregação. Com efeito, embora os ingleses fossem profundamente mais evoluídos do que os americanos em todos os sentidos, o racismo era um ponto convergente. De forma no mínimo paradoxal; na dramaturgia, por exemplo, negros eram retratados e até protagonizavam peças, desde o Othello de Shakespeare até os atualmente populares Gâmbia e Hassan. Só que em letra de fôrma, bem entendido, porque na hora de levar essas peças ao palco, a possibilidade de um negro interpretar um negro era simplesmente aberrante. A abolição definitiva da escravatura inglesa, em 28 de agosto de 1833, pouco fez para alterar essa condição. Era uma questão de tempo e Aldridge apareceu bem antes dos negros serem tratados como gente pelos anglo-saxões do velho e do novo mundo.
O livro de Aphra Behn, uma das primeiras escritoras profissionais inglesas
O que não se imaginava, porém, é que a imprensa inglesa fosse de uma perversidade que beirava as raias da depravação. O Coburg não era ainda um teatro de elite, mas era maior do que o Royalty e suas peças tinham mais repercussão junto aos jornais de grande circulação. Aldridge fôra anunciado mais uma vez como “Mr. Keene”, desta vez acrescentando um “tragedian of colour” à propaganda de seu Oroonoko. Em 25 de outubro ele fez sua estréia com esse personagem. O The Globe, de orientação liberal semelhante ao Public Ledger, foi simpático. Disse que “a importação do Sr. Keene” tinha sido “um golpe de sorte”, elogiou a concepção do personagem e a “enunciação” de Aldridge, “distinta e sonora”. Comentou, por outro lado, que sua voz era “deficiente em modulação e flexibilidade”, o que mais uma vez se perdoa, considerando que ele acabava de fazer 18 anos, e que “suas feições parecem demasiado duras e firmes para permitir a exibição exterior das paixões obscuras e os mais amargos sofrimentos do coração”. O fim do artigo não deixa de ser óbvio: “Mas ele tem a aparência de seu personagem”.
Um dos Othellos de Aldridge
Como ocorrera nos Estados Unidos, Aldridge sentiu a vergasta do racismo ao mesmo tempo em que experimentava o sucesso de público por seu trabalho. Até o fim de novembro ele continuou a temporada no Coburg com a casa lotada, interpretando Gâmbia e Oroonoko, além de acrescentar a seu repertório mais peças que traziam protagonistas negros, como The Libertine Defeated or African Ingratitude, de W. Roberds, The Negro's Curse or the Foulah Son – que o dramaturgo Henry Milner escreveu especificamente para Aldridge, prova irrefutável do prestígio que sua novel carreira adquirira em tão pouco tempo – e The Death of Christophe, King of Hayti, de J. H. Amherst. Mas os racistas representados pelo The Times alcançaram seu intento e ele não conseguiu mais propostas para permanecer em Londres. Terminado o contrato com o Coburg, Aldridge se casou com uma branca de Yorkshire, Margaret Gill, o que deve ter sido no mínimo um soco no estômago do lobby pró-escravidão, ainda poderoso na Inglaterra, e foi para as províncias.
Nos sete anos seguintes, a partir de dezembro de 1825, Aldridge ficou em excursão permanente pelo interior da Grã-Bretanha. Tivera o primeiro grande contato com a capital, e agora era o momento de burilar seu talento mambembando pelas pequenas cidades da Inglaterra, Irlanda e Escócia. Seu Othello precisava ser refinado em forma e em conteúdo, não pelo “formato de seus lábios” mas pela necessidade que qualquer ator shakespeariano tem de se acostumar com aquele léxico, com aquela pronúncia e com toda a atmosfera que circunda a encenação de uma tragédia do bardo. Foi para Brighton, Halifax, Manchester, Newcastle, Edinburgo, Lancaster, Sunderland e Liverpool.
