Saí tonto de seu apartamento, com a quantidade gigantesca de informações que ouvi na conversa de três ou quatro horas. Era como se eu buscasse aquele fascículo de História do Brasil vendido em bancas, com 30 páginas contando o período entre a era Getúlio e o golpe de 64, e me deparasse acidentalmente com os 30 volumes da Enciclopédia Britânica.
Pelos anos seguintes não voltei a Chico. Segui sozinho na pedreira que era esse assunto, e só quando comecei a escrever especificamente sobre Jânio na Câmara Municipal, senti a necessidade de voltar aos vereadores daquela legislatura, que eu já entrevistara anteriormente, mas que agora poderiam me ajudar ainda mais. Em 2008 fui atrás de Décio Grisi. O seguinte foi Chico. Liguei com medo, sabia que Chico já tinha 89 anos quando conversamos pela primeira vez, e, sem qualquer morbidez, a hipótese de que ele já tivesse nos deixado era a mais provável. Aliás, foi o que aconteceu com três vereadores, meus queridos amigos da fase inicial da pesquisa, Nicolau Tuma, Sebastião Gomes Caselli e Anis Aidar. Para minha suprema alegria, Chico estava vivo, bem, e aos 98 anos mostrava exatamente a mesma disposição para prosear. Durante o segundo semestre de 2008 e o primeiro de 2009 nos encontramos várias vezes. Sempre lá pelas três ou quatro da tarde. Terminando invariavelmente lá pelas oito ou nove da noite.
Em nosso reencontro eu já estava mais maduro e mais equipado de recursos intelectuais e culturais para compreender o privilégio de ouvir alguém que aos 98 anos esbanjava saúde e lucidez. Estava de bem com a vida, aguardando serenamente a morte, sem nenhum medo ou apreensão, apenas com a tranqüilidade da consciência limpa e o prazer de compartilhar uma pequena porção de sua frondosa experiência de vida com um rapaz que se lembrou que ele existia, e que tinha coisas lindas para contar. No dia 8 de janeiro de 2011 ele morreu, aos 100 anos. Ainda não quero escrever sobre Chico porque não digeri a perda desse meu amado amigo. Prefiro mostrá-lo, finalmente, a vocês. Sua imagem em movimento será infinitamente mais eloqüente.
No vídeo que vem a seguir, Chico recita uma poesia que compôs em 1931, quando estava no último ano de Direito no Largo São Francisco. Foi uma das poucas vezes, em nossos encontros, que ele efetivamente pediu para que se registrasse o que ele estava contando. Poesias sobre a garoenta São Paulo - seja a dos anos 20 e 30 ou a de antanho - eram numerosas entre os estudantes do Largo. O próprio Jânio escreveu a sua, em 1938, intitulada Evocação:
Jânio |
pequenino, brumoso, frio, tristonho.
E humilde, São Paulo, e sertanejo,
eras grande no amor! Grande no sonho!
Eu me lembro, São Paulo... Uma janela
se ilumina na bruma, e de repente
abre-se, e à luz incerta de uma vela,
a moça escuta a serenata quente.
Há romances no ar! Baila no espaço
um cheiro de aventura e na taberna,
os boêmios recitam ao compasso,
eternos versos da poesia eterna.
Corre um rumor longínquo. E a bruma fria,
traz vozes de poesias e de oração...
- Um estudante canta a Academia;
outro estudante prega a Abolição!
Passam vultos sombrios e distante,
no silêncio da noite, alguém dedilha
uma canção de amor à linda amante
que se oculta, medrosa, na mantilha.
Meu São Paulo, querido... Eu te revejo,
pequenino, brumoso, frio, tristonho...
E humilde, São Paulo, e sertanejo,
eras grande no amor! Grande no sonho!
Algumas imagens são até semelhantes nas duas poesias, só que ao contrário de Jânio, que rimou decassílabos e batalhou por sua publicação na Arcádia, revista da Academia de Letras do Largo, esta aqui, composta pelo Seu Chico, é feita em prosa intimista e completa, em 2011, 80 anos de ineditismo. Ineditismo esse que termina agora. Obrigado, Seu Chico, amigo gentil e amado!
Noite nevoenta, cheia de abandono. O Viaduto do Chá deserto.
Do alto de um arranha-céu pálido e entediado, o anúncio espia o silêncio da cidade e de quando em quando a vassoura de luz de um farol indiscreto varre a neblina dentro da noite inquieta.
Meus passos na calçada têm ressonância de surdas marteladas distantes.
Rua Barão de Itapetininga. Praça da República.
Fina e impertinente, a garoa vai caindo.
Abriga-me a porta semi-cerrada de um botequim vazio.
Me ponho a olhar para a praça deserta, para as ruas molhadas, para a dança esquisita da garoa em volta dos lampiões.
Um varredor, à meia voz, passa cantando uma canção dolente, cheia de saudade de sua terra distante.
Um boêmio cambaleando assobia sem ritmo a música devassa de uma maxixe velho.
E num banco de pedra sob as árvores, um vulto encolhido, mal-coberto por um sobretudo esburacado e antigo, talvez sonhando coisas bonitas, dorme.
Agora vai passando a garoa.
O sino de São Bento soou duas longas badaladas, que foram pelo ar com o rumor soturno de um bonde retardatário.
Caminho novamente, e levo comigo na retina a visão ampla do aspecto noturno, ao frio de junho, ao sussurro amargurado daquelas velhas árvores da Praça da República, e no coração, alegria de ter sentido as coisas bonitas de uma paisagem triste.
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Ver também:
É pra chorar? Lindo, lindo e mais lindo. Você amolece as pessoas. Você vive o sonho dos sonhadores. Que saudades de prosear assim com você. DEMAIS!
ResponderExcluirObrigado, Milena. É essa maneira linda e inspirada com que vc transforma tua emoção em palavras que faz tudo isso valer a pena. Beijos
ResponderExcluir..."e no coração, alegria de ter sentido as coisas bonitas de uma paisagem triste." Lindo demais! Abs
ResponderExcluirPS: Bernardo, o que acha decolocar no seu blog aqueles ícones para Compartilhar link no Twitter,no Face etc