terça-feira, 6 de setembro de 2011

Breakfast at Tiffany's, de Truman Capote, com Anna Friel

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Eu quero longevidade. Ainda quero estar trabalhando quando eu tiver 70 anos. Então estou ansiosa para fazer várias coisas. Quanto mais velho, mais interessante você fica.
Anna Friel (2009)

Concluídas as filmagens de The Street e Land of the Lost, agendados para estrear em meados de 2009, Anna Friel recebeu uma proposta irrecusável: voltar ao West End londrino protagonizando uma adaptação teatral do conto Breakfast at Tiffany’s, do escritor norte-americano Truman Capote (1924/1984). A pré-produção começou em maio, a partir do convite feito pelo diretor galês Sean Mathias, que na época exercia o cargo de Diretor Artístico do Theatre Royal Haymarket e gozava o êxito de Esperando Godot, de Samuel Beckett, dirigido por ele e estrelado por Ian Mackellen e Patrick Stewart. Outras de suas direções incluíam remontagens de Bent, de Martin Sherman, Design for Living de Noel Coward e Les Parents Terribles de Jean Cocteau. Mathias convidou Anna, que aceitou imediatamente, e o australiano Samuel Adamson — responsável por transformar o filme Tudo sobre minha Mãe, de Pedro Almodóvar, em grande sucesso do Old Vic em 2007 — para adaptar o texto de Capote.

O Livro de Truman Capote

Breakfast at Tiffany’s conta a história de Holly Golightly, uma alpinista social de 19 anos que freqüenta diversas rodas de grã-finos e vive no limiar da prostituição. Tem uma vida fútil, está sempre em festas, em seu apartamento ou nas casas noturnas mais badaladas de Nova York, e se sustenta com as polpudas gorjetas que recebe cada vez que vai ao toalete (na época era praxe pagar alguma coisa aos funcionários dos banheiros de lugares elegantes, que seguravam toalhas, borrifavam perfumes, etc., e Holly simplesmente ficava com o dinheiro). Na concepção do próprio Truman, “Holly Golightly não era precisamente uma prostituta. Ela não tinha emprego, mas acompanhava homens aos melhores restaurantes e casas noturnas, com o acordo de que seu acompanhante estava obrigado a dar a ela algum tipo de presente, talvez jóias ou um cheque... Se ela quisesse poderia passar a noite com seu acompanhante. Então estas garotas são as autênticas gueixas americanas, e são muito mais prevalentes agora do que em 1943 ou 1944, que era a época de Holly”.

Truman Capote

É narrada em primeira pessoa pelo vizinho de Holly, um aspirante a escritor que não tem nome, mas que se torna amigo da moça e passa a ser chamado de “Fred” por ela, que o identifica com o seu irmão, que tem esse nome. O título faz referência à adoração da moça pela joalheria Tiffany’s de Nova York, não tanto pela paixão de Holly por jóias — o que ela não tem — mas pelo sonho de ser rica o suficiente para “wake up one fine morning and have breakfast at Tiffany’s”. Com o desenrolar da trama descobre-se que Holly não é apenas uma apaixonante dublê de socialite e gueixa nova-iorquina, amada e desejada por todos mas incapaz de se apegar a quem quer que seja. Ela tem um passado doloroso, vem de uma cidadezinha de caipiras no Texas, seus pais morreram tuberculosos e tanto ela quanto os irmãos, todos ainda crianças, foram distribuídos entre famílias que só fizeram maltratá-los. Holly — ou “Lulamae”, seu verdadeiro nome — e o irmão Fred fogem e em uma casa onde roubavam “leite e ovos de peru” acabam pêgos, mas ao invés de serem punidos são adotados pelo dono da casa, que há pouco perdera a esposa e ficara sozinho com os quatro filhos. O sujeito, Doc Golightly, se apaixona por Lulamae, de apenas 14 anos, e se casa com ela, desgraçadamente um costume dos mais comuns nesse ignorantíssimo interior do sul norte-americano.

Inteligente e esperta, embora endurecida e insensibilizada pelas desgraças de sua vida, Lulamae foge da casa que dividiu com Doc durante um ano e enquanto Fred vai para o exército (a trama se passa em plena guerra, no início dos anos 40), ela vai para a Califórnia, onde, com apenas 15 anos, freqüenta corridas de cavalos e namora um jockey. Lá é descoberta por um agente cinematográfico, O. J. Berman, que vê beleza e potencial na moça, consegue um teste para ela num filme de Cecil B. Demille (The Story of Dr. Wassel, num pequeno equívoco de Truman Capote, pois esses eventos remontariam a 40 ou 41, no livro, e o filme de Demille é de 1944), mas na hora H ela simplesmente desaparece e vai para Nova York.

Um dos inúmeros admiradores de Holly é o mafioso Salvatore “Sally” Tomato, que a observava nas festas mas que só resolve contatá-la e se apresentar quando já está na cadeia. Por intermédio de um capanga que se diz “advogado” de Sally, o mafioso propõe a Holly que lhe faça uma visita semanal, pela qual ganhará sempre 100 dólares e na qual não precisará fazer nada a não ser ouvir a “previsão do tempo” que lhe é ditada por Sally — na verdade instruções cifradas para continuar movimentando seu cartel de drogas do lado de fora — e transmiti-la, ipsis literis, ao “advogado”, de nome O’Shaughnessy. Holly, pensando nos cobres e na afeição que até certo ponto desenvolve pelo velho Sally, aceita a incumbência e passa a visitá-lo, na qualidade de sobrinha do mafioso, sem dar maior importância à possibilidade de estar sendo usada como mula de informações criminosas ou estar incidindo no crime de falsidade ideológica.

A Tiffany's de Nova York, nos dias de hoje
O escritor, como era de se esperar, aos poucos se apaixona por Holly, pela sua personalidade encantadora, sua índole inconseqüente e sua intangibilidade. O contraste entre a persona festeira e boêmia, a doçura contemplativa com que ela toca violão e canta melodias de seu passado, sentada na escada de incêndio do prédio enquanto espera seu cabelo secar depois do banho, e a forma descompromissada de encarar a vida, tudo contribui para atrair o escritor e tornar Holly, de fato, uma das mais maravilhosas personagens da literatura contemporânea. Só que é justamente esse contraste que acaba azedando a vida do escritor, ao mesmo tempo em que sua paixão pela moça aumenta. A graça e o encanto vão dando lugar ao ciúme e à amargura quando ele verifica que Holly pretende se casar com um playboy milionário homossexual, gordo e asqueroso chamado Rusty Trawler. Assim que esse plano naufraga (Rusty acaba casando-se com Mag Wildwood, modelo de passarela, também escorte e amiga de Holly), ela concentra sua atenção em um ex-flerte de Mag, o brasileiro José Ybarra-Jaegar. Não cabe aqui esmiuçar o ridículo do namorado brasileiro de Holly se chamar “José Ybarra”, nome hispânico de um ex-presidente do Equador, ou entrar em detalhes sobre a tenebrosa ignorância de Truman Capote a respeito do país de onde vinha o tal José (ignorância que, verdade seja dita, o escritor compartilhava com 99% dos norte-americanos). Basta dizer que em determinado momento, Holly pega o violão e, desfiando seu frondoso conhecimento sobre o Brasil, diz que vai cantar uma fada no mais perfeito português...