Liverpool tinha sido o maior centro de comércio escravo de toda a Grã-Bretanha, e no fim dos anos 20 Aldridge interpretou lá o seu Othello, tendo Frances Harriet Kelly e John Vandehoff – dois atores relativamente famosos no teatro inglês – como Desdêmona e Iago. Ainda em Liverpool, por volta de 1827, ele acertou em cheio adicionando a seu repertório o personagem Zanga, na tragédia The Revenge, de Edward Young, o escravo fugitivo Alhambra, na opereta Paul and Virginia, de James Cobb, e sobretudo a popularíssima opereta The Padlock, com música de Charles Dibdin e libreto de Isaac Bickerstaffe (baseado em um conto de Cervantes). O escravo caribenho Mungo, protagonista da peça, foi outro dos emblemáticos personagens negros da dramaturgia dos séculos XVIII e XIX interpretados pela primeira vez, efetivamente, por um negro.
Aldridge como Mungo
Com The Padlock, Aldridge matou três coelhos com uma única cajadada: em primeiro lugar tratava-se de uma opereta conhecida e bem-quista pelo público; em segundo, dava a oportunidade a Aldridge de exibir seu talento para o canto. E terceiro, e mais importante, The Padlock era a proverbial afterpiece, ou playlet, peça cômica/musical de um ato encenada após uma tragédia ou melodrama em três ou cinco atos. Aldridge passou a apresentá-la sempre na seqüência de uma de suas performances de Othello, maravilhando o público com a riqueza de sua gama performática, indo do mouro ensandecido e arrasado pelo ciúme para a comédia rasgada do negro beberrão e ganancioso. De Liverpool ele seguiu para Norwich, Yarmouth, Bury, Hull, Richmond e Belfast. Hull, no condado de Yorkshire, região onde nasceu sua esposa, foi o berço do movimento anti-escravagista na Inglaterra e terra natal de William Wilberforce (1759/1833), parlamentar inglês que lutou incansavelmente pela aprovação do Slave Trade Act de 1807 (e que assim como Lincoln nos Estados Unidos, não viveu para ver a escravidão ser totalmente abolida no Reino Unido, o que aconteceu um mês após sua morte). Quando não estava viajando com sua companhia de teatro, era em Hull que Aldridge morava com Margaret Gill. E pela calorosa acolhida que recebeu do povo citadino, foi lá que Aldridge passou a testar os espetáculos que adicionava a seu repertório.
Ilustração de Aldridge no papel de Zanga
Ao “The Celebrated Mr. Keene” de seus anúncios, foi anexado o codinome “The African Roscius”, em uma referência ao escravo romano que se tornou ator, Quintus Roscius Gallus (ca. 126/62 A.C.), e que já fôra usado com Garrick (“The English Roscius”) e com poucos outros atores de algum renome. Pouco depois o “Keene” foi aposentado e ele finalmente se apresentou com seu verdadeiro nome, trazendo apenas o “The African Roscius” na seqüência. Sua fama nas províncias começou a se tornar maciça e ele sentiu a liberdade para inovar ainda mais uma vez: revertendo o estereótipo dos black minstrel shows, onde brancos pintavam seus rostos com tinta preta e parodiavam os negros, Aldridge começou a interpretar papéis para brancos pintando seu rosto. Evidentemente que não o fez de forma cômica e exagerada (ou mesmo grotesca e ofensiva, como na maioria dos minstrel shows ingleses e americanos) e sua estréia foi no segundo semestre de 1830, na cidade inglesa de Kendal, interpretando o contrabandista holandês Dirk Hatteraick no drama musical Guy Mannering, libreto de Daniel Terry baseado no romance de Walter Scott, com músicas de Henry Bishop.
Um dos Othellos de Aldridge
Na Irlanda, por sinal, Aldridge teve alguns desgostos, mas uma de suas maiores alegrias. Por diversas vezes ele havia tentado levar sua companhia para o Theatre Royal, em Dublin, tendo seus pedidos sumariamente negados. A quem lhe perguntasse, o gerente do teatro, John William Calcraft, respondia apenas que havia “algo de tão absurdo” no ator se apresentar por lá. Cansado das negativas, Aldridge foi a Dublin e se encontrou pessoalmente com Calcraft. Saiu da reunião com uma pequena temporada agendada no Royal para dezembro de 1831. A única recomendação feita por Calcraft foi de que Aldridge não interpretasse Othello, porque ninguém menos do que Edmund Kean se apresentaria no teatro semanas depois, e ao ídolo não apetecia que as companhias que o precediam levassem os mesmos espetáculos que ele protagonizava. Calcraft sugeriu que o mouro fosse substituído por Zanga, de The Revenge. Aldridge, quiçá com alguma hesitação, não concordou. Anunciou a dobradinha de Othello e Mungo como carro-chefe da temporada, que traria também todo o elenco de seus personagens tradicionais, como Gâmbia, Zanga, Alhambra e Hassan. Kean foi para Dublin acertar detalhes de sua própria temporada e eis que em algumas das apresentações do negro americano, então com 24 anos, o semi-deus do teatro shakespeariano estava na platéia.
