domingo, 15 de agosto de 2010

Fernando Jorge, Guarnieri e "O Caroço"

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Aquelas pessoas, que não entendiam de nada, não eram autores, não eram nada na vida, para ser bem sincero, tentaram responder ao sucesso da minha peça com uma provocação. Eles fizeram uma peça chamada "O Caroço", apresentada como uma paródia de "A Semente". Mas a brincadeira não deu certo, eles não tiveram público algum. Não contentes, chegaram a recorrer a Censura Federal, exigindo que "A Semente" fosse retirada de cartaz.

(Gianfrancesco Guarnieri, em “Um Grito Solto no Ar”,
de Sérgio Roveri, Imesp, 2004)

Fernando Jorge
A maneira pela qual nosso amado e saudoso Guarnieri recebeu a notícia de que uma paródia vinha sendo preparada, hoje só podemos imaginar. Mas por um golpe de extrema sorte, eu acabei descobrindo quem estava por trás dessa tal paródia. Guarnieri, quiçá até sem querer, acertou em cheio quando afirmou que O Caroço não teve “público algum”. Pela simples razão de que essa maluquice jamais chegou a ser encenada.

Há tempos, conversava eu descontraidamente com o mestre Fernando Jorge sobre o valor de Guarnieri para nossa dramaturgia, e da falta que ele faz para todos nós, não só por seu talento mas por sua personalidade generosa e absolutamente adorável. Fernando concordou e disse que tivera, embora indiretamente, um episódio com o dramaturgo. Comentou: “Eu fui contratado uma vez para escrever uma peça em resposta a um texto dele. Chamava-se O Caroço”. Eu, que conhecia bem a entrevista de Guarnieri a Sérgio Roveri, onde ele menciona o fato, fiquei estupefato. No livro não havia maiores detalhes sobre O Caroço, então pedi a Fernando para relembrar a história. Lamento que nosso Guarna não esteja mais entre nós, porque seria divertidíssimo juntar os dois para um bate-papo sobre A Semente e O Caroço.

Gianfrancesco Guarnieri

O mentor de tudo foi Wilson Moreira da Costa, empresário bem-sucedido e corretor de fundos públicos. Fernando já havia sido ghost writer de dois livros de Wilson, Coração, Sexo e Cérebro em 1960, e A Filha do Boticário, em 61, ambos grandes sucessos de público e crítica. “Eu estava precisando muito de dinheiro”, conta Fernando, “e escrevi os dois romances, ambos lançados pela Editora Martins, que era a do Jorge Amado, e os livros foram muito bem apresentados, do ponto de vista gráfico, com capas do Darcy Penteado”. Consagrado como escritor, graças e através da pena de Fernando, Wilson, um homem rico, dono de um castelo de pedras no Guarujá e uma mansão na avenida Brasil, assistiu A Semente no TBC. É Fernando quem conta:

Bem, mas o Wilson era um homem que queria brilhar na alta sociedade, impressionar. Muito rico, e após eu ter escrito esses dois romances para ele, ele foi assistir no teatro TBC uma peça do Gianfrancesco Guarnieri, teatrólogo e ator, uma peça intitulada "A Semente", que mostra a vida dos operários, numa vila industrial, ele descreve o drama dos operários, uma peça de um homem de esquerda, vamos dizer até comunista. E muito bem feita a peça, porque ele tinha talento. O Wilson ficou muito impressionado, mas como ele era anti-comunista, e eu também nunca fui comunista, ele chegou para mim e disse: "Fernando, eu quero escrever uma peça que seja uma resposta à peça do Guarnieri, 'A Semente'. E eu quero que você escreva. Pra ser encenada em Nova York!" (risos) Eu perguntei "Mas por que em Nova York, por que não encena aqui?", ele respondeu "Não! Porque assim vai ter repercussão mundial! Na Broadway! Na Broadway!"

Eu achei um absurdo, e perguntei "Você tem recursos pra fazer isso?", e ele "Tenho! Eu tenho relações lá nos Estados Unidos, agência literária, teatral, eu quero que você escreva!" "Bom, e cadê a peça do Guarnieri, pra eu ler, minuciosamente? Porque eu não assisti a peça lá no TBC". Aí ele me deu. Eu disse a ele: "Olha, a peça está muito bem feita, ele tem talento. Eu vou escrever essa peça aí, mas vai ser uma peça meio alucinada, surrealista (risos), não tem importância?" "Não, não! Você pode exagerar, fazer o que você quiser, o diabo! Eu quero é impressionar! E outra coisa: eu quero ser notícia nos jornais do mundo inteiro, com a minha foto no NY Times, também na França, o Paris Soir, quero ser notícia no mundo inteiro, nas primeiras páginas, porque quero que a minha peça seja um estrondo! Eu não vou poupar dinheiro para montá-la! Estou com essa idéia fixa! Então, por favor, escreva o mais rápido possível essa peça!"

