Meus caros,
no fim de 2004 a Companhia Teatral "Coisa Boa",
fundada pela atriz Magali Biff e pela diretora Dedé Pacheco, firmou uma
parceria com o SESC do Carmo para a realização de um evento semanal chamado
"Dramáticos Paulistanos". O projeto consistia na leitura de obras
famosas ou inéditas de grandes dramaturgos ligados a São Paulo de uma forma ou
de outra, sendo que em determinado momento o público era convidado a participar. Segundo Magali, "a proposta é que todos os presentes interessados,
sem uma divisão de papéis, leiam um pedaço da obra". Terminada a leitura,
havia um bate-papo descontraído com o autor, sobre o texto.
Nas segundas-feiras
de novembro e dezembro de 2004 estiveram presentes naquela unidade do SESC
autores como Otávio Frias Filho, Fernando Bonassi e Luís Alberto de Abreu. Na
segunda-feira, 13 de dezembro, a Folha
anunciou que Gianfrancesco Guarnieri encerraria o evento, com a leitura de Eles Não Usam Black-Tie. A apresentação
seria às 19 horas, horário complicado em se tratando de um SESC que fica ao
lado da Praça da Sé, em pleno horário do rush. Mas o que mais me preocupou foi
a lotação: trinta vagas. Cheguei ao SESC pouco depois das sete e a leitura já havia
começado. Verifiquei que não se tratava de um teatro e sim de uma sala, e o
pequeno público presente, que não excedeu a lotação, fez uma roda, encabeçada
por Guarnieri, seu filho Fernando e o elenco da “Coisa Boa” que lia o texto.
O único que reconheci foi David Leroy, velho conhecido dos teatros da vida, interpretando Otávio. Sentei-me e acompanhei a leitura com o prazer inenarrável de ter o mestre ali na minha frente, reagindo com as expressões, ora de surpresa, prazer, tristeza e revolta, como se ouvisse ali, pela primeira vez, o texto que escrevera 50 anos antes.
O único que reconheci foi David Leroy, velho conhecido dos teatros da vida, interpretando Otávio. Sentei-me e acompanhei a leitura com o prazer inenarrável de ter o mestre ali na minha frente, reagindo com as expressões, ora de surpresa, prazer, tristeza e revolta, como se ouvisse ali, pela primeira vez, o texto que escrevera 50 anos antes.
Quando se aproximava o momento do acerto de contas entre Tião e seu pai, o famoso diálogo em que Otávio se refere a ele próprio em terceira pessoa, alguém da companhia rodou o público distribuindo um texto. Era essa cena, e ficou estipulado que as falas seriam dadas por cada um dos presentes, pela ordem em que estavam sentados. A mim — nunca esqueci — coube dizer: “E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito mais! Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. Seu pai manda mais um recado. Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você”.
Guarnieri |
A idéia de fazer o público ler o texto é interessante, mas
não teve qualquer efeito dramático. Alguns espectadores mal conseguiam ler,
seja pela absoluta inexperiência, seja pelo nervosismo. Foi marcante porque lá
estava o grande Guarnieri, brindando-nos com sua luminosa presença,
infelizmente cada vez mais rara por conta de seus problemas de saúde.
O bate-papo começou morno. Perguntas genéricas sobre seu trabalho. Sentado em meu canto, lembrei-me de Zuza Homem de Melo na bancada do Roda-Viva que entrevistou Tom Jobim. Zuza fez uma declaração linda de admiração e carinho a Tom, falando sobre o privilégio de ser seu contemporâneo. Pedi a palavra. Não poderia reproduzir ipsis literis o que falei no momento, mas ressaltei o extraordinário mérito dele ter escrito a obra-prima que é o Black-Tie quando contava apenas 21 anos, e, inspirado em Zuza, disse a Guarnieri o quanto me sentia privilegiado e orgulhoso de viver na mesma época que ele. O público aplaudiu e estou vendo como se fosse hoje, dez anos depois, a expressão de desconserto de Guarnieri. O aceno de cabeça, em sinal de gratidão, com aquela humildade tão peculiar aos gênios.