Um dos Othellos do grande Kean
Com o ídolo assistindo, imagina-se que Aldridge tenha se esforçado para fazer o melhor Othello de sua vida, até aquele momento. As críticas a seu mouro em Dublin foram estupendas. Uma delas analisou sua interpretação do personagem:
Nas partes em que Desdêmona instiga no mouro de personalidade nobre os sentimentos mais belos e suaves do coração, como por exemplo quando pede pela reintegração de Cássio, suas respostas foram dadas de maneira tão casta, terna e afetuosa, que o público as sentiu profundamente. (...) Não foi, entretanto, até que Iago atiçasse sua mente com o ciúme que o ator se tornou realmente terrível e sublime. (...) Foi na expressão das fortes paixões de ciúme e vingança que grassavam no peito do distraído mouro que o Sr. Aldridge ascendeu a um grau de excelência que nunca vimos superado. (...) Quando Iago começa a despejar seu veneno doméstico nos ouvidos de Othello e ele se torna alternadamente desconfiado da virtude de Desdêmona e da honestidade de Iago, suas explosões de sentimento, sucedidas por ferozes ebulições de paixão, foram a um tempo magistrais, grandiosas e peculiares. (...) Com efeito, sua representação inteira de Othello é uma performance magistral, tão habilmente executada quanto originalmente concebida, e que jamais deixará de convencer qualquer platéia inteligente de que o ator possui um gênio digno da fama que adquiriu.
Edmund Kean teve a mesma impressão. Mestre e pupilo se encontraram e duas coisas foram acertadas: o grande ator daria ao negro uma carta de recomendação para que ele se apresentasse em Bath, no sudoeste inglês, e logo depois Aldridge faria Othello para o Iago do filho de Edmund, Charles Kean. Assim é que em janeiro de 1832 o gerente do teatro de Bath leu o seguinte: “Querido Bellamy, peço-lhe permissão para apresentá-lo ao Sr. Aldridge, The African Roscius, cujas performances tenho presenciado com grande prazer. Ele possui uma versatilidade maravilhosa e sob a sua sensata direção, será um triunfo em Bath”. Dito e feito. O sucesso naquela cidade foi imenso, como foi de pleno êxito a temporada em Belfast, em que Aldridge e Charles Kean fizeram dobradinha como Othello e Iago, e também em The Revolt of Surinam, onde desta vez Aldridge fez Aboan, o amigo de Oroonoko, interpretado por Charles. Pelo resto do ano Aldridge se alternou entre o interior de Londres e as principais cidades irlandesas. O extraordinário sucesso nas províncias, na Irlanda e no resto do reino cimentou o caminho de Aldridge de volta a Londres.
O Theatre Royal, no Covent Garden
Ao fim de uma exitosa temporada em Edinburgo, no início de 1833, veio o convite que Aldridge esperara pacientemente nos últimos oito anos: Pierre François Laporte, que ocupava na época a gerência do já centenário e tradicionalíssimo Theatre Royal, no Covent Garden de Londres, agendou uma temporada com ele começando no dia 10 de abril. Dentro do meio teatral, ficava a impressão de que Londres estava pedindo desculpas por tê-lo enxotado depois de sua temporada no Coburg, e reconhecendo, por fim, seu grande talento e o pioneirismo de seu notável trabalho. Mas o timing não poderia ter sido pior, infelizmente. Em primeiro lugar Aldridge ia substituir Edmund Kean, uma das maiores glórias do teatro inglês, que tivera um colapso em cena no dia 25 de março e estava moribundo (morreria em maio), o que consternou toda a Grã-Bretanha. Em segundo lugar, o parlamento inglês estava no meio das mais acaloradas discussões pró e contra a escravidão, que desembocariam na abolição total, em agosto. Não surpreende, portanto, que o movimento escravagista, em seu estertor, tenha recebido a pedradas a notícia de que um negro americano se apresentaria em um dos mais tradicionais teatros de Londres.
