Os comediantes Rebel Wilson e James Corden apareceram no Oscar deste ano vestidos como seus respectivos personagens em Cats (Jennyanydots e Bustopher Jones) e enfatizaram a importância de bons efeitos especiais em um filme, ao som do gargalheiro generalizado da platéia. Foi uma divertida auto-crítica com o que se supõe ser o principal problema de Cats: a idiotice dos efeitos especiais em CGI terem transformado os gatos em humanóides. Uma coisa horrorosa, ridícula, em que o que vemos, basicamente, é um monte de atores com rabo e orelhas de gato, mas estranhamente mantendo seus próprios rostos. Só que esse não é nem de longe o maior problema deste Cats. Há vários outros, e muito piores. Vamos a eles:
T. S. Eliot |
Valerie (viúva de Eliot), Webber e - é claro - um gato |
A seqüência, com "The Naming of Cats" e "The Invitation to the Jellicle Ball" são para o público respirar e realizar mental e emocionalmente o que está prestes a acontecer. E os gatos começam a se apresentar e a serem apresentados ao público. Uma seqüência perfeita e inigualável de seis números musicais: "The Old Gumbie Cat", "The Rum Tum Tugger", "Grizabella, The Glamour Cat", "Bustopher Jones", "Mungojerrie and Rumpelteazer" e "Old Deuteronomy". Há então "The Awefull Battle of the Pekes and Pollicles / The Marching Song of the Pollicle Dogs", o único número que eu realmente não considerei à altura do espetáculo, quebrando, a meu ver, a continuidade brilhante das apresentações. Mas em seguida as coisas voltam aos trilhos com "The Jellicle Ball", um belo número de música e dança. O ato se encerra com um primeiro gosto de "Memory".
O segundo ato começa dramático, com "The Moments of Happiness" e "Gus: The Theatre Cat". Vem o complexo número de Growltiger e a levíssima "Skimbleshanks: The Railway Cat". A reta final tem três obras-primas, uma atrás da outra: "Macavity: The Mystery Cat", "Mr. Mistoffelees" e "Memory". O fim traz a redenção de Grizabella na magnífica "The Journey to the Heaviside Layer", que transforma o teatro em um rio de lágrimas dos espectadores, e a conclusão de Old Deuteronomy com "The Ad-Dressing of Cats".
Cats pertence ao teatro. Podemos amar as músicas e vibrar com elas no CD mas o espetáculo deve ser visto ao vivo.
2 - O que vimos no cinema foi a negação absoluta de tudo isso. Está TUDO errado. Tom Hooper não deu uma dentro. Se em Les Miserables (que não consegui assistir inteiro, vencido por uma lufada de tédio na primeira entrada de Russel Crowe blaterando uma de suas canções) ele agradou parte do público, aqui o desastre foi total e completo. No teatro nos deixamos levar por Cats desde a abertura; é uma viagem deliciosa da qual saímos renovados, energizados e felizes. No filme a sensação é de mergulhar em uma piscina vazia. Aquela festa num salão enorme em que só apareceram três ou quatro pessoas. Ouvem-se os grilos. Os arranjos musicais são ruins. A orquestração é anêmica e as vozes em coro, que deveriam ser fortes e empolgantes, são insípidas, magras e sem nenhuma graça. Conseqüentemente, "Jellicle Songs for Jellicle Cats" passa em brancas nuvens e, por assim dizer, o filme não dá liga.
É compreensível que montagens cinematográficas de musicais mudem, aqui e ali, os arranjos de determinadas músicas. Sobretudo quando estão datadas ou quando o próprio autor sente que elas não funcionaram como deveriam. O próprio Lloyd Webber descartou a versão original londrina de "Mungojerrie and Rumpelteazer" e compôs uma nova, muito melhor, quando o espetáculo estreou na Broadway, um ano depois da estréia no West End. Mas nada justifica o que foi feito neste filme. Sentimos a substituição de arranjos vigorosos e substanciosos por um pastiche simplificado, sintético, light, como se a montagem fosse amadora.
Tim Hooper |
Rebel Wilson como Jennyanydots |
Terrence Mann: único |
O brilhante Timothy Scott (1955/1988), primeiro Mistoffelees da Broadway |
James Corden como Bustopher Jones |
A cereja podre de tudo isso é que, por razões que a própria razão desconhece (e não faz questão de conhecer), Hooper exumou a versão londrina de "Mungojerrie and Rumpelteazer", descartada há quase 40 anos, e utilizou-a no filme. Rejeitou a ótima versão da Broadway, usada sempre, e que era originalmente cantada por Mistoffelees ou pela própria dupla. E o resultado conseguiu ser pior, porque se nas outras o que vemos é gente ruim cantando músicas boas, aqui há gente ruim cantando uma música que nem o autor considerava boa.