O bate-papo começou morno. Perguntas genéricas sobre seu trabalho. Sentado em meu canto, lembrei-me de Zuza Homem de Melo na bancada do Roda-Viva que entrevistou Tom Jobim. Zuza fez uma declaração linda de admiração e carinho a Tom, falando sobre o privilégio de ser seu contemporâneo. Pedi a palavra. Não poderia reproduzir ipsis literis o que falei no momento, mas ressaltei o extraordinário mérito dele ter escrito a obra-prima que é o Black-Tie quando contava apenas 21 anos, e, inspirado em Zuza, disse a Guarnieri o quanto me sentia privilegiado e orgulhoso de viver na mesma época que ele. O público aplaudiu e estou vendo como se fosse hoje, dez anos depois, a expressão de desconserto de Guarnieri. O aceno de cabeça, em sinal de gratidão, com aquela humildade tão peculiar aos gênios.
Guarnieri, tendo à sua direita o filho Fernando e à esquerda a atriz Magali Biff |
Guarnieri e David Leroy |
Eu não via Guarnieri desde 1998, mais ou menos, e notei que
ele envelhecera bastante. Parecia um pouco cansado mas respondeu
todas as perguntas com perfeita lucidez e discorreu sobre os mais variados
temas, inclusive comunismo, Brecht, dialética e demais assuntos jogados sobre
ele a partir de então, pelo público compacto, mas altamente devotado a ele e a seu trabalho. Tempos
depois, David Leroy me contou que não fazia parte da companhia: “Nesse dia eu
fui apenas assistir porque vi na programação do SESC que o Guarnieri faria a
leitura do seu texto”. O mestre estava escalado para ler o papel de Otávio, que
já fizera na versão cinematográfica do Black-Tie,
mas uma conversa de última hora com David mudou o elenco: “Ele estava fazendo hemodiálise
e se sentiu sem condições físicas para fazer a leitura. Quando fui
cumprimentá-lo ele me pediu que lesse por ele. Foi uma honra! Ler de primeira
sem nenhum ensaio foi um risco para mim. Mas depois da leitura ele foi generoso
e me disse uma frase que não vou esquecer nunca: O personagem está pronto. Vindo isso do Guarnieri, foi lindo! Eu
ganhei o dia!”
Guarnieri e Magali Biff, idealizadora do "Dramáticos Paulistanos" |
Lágrimas de emoção ao abraçar o mestre |
Com minha fiel câmera, que me acompanhava fazia quinze anos
e já começava um processo irreversível de aposentadoria, fotografei a leitura e
a interação de Guarnieri, sempre solícito e gentil, com o público. Consegui
captar a emoção à flor da pele de uma menina que não segurou as lágrimas quando o abraçou. Tirei uma linda foto dele rindo e quando descobri a
Wikipedia, na mesma época, resolvi ilustrar o verbete dedicado a ele com
essa foto, deixando apenas o close de seu rosto. Os responsáveis pelo site
entraram em contato comigo para perguntar se a foto tinha copyright. “A foto é
minha, fui eu que tirei e autorizo reprodução” foi minha resposta. E qual não
foi minha surpresa quando a foto passou a ser usada para ilustrar todo tipo de
matéria sobre o autor. Divertindo-me horrores por ver minha foto por aí, me
senti o próprio Alberto Korda, cuja foto histórica de Che Guevara, tirada em
1960, viralizou depois de publicada inadvertidamente pela Paris Match em 67. Até
a Leica M2 usada por Korda era um modelo mais ou menos popular, como minha
velha Canon. Só que ao contrário da imagem triste e grave de Che, captada no
funeral de 136 pessoas mortas tragicamente na explosão criminosa de um navio
que carregava armas para Havana, a imagem de Guarnieri eterniza seu sorriso
franco e generoso. É um reflexo de sua bonomia e de seu prazer em estar com o
público.
Em dezembro essa foto completará dez anos. Mas este post é minha singela contribuição aos 80 anos que o amado e saudoso Guarnieri completaria no dia 6 de agosto deste ano.
Saudade.
Parabéns Bernardo, por esse texto super lindo. Pude sentir a emoção em seu texto, como se eu estivesse presente nesse projeto, imagina quem realmente estava né ?!
ResponderExcluirDeixo aqui um grande abraço para você Bernardo.
Lyu Somah
http://lyusomah.blogspot.com.br/