Cartaz anunciando o Othello de Aldridge para o dia 10 de abril no Covent
Cartaz do dia 12
As apresentações do dia 10 e do dia 12 foram de sucesso absoluto. O público lotou o Covent, Aldridge foi largamente ovacionado e sua interpretação emocionou a todos. Nos bastidores, depois da peça, o escritor Sheridan Knowles (1784/1862, primo de Brinsley Sheridan, que traduziu a peça Pizarro, na qual Aldridge fez sua estréia, pouco mais de dez anos antes) o abordou, dizendo: “Pela honra da raça humana, deixe-me abraçá-lo”. A mezzosoprano Maria Malibran (1808/1836), célebre por interpretar Desdêmona na ópera Otello, de Rossini (pioneiríssimo e que abriu caminho para Verdi), escreveu a ele dizendo que “nunca, no curso de toda a minha carreira profissional eu testemunhei uma performance tão poderosa e interessante”. Os elogios e as congratulações foram múltiplos. Já na imprensa, havia três lados bem delineados: 1) a favor, 2) a favor e contra, e 3) ódio mortal.
A crítica do The Times
No lado do ódio mortal temos o jornal literário The Athenaeum, cuja crítica nada tem de literário. É uma excrescência vergonhosa onde abunda o mais baixo racismo e no qual ainda se desenterra a breve função de Aldridge junto aos irmãos Wallack: “O servente negro do Sr. Henry Wallack no papel de Othello... Othello, ora essa!!! (...) Um papel cujo estudo ocupou, quiçá, anos da vida do elegante e clássico [John Philip] Kemble [1757/1823]; um papel cujo fogo e gênio de Kean, nos últimos anos, o têm tornado sua propriedade exclusiva; um papel que, tentá-lo, tem sido considerado uma espécie de traição teatral para qualquer um menos distinto que esses dois”. Kean, cujo precioso beneplácito abriu as portas de Aldridge para o sucesso em Bath e cobriu o americano com a glória de sua recomendação, entrava em uma catilinária contra Aldridge, como Pilatos no Credo. “E ele será representado em um teatro nacional inglês por alguém cujas pretensões residem no fato de ter um rosto cujo matiz é natural ao invés de adquirido, e de ter vivido como servente de um ator de baixa-comédia. É realmente monstruoso. (...) Em nome do decoro e da decência, nós protestamos contra uma atriz interessante e uma garota honrada como a Srta. Ellen Tree ser submetida (...) à indignidade de ser pateada (“pawed about”) pelo servente negro do Sr. Henry Wallack”.
Igualmente grotesco foi um pasquim racista chamado Figaro, cuja crítica, de inqualificável ódio, foi publicada assim que se anunciou a segunda noite. O articulista – que sequer se refere a Aldridge pelo nome – alerta o povo de que um “ato de insolência está para ser perpetrado, pela introdução nos quadros do teatro no Covent Garden, daquele preto miserável, que encontramos nas províncias forçando-se ao público com o nome de African Roscius. Esse arrivista desgraçado está prestes a sujar o palco com uma imunda carnificina de Shakespeare, e Othello foi a peça escolhida para o sacrilégio. É pelo fato da natureza ter fornecido ao sujeito uma pele que torna a fuligem e a manteiga inúteis, é na força de sua negritude que ele se considera apto a encenar o papel de mouro de Veneza? (...) A menos que esta notícia cause a imediata retirada de seu nome dos anúncios, precisaremos mais uma vez infligir a ele um tamanho castigo que o afaste do palco que ele desonrou, e o force a encontrar, na condição de criado ou varredor de rua, o nível para o qual sua cor parece tê-lo tornado particularmente qualificado”.
À primeira vista se ri de tanta imbecilidade. Em seguida se lamenta que os ingleses responsáveis pelo Covent fossem tão pobres de espírito, porque foi exatamente isso que aconteceu. Depois da quarta noite, Laporte encerrou a temporada no Covent e Aldridge partiu para um teatro menor, em Surrey, e de lá para o interior, a Irlanda e a Escócia. Pela segunda vez ele era açoitado e enxotado pela crítica londrina.