Francesca Hayward como Victoria |
Victoria: divertindo-se mais do que se esperaria |
Também pra lá de estranha é a postura permanente de flerte da gata, sempre empolgadíssima e cheia de olhares para qualquer um. Por suas atitudes nem sequer imaginaríamos que ela acabou de ser cruelmente abandonada à própria sorte; ela não parece, nem de longe, scared to call them my friends and be broken again, como diz a canção de Taylor.
Não obstante, a bailarina é muito bonita e se desenvolvessem melhor seu personagem, não a obrigassem a cantar uma música inteira e - claro - se o filme não fosse tão horrivelmente ruim como um todo, ela poderia ter sido para este Cats o que a linda belga Veerle Casteleyn foi para a versão de 1998. Seu papel de Jemima acabou absorvendo interlúdios musicais de personagens menores como Victoria e Tantomile, e Veerle surgia de vez em quando para cantar no máximo uma ou duas frases com sua voz pequena mas doce, afinada e aguda, como o canto de um anjo, e hoje é a única e mais grata lembrança dessa versão.
A Jemima de Veerle Casteleyn, em 1998: um anjo |
5 - Passemos agora ao elenco "famoso" do filme, onde o miscasting merecia ser punido com cadeia. Antes, é bom explicar que Tom Hooper elaborou em cima do enredo original; no filme, Macavity seqüestra Deuteronomy porque pretende forçar o líder dos gatos a escolhê-lo para o Heaviside Layer. Uma bobagem sem o menor sentido, já que Macavity é jovem, faz o que quer impunemente e não sente qualquer remorso por suas maldades; pelo contrário, ele sente prazer em ser perverso e portanto não teria qualquer razão para renascer, o que, para todos os efeitos, significa uma nova chance de vida. Seu cúmplice no seqüestro é Growltiger, que esconde Deuteronomy e os outros gatos seqüestrados por Macavity, em seu barco. Feita a explicação, eis quem paga o menor dos micos: Ray Winstone. Por que o menor? Porque 90% de seu papel, o pirata Growltiger, foi cortado. O que sobrou não chega nem a dois minutos de filme. Sorte dele.
Idris: patético |
O resultado é um anti-clímax. Taylor não tem estofo para uma música como essa, derrapa várias vezes e o fim da canção - que no teatro é apoteótico, sensacional, com orquestra e elenco num crescendo espetacular, fazendo vibrar todos os sentidos do público - recebe uma ducha de água gelada quando Idris se mete a cantar o último refrão junto a Taylor. Bizarro e triste ao mesmo tempo.
A Grizabella de Hudson: gemebunda |
Curiosamente, quem foi escalada para a dobradinha Grizabella-Jennyanydots na estréia mundial de Cats em Londres, em 1981, foi ninguém menos do que Judi Dench. Dias antes da estréia ela teve um acidente e deixou o espetáculo, substituída permanentemente por Elaine Page. Não sei como lidar com isso. Judi, sendo uma das melhores atrizes inglesas da segunda metade do século XX, não era estranha aos musicais. Por incrível que pareça, ela foi Sally Bowles antes de Cabaret virar filme. Ouvi gravações originais e ela cantava bem. Tinha uma voz bonitinha, afinada e charmosamente rouca. Seria uma excelente Jenny e certamente uma boa Grizabella, mas - minha opinião - jamais alcançaria a tragicidade musical de Page ou (muito menos) de Buckley.
Em 1998 foi organizada uma homenagem ao produtor Cameron Mackintosh, que produziu inúmeros musicais (inclusive Cats), chamada Hey, Mr. Producer! Judi participou cantando "Send In the Clowns", escrita por Stephen Sondheim para o musical A Little Night Music, de 1973. Na ocasião fiquei um pouco incomodado de ver a dificuldade com que Judi desfiava as notas da soporífera composição. Sua voz para o canto, antes "afinada e charmosamente rouca", era apenas um fiapo, agora. E mesmo assim quis o destino que Dench voltasse a Cats quase quarenta anos depois.
Judi: A Velha Deuteronômia |
Ian: Gus |
Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell... |
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- O site Cats Musical Wiki é um belo arquivo de tudo que tenha a ver com o musical de Andrew Lloyd Webber.
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