Os acontecimentos se precipitam; Doc Golightly, que longe de ser um caipira pedófilo é um homem simplório, calmo e de bom coração, vai atrás de Holly em Nova York, mas depois de um breve encontro ela o convence que as coisas mudaram, ela não é mais a Lulamae de 14 anos que ele conheceu e que o melhor é que os dois sigam suas vidas. Ele vai embora, pouco depois Holly tem um colapso nervoso ao receber telegrama comunicando que Fred, o irmão que ela venerava, foi morto em combate, e ela descobre que está grávida de José. Planos são finalizados para que eles viajem juntos ao Brasil e no dia anterior à partida ela vai cavalgar com o escritor. Sem qualquer experiência com equitação, ao contrário de Holly, montadora exímia, o escritor sofre um acidente e ela o leva para o apartamento dele, onde cuida de seus ferimentos. No momento em que o escritor estava em sua banheira, a polícia invade a casa e leva Holly. A princípio o escritor tem a impressão de que a vizinha Saphia Spanella, que vivia queixando-se do comportamento de Holly e já tentara inclusive despejá-la com um abaixo-assinado, conseguira finalmente convencer as autoridades da periculosidade das “festas imorais” da moça. Na verdade o problema era bem pior: o esquema de Sally Tomato para dirigir seus negócios de dentro do presídio de Sing Sing fora descoberto e Holly estava sendo presa como cúmplice. Seus planos caem como um castelo de cartas; ela perde o filho naquela noite e José, temeroso de que o escândalo pudesse prejudicar sua carreira política no Brasil, rompe relações com ela através de uma carinhosa carta que o escritor lê para a moça no leito do hospital onde ela ainda se recuperava do aborto.

A 1ª edição de Breakfast at Tiffany's
Holly não se deixa desesperar. Ainda de posse da passagem aérea para o Brasil que lhe foi dada por José, ela pede ao escritor que descubra o nome dos 50 brasileiros mais ricos, e que dê um jeito de providenciar a mudança de seus principais pertences, do apartamento dela para um lugar menos conspícuo, o bar de Joe Bell (ponto de encontro obrigatório, por todo o livro), de onde ela seguirá para o aeroporto. Relutante, pelo perigo dela tentar se evadir do país quando se encontra em liberdade sob fiança, o escritor faz o que ela pede, levando a pé, debaixo de chuva torrencial, algumas roupas e o violão de Holly. A coisa talvez mais importante que o escritor leva consigo até o bar de Joe Bell é o gato de Holly, personagem inesperadamente marcante, referido simplesmente como “gato” ao longo da história, já que, segundo Holly, ela não teria o direito de dar-lhe um nome se não tivesse certeza absoluta de que pertencem um ao outro. Ele acaba simbolizando, a um tempo, o desapego quase esquizofrênico da moça com qualquer coisa e a falsidade desse desapego, que na verdade nada mais seria do que uma carapaça natural de insensibilidade para proteger uma menina profundamente sensível, mas apavorada com a possibilidade de se apegar a algo ou alguém e ser novamente decepcionada ou ferida, como deve ter acontecido incontáveis vezes em sua infância.

No caminho até o aeroporto ela expulsa o gato do carro em uma rua qualquer, dizendo-lhe que aquele será o lugar perfeito para ele, “rats galore, plenty of cat-bums to gang around with”. Seguem por algumas quadras e ela se arrepende do que fez; sai do carro, corre até a rua onde o deixou, grita por ele mas não o encontra mais. Exclama: “Oh Jesus God. We did belong to each other. He was mine”. De volta ao carro, conformada, ela confessa estar com medo: “Not knowing what’s yours until you’ve thrown it away”... e vai embora. O livro termina com o postal que o escritor recebe de Holly meses depois — primeira e última vez que ela se comunicou com ele depois de partir — e a informação dada por ele, de que voltou à rua onde Holly deixara o gato e o encontrara bem instalado em uma das casas. O escritor afirma estar seguro de que “he’d arrived somewhere he belonged”, e termina, com melancólica esperança: “I hope Holly has, too”.

George Axelrod
Como o histórico de adaptações de Breakfast at Tiffany’s é dos mais acidentados, a expectativa de crítica e público foi enorme assim que se anunciou a futura montagem do Haymarket. Vejamos:

Capote lançou Breakfast em 1958, o sucesso foi instantâneo e dois anos depois Hollywood comprou de Truman os direitos para a produção do filme. Segundo se conta por aí, o primeiro diretor envolvido com o projeto foi John Frankenheimer, que teria como roteirista George Axelrod e Marilyn Monroe no papel de Holly (escolha que trazia não apenas o beneplácito mas a preferência pessoal de Capote). Uma combinação excelente: Axelrod era o autor de The Seven Year Itch, sucesso na Broadway em 1952 e três anos depois um dos melhores filmes de Marilyn, roteirizado por ele mesmo e dirigido por Billy Wilder. Não bastasse isso, ele também roteirizou o triunfo seguinte da atriz, Bus Stop, do texto original de William Inge.

Marilyn

Marilyn Monroe

No mais, Marilyn era amiga de Capote e parecia haver em Holly traços inequívocos da própria atriz, como a infância infeliz, sua entrada no cinema e no high society e sobretudo no trecho em que Capote descreve Holly inteiramente deslocada na biblioteca pública de Nova York, procurando informações sobre o Brasil, já que está de caso com José: “She sped from one book to the next, intermittently lingering on a page, always with a frown, as if it were printed upside down. She had a pencil poised above paper — nothing seemed to catch her fancy, still now and then, as though for the hell of it, she made laborious scribblings”, em imagem que nos remete aos recém-nascidos interesses literários de Marilyn, que mergulhou nos livros quando se casou com Arthur Miller, em 1956, e foi obrigada a sair de sua roda social de banalidades hollywoodianas para o seleto e exclusivo círculo de intelectuais que rodeava Miller. A mudança de comportamento da atriz evidentemente foi visível e teve um preço. Como Capote analisa, pouco depois no mesmo trecho, Holly não poderia nunca mudar, porque desenvolvera sua personalidade muito cedo. Qualquer alteração na imagem já conhecida, “like sudden riches, leads to a lack of proportion”.

