terça-feira, 17 de agosto de 2021

Paulo (1964/2021)

 


Meu irmão mais velho, Paulo, nos deixou sexta-feira, levado pela Covid.

Ele foi a maior influência que tive em minha infância e adolescência. Assistindo-o desenhar comecei a rabiscar meus primeiros desenhos. Vendo seus personagens criei os meus. Usei suas cartolinas, suas canetas "Futura", "Pilot" e as de nanquim. Atravessei cadernos tentando aos trancos e barrancos imitar as maravilhas que ele desenhava sem qualquer esforço. Com quinze anos Paulo desenhou inteiro um álbum de figurinhas para uma entidade judaica beneficente. O resultado foi tão positivo que o álbum foi distribuído pelo mundo. Por intermédio do Beit Chabad, Paulo recebeu uma benção especial do venerando Lubavitcher rebe shlita, Menachem Mendel Schneerson. Pouco depois desenhou capas e ilustrou livros do célebre e saudoso autor infantil Ganymédes José. Por essa época foi convidado para trabalhar no estúdio de Maurício de Souza. Ficou entusiasmado. Veio a ressalva: "Mas você terá que esquecer os teus próprios personagens e se concentrar única e exclusivamente na Turma da Mônica e no traço característico do Maurício". Paulo polidamente recusou o convite.

Continuou maravilhando a todos com sua arte. Participou, em 1981, de uma campanha do grêmio escolar. A propaganda era feita com seus desenhos. O mascote de sua chapa era um elefante. E todos os dias, eu - que estudava na mesma escola, só que no primário - andava pelos corredores e olhava com total incredulidade sua criação espalhada pela escola. Dezenas - literalmente dezenas - de cartolinas, por vezes duas ou quatro, coladas com fita crepe, gigantes, todas sensacionais. Verdadeiros murais. Propagandas, histórias em quadrinhos, mensagens rápidas, slogans, piadas, tudo ilustrado com o máximo capricho e profissionalismo. Poderia se imaginar que a chapa contratara uma agência de propaganda, não apenas pela quantidade, mas, sobretudo, pela notabilíssima qualidade do trabalho. E ele não chegara nem aos dezoito anos.

Com dezenove, desenhou seu perfil com uma fita crepe na porta de seu quarto. Uma obra-prima de proporção e simplicidade. Em outra ocasião fez seu próprio busto em argila. Magnífico. Eu e meu outro irmão só observávamos, embasbacados com a absoluta perfeição de seu trabalho. Paulo estava longe de ser apenas talentoso. Seus desenhos e esculturas tocavam, realmente, a perfeição. Eram formidáveis. Certa vez chego em casa e encontro uma escultura retratando o mito de Leda e o Cisne, em argila. Não pude acreditar no que via. Minha mãe apareceu e confirmou o que eu já imaginava: "Você viu o que o Paulo fez?"

1984

Em 1982 o Shopping Iguatemi - como costumava ocorrer, naquela época dourada desse shopping - promoveu um concurso de desenho para crianças. O tema era Monteiro Lobato e o prêmio era uma viagem para os estúdios da Globo em Sepetiba, onde era gravado o Sítio do Pica-Pau Amarelo (na incomparável versão de Geraldo Casé, com Zilka Salaberry e Jacira Sampaio). Paulo tomou para si a tarefa de fazer o desenho com o qual eu concorreria. Sentou de frente para sua mesa e fez um desenho de Monteiro Lobato cercado dos personagens do Sítio. Um primor de idéia, de execução e de criação artística. Um desenho que poderia ser capa de qualquer obra contendo os livros de Lobato sobre o Sítio. Venci o concurso em primeiro lugar e fui ao Rio conhecer o Sítio com tudo pago.

Paulo comentava que este desenho estava "inacabado".

Na prova de admissão para o curso superior de Artes que cursou em Nova York, em fins da década de 80, Paulo começou a espirrar pequenos jatos de tinta sobre uma cartolina. Os juízes fecharam a cara, esperando um manjadíssimo plágio de Jackson Pollock. Minutos depois ele levantou a cartolina e a colocou de frente para os juízes. Era seu auto-retrato. Foi aprovado com loas.

A influência de Paulo, entretanto, extrapolou em muito os limites do desenho. Ele acompanhou assiduamente a campanha para governador de 1982. E se ele com dezoito anos acompanhava aquela chatice, eu com dez também tinha que acompanhar, então sentava e assistia com ele o tosco e estático horário eleitoral gratuito, todos os dias. O hoje famosíssimo debate da Band nós assistimos juntos. Só que eu dormi durante grande parte do debate, até que ele me acordou para que eu pudesse me deliciar com a pancadaria entre Jânio e Montoro. E foi ali que se iniciou meu interesse pela política. Foi ali que conheci Jânio, cuja existência se tornaria tão fundamental para mim. A partir dali, com ele ou sem ele, eu acompanhei religiosamente (e em alguns casos participei) de todas as campanhas que se seguiram.

