segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Fernando Jorge, Lino de Mattos e Wilson Moreira da Costa

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Jânio e Lino de Mattos
Jânio Quadros, depois da renúncia, tornou-se freqüentador assíduo da suntuosa mansão do empresário Wilson Moreira da Costa na avenida Brasil, em São Paulo. Em uma dessas ocasiões, em meio a contínuas rodadas do melhor whisky escocês, perguntou ao senador Lino de Mattos, que o acompanhava:

– Lino, você já leu os livros do Wilson, Coração, Sexo e Cérebro e A Filha do Boticário? – referindo-se aos dois livros de Wilson, na verdade escritos por Fernando Jorge, segredo, na época, guardado a sete chaves.
– Não, não li. – respondeu Lino.
– Então leia. Eu creio que você vai gostar. Sei que você é político, não gosta muito de ler obras de ficção, de romance, mas leia. Leia. Você vai gostar.

Não dispondo de cópias naquele momento, Wilson prometeu-as para breve. No meio tempo, foi à casa de Fernando Jorge, relatou-lhe o episódio e pediu que Fernando escrevesse a dedicatória em ambos os livros.

– Não, os livros são seus, Wilson...
– Mas eu não sei escrever bonito, então por favor faça uma dedicatória bem amável para o senador.

O autor então escreveu as dedicatórias em nome de Wilson e os livros foram dados a Lino de Mattos. Dias depois, Fernando estava sozinho em sua casa. A esposa e os filhos haviam ido passar o fim de semana em Santos, no apartamento dos pais dela. Ele aproveitou para descansar. Chegara exausto depois de mais um dia de trabalho penoso e mal-pago como bibliotecário da Assembléia Legislativa, e dormia pesadamente quando escutou, lá pelas duas da manhã, uma barulheira na porta do sobrado onde morava. Acordou, estremunhado, olhou pela fresta da janela e viu um carro de luxo, parado.

– Fernando! Fernando! Fernando! Sou eu, Wilson!

O empresário estava na porta batendo palmas para acordá-lo. “O que será que aconteceu?”, pensou Fernando, descendo as escadas. Abriu a porta e recebeu Wilson, que foi logo falando:

– Fernando, aconteceu um fato sensacional!
– O que é?
– Estive com o Lino de Mattos até há pouco numa boate, tomando whisky, e ele me pediu um favor especial. Eu preciso atendê-lo, e vai depender de você. Eu preciso de você! Já!

Fernando conhecia os “favores especiais” de Wilson; o horário, porém, era pra lá de impróprio.

– Mas são quase três horas da madrugada...
– Já! Já! – replicou Wilson, incisivo, sem dar a mínima para o fato de que arrancara Fernando de um sono profundo.
– Mas o que é que ele quer?
– O Lino de Mattos me disse que quer pronunciar hoje, às quatro, cinco horas da tarde, lá em Brasília, um discurso de Grande Expediente, para mostrar ao Brasil inteiro que ele, Lino de Mattos, é que é o verdadeiro senador da legalidade, e não o Auro Moura Andrade!
– E daí? O que tem isso a ver comigo?
– Fernando, ele está furioso, irritadíssimo com o Auro, porque o Auro anda se proclamando o senador da legalidade, dizendo que ele sempre pregou o retorno e a posse do João Goulart na presidência da República, mas quem fez isso primeiro, e sempre, constantemente, foi ele, Lino de Mattos, então ele quer pronunciar um discurso hoje, HOJE, pra mostrar ao Brasil inteiro, sem citar o nome do Auro, que ele, Lino de Mattos, é que é o senador da legalidade, e não o Auro. E lá na boate ele me deu um roteiro do discurso que ele quer. Por favor, comece a escrever.

Eis o tal favor, jogado a altas horas, de chofre, na cara de Fernando, que ainda tentou obtemperar:

– Mas, Wilson... eu estou cansado! Eu fui dormir tarde, tive um dia agitado lá na Assembléia... isso é coisa de louco, como é que eu vou escrever isso assim?
– Não, não, você tem que fazer isso! Eu dei minha palavra a ele, e ele vai meio-dia lá no meu escritório, na José Bonifácio, pra apanhar o discurso, eu prometi a ele!
– Ô Wilson, você é louco... como é que eu vou fazer um discurso de Grande Expediente?
– Está tudo aqui – respondeu o empresário, determinado, exibindo seu bloco de anotações. – Os dados, eu tomei nota de tudo, comece a escrever, eu fico aqui.
– Eu não posso, Wilson, eu estou muito cansado...
– Mas eu prometi! Você não pode fazer isso comigo, por favor, eu dei minha palavra a ele! Eu vou ficar aqui!
– Wilson, eu estou morto de sono!!! Meu cérebro não está funcionando bem, está tudo embaçado...

