quinta-feira, 3 de março de 2011

O Cavalo Alado e o Homem da Vassoura

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Jânio e Faria Lima
Quando vereador, Jânio Quadros aliou-se a Cantídio Sampaio, seu arqui-rival na Câmara, na inglória batalha que o capitão pessepista empreendia para que o Campo de Marte fosse restituído ao bairro de Santana e deixasse de ser utilizado pela Aeronáutica. Na época, 1948, Jânio conheceu o comandante da base, Tenente José Vicente Faria Lima, mas não estreitaram relações. Foi só em 1954 que Afrânio de Oliveira – secretário particular de Jânio, agora governador – levou Lima para o governo, na presidência da VASP. Iniciou-se ali o extraordinário vôo paralelo do homem da vassoura e do cavalo alado, apelido pouco lisonjeiro dado ao Brigadeiro por aqueles que provaram de suas descomposturas ocasionais. Da VASP para a Secretaria de Viação foi um pulo, o BNDE na curta presidência de Jânio, a malograda candidatura a vice-governança na chapa do renunciante, em 62, e o período inigualável na prefeitura.

Muito pode e deve ser dito sobre a relação de Jânio e Lima, nas semelhanças, e, sobretudo, nas diferenças entre ambos. Os dois eram predestinados, mas enquanto Jânio saltava e voava sem rede de segurança, Lima cimentava cuidadosamente cada degrau de seu vitorioso percurso. Jânio era autoritário e temperamental, mas se impunha pelo carisma e pela personalidade irresistível; Lima era grosso e, não raro, estúpido com seus auxiliares, mas granjeava a admiração coletiva pela competência e pela absoluta dedicação ao trabalho. Jânio era extremista, sangüíneo, e não sabia governar com o Legislativo; Lima era um “anfíbio” por excelência, e tinha tato e inteligência para lidar com gregos e troianos, sem quebra de sua honra pessoal ou de suas suscetibilidades políticas. Foi essa última característica que colocou os dois em lados opostos quando o Brigadeiro já se aproximava de sua morte, e, curiosamente, em um momento crucial para São Paulo, quando eram ambos jovens e nem se conheciam.

Em 9 de julho de 1932, no rescaldo do horrendo incidente em que morreram quatro estudantes – Euclydes Bueno Miragaia, Mário Martins de Almeida, Antônio Américo Camargo de Andrade e Dráusio Marcondes de Souza – foi deflagrada a Revolução Constitucionalista. O pai de Jânio, Gabriel Quadros – médico, farmacêutico e agrônomo – era um perrepista de quatro costados e estava inteiramente a favor dos revolucionários. Quando soube que o M.M.D.C. montou seu quartel general na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e de lá os contingentes começaram a ser espalhados pelo interior do Estado, apresentou-se como voluntário. Conhecia bem a cidade de Lorena, onde havia estudado na juventude, e aproveitando que a modesta localidade era, agora, sede do comando revolucionário da Frente Norte, não teve dúvidas: juntou a família e foi para lá, a fim de ajudar o esforço médico que se desdobrava pelo Vale do Paraíba, entre Lorena e Guaratinguetá. O médico matriculou Jânio, moleque de 15 anos, como interno na mesma escola onde estudou, o velho Ginásio São Joaquim, e colocou-se à disposição do tenente Benedito Serpa, um dos braços militares da revolução de 32. Gabriel foi nomeado tenente-médico do M.M.D.C. em 2 de setembro.

Nesse mesmo mês, as aulas do Ginásio São Joaquim foram suspensas e os internos mandados para casa, por ordem das forças revolucionárias, que desejavam transformar a escola em um grande hospital de sangue. Como possuía um campo de pouso, Lorena pouco antes se tornara sede do Grupo de Aviação Constitucionalista, que se transferiu de Itapetininga para lá, com o objetivo de conter o avanço das forças getulistas no Vale do Paraíba e na Frente Mineira. A cidade chegou a ser palco de dois embates entre forças paulistas e getulistas, o que levou os voluntários a pintarem uma grande cruz vermelha no telhado do educandário, para que os “vermelhinhos”, aviões a serviço de Getúlio, não bombardeassem o local. Um dos aviadores que participou desses bombardeios, a serviço de Vargas, na posição de observador-metralhador, foi um segundo-tenente de 23 anos, José Vicente Faria Lima.