Marilyn e Truman
Marilyn pretendia aceitar o papel, mas na época se encontrava imersa na papagaiada do Actor’s Studio e inteiramente subjugada, intelectual e artisticamente, ao fundador da escola e guru do method acting, Lee Strasberg e sua filha Paula. Lee enfiou na cabeça de Marilyn que interpretar a socialite vazia e amoral poderia prejudicar sua carreira e ela acabou declinando o convite (curioso que Strasberg não moveu uma palha para impedi-la de filmar o péssimo Let’s make love, de George Cukor, que hoje só é lembrado pelo rumoroso affair de Marilyn com Yves Montand, o que seguramente não fez bem nenhum para suas pretensões de atriz séria), uma oportunidade magnífica que não mais se repetiria na vida da lendária estrela, que morreu em 1962. Para piorar, Frankenheimer caiu fora em seguida. Blake Edwards o substituiu, Axelrod foi mantido e depois de alguns testes, Audrey Hepburn ganhou o papel principal. A escolha do ator para interpretar o escritor também não foi sem percalços. Aparentemente os produtores queriam Steve Macqueen, mas o ator se encontrava sob contrato com a CBS gravando a série televisiva Wanted: Dead por Alive, e não teve como se livrar. O papel foi para o novato George Peppard. Ironicamente, tanto Macquen quanto Peppard também eram crias de Lee Strasberg e do Actor’s Studio, e nem por isso tiveram quaisquer reservas de ordem artística e criativa em relação ao filme.

Marilyn e Lee Strasberg
Desde o início da produção, ficou mais ou menos óbvio que o filme não seria fiel ao conto. Em primeiro lugar, por mais competente que fosse, George Axelrod dificilmente conseguiria transpor para um roteiro produzido no fim do governo conservador e moralista de Dwight Eisenhower — com o fantasma de Joseph Macarthy e do Código Hays ainda assombrando a indústria cinematográfica — a atmosfera sexualmente revolucionária e amplamente liberal de Holly Golightly e de praticamente todos os personagens de Breakfast at Tiffany’s. Na essência, o conto é o famoso paradoxo entre o estilo de vida vibrante e glamouroso de Holly em contraponto à sua infância miserável e trágica, as cicatrizes emocionais decorrentes dessa infância, o conseqüente vazio sentimental e a busca incessante por um amor verdadeiro que preencha esse vazio. Poderia ser apenas a história de amor entre um escritor bitolado e romântico e uma moça exuberante e interesseira, mas o diferencial de Truman Capote é rechear e decorar esse mote com todos os vícios, fraquezas e indiscrições de uma alta sociedade da qual Holly (assim como o próprio Truman) deseja tanto se servir quanto fazer parte.

Influências

Christopher Isherwood
Muito se fala sobre quem teria sido a musa de Capote para compor a protagonista de Breakfast at Tiffany’s; a espinha dorsal parece vir da personagem Sally Bowles, protagonista do romance que leva seu nome, lançado por Christopher Isherwood em 1937 (inspirado na atriz inglesa Jean Ross, e que mais tarde se tornaria base do musical Cabaret, com música e letra de John Kander e Fred Ebb), e há também as inspirações colhidas no círculo pessoal de relações do próprio Truman, como Oona O’Neill (filha de Eugene O’Neill e última esposa de Chaplin) e Gloria Vanderbilt (socialite e herdeira de uma das maiores fortunas dos Estados Unidos). A musa, entretanto, declarada por ela própria e pelo autor, foi a starlet Carol Grace Saroyan (1924/2003), então esposa do escritor William Saroyan — citado jocosamente por Holly, no livro — e mais tarde casada com o ator Walter Matthau. É inútil, porém, querer cavoucar a vida de Grace em busca de semelhanças entre ela e Golightly; talvez no humor, nos maneirismos, na forma extrovertida e desabrida de se comunicar e relacionar com a alta sociedade e em demais traços externos, Truman tenha se baseado em Carol. Mas em se tratando de comportamento, opiniões, máximas e julgamentos, é o próprio autor que fala pela boca de Holly Golightly.

Carol Grace
É nisso, aliás, que começam os problemas de roteirização do filme: como colocar, na boca delicada e classuda de Audrey Hepburn em 1961 (ano de lançamento do filme), os conceitos de Truman sobre o lesbianismo, quando Holly diz “of course I like dykes themselves”, “dykes are wonderful home-makers, they love to do all the work (...). I had a roomate in Hollywood, (...) she was better than a man round the house. Of course people couldn’t help but think I must be a bit of a dyke myself. And of course I am. Everyone is a bit. So what?” Como alcançar a proeza de fazer o público norte-americano se afeiçoar à Audrey Hepburn dizendo que fumou maconha, que assistiu um “blue movie” (como na época eram chamados os filmes pornográficos), na companhia do próprio sujeito que trabalhava no filme, ou que não conseguia ficar excitada com um homem que tivesse menos do que 42 anos? O que diria o público ao ver a diáfana Audrey declarando que, aos 19 anos, já teve onze amantes, e perguntando se isso faz dela uma puta? Fazendo a ressalva de que “I haven’t anything against whores”. E o que diria a temida Legião da Decência diante do trocadilho de Holly sobre suas amigas terem contraído gonorréia tantas vezes que chegava a ser digno de aplauso (“They’ve had the old clap-yo’-hands so many times it amounts to aplause”)?

Truman Capote
E isso sem mencionar a avalanche de referências homossexuais que Truman — o que se poderia chamar de um “flaming homosexual” — não economizou ao longo do livro, desde Holly afirmando que “a person ought to be able to marry men or women”, passando pela recomendação que ela faz a Rusty Trawler, “to grow up and face the issue, settle down and play house with a nice fatherly truck driver”, até a insinuação (desnecessária e bizarra) de que o próprio escritor teria certa vez se apaixonado por um carteiro. Produtores, diretor e roteirista chegaram a um consenso que livraria o filme da censura (e jogaria no lixo o conselho cretino de Lee Strasberg, muito mais uma ameaça do que um conselho, razão pela qual calou tão fundo no coração da suscetível e manipulável Marilyn): Tudo seria cortado. O roteiro de George Axelrod seria “loosely based” no livro de Capote e qualquer diferença poderia ser debitada à essa condição. Tornou-se, como bem observaria o Telegraph anos depois, “a travesty of the original”.

