quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Chaplin e Einstein




O encontro de Chaplin e Einstein já não é mais uma surpresa desde que uma ou outra foto da estréia de City Lights, em 1931, viralizaram. Junto à foto, a indefectível historinha: "What I admire most about your art", teria dito Einstein, "is its universality. You do not say a word, and yet… the world understands you". "It’s true", seria a resposta de Chaplin. "But your fame is even greater The world admires you, when nobody understands you". Pra variar, é pura lenda. Esse diálogo nunca aconteceu. Mais próxima à verdade é a história contada por János Plesch, amigo de Einstein, em suas memórias, publicadas em 1947. Em um passeio por Hollywood, em que ambos eram aplaudidos e saudados pelo público que os reconhecia, o cineasta teria feito este comentário: “They’re cheering us bothyou because nobody understands you, and me because everybody understands me”. Como também se trata de história de segunda mão (János não estava presente quando o comentário foi feito), nunca saberemos se é real.

A simples verdade é que eles tiveram vários encontros e eram, efetivamente, amigos. E para nossa sorte o próprio Chaplin dedicou várias páginas de My Autobiography (1964) à sua amizade com Einstein. Ele fala de encontros com o cientista em três épocas diferentes: no fim da década de 20, na premiére de City Lights e no fim dos anos 30. Conta causos divertidos e alguns fatos bastante curiosos, como a história sobre a invenção da Teoria da Relatividade, que lhe foi narrada por Elsa, prima e segunda esposa de Einstein. Neste post faço a transcrição daquilo que Chaplin diz sobre Einstein em My Autobiography. Trazendo fotos dos dois juntos na première de City Lights.

Divirtam-se.
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Einstein, nos anos 20
Meu primeiro encontro com Einstein deu-se em 1926, quando veio fazer conferências na Califórnia. Para mim, cientistas e filósofos são, no íntimo, grandes românticos que canalizam noutro rumo as suas paixões. Essa idéia calhava bem com a personalidade de Einstein. A sua aparência era a de um típico alemão dos Alpes, no melhor sentido, jovial e acolhedor. Senti que sob os seus modos calmos e afáveis se escondia uma índole profundamente emotiva e que provinha daí a sua extraordinária força intelectual.

Carl Laemmle, da Universal, telefonou-me para dizer que Einstein gostaria de encontrar-se comigo. Fiquei alvoroçado. E encontramo-nos, pois, nos estúdios da Universal, para um almoço a que compareceram o Professor e sua mulher, a sua secretária, Helena Dukas, e o seu professor-assistente, Walter Meyer. A Sra. Einstein falava inglês muito bem, defato melhor do que o marido. Senhora rotunda, com exuberante vitalidade, encantava-a ser a esposa de um grande homem e não fazia o menor esforço para esconder isso; era tocante o seu entusiasmo.

Carl Laemmle
Depois do almoço, enquanto Laemmle nos levava a um giro pelos estúdios, a Sra. Einstein chamou-me à parte e cochichou:

- Por que não convida o Professor a ir à sua casa? Sei que ele gostaria de uma boa prosa sossegada, só entre nós.

Como a Sra. Einstein pediu que fosse uma reunião íntima, convidei apenas dois outros amigos. Ao jantar, contou-me ela a história da manhã em que Einstein concebeu a Teoria da Relatividade. Nesse dia, desceu para o pequeno almoço, metido no robe de chambre, como de hábito, porém não comeu quase nada.

- Pensei que ele estivesse indisposto e perguntei-lhe o que havia. "Querida", respondeu-me, "tive uma idéia maravilhosa!" Bebeu o café, encaminhou-se ao piano e começou a tocar. De ve em quando parava, escrevia uns apontamentos e repetia: "Tive uma idéia maravilhosa, estupenda!" Então eu lhe disse: "Por amor de Deus, explique-me o que é, não me deixe assim em suspenso". E ele: "É coisa difícil, que ainda me vai dar trabalho".

Einstein e a esposa, Elsa
Contou-me que Einstein continuou a tocar piano e a tomar notas por mais uma meia hora, depois subiu para o gabinete, dizendo que não queria ser perturbado, e lá ficou por duas semanas.

- Todos os dias eu lhe mandava as refeições e à noite ele ia andar um pouco, para fazer exercício, porém logo tornava ao trabalho. Até que, afinal, desceu do gabinete, muito pálido. "Aqui está", disse-me, pondo em cima da mesa, com ar de cansaço, duas folhas de papel. E era a sua Teoria da Relatividade.

