segunda-feira, 23 de agosto de 2010

2x Luis Melo


Sonata Kreutzer

A Sonata Kreutzer foi o primeiro trabalho de Melo fora do CPT. Talvez procurando sua identidade performática e interpretativa fora da personalíssima dinâmica "antuniana", ele escolheu um monólogo — na verdade um conto de Tolstoi — para começar sua carreira "solo", e o eclético Eduardo Wotzik para dirigi-lo.

O recurso de colocar Melo — Pozdnyshev — no palco, tenso e fumando, antes mesmo do público entrar faz com que sua angústia seja tangível desde o momento em que as pessoas vão se acomodando em suas poltronas. Mas a angústia de Pozdnyshev, a meu ver, está muito além do assassinato da esposa infiel. Está no verdadeiro cerne de um dos aspectos da profunda infelicidade conjugal de Lev Tolstoi. Sofia, sua mulher, era mais nova e evidentemente menos brilhante do que seu já célebre marido. Em seus diários (confiados ainda em vida a um discípulo, para publicação póstuma), Tolstoi era impiedoso na descrição das poucas luzes de sua esposa, bem como de sua têmpera problemática. Por sua vez, Sofia também guardou diários em que exprobrou a velhice de seu marido, e o quanto aquilo tolhia suas várias vontades.

É lógico que a juventude de sua mulher devia provocar sobressaltos na mente "euripidiana" de Tolstoi. Falas de Pozdnyshev, como "o amor carnal, em quaisquer formas que se apresente, é um mal, um mal terrível, com o qual se deve lutar, e não estimulá-lo, como se faz em nosso meio", ou que "as mulheres só atingirão um nível superior quando adotarem a virgindade como grande ideal" são provavelmente Tolstoi expiando ao cubo suas próprias inseguranças.

De fato, a peça é apresentada como a defesa de Pozdnyshev num tribunal; no conto original, ele já foi absolvido pelo que seria um "homicídio justificável". Ironicamente, o moralismo patológico do personagem principal e seus ataques violentíssimos à sociedade que estimularia o comportamento equivocado das mulheres, foram considerados "um atentado à moral"; o Tzar foi notificado e a Sonata Kreutzer acabou sendo o estopim para o processo de excomunhão de Tolstoi, que ocorreu 12 anos mais tarde, em 1901.

Uma curiosidade é que a Sonata Kreutzer não é só um caso da arte imitando a vida, mas da vida imitando a arte, porque numa das brigas entre Pozdnyshev e sua mulher, ele deixou a casa e ela tentou se matar; a tentativa foi frustrada e eles se reconciliaram. Da mesma forma, pouco antes de morrer Tolstoi abandonou Sofia. Quando soube, ela tentou se matar. Não conseguiu. Mas sofreu golpe maior porque Tolstoi, com 82 anos, estava com pneumonia dupla e morreu dias depois.

É interessante também que nem Beethoven e nem seu patrono Rudolphe Kreutzer tenham vivido para saber que um russo acabaria eternizando essa peça musical, que no conto é executada pelo violinista que supostamente seduz a mulher de Pozdnyshev. (9/10/2004)

Daqui a duzentos anos

Para começar, o SESC Belenzinho é um lugar muito agradável, amplo e com diferentes ambientes, cafeteria, espaços para exposições, etc. Fiquei muito bem impressionado. Cheguei meia hora antes, crente que encontraria ingressos facilmente. Ledo engano. Os ingressos já estavam esgotados e eu tive que entrar numa lista de espera. No fim deu tudo certo.

O Galpão 1 é um teatro de arena. Quatro cadeiras são espalhadas pelos cantos do palco, e nelas se sentam o Melo e os atores André Coelho, Janja e a musicista Edith Camargo, que toca sanfona e é responsável pela música ao vivo. Daqui a duzentos anos é uma colagem de alguns contos de Tchekhov. Melo interpreta a maioria deles.

O grande ator, que eu não via já há alguns anos no teatro, continua maravilhoso. Embora um pouco acima do peso, Melo voa pelo palco e encanta inclusive nas cenas mudas. O que dizer sobre a maneira como interpretou a conversa com sua esposa, no conto "O Amor", indo da alegria ao tédio e fazendo o público gargalhar sem uma única palavra? Em "A morte do funcionário" entra seu estupendo lado dramático. Neste caso, patético, quando narra em primeira pessoa a vida medíocre de um funcionário de uma estação de trem. As gargalhadas do público vem nervosas no "Caso do champanhe". Domínio total. A voz belíssima, o olhar comovente, o talento maiúsculo de sempre.

Sobre as três pessoas que acompanham Melo, tenho alguns comentários. André Coelho é competente, mas o espetáculo tem uma queda considerável quando ele protagoniza um dos contos. Edith Camargo é uma excelente musicista, mas achei perfeitamente inútil sua rendição solo da música Simple Twist of Fate, de Bob Dylan. Sua voz é bonita, ela toca lindamente a sanfona, mas seu inglês é medonho e eu juro que achei que se tratava de uma música russa, quando ela começou a cantar.

Fiquei chateado que a atriz Janja não tenha recebido mais destaque. Seu único grande momento na peça foi a última fala de Sônia, no Tio Vânia, que emocionou o público. Espero poder vê-la novamente em um papel de mais destaque, no futuro.

Não consigo parar de lembrar os vários momentos excepcionais. Melo contando dos trejeitos que tanto ama e odeia em Sasha, os selos que ela exige que sejam guardados, as etiquetas nos livros, o esporro tremendo do frustrado Nicolai em sua esposa, que se recusa a beber a champanhe que foi derramada:

— Mas que mulher supersticiosa você está me saindo! Você é inteligente, mas diz tanta besteira quanto uma babá velha... BEBE!!

O telégrafo surdo e inescrupuloso, a tia jovem e seguramente pervertida, e tantas outras coisas que só quem já viu vai entender e saborear novamente.

Depois da peça esperei para abraçar o mestre. Qual não foi minha surpresa e satisfação quando lembrou-se de mim, que não o vejo — creio — desde "Salomé". É difícil fazer uma análise objetiva de um trabalho de Melo porque o admiro demais. Sou suspeito. Então só o que direi é que todos devem assisti-lo. É imperdível. (11/12/2005 e 28/1/2006)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...