O filme de Blake Edwards, com Audrey Hepburn

Audrey Hepburn como Holly Golightly
Audrey Hepburn é uma Holly morena de cabelos compridos e olhos escuros, ao contrário da Holly de Capote, de cabelos loiros e curtos e olhos que oscilam entre o azul e o prata. Hepburn sempre foi a própria definição da gamine que caracteriza a personagem mas neste caso a qualidade não se encaixa e não funciona a seu favor. Ao invés do “tomboyish charm” de Holly — e malgrado o esforço e o talento da atriz — Hepburn transpira e emana classe e elegância. É impossível imaginá-la descalça, imunda, roubando ovos em um sítio em Tulip, nos confins do Texas, como também não se concebe a belga Audrey, com sua voz meiga e seu inglês doce e britânico, falando o detestável caipirês do sul dos Estados Unidos. Quando, em que mundo, um flamingo como Audrey, de beleza escultural e aristocrática, andaria por escadas de incêndio completamente nua cobrindo o corpo com um casaco de peles, ou seria desbocada e permissiva como Holly? A gamine de Truman é um produto de sua metamorfose, de criança abusada e mendiga até a socialite amoral, nova rica e sempre deslocada, assim como ocorre, mutatis mutandi, com a Eliza Dollittle de My Fair Lady (outro papel dado equivocadamente a Audrey Hepburn). O resultado é que a Holly de Audrey é doce, sensível e bondosa, exatamente o contrário da Holly de Truman, que é dura, insensível mas cativa e atrai por ser de todos e não ser, efetivamente, de ninguém.

Um erro fundamental do filme é mostrar Holly como alguém que se apaixona pelo escritor, o seduz, passa a noite com ele e depois some, sendo mais tarde obrigada a desiludi-lo com rispidez, o que lhe causa lágrimas e uma profunda crise de consciência. Nada mais distante da realidade. Em nenhum momento do livro Holly dá qualquer sinal de ter atração pelo escritor, ou corresponder seus sentimentos, e muito menos de ter um caso com ele. Da mesma forma, a índole interesseira e gananciosa de Holly não vê sentimentos, e mal tendo demonstrado um mínimo de consideração pelo escritor, é evidente que jamais verteria uma lágrima por ele.

George Peppard e Audrey Hepburn
A ausência dos innuendos homossexuais e libertinos dos personagens do livro é compensada jogando-se sobre o escritor (George Peppard) — que no filme chama-se Paul Varjak — a pecha de mixê, pelo fato dele ser sustentado em Nova York por uma mulher mais velha e casada, a Sra. Failenson (Patrícia Neal), até o meio do filme, quando se apaixona por Holly e rompe com a madame. Ambos estão muito bem. Doc Golightly é brilhantemente retratado por Buddy Ebsen, por cujos olhos azuis e expressivos passa toda sua paixão outonal devotada à jovem que ele sabe ter perdido. Martim Balsam dá uma caracterização equivocada de bon vivant indiferente e apalermado a um O. J. Berman que, a meu ver, é na verdade apenas um bronco e bem-intencionado agente de segunda. Deus é testemunha de que Blake Edwards e George Axelrod fizeram uma tentativa honesta de corrigir as abobrinhas de Truman Capote sobre o Brasil, mas infelizmente só o que conseguiram foi mudar o nome do sujeito, do inqualificável “José Ybarra-Jaegar” para José de Silva Pereira; o ator chamado foi o espanhol José Luis de Vilallonga, que tem perfil de italiano e fala com um inexplicável sotaque francês.

No mais, personagens queridos e divertidos como Joe Bell e Saphia Spanella são impiedosamente cortados; outros como Rusty Trawler (Stanley Adams) e Mag Wildwood (Dorothy Whitney) são relegados quase que à figuração, Sally Tomato (Alan Reed), que no livro é apenas referido, tem uma única e esquecível cena, e personagens inexistentes no conto de Capote são criados sem qualquer necessidade, como é o caso do vendedor da Tiffany’s e a funcionária da biblioteca. Por outro lado, algumas das falas e reclamações da Sra. Spanella são fundidas ao personagem do Sr. Yunioshi, coadjuvância de luxo para o então famosíssimo Mickey Rooney.

O fim do filme é um golpe final no livro; ao invés de expulsar o gato, ter a epifania da inevitabilidade de pertencer a alguém e a fuga melancólica para o Brasil, a Holly de Audrey Hepburn e George Axelrod expulsa o gato, leva uma carraspana do escritor, vai atrás dos dois, encontra o gato e o filme termina com o beijo de Holly e o escritor, sinalizando que ela resolveu ficar e casar-se com ele. Ou seja, um final plenamente hollywoodiano, oposto ao livro. O saldo positivo foi a beleza antológica e eterna de Audrey Hepburn — não importando que ela nada tivesse a ver com Holly — e a magnífica Moon River, composta por Henry Mancini e Johnny Mercer especialmente para Audrey cantar ao violão. No Oscar de 1962 o filme recebeu cinco indicações: melhor atriz (Audrey), roteiro (Axelrod), direção de arte (Hal Pereira, Roland Anderson e cenários de Sam Comer e Ray Moyer), música (Mancini e Mercer por Moon River) e trilha sonora (Mancini, pela orquestração de Moon River). Ganhou os dois últimos.

O jovem Norman Mailer

Há duas análises que podem ser feitas sobre o filme de Blake Edwards: aqueles que não leram o livro de Capote foram brindados com uma comédia romântica leve e meio piegas, no estilo dos filmes estrelados por Tom Hanks e Meg Ryan (com a inenarrável vantagem de trazer Audrey e não Meg). Quem leu o livro pode até ter gostado de ver Audrey Hepburn espalhando sua beleza e carisma ao som de Moon River, mas fica uma sensação incômoda de que a adaptação está a anos-luz do conto original e não fez jus à prosa de Truman, a quem Norman Mailer considerava “o mais perfeito escritor da minha geração”.

Truman Capote
Se o público em geral gostou do filme — que no Brasil recebeu o título de “Bonequinha de Luxo” — e ajudou a torná-lo o clássico que é hoje, o mesmo não se pode dizer de Truman, que desde antes da estréia até sua morte não perdeu vaza para criticá-lo acerbamente e expressar sua absoluta insatisfação com o produto final. Segundo o autor, “eu tinha várias ofertas para aquele livro, de praticamente todo mundo e eu o vendi para um grupo da Paramount, porque eles me fizeram promessas, fizeram uma lista com todas elas e não cumpriram nem uma, sequer”. Sobre o elenco e a atmosfera do filme o comentário é ainda mais ácido: “É o filme com o elenco mais mal-escalado que eu já vi. O livro realmente era bastante amargo, e Holly era real; uma personagem durona, nem de longe o tipo de Audrey Hepburn. O filme virou uma declaração melosa de amor à Nova York e à Holly, e como resultado, ficou magro e bonitinho quando deveria ter ficado substancioso e feio. Tinha tanta semelhança com o meu trabalho quanto as Roquettes [dançarinas do Radio City Music Hall] têm com [Galina] Ulanova”.