Cartaz de apresentação em Birmingham, 1846
Os desenove anos seguintes ele passou dedicando-se à sua carreira e não preocupando-se mais com Londres. Embora a capital o eludisse, no resto da Grã-Bretanha ele era considerado um dos melhores atores do mundo. Seu Shylock branco continuou maravilhando platéias e provocando comparações com o velho Kean. Seu Othello levava o público ao choro convulsivo, fazendo com que pessoas se levantassem e exigissem aos gritos que Iago fosse preso, enquanto mulheres se descabelavam gritando “ela é inocente!” A atriz Eliza Wrixon Becher (1791/1872), que como trágica chegou a ser comparada à Sarah Siddons (1755/1831, maior trágica do século XVIII), declarou: “Durante minha vida profissional, e também na pessoal, nunca vi um retratro tão correto de Othello entre os luminares de minha época”. Na década de 40 ele aproveitou sua plena maturidade artística para montar, finalmente, um Ricardo III na íntegra (1848), assim como um Macbeth (1847). Entre os personagens brancos, entretanto, Shylock seguiu na linha de frente.
Cartaz de apresentação em Plymouth, 1850
Surgiu a idéia dele interpretar o outro mouro de Shakespeare, Aarão, o vilão de Tito Andrônico. Só que havia um pequeno problema: a própria peça. Tito Andrônico, que alguns estudiosos chegam a crer que não foi sequer escrita por Shakespeare, tem violência e requintes de crueldade que ultrapassam de longe os limites do bom gosto. Tito assassina seu próprio filho logo na segunda cena, Lavínia, a filha de Tito, vê seu noivo ser assassinado, é estuprada pelos dois filhos da rainha Tamora e tem sua língua e mãos decepadas; os outros dois filhos de Tito são decapitados e suas cabeças são levadas em uma bandeja ao próprio Tito, e no fim Tito mata os dois filhos de Tamora, esquarteja-os, faz um apetitoso meatloaf e os serve à mãe deles, que come seus filhos sem saber. Enfim, uma coisa meiga e terna. Sem falar que Aarão é o amante negro de Tamora e mentor intelectual de muitas dessas selvagerias. A peça tinha sido encenada na íntegra pela última vez por volta de 1720, tendo James Quin no papel principal, mas desaparecera dos teatros pela simples razão de que os espectadores saíam das salas correndo no meio da apresentação, seja horrorizados com o que viam, seja porque precisavam vomitar.
Aldridge como Aarão, em sua adaptação do Tito Andrônico de Shakespeare
Aldridge sabia disso, como sabia que em nada ajudaria sua carreira interpretar um vilão carniceiro e perverso. A solução que ele adotou é interessante; chamou um escritor inglês de nome C. A. Somerset e reescreveu o texto inteiro, a fim de tornar Aarão o herói da peça. A trama original foi toda abandonada, as cenas de mutilação foram cortadas, cenas e tramas de outras peças foram agregadas e o banho de sangue original tornou-se um melodrama em que o mouro é uma figura benévola e corajosa. Manteve-se o nome dos personagens, o nome da peça e, sobretudo, do autor. Nos anúncios para a estréia em Edinburgo, em julho de 1850, dizia-se que “enquanto os horrendos incidentes foram expurgados, as gemas do autor imortal foram retidas”. Pode até ser, mas é pouco provável. A imprensa mais puritana da época gostou das alterações e considerou a montagem “não apenas apresentável, mas até atraente”.
