sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Jânio, Ben Gurion e as metamorfoses de Carlos Heitor Cony


Carlos Heitor Cony
Meus caros,não é exatamente uma raridade jornalistas requentarem suas melhores histórias, mas é curiosíssimo o processo pelo qual elas podem aumentar, criar pernas, braços, detalhes, adendos e se alterar completamente nas mãos de seu autor, ao longo dos anos. De vez em quando faz lembrar o proverbial "telefone sem fio", no qual uma história é contada tantas vezes que a última versão já não guarda qualquer semelhança com a primeira. Mesmo quando estamos falando de um dos nossos maiores jornalistas de todos os tempos: Carlos Heitor Cony. Na Manchete nº 1.271, de 28 de agosto de 1976, edição especial sobre os quinze anos da renúncia de Jânio, Cony escreveu um interessante artigo sobre o assunto, dizendo o seguinte:

Em 1962, em Telaviv, Adolpho Bloch foi visitar o seu amigo, o então premier Ben Gurion. O assunto da conversa passou a ser o Brasil, ainda traumatizado pela recente renúncia de Jânio Quadros. Ben Gurion quis saber de Adolpho Bloch os reais motivos do gesto, inesperado e dramático, do presidente que fora levado ao poder por mais de de cinco milhões de votos. As explicações de Adolpho, ao que parece, não satisfizeram Ben Gurion, que comentou: "Não, meu caro Bloch, o ato de Quadros não se justifica. Nunca poderei entender como pôde renunciar o presidente de um país com tanta água".

Em 1995, Cony requentou o artigo; Adolpho transformou-se em "amigo meu" e a impressão de Ben Gurion mudou, literalmente, da água para a terra:

Amigo meu estava em Israel quando Jânio Quadros renunciou. Foi chamado por Ben Gurion, que desejava entender o que estava se passando no Brasil. Recebeu a explicação óbvia: Jânio tinha problemas para governar e preferira ir embora. Ben Gurion arregalou os olhos: "Como ter problemas? O Brasil tem tanta terra!". Nada demais que Ben Gurion não entendesse as dificuldades de um presidente brasileiro. O problema de Israel era terra, terra que precisava ser disputada palmo a palmo contra o deserto, as pedras e os árabes em volta. Já o Brasil era o colosso verde no qual caberiam duas Europas e uns cem Estados de Israel.

Em 2007 Cony voltou ao assunto, só que desta vez a historinha ganhou corpo, cenário, o amigo virou um jornalista que estava em Israel mas não sabia da renúncia, e o grande problema de Israel volta, como por encanto, a ser a água:

Em 1961, um jornalista brasileiro estava em Israel fazendo reportagens quando recebeu, no hotel King David, onde se hospedava, o convite para um encontro com Ben Gurion, patriarca do novo Estado. A entrevista com o homem mais importante do país não estava no roteiro do profissional, mas não havia motivo para recusar o convite. Após os cumprimentos de praxe, cabia a Ben Gurion iniciar a palestra. Na realidade, ele queria entrevistar o jornalista. E começou com a pergunta: "Por que o senhor Jânio Quadros renunciou à Presidência da República?". Tendo saído do Brasil havia mais de 20 dias, o jornalista não sabia ainda que Jânio dera o fora em apenas sete meses de governo. Apelou para a generalidade: "Problemas, muitos problemas, o Brasil tem muitos problemas...". Ben Gurion interrompeu: "Como problemas?! O Brasil tem tanta água... os maiores rios do mundo...". Israel lutava, naquela época - e de certo modo luta até hoje - contra a escassez daquilo que os jornais antigamente chamavam de "precioso líquido", e o Antônio Houaiss, para evitar o lugar-comum, chamava de "ninfa potável".

Jânio e Ben Gurion em 1959

E por fim, em 2014, quase 40 anos depois de contada (até onde pude apurar) pela primeira vez, a história deixou de ser sobre um "amigo" ou "um jornalista" e Cony não apenas virou personagem da história, como ainda trouxe de volta o protagonista da primeira versão, Adolpho Bloch:

Na primeira vez que fui a Israel, em 1961, o grande assunto era a renúncia de Jânio Quadros. Fui com Adolpho Bloch. Ficamos hospedados no King David. A imprensa noticiou a presença de dois jornalistas brasileiros, Adolpho era bastante conhecido naquele país. Era nome de uma escola e do Observatório Nacional. O presidente de Israel era Ben Gurion, que proclamara a criação do Estado judeu em 1948. Ele nos convidou para uma conversa. Logo no início perguntou as razões da renúncia do nosso presidente que estava ainda no início de seu mandato. Com aquela voz inconfundível, Adolpho limitou-se a dizer que Jânio tinha muitos problemas. Ben Gurion ficou espantado, "como pode haver problemas para um país com tanta água". O problema de Israel era ainda - e por muito tempo foi - o do abastecimento da água para a população e para a agricultura - era então um deserto cheio de pedras - mas logo tornou-se uma potência na agricultura, vendendo seus produtos para vários países da Europa.

Fica a dúvida: O que terá dito, de fato, Ben Gurion, nesse encontro, e a quem?

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