O Musical da Broadway, com Mary Tyler Moore

 Capote continuaria ganhando milhões em royalties pelas adaptações de sua obra, o que não significa que elas seriam melhores ou mais fiéis que a de George Axelrod. Em 1966, o excêntrico e competentíssimo produtor teatral David Merrick fechou uma parceria com o escritor Abe Burrows — libretista dos mega-sucessos Guys and Dolls e How to succeed in business without really trying — para transformar Breakfast at Tiffany’s em um musical da Broadway. A equipe envolvida parecia ser propositalmente à prova de fracassos: Burrows seria o libretista e o diretor; no papel de Holly, Mary Tyler Moore, no auge de seu sucesso televisivo no programa de Dick Van Dyke; músicas e letras seriam compostas por Bob Merril, ainda colhendo os louros da fama pelo sucesso que emplacara com Barbra Streisend em Funny Girl; na coreografia o grande Michael Kidd, ganhador de dezenas de Tonys, e o escritor seria feito por Richard Chamberlain, que assim como Mary, era figura das mais queridas dos Estados Unidos, pelo seu papel protagonista na série de TV Dr. Kildare.

Mary Tyler Moore e Richard Chamberlain
Não seria exagero dizer que na junção de pessoas tão competentes, trabalhando matéria-prima da melhor qualidade, absolutamente tudo deu errado. O espetáculo, que tinha quase quatro horas de duração, começou suas pré-estréias no segundo semestre de 66. A repercussão foi desastrosa. Ninguém gostou da música, do libreto, dos cenários, e o público ficou particularmente chocado ao ver a então namoradinha da América interpretando uma prostituta. Apavorado com a perspectiva de um flop milionário, Merrick dispensou Abe Burrows. Para substituí-lo na direção do musical chamou o experiente Joseph Anthony, e para reescrever o libreto de Burrows — que continha anacronismos patéticos como o fato de Holly ser uma prostituta virgem — entrou em cena ninguém menos do que o afamado dramaturgo Edward Albee. Não adiantou. O libreto foi reescrito, músicas foram trocadas, o elenco recebia alterações de manhã para incorporá-las à performance da noite, e a reação continuava sendo de total reprovação por parte do público, que, segundo Richard Chamberlain, por vezes chegou a xingar o elenco em cena.

Edward Albee
Depois de passar por Filadélfia e Boston, o espetáculo chegou a Nova York para uma mini-temporada de pré-estréias em dezembro daquele ano. Depois de apenas quatro apresentações, David Merrick cancelou a produção, antes mesmo da estréia. E, somando à fama que sempre teve (e que ele mesmo alimentava), de ser um produtor excêntrico e não muito equilibrado, fez publicar uma matéria paga no New York Times declarando, com terrível sinceridade, que “ao invés de submeter os críticos de teatro e o público a uma noite excruciantemente chata, decidi encerrar o espetáculo”. Embora indiscreta e desleal com seus próprios colegas, a matéria paga de Merrick era a expressão da verdade. Recentemente, perguntado sobre essa infeliz experiência, Edward Albee disse o seguinte: “Eles o fizeram totalmente previsível, pseudo-intelectual, medíocre e, no meu ponto de vista, um musical extremamente chato, que teria ficado provavelmente um ano em cartaz na Broadway. E eu consegui transformá-lo em um desastre que não chegou nem a estrear na Broadway”. Sobre aquilo que aprendeu com a malfadada montagem, a resposta foi peremptória: “Medo e ódio”.

O fracasso estrepitoso do musical não foi suficiente para desestimular a rede de televisão ABC, que em 1969 chegou a gravar o piloto de um futuro sitcom intitulado Holly Golightly, que mostraria Holly mudando-se para um novo apartamento onde viveria vida tão glamourosa quanto no livro, e seria baseado na relação de Holly com Joe Bell. No papel de Holly estaria a linda e jovem Stefanie Powers e o ator canadense Jack Kruschen interpretaria Bell. O piloto acabou engavetado para sempre.

A Montagem de Anna Friel e Sean Mathias



As primeiras fotos promocionais de Anna
como Holly, ainda em maio

Diante de tudo isso, era natural que tanto Anna quanto Mathias deixassem claro para a imprensa, no período de ensaios que antecedeu as pré-estréias, que a adaptação de Samuel Adamson viria do conto de Capote e nada teria a ver com o filme. Mathias foi taxativo: “Precisamos refazer no palco algo que teve tanto sucesso no cinema? Meu primeiro instinto foi ‘não, não precisamos!’ Por melhor que tenha sido o filme, porém, há muitos elementos do romance que são diferentes”. Dito isso, era hora da propaganda: “Tenho sido um ávido fã de Capote e espero que minha produção de seu deslumbrante conto Breakfast at Tiffany’s seja uma noite despudorada e glamourosa de inteligência, estilo, ternura e música, com a dinâmica de Nova York dos anos 40 como pano de fundo. E estou  maravilhado de trabalhar com a linda e talentosa Anna Friel em seu retorno aos palcos londrinos”.

Anna foi igualmente cuidadosa, repisando o que já dissera Mathias sobre a admiração de todos pelo livro que, segundo ela, “foi sempre um dos meus romances favoritos”. Sobre o prazer de interpretar Holly, o curioso é que Anna não se refere a ela como uma personagem trágica, sofrida ou controversa; primeiramente definindo-a de maneira hilária como uma bad little good little girl (qualquer coisa como "menininha malvadinha boazinha") a atriz prefere ressaltar as qualidades da socialite — “ela é a mulher mais valente e corajosa que já vi escrita” — e pensar nela como uma “heroína”, parafraseando-a: “Holly é a heroína de todas as mulheres. Ela nunca tem pena de si mesma. Ela simplesmente diz, ‘uh, se você tem merde no seu sapato, é só limpá-lo’. Ela sabe exatamente o que quer e, o mais importante, sempre consegue tirar o melhor dos homens”. Lembrando, como sempre, que “a inspiração para a peça é o livro original, e não o filme”, ela acrescenta: “Creio que esta Holly será uma personagem muito mais dura e complexa do que a da versão cinematográfica. Ela é uma escorte que recebe 50 dólares por sua companhia. É o público que deverá imaginar até onde ela vai com esse dinheiro”. Anna teve medo da sombra de sua lendária antecessora: “Uma das coisas assustadoras para mim, no começo, foi pensar ‘meu Deus! As pessoas vão pensar que estão vindo assistir uma imitação de Audrey Hepburn’, e isso não vai acontecer”. Seus comentários sobre Hepburn vêm repassados em humildade e admiração: “Ninguém poderia fazê-la [Holly] como Hepburn. Ela interpretou aquele papel à perfeição. Ninguém pode copiar aquilo e eu jamais sequer pensaria em fazer tal coisa”. Anna conclui: “Ela era uma líder mundial em moda e beleza. Eu ficaria parecendo uma cópia mal-feita”.