Carioca da Vila Isabel, Faria Lima veio ao mundo em 7 de outubro de 1909. O nome do bairro era uma ironia do destino; Lima gostava de dizer que ele e seus irmãos nasceram no Rio por culpa da abolição. Seu avô materno, abastado fazendeiro no Espírito Santo, perdeu quase tudo quando a Lei Áurea foi assinada e teve que se transferir para a capital do Império com a esposa e a filha Castorina de Faria. No Rio, a moça conheceu o comerciante português João Soares de Lima, com quem se casou. Tiveram cinco filhos: José Vicente, João, Rômulo, Roberto e Floriano.

O primogênito fez seus primeiros estudos no Colégio 28 de Setembro. Em 1920, entrou para o Colégio Militar, concluindo o curso cinco anos depois. Com 16 anos, o rapaz atravessou um período de indecisão. Desejava seguir a carreira militar como todos os seus colegas, mas tinha fascinação por engenharia e mecânica, o que o levou a matricular-se na Escola Politécnica. Dois anos depois, entretanto, largou a engenharia e sentou praça na Escola Militar do Realengo. Em 29 deixou também essa escola. Castorina começou a ficar alarmada com o rumo incerto da carreira de seu filho. João Soares estava igualmente preocupado, mas não deixava transparecer, para não assustar ainda mais a esposa. A resposta para as aflições da família veio com uma façanha que maravilhou o mundo, em maio de 1927. O vôo transatlântico de Charles Lindbergh, num monoplano, sem escalas, de Nova York a Paris em 33 horas, causou verdadeiro furor entre os jovens aspirantes à aviação e mudou a vida de José Vicente. Ele encontrou na aviação a maneira perfeita de juntar em uma só atividade a carreira militar, a vocação para a engenharia e o deslumbramento com os aviões. Em 1929 matriculou-se no curso da Escola de Aviação Militar que funcionava no Campo dos Afonsos, formando-se com distinção em novembro de 1930, pouco depois do golpe. Como deferência por ter sido o primeiro de sua turma, recebeu proposta para ser instrutor de qualquer matéria, no curso. Sem nenhum pendor para a pedagogia, declinou o convite. Mas não demoraria a botar em prática tudo que aprendera com o curso, do qual saíra aspirante-a-oficial da arma de aviação.

Eduardo Gomes

Sua promoção para segundo-tenente veio em junho de 31, na mesma época em que Eduardo Gomes, agora major e servindo no gabinete do ministro da Guerra, Leite de Castro, sugeriu a criação do Correio Aéreo Militar (CAM), utilizando membros da Escola de Aviação. Gomes recrutou o competente aviador de 22 anos, que via no CAM uma espécie de curso superior, no qual poderia treinar pilotagem e conhecer o Brasil do Oiapoque ao Chuí. Aceitou a incumbência com prazer, mas o veterano do levante do Forte de Copacabana não fez segredo das condições que o rapaz teria que enfrentar no trabalho, e explicou que o CAM naquele momento consistia de aviões velhos e obsoletos, pistas de pouso danificadas ou inexistentes, além de costumeira falta de comunicação entre terra e ar. Nada disso foi suficiente para demover Faria Lima, e foi na condição de membro do CAM, servindo no interior de Goiás em julho de 32, que ele recebeu a convocação para servir no campo de Resende, junto a Eduardo Gomes, no contingente militar governista que obstava as investidas revolucionárias no Vale do Paraíba.

O improvisado hospital na escola onde Jânio estudava não chegou a funcionar. No dia 2 de outubro São Paulo capitulou e foi firmado o armistício. Passados 33 anos, o observador-metralhador se transformou no melhor prefeito que a capital do Estado revolucionário já teve.