O Othello de Aldridge no Royal Shakespearean Theatre, em Stratford
Tito Andrônico não foi tanto um sucesso artístico quanto uma curiosidade, pois quase 130 anos haviam passado desde a última montagem do texto (e mais 100 passariam até que Peter Brook realizasse sua premiadíssima montagem com Olivier e Vivien Leigh, em 1955). De qualquer forma, em abril do ano seguinte Aldridge levou seu Othello com sucesso ao Royal Shakespearean Theatre, em Stratford Upon Avon, o que, em muitos aspectos, é chancela bem mais valiosa do que aquela que se esperava de Londres. Era o que ele precisava para que pudesse se despedir temporariamente da Grã-Bretanha. Em 1852 Aldridge partiu pela primeira vez para o continente e nos três anos seguintes excursionou pela Alemanha, Bélgica Áustria e Hungria. Esteve em Colônia, Frankfurt, Leipzig, Dresden, Hamburgo, Danzig, Berlin, Viena, Praga, Budapeste e outras cidades. Foi o primeiro ator americano a apresentar-se na Croácia e na Sérvia. Interpretava em inglês, enquanto seu elenco falava em alemão, ou na língua nativa do país onde se encontrava. O sucesso, como já se esperava, foi total. Os europeus ficaram arrebatados pelo talento de Aldridge, e ele foi disputado para temporadas em todos os países, além de ter sido soterrado por comendas, prêmios e condecorações. Tudo o que deveria ter recebido nos Estados Unidos e na Inglaterra, Aldridge recebeu no resto da Europa. Todas as atenções, elogios, incentivos e dinheiro.
Leopoldo I, da Bélgica, tornou-se seu patrono; de Frederico IV, da Prússia, ele recebeu a Medalha de Ouro das Ciências e das Artes, honraria conferida antes somente ao filósofo Humboldt e aos compositores Spontini e Liszt; outra medalha de ouro quem lhe deu foi o Conservatório Histriônico Imperial de Pesth, na Hungria, além de torná-lo membro honorário; o Duque Bernhard II, de Saxe-Meiningen (que chegou a ser cunhado do rei da Inglaterra, Guilherme IV), o nomeou Cavaleiro da Ordem Real Saxônica. Um crítico de Danzig afirmou peremptoriamente: “Ira Aldridge é o maior artista dramático que já tivemos. Em pouco mais de dois anos ele conquistou todas as simpatias do público. Os críticos de Berlim se exauriram completamente elogiando este leão do dia. Seu Othello, Macbeth e Shylock o deixam sem rival nos anais do teatro”. Um crítico vienense acrescentou: “Ira Aldridge é sem dúvida nenhuma o maior ator que já foi visto na Europa. Pode muito bem se questionar se o próprio Shakespeare alguma vez sonhou para sua obra-prima, Othello, uma interpretação tão magistral, tão verdadeiramente perfeita”.
A Inglaterra começou a não fazer mais falta. Em todos os lugares por onde passou fizeram justiça a seu talento e Aldridge foi tratado como um rei. Mesmo assim ele voltava de vez em quando ao Reino Unido, às províncias ou ocasionalmente à Londres. Em 1857 ele se apresentou no Britannia Theatre, no East End, e em 58 no prestigioso Lyceum Theatre, onde foi mais uma vez surrado pelo Times, mas, por incrível que pareça, elogiado pelo Athenaeum, talvez desejando se redimir pelas idiotices ditas quinze anos antes. Já não importava mais. A felicidade de Aldridge estava fora de Londres. Nas províncias, na Irlanda, na Escócia e no continente. Em outubro de 58 ele voltou às turnês e foi pela primeira vez à Rússia. Se apresentou em São Petersburgo. A cidade parou para vê-lo. O sucesso foi sem precedentes. Foi condecorado pelo czar, ficou amigo de Leon Tolstoi e do poeta e pintor ucraniano Taras Shevtchenko, que pintou seu retrato no natal de 1858. Conta-se que o poeta teve dificuldade de pintá-lo porque Aldridge era inquieto e pedia permissão para cantar, já que não podia se mexer. Os dois tiveram uma juventude pobre e conversaram extensamente sobre aquilo que aproximava o povo anglo-saxônico do extraordinário povo da Eurásia.