Parte do elenco de Breakfast, em sentido horário: James Bradshaw (Rusty Trawler), Gwendoline Christie (Mag Wildwood),
Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), o adaptador Samuel Adamson, David Phelan (Sid Arbuck) e Nicholas Goh (Mr. Yunioshi)

Esgotado esse tópico e fazendo questão de não assistir novamente o filme para não se deixar influenciar por Audrey, Anna atirou-se nos ensaios, que incluíam não só o mergulho na profundeza psicológica de Holly, mas aulas de canto, violão, números de dança e toda a imensa estrutura de um espetáculo centralizado nela, e na qual está presente em 99,9% das cenas. Fiel ao livro, o diretor decidiu que Holly seria loira e alternaria o cabelo comprido do começo com o curto e discreto da segunda metade da peça, quando se junta com o brasileiro. Mas tudo seria feito através de perucas, para não prejudicar os compromissos cinematográficos de Anna, até porque muitos deles ocorreram ao mesmo tempo que os ensaios. “É um desafio massivo, massivo”, comentou Anna, “e estou trabalhando uma hora por dia para fortalecer minha voz e alcançar o sotaque correto. Holly é de Tulip, no Texas, mas quando chega a Nova York seu sotaque já se tornou meio-atlântico (“mid-atlantic”, referente às cidades costeiras do leste norte-americano). Junto à Anna estava Joseph Cross, ator jovem com carreira cinematográfica incipiente, no papel do escritor, que na adaptação de Adamson recebeu o nome de William Parsons. O resto do elenco era composto por Dermot Crowley (Joe Bell), James Dreyfus (O. J. Berman), Gwendoline Christie (Mag Wildwood), James Bradshaw (Rusty Trawler), John Ramm (Doc Golightly), Suzanne Bertish (Saphia Spanella), Felix D’Alviella (José Ybarra-Jaegar), Nicholas Goh (Mr. Yunioshi) e David Phelan (Sid Arbuck). Na figuração estavam também Paul Courtney Hyu, Annie Hemingway, Sam Hoare e Natalie Klamar.

As pré-estréias no Haymarket começaram no dia 9 de setembro de 2009, um burburinho correu Londres como uma corrente elétrica e na segunda semana o tablóide News of the World (que provavelmente jamais publicara uma notícia sobre teatro) publicou uma reportagem com direito a fotos, revelando que a montagem de Breakfast trazia uma cena de nu frontal com Anna. O furo foi noticiado em todos os jornais, expressões como “theatrical viagra” foram vistas aqui e ali, e a produção da peça começou a confiscar câmeras e celulares na entrada do teatro, apavorada com a possibilidade de se repetir o desastre de The Blue Room, peça de David Hare protagonizada por Nicole Kidman na Broadway, dez anos antes; havia erotismo por todo o espetáculo, e em uma das cenas Nicole ficava nua e o público via sua bunda por alguns segundos. Foi o suficiente para que os jornais em uníssono dissessem coisas como “não estou 100% certo, mas esta pode ser a primeira vez na história da Broadway em que os espectadores pagavam 60 dólares cada para ver a bunda de uma estrela de cinema” e “The Blue Room, uma peça cujo grande atrativo é uma olhada de relance no bumbum nu de Nicole Kidman”.

Anna e Joseph Cross, na polêmica cena que está há 50 anos no livro de Truman
Nicole Kidman em cena de The Blue Room
No meio de tudo havia até quem elogiasse a performance de Kidman, mas a coisa virou piada: “Se o teatro é um templo”, disse Frank Rich, do The New York Times, “não é surpresa que a religião mais popular da Broadway nesta temporada de festas [dezembro de 1998] seja The Blue Room, ao qual peregrinos têm vindo de todas as partes para idolatrar a bundinha de Nicole Kidman”. O artigo, intitulado “O Traseiro de Nicole Kidman”, observou que as razões que levavam atores de cinema ou TV ao teatro geralmente eram o fim de suas carreiras nas telinhas ou telonas, voltas triunfais depois de internações por vício em drogas ou álcool, a necessidade pura e simples do dinheiro da bilheteria ou, no caso de Nicole, a “gananciosa máquina promocional da Sra. Kidman e de seu marido Tom Cruise”, cujo objetivo seria dar uma turbinada na carreira de Kidman, cujos últimos dois filmes (The Peacemaker e Practical Magic) haviam sido fracassos. Não se poderia inquinar a nudez na montagem de Mathias com nenhuma dessas razões, primeiro porque a carreira de Anna passava pelo seu melhor momento em muitos anos, ainda no gozo pleno de sua fama por Pushing Daisies, e segundo, e mais importante, porque a nudez de Holly está descrita no livro. Não foi gratuita e não foi inventada. Mesmo assim a segurança do Haymarket triplicou sua atenção nos possíveis fotógrafos tentando se infiltrar nas apresentações.


Por sorte, o vazamento das fotos mostrando Anna nua na peça (uma única cena, assim como no livro) não provocou o “efeito The Blue Room”. No dia 29 de setembro, diante de uma casa lotada de amigos, artistas e celebridades, Anna estreou como Holly Golightly dando início a uma temporada de quatro meses, e desencadeando uma verdadeira catarata de elogios e críticas positivas. Kelly Pentland, do site Show and Stay UK admitiu que a experiência era inédita pois não lera o livro de Capote e não vira o filme com Audrey. Segundo ela, “a protagonista Friel teve uma performance impressionante como Golightly. Trazendo o estilo glamouroso da garota despreocupada e charmosa, Friel estava fabulosa. Adicionando um viés picante ao espetáculo, Friel até apareceu nua. Seus doces vocais acompanhados ao violão foram encantadores e entendia-se claramente porquê os homens se jogavam aos seus pés”. Michael Billington, do The Guardian, diz que Anna compõe Holly “com uma graça delicada e charme displicente. Ela dá duro, atua bem e até posa confortavelmente nua em pêlo, em uma espreguiçadeira. É um prazer assistir Friel”.

O adjetivo “elfin”, aliás — relativo a “pequeno e delicado” (como um elfo) ou “mignon” no Brasil — , parecia ser a palavra de ordem para caracterizar a beleza de Anna em Breakfast. Em comentário no qual criticou diversos aspectos do espetáculo, Henry Hitchings, do London Evening Standard diz que “a graça salvadora foi Friel. Brincalhona e cativante, ela lida muito bem com a contingência de ter que se vestir e despir continuamente. Ela traz aos atos mais comezinhos um charme delicado e travesso, e é honestamente poderosa quando o papel requer”. Alice Jones, do The Independent, também diz que Anna, “nossa delicada atriz”, “é uma gamine divinamente embrulhada, como um mimo da Tiffany’s, em um desfile cada vez mais extravagante de vestidos curtos. Ela tem uma presença de palco que enfeitiça, a um tempo perigosamente provocante e infantil”.