Jânio (à esq.) e o Brigadeiro ao seu lado,
durante uma inauguração
Jânio e Faria Lima foram inseparáveis durante dez anos, de 54 a 64. Quando veio o golpe, o Brigadeiro soube guardar o silêncio e a cautela necessários para um momento delicado como aquele. O mato-grossense seguiu o caminho inverso; líder popular e populista, pouco afeito a quarteladas e articulações de gabinete, desatou a escrever manifestos inúteis e a falar pelos cotovelos, elogiando quem o detestava e atacando quem não merecia. Os dois se separaram momentaneamente. No ano seguinte, o ex-presidente viu com desconfiança a possibilidade de Lima chegar à prefeitura pelo voto direto. Na verdade, um misto de desconfiança e o ciúme de ver um elemento saído de suas hostes fazendo-lhe franca sombra num campo onde ele se considerava imbatível. Alguns de seus amigos tentaram abrir-lhe os olhos. Em visita a Jânio, Farabulini Junior comentou:

— Presidente, eu quero convidá-lo a participar da vitória do Faria Lima.
— Não sei... ele é militar... — respondeu Jânio, entre temeroso e despeitado — não sei se este é o momento...
Farabulini Jr.

Farabulini foi objetivo:

— Presidente, o senhor não me entendeu; o Faria Lima vai vencer esta eleição com ou sem o senhor. Eu o estou convidando a participar da vitória do Faria Lima.

A eleição já estava praticamente vencida quando Jânio resolveu finalmente emprestar seu imenso prestígio político ao Brigadeiro. Não satisfeito, o ex-presidente ainda exigiu a presença de seu fiel amigo Quintanilha Ribeiro no secretariado municipal. O Brigadeiro aceitou sem discutir, por conhecer a competência e o equilíbrio do bom Quintanilha. O homem da vassoura e o cavalo alado teriam seguido nessa bonança até o fim se Jânio não metesse os pés pelas mãos uma última vez, em 68. Instituído o bipartidarismo, o ex-presidente tratou logo de aboletar-se no MDB, trincheira da oposição ao governo militar. Lima, pensando única e exclusivamente em São Paulo, e nos benefícios que isso poderia trazer à administração municipal, ingressou na ARENA. Jânio, que não se cansava de tecer loas ao prefeito, publicamente, e o fizera até pouquíssimo antes, não o perdoou. Perguntado sobre a atitude do Brigadeiro, respondeu, friamente: “Os meus amigos permanecem no MDB”.

O deputado Ewaldo Almeida Pinto jogou a pá de cal: “O ex-presidente condenou em termos candentes e frontalmente os que aderiram ao governo. Ao dizer que seus amigos permanecem no MDB, deixou claro que não considera seus amigos os que aderiram à ARENA”. Jânio então fustigou Costa e Silva até ver decretado seu confinamento, em agosto daquele ano. Consumado o fato, Lima limitou-se a declarar ao Jornal do Brasil que “as informações do confinamento do ex-presidente são um episódio a mais na crise da vida institucional brasileira, que dura há várias décadas. No fundo, tudo isso reflete nosso subdesenvolvimento, fase que precisamos ultrapassar com urgência”. Longe, porém, de tornar Jânio um mártir da ditadura, o confinamento lhe saiu pela culatra e jogou-o num ócio de quatro meses em Corumbá, que serviu apenas para engordá-lo e tirá-lo definitivamente do radar político brasileiro pelos próximos 15 anos.

O Brigadeiro, por sua vez, entrou em 1969 capitaneando um verdadeiro dilúvio de realizações, não superado nem por Prestes Maia, seu antecessor. Deixou a prefeitura em abril. Morreu, coberto de glória, cinco meses depois, aos 59 anos.

Jânio viveu até 1992. Jamais perderia vasa para proclamar que “elegera” Faria Lima prefeito. Com a morte de seu mais habilidoso colaborador, por vezes não soube lidar racionalmente com a herança do Brigadeiro, que era seu aliado e companheiro, mas também seu convexo político e administrativo. Lima, em vida, nunca emitiu som que não fosse para falar de sua admiração e gratidão por Jânio. Já o ex-presidente, inseguro e emocional, revezava-se entre o fascínio pelo Brigadeiro e o ressentimento consigo mesmo por não ter sido um administrador tão operoso, e ao mesmo tempo tão centrado.

Figuras magníficas. Fica o legado de ambos, e a saudade de um tempo em que São Paulo tinha o coração de Jânio e o cérebro de Faria Lima.

Bernardo Schmidt

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(Texto escrito em julho de 2009 a pedido do ex-deputado federal José Roberto Faria Lima, responsável pelas comemorações do centenário de seu tio, o Brigadeiro José Vicente Faria Lima)
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