O Dr. Reynolds [Cecil Reynolds, médico de Chaplin e consultor de alguns filmes em Hollywood], a quem eu convidara essa noite porque tinha umas tinturas de física, perguntou ao Professor, durante o jantar, se ele havia lido Experiment with Time, de Dunne. Einstein negou com a cabeça.

Einstein e Elsa
- É uma teoria interessante sobre dimensões - disse Reynolds com desenvoltura. - É uma coisa assim como... (aí hesitou)... como uma extensão de uma dimensão.

Einstein voltou-se para mim e sussurrou maliciosamente:

- Uma extensão de uma dimensão... was ist das? ("O que é isso?")

Depois disso Reynolds deixou em paz as dimensões e perguntou a Einstein se acreditava em fantasmas. Einstein confessou que nunca vira alma do outro mundo e acrescentou, sorrindo:

- Quando outras doze pessoas presenciarem o mesmo fenômeno a um só tempo, então eu poderei acreditar.

Nessa época estavam em moda as manifestações psíquicas e os ectoplasmas flutuavam sobre Hollywood como névoas. Muitos astros do cinema promoviam em casa sessões espíritas com fenômenos de levitação e outros mais. Não compareci a nenhuma dessas reuniões, porém Fanny Brice, a famosa comediante, jurou que vira uma mesa levantar-se por is e flutuar pela sala. Perguntei ao Professor se já assistira a coisas dessa ordem. Sorriu vagamente e meneou a cabeça. Também lhe perguntei se a sua teoria da relatividade entrava em choque com a hipótese de Newton. E Einstein:

- Ao contrário; é uma extensão dela.

Fanny Brice
Durante o jantar, disse eu à Sra. Einstein que pretendia ir à Europa logo após o lançamento de meu próximo filme.

- Pois então venha nos ver em Berlim. Mas não moramos numa grande casa. O Professor não é rico; e, se tem à disposição mais de um milhão de dólares, concedidos pela Fundação Rockefeller para seus trabalhos científicos, não tira um centavo desse dinheiro para despesas pessoais.

Quando fui a Berlim, visitei-os em seu pequenino e modesto apartamento. Era desses que se podem ver no Bronx: a sala de estar e a sala de jantar conjugadas numa só peça, com velhos tapetes já gastos. O móvel mais valioso era o negro piano, sobre o qual rabiscou o Professor os primeiros e históricos apontamentos relativos à quarta dimensão. Já várias vezes me perguntei o que teria sido feito desse piano. Talvez se encontre no Smithsonian Institute ou no Metropolitan Museum, se é que os nazistas não o utilizaram como lenha para a lareira.

Quando caiu sobre a Alemanha o terror nazista, os Einsteins buscaram refúgio nos Estados Unidos. A Sra. Einstein conta uma história pitoresca sobre a ignorância do Professor em matéria de dinheiro. A Universidade de Princeton queria tê-lo no seu corpo docente e consultou-o em carta, sobre quanto desejava perceber. Einstein propôs ordenado tão modesto que a direção da Princeton respondeu ponderando que tal quantia não dava para ninguém viver nos Estados Unidos e o Professor precisava ganhar pelo menos o triplo.
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Poster original de City Lights
Nesse meio tempo, Reeves [Alf Reeves, empresário de Chaplin] fechara negócio em Los Angeles para lançar o filme num cinema que acabara de ser construído. Os Einsteins, então naquela cidade, manifestaram o desejo de comparecer à estréia, mas não creio que se dessem conta da aventura em que iam meter-se.

Na noite do lançamento, jantaram em minha casa e depois nós todos fomos ao centro. A rua principal estava entupida de gente, por vários quarteirões. Carros de patrulha e ambulâncias lutavam para abrir caminho na multidão, que havia quebrado as vitrinas de uma loja contígua ao cinema. Com o auxílio de policiais, fomos tocados ao salão. Oh, como detesto essas noites de estréia: a tensão que se padece, a mistura de perfumes, uma atmosfera de almíscar e gás carbônico; é coisa que dá náusea e irrita os nervos.