A campanha municipal de 1985, que elegeu Jânio, nós vimos juntos, de cabo a rabo. Anos depois, já em meados da década de 90, ele abre uma editora e passamos dias discutindo que livros poderíamos publicar. Comento minha irritação por Jânio não ter, até aquele momento, uma biografia meticulosa e completa. Ele me responde sem quaisquer rodeios: "Por que VOCÊ não escreve?" A idéia, que jamais passara pela minha cabeça, foi plantada e floresceu. Um ano depois - 1998 - comecei informalmente a pesquisa para a biografia cujo primeiro volume lancei em 2013.

Com ele assisti Gandhi no cinema, aos onze anos. Com ele assisti Amadeus no cinema, aos doze anos. Com ele assisti pela primeira vez em video um filme do Monty Python, que eu nem sabia o que era. E mijei de tanto rir, porque se tratava de nenhum outro a não ser And now for something completely different. Graças a ele assisti o primeiro Rocky de Stallone, em video, pelo qual eu passava todos os dias na locadora e ignorava olimpicamente. Mas isso não é nada; com ele assisti Chaplin pela primeira vez, em filmes que a Globo passava domingo pela manhã. Lembro-me que asisstimos O Garoto juntos e no meio do filme, na seqüência em que o policial tenta levar o menino e Chaplin dá um jeito de recuperá-lo, Paulo deu um salto: "Cortaram o filme! Cortaram uma cena inteira!" Sem noção do que ele dizia, ele explicou: "Existe uma seqüência inteira de perseguição pelos telhados das casas! A Globo cortou!" Dias depois ele me mostra a seção de correspondência da Folha de S. Paulo. Inconformado, ele escreveu para o jornal e relatou o corte criminoso da obra-prima de Chaplin. E o jornal publicou a carta. Paulo sentiu-se melhor. Seu dever, como chaplófilo (obrigado, Jô, pelo termo), estava cumprido.


Com ele assisti o Rei Lear de Olivier, em video, meu primeiro contato com Shakespeare. Com ele assisti Ubu-Rei, do Ornitorrico, no teatro. Ri às lágrimas com Cacá Rosset, José Rubens Chachá e o saudoso Gerson de Abreu. Como esquecer o gordíssimo Gerson entrando nu em pelo no palco, tendo apenas uma pequena cartola cobrindo-lhe as pudendas? E em 1987, a grande obra de Paulo: ele me levou para assistir o Cyrano de Bergerac de Fagundes, dirigido por Flávio Rangel. Mudou minha vida. Me quebrou ao meio e inoculou o teatro no meu sangue para sempre. Assistimos Cyrano
duas vezes. Na segunda ele me comprou a tradução de Ferreira Gullar, à venda no saguão do teatro.

Ele conhecia tudo, sabia de tudo, me explicava tudo. Foi o maior leitor que já conheci. Era um manancial inesgotável de conhecimento. E gostava de transmitir essa cultura ao irmão oito anos mais novo. Uma criança talvez tão curiosa quanto ele o fora. Mas nossos pais estavam sempre ocupadíssimos com seus próprios pepinos, trabalho, pagamentos, construção de casa, etc., e Paulo abriu suas picadas culturais sozinho. Não teve quem o tomasse pela mão como ele fez comigo.


Além do desenho, Paulo também brilhou na literatura. Em 2008 lançou Jack , o Estripador - A Verdadeira História, 120 Anos Depois. Em 2016 veio o Guia politicamente incorreto dos presidentes da República, best-seller da notória coleção criada por Leandro Narloch. Em 2018 lança pela Harper Collins o divertido Cogumelo Jesus e Outras Teorias Bizarras Sobre Cristo, juntando as mais absurdas histórias e teorias atribuídas a Cristo. E no mesmo ano lança o romance, Anjo Negro, história ficcional de Gregório Fortunato contada em primeira pessoa pelo próprio. Por esse livro ele recebeu o Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2017, na categoria Romance.

2009

Tenho milhares de histórias com o Paulo. Aprendi tanto com ele. Fomos tão próximos quanto dois irmãos podem ser. Tivemos rompimentos estrepitosos, reconciliações fantásticas, trabalhamos juntos um punhado de vezes... Paro por aqui porque nem sequer me atreveria a tentar elencar algumas dezenas de episódios, que fossem, neste momento. Não é a hora e nem eu conseguiria. Quero apenas comunicar que ele se foi. Que morreu um homem inteligente numa época em que não podemos prescindir de homens inteligentes. Morreu o homem mais culto que já conheci. Morreu um super-dotado. Um raríssimo ser humano bafejado pela genialidade. Alguém que poderia ensinar professores de História sobre Napoleão e professores de Cinema sobre Zeffirelli. Alguém que falara em escrever um romance sobre Sherlock Holmes no Brasil anos antes de Jô Soares escrever O Xangô de Baker Street. Alguém que falou em fazer um filme sobre a guerra de Canudos anos antes de Sérgio Rezende dirigir o filme Guerra de Canudos. Alguém que se foi de maneira ridiculamente prematura, aos 56 anos, mas que deixou no mundo sua imensa impressão digital. E nela, sua preciosa impressão mental, sentimental e espiritual. E era meu irmão. (07/06/2021)



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