Eu estava precisando muito de dinheiro, ganhava muito pouco lá na assembléia, embora fosse bibliotecário-chefe, e escrevi uma peça enorme, de cinco ou seis atos, e ele me pagava por cada ato. Tinha mais de 60 personagens. Era uma coisa de louco. Escrevi essa peça, uma peça louca, alucinada. E o Wilson dizia: "Quantos personagens você fez?" Eu respondia: "Sei lá, uns 60". Ele dizia: "É muito pouco! Tem que ter mais personagens!" Na semana seguinte eu apareci com 100 personagens. Ele respondeu: "É pouco, Fernando! Tem que ter mais gente! Você não está compreendendo a grandeza do que eu tenho em mente! Quero 200, 300 personagens!" Eu respondia sempre "Mas Wilson, isso é um absurdo, é gente demais, não tem cabimento", e ele não se abalava: "Não interessa! Pode ter quantos quiser! Se for preciso eu contrato toda a Broadway!" (risos) Eu caí na mão de um louco... (risos)

Bem, escrevi essa peça, fiquei mais ou menos em 80 ou 100 personagens, e ele adorou. Ele vibrava: "Uuuuu, que maravilha!", houve momentos em que ele levantava, ficava de cócoras e beijava minha mão, depois levantava e beijava minha cabeça, "você é um gênio!!", e eu dizia "Wilson, nunca houve uma peça assim na Broadway, com quase 100 personagens", e ele "E daí? Mas tem os musicais!", e eu "mas isto aqui não é um musical, é uma peça de fundo político, em que eu faço os 100 personagens falarem, diálogos enormes", mas ele não queria saber: "Essa peça vai ter que ser montada de qualquer maneira, nem que eu fique completamente arruinado, eu vendo meu castelo de pedras!"

Pergunto a Fernando se a força-motriz de tudo isso era anti-comunismo. A resposta é surpreendente:

Não, não, ele nem era ferozmente anti-comunista, muito menos eu. Ele queria aparecer. Ele queria ser notícia nos jornais do mundo inteiro, por isso inclusive que ele me convidou também pra ir a Nova York, a fim de escrever discursos que ele ia pronunciar na ONU, como delegado do Brasil, contra o Fidel Castro. Eu até brinquei com ele: "Wilson, você me desculpe, mas ainda que você seja nomeado delegado do Brasil na ONU, e desafiar o Fidel Castro pra um debate, ele não vai aceitar, vai rir de você", e ele "eu sei disso, eu sei disso, mas minha fotografia vai aparecer nos jornais do mundo inteiro, na primeira página do NY Times, 'Delegado do Brasil na ONU, Dr. Wilson Moreira da Costa, desafiou Fidel Castro pra um debate'. É isso que eu quero, eu quero aparecer!!!!"

O máximo que Wilson conseguiu foi ser adido brasileiro no México, episódio, aliás, tão saboroso quanto este, e que merecerá post individual em breve, bem como a história de seus dois livros comprados. Fernando conta, ainda, sobre a insana aventura de O Caroço:

Bom, aí ele tomou um avião e foi pra Nova York. Ficou acho que um mês lá, só por causa dessa peça. "É, falei lá com os grandes empresários, e realmente vai custar muito caro. Eu estou disposto, só que me disseram 'olha, é uma peça muito difícil de ser encenada, nunca tivemos uma peça assim, com 100 personagens', eu respondi 'é, mas a minha peça é uma peça épica, é a minha 'Guerra e Paz', é uma peça épica, é grandiosa!'" E ele fez várias viagens pros Estados Unidos pra tentar montar a peça, mas levava sempre um não dos produtores americanos, que certamente o consideravam um doido.

E sobre o que era, afinal, O Caroço? Pergunto a Fernando se era de fato uma paródia, uma provocação:

Não. A peça nem era propriamente anti-comunista. A tese defendida seria a de que os operários precisam da elite pra poder progredir, essa foi a tese. Nem atacava o comunismo, nada. Então os operários, pra poderem melhorar de vida, tinham que se valer, mesmo, do capitalismo, dos grandes empresários, aí eles melhorariam de vida, mas a rigor não tinha crítica nenhuma ao comunismo. Na peça do Guarnieri havia personagens que defendiam o socialismo, o comunismo entre os operários, pra eles poderem progredir, e o Wilson pegou o nome "A Semente" e tentou mostrar que o comunismo era de fato "o caroço" que fica engasgado na garganta deles. Era o que ele queria mostrar na peça. Que a solução não é essa. A solução seria os operários se aliarem aos capitalistas, aos grandes empresários, aí eles progrediriam na vida, ganhariam mais, teriam suas casas, todo o seu conforto. E eu defendi essa tese lá, estava sendo muito bem pago. Eu ganhei um bom dinheiro.

Guarnieri estava equivocado pelo menos em um aspecto: os idiotas do CCC que tentaram (e conseguiram) embargar sua peça na censura nada tinham a ver com Wilson, um excêntrico que desejava ser escritor e aparecer. A peça nunca saiu do papel. Mas o empresário
aparentemente morreu acalentando o desejo de encená-la: "Ele nunca desistiu", diz Fernando. "Ele tinha uma idéia fixa. A resistência ele encontrou nos empresários de lá, que certamente acharam que ele era louco. Ele oferecia o financiamento mas era aquela peça gigante, 100 personagens, 4 ou 5 horas de duração, eles não aceitaram".
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Veja também:

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Um comentário:

  1. Fernando Jorge é maravilhoso, li dois livros dele e gostaria de conhecer a biografia que ele fez do Getúlio Vargas. Mas este último livro não foi terminado ainda, eu acho.

    O seu blog tem muito bom gosto, Bernardo. Parabéns.

    Abraços,
    Aldrin

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