Charles Spencer, do The Telegraph, era o mais empolgado de todos. Começa perguntando “como poderia qualquer peça querer se igualar ao texto de Capote ou ao brilho de Hepburn?”, e responde, logo em seguida: “Ainda assim, contrariando as chances, esta provou ser uma noite explosiva”. E prosseguiu:

A performance de Anna Friel como Golightly vai capturar até os corações mais duros. Ela pode não ser tão linda quanto Hepburn, mas alcança maior profundidade dramática, capturando o medo e a solidão que jazem por trás da imagem cintilante de Holly, a mistura fascinante de calor e calculismo em seus relacionamentos, assim como o puro encanto da personagem. E apesar de seu sotaque ir do Texas até o subúrbio de Surrey, até isso parece se encaixar em uma personagem que essencialmente foi inventada por si mesma.

Esta também é a performance mais sexy que já vi num palco desde Nicole Kidman em The Blue Room. Com seu cabelo curto, franca sensualidade e um script que a obriga a passar grande parte da peça só de lingerie, e, em uma cena, sem nada, Friel cria um arrepiante frisson de erotismo.

Como que penitenciando-se pelo elogio anterior, que engrossa o coro da legião de onanistas que cultiva a atriz únicamente por cenas gratuitas de nudez em seus filmes mais esquecíveis, o jornalista retifica:

Mas a sua nudez emocional é ainda mais contagiante, no que ela permite ao público descobrir a grande dor das mágoas e a vulnerabilidade que se esconde por baixo da alegria cada vez mais desesperada de Holly. Não tenho vergonha de dizer que o coração partido de Friel em sua última cena me comoveu às lágrimas.

Anna e Joseph Cross no papel de William "Fred" Parsons, ela e Dermot Crowley, que interpretou o barman Joe Bell e abaixo com o marido Doc Golightly, feito por John Ramm

Mais moderado, Quentin Letts, do Daily Mail, analisa a personalidade de Holly para explicar seu elogio à atriz:

Anna friel está desconcertantemente adorável como Holly Golightly. Digo “desconcertantemente” porque Holly é uma tal cabeça de vento, com seu cérebro de borboleta e cílios. Ela personifica tudo o que não podemos ter, a provocação, a lasca quebradiça que penetra nossos corações. Se fôssemos sensatos, não teríamos nada com essa farsante com tendências criminais. A Srta. Friel, para seu crédito, torna isso impossível. Com suas noções mínimas de francês, despejadas aos sussurros, dando fragilmente de ombros, há um pouco de Audrey Hepburn nesta performance. Almas superficiais vão derivar excitação do fato de que a linda Sra. Friel aparece como veio ao mundo em uma cena, mas o trunfo de sua performance é a de que ela veste Holly com todas as camadas de ficção que a forçam a levar uma vida transitória.

Também houve críticas que não continham apenas elogios. Natasha Tripney, do site Theater Mania, por exemplo, considerou que na peça, Anna tinha “a língua afiada e era astuta, e ainda assim infantil e desavergonhadamente manipuladora. Por vezes ela também é visceralmente vulnerável, despedaçando-se convincentemente quando descobre que seu amado irmão morreu na Europa. Ela certamente é carismática e tem uma encantadora voz para cantar quando se senta em sua janela e dedilha o violão, mas também pode parecer que lhe falta confiança. Na tentativa de humanizar Holly, Friel quase parece se aninhar dentro da personagem”. Já Benedict Nightingale, do The Times, devia estar de particular mau humor na noite em que assistiu o espetáculo, porque não gostou nem um pouco: “A Holly de Anna Friel não tem o carisma de Hepburn ou a qualidade anárquica, selvagem, que levou Capote a compará-la a um pássaro ou animal que não consegue nem encontrar um lar e nem ser totalmente livre”. Dada a paulada inicial, vem um afagozinho para compensar: “Mas Friel tem seus momentos, sobretudo quando está guinchando de dor pela morte  de seu irmão soldado”. E mais uma paulada para concluir: “Mas ela não tem a qualidade emocionalmente perigosa, caprichosa, volátil que Holly precisa, então não é uma porta-voz convincente para a liberação sexual e a tolerância, que ela pode ser”.


A crítica em geral foi azeda com o trabalho de Samuel Adamson, que se manteve fiel a Capote mas teria falhado em reproduzir em dramaturgia o que o escritor imortalizou em romance. Ainda assim, sente-se, em várias ocasiões, que essa crítica se deve muito mais a um apego deste ou daquele jornalista pela Holly de Audrey do que propriamente por algum tropeço do adaptador. Na mesma linha, várias críticas foram feitas aos cenários econômicos de Anthony Ward, que consistiam em duas escadas de incêndio que se moviam conforme a mudança de locais, e a mesa e cadeira do bar de Joe Bell. A tônica é a de que não se transmitiu de maneira adequada “o exotismo picante” nova-iorquino dos anos 40, mais uma noção equivocada deixada pelo filme, que valorizou demais a cidade, quando no conto ela é coadjuvante, quase incidental. Joseph Cross não deixou maior impressão mas houve certo consenso de que, mesmo não tendo carisma ou força para contracenar com Anna, ele não chegou a prejudicar a produção. O resto do elenco foi muito elogiado, principalmente o Joe Bell de Dermot Crowley, a Saphia Spanella de Suzanne Bertish e o O. J. Berman de James Dreyfus.

Anna, acima com o O. J. Berman de James Dreyfus e abaixo com a Saphia Spanella de Suzanne Bertish

A temporada foi vitoriosa, a produção teve lucro e viagens à Nova York e Tóquio chegaram a ser cogitadas, quando a peça saísse do Haymarket, em 9 de janeiro de 2010. Infelizmente as temporadas internacionais não vingaram, o que não impediu que Anna e o elenco de Breakfast at Tiffany’s vivessem algumas experiências bizarras no velho teatro fundado em 1720 e funcionando exatamente no mesmo prédio desde 1821. E o mais cômico de tudo é a reação de total simplicidade da atriz, com os absurdos ocorrendo no meio do público ou nos bastidores. Em uma das apresentações, durante a cena em que ela está nua e o escritor lhe aplica bronzeador nas costas, um sujeito teve um colapso e caiu duro no meio do público. A peça continuou mas Anna percebeu o que estava acontecendo: “Foi durante a cena de nudez e eu não sabia se tinha feito algo muito errado ou apenas aconteceu do sujeito ter um colapso naquele momento. Me lembro dele sendo carregado para fora em uma maca, o que me distraiu um pouco”. Em outra ocasião Anna estava no meio de uma das três músicas que cantava ao violão quando um sujeito no mezanino do teatro se levantou e, sem tempo de chegar ao banheiro, acabou vomitando sobre vários pobres infelizes que assistiam o espetáculo nas poltronas mais caras, abaixo. “Achei que eram espectadores atrasados que não deveriam ter sido permitidos de entrar”, disse Anna, “mas pelo que se viu, alguém tinha vomitado, no mezanino, em cima de seis pessoas e estavam todos sendo levados para fora, para se limpar”. Anna não saiu da personagem: “Eu continuei cantando mas quase me perdi porque tinha muito barulho vindo das poltronas. Quase, mas fico feliz de ter mantido minha concentração”.