Aldridge, retratado por Taras Shevtchenko
A recepção por lá foi tão calorosa que em 1859 ele estreou o seu Rei Lear em São Petersburgo. Mais uma jóia em sua coroa. Tornou-se o ator mais bem pago da Rússia e membro vitalício da Academia Imperial Russa. Um crítico de lá afirmou que as noites em que assistiu Aldridge interpretar Othello, Lear, Shylock e Macbeth “foram, sem a menor dúvida, as melhores que já passei em um teatro”. Outro escreveu, depois de ver Aldridge, que “é impossível ver Othello interpretado por um branco, até mesmo o próprio Garrick”. As honrarias se acumularam: na Suíça ele recebeu a medalha de ouro da Cruz Branca, na França foi recebido por Alexandre Dumas, na Alemanha foi assistido por Wagner, à Suécia ele foi a convite do rei e ouviu da soprano Jenny Lind (1820/1887), que ele era “o maior Othello de todos”. Na Bessarábia ele recebeu a cobiçadíssima honraria de ser nomeado sócio da Ordem dos Nobres.
Ira Aldridge
Um correspondente francês em São Petersburgo comentou o Othello de Aldridge:
A cena do terceiro ato quando o sentimento do ciúme é despertado no feroz mouro é o triunfo de Aldridge. À primeira palavra da capciosa insinuação, você vê seus olhos flamejarem; você sente as lágrimas em sua voz quando ele questiona Iago, e então o soluço profundo que o sufoca; e quando ele é finalmente persuadido de que sua desgraça é completa, um grito, ou antes um rugido, como aquele de uma fera selvagem, ascende de seu abdomen. Parece que ainda ouço aquele grito; deu-nos calafrios de medo e fez cada espectador estremecer. Lágrimas molharam seu rosto; sua boca espumou e seus olhos disparavam fogo. Nunca vi um artista se identificar tão perfeitamente com o personagem que representava. Um ator me contou que o ouviu soluçando depois que saiu de cena. Todo mundo, homens, mulheres e crianças, choraram.
O escritor francês Théophile Gautier (1811/1872) ficou extasiado com ele. Declarou que Aldridge era “o leão de São Petersburgo, e era preciso reservar uma cadeira com vários dias de antecedência”. Sobre seu Lear, com grossa maquiagem branca e densa barba cobrindo o rosto até o peito, ele comentou que nem Cordélia seria capaz de descobrir que seu pai era negro.
Sobre o mouro, Gautier escreveu que “a entrada de Aldridge era maravilhosa (...) com seus olhos semi-cerrados, como que ofuscado pelo sol africano, ele era o próprio Othello, como Shakespeare o criou. Ele tinha aquela malemolência, aquela atitude oriental, aquela desenvoltura de um negro que nenhum europeu é capaz de imitar. (...) Ele produziu um efeito imenso e recebeu intermináveis aplausos”.
Em 1863 Aldridge se nacionalizou inglês. No ano seguinte sua esposa faleceu e em 1865 ele se casou com a sueca Pauline Brandt, com quem já se relacionava há alguns anos. O casamento coincidiu com sua última aparição em um teatro de Londres, como Othello no Haymarket Theatre. As críticas foram positivas mas nada que se comparasse ao reconhecimento que recebera por toda Europa e Rússia. Too little, too late. Ele voltou às turnês, que eram seu grande prazer e se encontrava na cidade polonesa de Lodz, em 1867, quando foi acometido de um mal súbito e morreu, no dia 7 de agosto. Está enterrado lá. Teve quatro filhos, sendo que a mais nova, Amanda, chegou a dar aulas de elocução e impostação de voz a Paul Robeson no fim dos anos 20, quando este interpretou Othello em Londres e tornou-se herdeiro involuntário do legado artístico de Aldridge. Robeson é, entre outros assuntos, tema de nosso próximo texto sobre Othello.
A Áustria foi a primeira a homenagear Aldridge, encomendando ao italiano Pietro Calvi (1833/1884) um busto do ator interpretando Othello, para ser exibido em Viena. Quase 50 anos depois foi inaugurada uma cadeira em homenagem a Aldridge no Shakespeare Memorial Theatre, em Stratford. Nos Estados Unidos há um teatro com seu nome dentro de uma universidade qualquer. Uma homenagem tão pobre quanto a cultura dos norte-americanos, que até hoje mal sabem quem foi Ira Aldridge, o primeiro negro a interpretar Othello e o primeiro ator americano a obter reconhecimento fora de seu país.
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Precioso, Bernardo. Parabéns.
ResponderExcluirExcelentes artigos, os três. Além das informações históricas e técnicas, são generosos em imagens. Show de bola.
ResponderExcluirBRAVO!
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