Era uma bela casa de espetáculo, mas o dono, como outros muitos exibidores desse tempo, bem pouco sabia sobre lançamento de filmes. A projeção começou. Ao aparecerem os títulos e letreiros de apresentação, houve os aplausos habituais de qualquer estréia. Então, afinal, a primeira cena. Meu coração pulou. Era uma cena cômica de uma estátua em inauguração, ao ser arrancado o véu que a encobre. O público principiou a rir! O riso aumentou, em explosões de gargalhadas. Vitória! Começaram a dissipar-se todos os meus temores e dúvidas. Senti vontade de chorar, Durante a projeção de três rolos, todos riam. E, de puro nervosismo e excitação, eu também ria.

Première californiana de City Lights, 1931: "No correr da última cena, notei que Einstein enxugava os olhos, mais uma prova de que os cientistas são incuravelmente sentimentais".

Nisto, a coisa mais incrível aconteceu. De repente, em meio ao riso geral, a projeção foi suspensa! Acenderam-se as luzes e pelo alto-falante uma voz anunciou: "Antes de prosseguirmos com esta maravilhosa comédia, gostaríamos de tomar cinco minutos do vosso tempo a fim de salientar os aperfeiçoamento deste novo e belo cinema". Eu nem podia crer no que ouvira. Fiquei alucinado. Saltei da poltrona e precipitei-me pelo corredor.

- Onde está o cretino deste gerente, este filho de uma cadela?! Eu o mato!

Os espectadores apoiaram-me, batendo com os pés e aplaudindo, enquanto o idiota continuava a gabar as instalações do cinema. Contudo, teve logo que calar-se, porque rebentou a vaia geral. Só depois de projetado mais um rolo de filme é que o riso voltou a generalizar-se. Dadas as circunstâncias, achei que fora um sucesso. No correr da última cena, notei que Einstein enxugava os olhos, mais uma prova de que os cientistas são incuravelmente sentimentais.





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Einstein e seu violino
Em 1937, quando voltaram à California, os Einsteins vieram visitar-me. Depois de me abraçar afetuosamente, o Professor preveniu-me que trouxera três músicos.

- Vamos tocar um pouco para você, depois do jantar.

Nessa noite, Einstein tomou parte na execução de um quarteto de Mozart. Embora sem leveza de técnica e segurança de arcada, tocava deliciadamente, olhos fechados, balançando-se. Os três músicos, que não pareciam muito entusiasmados com a participação do Professor, sugeriram-lhe discretamente um pouco de repouso; enquanto isso, eles sozinhos tocariam alguma coisa. Aquiescendo, Einstein sentou ao nosso lado e pôs-se a ouvir. Mas, depois que os músicos executaram algumas peças, virou-se para mim e perguntou, baixinho:

- Quando é que eu voltarei a tocar?

Assim que os músicos foram embora, a Sra. Einstein, um tanto indignada, garantiu ao marido:

- Você tocou muito melhor do que todos eles!

Mary e Douglas
Noutra noite, os Einsteins vieram novamente jantar em minha casa e convidei Mary Pickford, Douglas Fairbanks, Marion Davies, W. R. Hearst e mais uns dois. Marion Davies sentou-se ao lado de Einstein e a Sra. Einstein à minha direita, com Hearst ao lado. Antes do jantar, tudo parecia ir muito bem; Hearst mostrava-se cordial e Einstein polido. Mas, à mesa, percebi que aos poucos a atmosfera ia ficando gelada; por fim, os dois já nem trocavam uma só palavra. Fiz o possível para animar a conversação, porém ambos permaneciam mudos. Pairava um silêncio de mau prenúncio; vi Hearst com ar carrancudo, baixando os olhos para o pratinho de sobremesa, e Einstein sorrindo, tranqüilamente mergulhado em seus pensamentos.

William Randolph Hearst - que Orson Welles utilizou como base para o personagem do filme Citizen Kane - e Marion Davies,
grandes amigos de Chaplin

Com sua vivacidade habitual, Marion estivera dirigindo brincadeiras a todos, menos a Einstein. Mas, de repente, voltou-se para o Professor e disse, brejeiramente: "Olá!", e passando dois dedos ao redor da cabeça do Professor, a imitar o movimento de uma tesoura:

- Por que não corta o cabelo, hein?

Einstein sorriu e achei que era tempo de irmos tomar café na outra sala.
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Bibliografia:
  • CHAPLIN, Charlie. Minha Vida (cap. 31, tradução de Genolino Amado). Rio de Janeiro, José Olympio, 8ª Edição, 1989.

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