O velho Haymarket, de tantas lembranças
e tantas histórias

A melhor história de todas foi a suspeita do Haymarket ser assombrado por fantasmas do mundo artístico: “Todo mundo fica falando sobre esse fantasma”, contou Anna. “Supostamente, Capote está num canto ou Audrey Hepburn está lá assistindo, mas nunca a vi. Patrick Stewart, que estava antes em Godot, disse que o viu no palco e que ele saiu de uma caixa. Agora eu fico olhando!” Não se pode dizer que as provas da existência de um fantasma no Haymarket fossem conclusivas: “A música no meu camarim aumentou algumas vezes”, disse Anna, “mas acho que é só uma falha elétrica”.


Perguntada na ocasião qual o segredo de tanta energia para o trabalho, ela foi sincera: “Não é tanto trabalho quanto parece. Meu cabelo está todo preso em cachos com grampos por baixo da peruca então ele se solta em ondas perfeitas, e só deixo o esmalte e o batom de Holly. É isso que as atrizes costumavam fazer; o esforço para que você não pudesse ver por trás da máscara. Acho que combina com toda a atmosfera da peça. Eu poderia simplesmente tirar minha maquiagem e me enfiar num jeans, mas essa sensação de glamour dos anos 40 ajuda com o meu personagem”.

Na mesma entrevista declarou: “Talvez minhas escolhas tenham sido melhores com as peças que fiz do que com alguns dos filmes”. Não resta dúvida. E Breakfast at Tiffany’s foi um triunfo para ela. “Quando meu empresário me perguntou o que eu queria fazer depois disto”, contou Anna, “respondi: ‘Eu quero continuar fazendo teatro’. Nunca pensei que diria isso no meio de uma temporada tão difícil, mas eu estou amando isto. É quase chocante para mim que haja tantas facetas para Holly. Todas as noites pode haver performances completamente diferentes. Por vezes ela pode ser avoada, em outras ela é risonha ou mais frágil. Essa é a empolgação do teatro”.
______________________________________
  • A maioria das fotos de Breakfast at Tiffany's no Haymarket vem do site oficial da montagem.
BIBLIOGRAFIA:

Todos os sites foram consultados entre julho e agosto de 2011
  1. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1181770/BAZ-BAMIGBOYE-Anna-Friel-serves-sexy-treat-new-Breakfast-Tiffanys-stage-role.html
  2. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/reviews/article-1217034/Anna-Friel-pierces-heart-Breakfast-Tiffanys.html
  3. http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1225691/Anna-Friels-performance-interrupted-ill-spectator.html
  4. http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/theatre-reviews/6245887/Breakfast-at-Tiffanys-at-the-Theatre-Royal-Haymarket-review.html
  5. http://www.telegraph.co.uk/culture/theatre/theatre-features/6194609/Sean-Mathias-interview-for-Breakfast-at-Tiffanys.html
  6. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/theatre-dance/features/friel-the-force-anna-friels-stage-incarnation-as-holly-golightly-proves-to-be-a-high-point-in-her-career-1792123.html
  7. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/theatre-dance/reviews/first-night-breakfast-at-tiffanys-theatre-royal-haymarket-london-1795269.html
  8. http://en.wikipedia.org/wiki/Truman_Capote
  9. http://en.wikipedia.org/wiki/Breakfast_at_Tiffany%27s_%28musical%29
  10. http://www.dailyrecord.co.uk/showbiz/showbiz-news/showbiz-news/2009/09/06/anna-friel-to-go-blonde-for-breakfast-at-tiffany-s-78057-21651710/
  11. http://www.newyorker.com/online/blogs/books/2009/09/was-holly-golightly-really-a-prostitute.html
  12. http://www.tcm.com/this-month/article/156635%7C0/Trivia.html
  13. http://www.tbd.com/blogs/tbd-arts/2011/03/edward-albee-s-breakfast-at-tiffany-s-was-the-spider-man-turn-off-the-dark-of-the-60s-9321.html
  14. http://www.trh.co.uk/press-releases.php?date=2009-05-15
  15. http://www.entertainmentwise.com/news/50075/anna-friel-im-not-
  16. http://www.thisislondon.co.uk/lifestyle/article-23779739-anna-friel-from-holly-to-hollywood.do
  17. http://www.thisislondon.co.uk/theatre/review-23750504-breakfast-goes-far-too-lightly-at-tiffanys.do
  18. http://www.contactmusic.com/news.nsf/story/man-collapses-over-naked-friel_1120525
  19. http://www.contactmusic.com/news.nsf/story/friels-backstage-ghost-hunt_1120432
  20. http://www.guardian.co.uk/stage/2009/sep/30/breakfast-at-tiffanys-review
  21. http://www.theatermania.com/london/reviews/09-2009/breakfast-at-tiffanys_21523.html
  22. http://entertainment.timesonline.co.uk/tol/arts_and_entertainment/stage/theatre/article6854691.ece
  23. http://www.leisuresuit.net/Webzine/articles/blue_room.shtml
  24. http://www.nytimes.com/keyword/blue-room
  25. http://www.show-and-stay.co.uk/theatre-news/review-breakfast-at-tiffanys-anna-friel-20606.html

4 comentários:

  1. Nossa! que mega post!!! muito bom. primeira vez aqui. bjs!!!

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  2. Que fôlego! Brilhante. Devo-te ao google,ao pesquisar sobre Leopoldo Fróes,Procópio Ferreira e Paulo Autran.Estás salvo,ao menos nos meus favoritos.Bravo!!!

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  3. Post maravilhoso, parabéns, super completo!!!

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  4. Olá,
    adorei este seu post e achei muito interessante os trechos de críticas que sairam sobre a peça estrelada pela Anna. Estava procurando algo do gênero para escrever a 4a parte do especial sobre bonequinha de luxo no meu blog.
    Obrigada pelo trabalho super minucioso que você fez. um abraço
    http://breakfastatoliviasa.blogspot.com.br/2012/05/especial-bonequinha-de-luxo-parte-iv.html

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