quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guarnieri no SESC do Carmo, ou "Meu dia de Alberto Korda"


Meus caros,
no fim de 2004 a Companhia Teatral "Coisa Boa", fundada pela atriz Magali Biff e pela diretora Dedé Pacheco, firmou uma parceria com o SESC do Carmo para a realização de um evento semanal chamado "Dramáticos Paulistanos". O projeto consistia na leitura de obras famosas ou inéditas de grandes dramaturgos ligados a São Paulo de uma forma ou de outra, sendo que em determinado momento o público era convidado a participar. Segundo Magali, "a proposta é que todos os presentes interessados, sem uma divisão de papéis, leiam um pedaço da obra". Terminada a leitura, havia um bate-papo descontraído com o autor, sobre o texto.

Nas segundas-feiras de novembro e dezembro de 2004 estiveram presentes naquela unidade do SESC autores como Otávio Frias Filho, Fernando Bonassi e Luís Alberto de Abreu. Na segunda-feira, 13 de dezembro, a Folha anunciou que Gianfrancesco Guarnieri encerraria o evento, com a leitura de Eles Não Usam Black-Tie. A apresentação seria às 19 horas, horário complicado em se tratando de um SESC que fica ao lado da Praça da Sé, em pleno horário do rush. Mas o que mais me preocupou foi a lotação: trinta vagas. Cheguei ao SESC pouco depois das sete e a leitura já havia começado. Verifiquei que não se tratava de um teatro e sim de uma sala, e o pequeno público presente, que não excedeu a lotação, fez uma roda, encabeçada por Guarnieri, seu filho Fernando e o elenco da “Coisa Boa” que lia o texto.

O único que reconheci foi David Leroy, velho conhecido dos teatros da vida, interpretando Otávio. Sentei-me e acompanhei a leitura com o prazer inenarrável de ter o mestre ali na minha frente, reagindo com as expressões, ora de surpresa, prazer, tristeza e revolta, como se ouvisse ali, pela primeira vez, o texto que escrevera 50 anos antes.


Quando se aproximava o momento do acerto de contas entre Tião e seu pai, o famoso diálogo em que Otávio se refere a ele próprio em terceira pessoa, alguém da companhia rodou o público distribuindo um texto. Era essa cena, e ficou estipulado que as falas seriam dadas por cada um dos presentes, pela ordem em que estavam sentados. A mim — nunca esqueci — coube dizer: “E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito mais! Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. Seu pai manda mais um recado. Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você”.

Guarnieri
A idéia de fazer o público ler o texto é interessante, mas não teve qualquer efeito dramático. Alguns espectadores mal conseguiam ler, seja pela absoluta inexperiência, seja pelo nervosismo. Foi marcante porque lá estava o grande Guarnieri, brindando-nos com sua luminosa presença, infelizmente cada vez mais rara por conta de seus problemas de saúde.

O bate-papo começou morno. Perguntas genéricas sobre seu trabalho. Sentado em meu canto, lembrei-me de Zuza Homem de Melo na bancada do Roda-Viva que entrevistou Tom Jobim. Zuza fez uma declaração linda de admiração e carinho a Tom, falando sobre o privilégio de ser seu contemporâneo. Pedi a palavra. Não poderia reproduzir ipsis literis o que falei no momento, mas ressaltei o extraordinário mérito dele ter escrito a obra-prima que é o Black-Tie quando contava apenas 21 anos, e, inspirado em Zuza, disse a Guarnieri o quanto me sentia privilegiado e orgulhoso de viver na mesma época que ele. O público aplaudiu e estou vendo como se fosse hoje, dez anos depois, a expressão de desconserto de Guarnieri. O aceno de cabeça, em sinal de gratidão, com aquela humildade tão peculiar aos gênios.

Guarnieri, tendo à sua direita o filho Fernando e à esquerda a atriz Magali Biff

Guarnieri e David Leroy
Eu não via Guarnieri desde 1998, mais ou menos, e notei que ele envelhecera bastante. Parecia um pouco cansado mas respondeu todas as perguntas com perfeita lucidez e discorreu sobre os mais variados temas, inclusive comunismo, Brecht, dialética e demais assuntos jogados sobre ele a partir de então, pelo público compacto, mas altamente devotado a ele e a seu trabalho. Tempos depois, David Leroy me contou que não fazia parte da companhia: “Nesse dia eu fui apenas assistir porque vi na programação do SESC que o Guarnieri faria a leitura do seu texto”. O mestre estava escalado para ler o papel de Otávio, que já fizera na versão cinematográfica do Black-Tie, mas uma conversa de última hora com David mudou o elenco: “Ele estava fazendo hemodiálise e se sentiu sem condições físicas para fazer a leitura. Quando fui cumprimentá-lo ele me pediu que lesse por ele. Foi uma honra! Ler de primeira sem nenhum ensaio foi um risco para mim. Mas depois da leitura ele foi generoso e me disse uma frase que não vou esquecer nunca: O personagem está pronto. Vindo isso do Guarnieri, foi lindo! Eu ganhei o dia!”

Guarnieri e Magali Biff, idealizadora do "Dramáticos Paulistanos"

Lágrimas de emoção
ao abraçar o mestre
Com minha fiel câmera, que me acompanhava fazia quinze anos e já começava um processo irreversível de aposentadoria, fotografei a leitura e a interação de Guarnieri, sempre solícito e gentil, com o público. Consegui captar a emoção à flor da pele de uma menina que não segurou as lágrimas quando o abraçou. Tirei uma linda foto dele rindo e quando descobri a Wikipedia, na mesma época, resolvi ilustrar o verbete dedicado a ele com essa foto, deixando apenas o close de seu rosto. Os responsáveis pelo site entraram em contato comigo para perguntar se a foto tinha copyright. “A foto é minha, fui eu que tirei e autorizo reprodução” foi minha resposta. E qual não foi minha surpresa quando a foto passou a ser usada para ilustrar todo tipo de matéria sobre o autor. Divertindo-me horrores por ver minha foto por aí, me senti o próprio Alberto Korda, cuja foto histórica de Che Guevara, tirada em 1960, viralizou depois de publicada inadvertidamente pela Paris Match em 67. Até a Leica M2 usada por Korda era um modelo mais ou menos popular, como minha velha Canon. Só que ao contrário da imagem triste e grave de Che, captada no funeral de 136 pessoas mortas tragicamente na explosão criminosa de um navio que carregava armas para Havana, a imagem de Guarnieri eterniza seu sorriso franco e generoso. É um reflexo de sua bonomia e de seu prazer em estar com o público.


Em dezembro essa foto completará dez anos. Mas este post é minha singela contribuição aos 80 anos que o amado e saudoso Guarnieri completaria no dia 6 de agosto deste ano.

Saudade.

Um comentário:

  1. Parabéns Bernardo, por esse texto super lindo. Pude sentir a emoção em seu texto, como se eu estivesse presente nesse projeto, imagina quem realmente estava né ?!

    Deixo aqui um grande abraço para você Bernardo.

    Lyu Somah
    http://lyusomah.blogspot.com.br/

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