Percebendo que sua argumentação não estava funcionando, o empresário resolveu atacar por outra frente:

– Olhe.... eu sei que você, coitado, você é um lutador, inclusive você quer sair deste sobradinho aqui... – ao dizer isso, tirou a carteira do bolso, o talão de cheque, e escreveu um valor que seria hoje algo em torno de dez ou quinze mil reais. – Está aqui. Você me entregando amanhã, antes do meio-dia, vou te dar uma quantia igual.

O valor teve o condão de acordar Fernando, que olhou para o cheque, incrédulo:

– Wilson, eu não sei se vou fazer... mas... você está sendo muito generoso, isto aqui é um exagero...
– Não, não, você merece. O discurso é de Grande Expediente, tem uma porção de dados aqui, olhe o que você tem que dizer. Tem que dar uma hora de discurso. Ele já está inscrito. Antes de ir pra Brasília ele vai meio-dia no meu escritório pegar o discurso.

Além de estar meio tonto por ter sido acordado no meio da madrugada, Fernando escrevia a mão, o que significava que o trabalho seria ainda mais difícil. Mas Wilson sabia o que estava fazendo; Fernando tinha mulher, dois filhos pequenos e um salário de miséria que não lhe permitia comprar quase nada. Sonhando com geladeira, televisão e demais eletrodomésticos, o escritor disse:

– Olha, Wilson, eu vou tentar, e se eu não conseguir eu devolvo o seu dinheiro, você não precisa me dar nada...
– Não! Por favor! – gritou Wilson, desesperado – Olhe, por favor! Eu dei minha palavra!
– Wilson, eu não quero explorar você. Se eu não conseguir eu devolvo o cheque pra você.
– Não! Por favor! Eu vou ficar aqui!
– Não, não, aliás, eu vou lhe pedir um obséquio: vá embora. Se você ficar aqui vai me perturbar. Você vai ficar me olhando aí com cara de ansiedade, com esse olho aí, esbugalhado, não dá. Eu vou acordar minha empregada que está lá dormindo no quarto dela, vou pedir pra ela fazer um café muito forte, e vou pegar alguns livros aí da minha biblioteca pra evocar a história constitucional do Brasil, ele fala aqui um negócio de constituição, não sei o quê, eu vou encher uma lingüiça, e vou tentar. Se eu não conseguir, devolvo o seu dinheiro, e...
– Não, não! O dinheiro é seu! Por favor! Fernando! – no auge do desespero, Wilson se ajoelhou, espalmou as duas mãos e disse, com a voz embargada – Por favor, é o meu futuro! É o meu futuro!
– Wilson, vá embora. Por favor, vá embora – replicou Fernando, enfarado com o surrealismo da cena no meio de sua sala, às três da manhã.

"Fernando! Por favor, é o meu futuro!
É o meu futuro!"

Assim que conseguiu livrar-se do empresário, Fernando acordou a empregada e disse: “Eu vou tirar uma soneca de uma hora, mais ou menos, e vou dormir profundamente. Às cinco horas você me acorda de qualquer maneira, mesmo que eu esteja morrendo de sono”.

Uma hora depois, que para Fernando pareceram cinco minutos, a empregada o sacudiu até acordá-lo, preparou um bule enorme de café forte e um pãozinho; Fernando forrou o estômago, sentiu-se mais desperto e se trancou na biblioteca. Começou a preparar o discurso, tomando especial cuidado com a clareza do que escrevia, pois sua esposa, que é quem batia seus textos à máquina, não estava lá para fazê-lo. Quando isso acontecia, Fernando levava os manuscritos a um escritório de datilografia na Praça da Sé, dirigido por uma senhora chamada Yolanda, que tinha, no local, umas quinze ou vinte datilógrafas. Era fundamental, portanto, que elas mais tarde não tropeçassem em nenhum garrancho incompreensível que pudesse atrasar o trabalho.

Fernando escreveu durante três ou quatro horas. Redigiu o tal discurso para o Grande Expediente, encheu lingüiça, falou sobre a história constitucional do Brasil, consultando livros, etc. Quando terminou, morto de sono apesar do café, dormiu um pouco, e acordou cerca de dez da manhã. Tomou um táxi e foi direto para a Praça da Sé. Chegando lá, praticamente invadiu o escritório de Dona Yolanda. Era uma senhora muito distinta, e Fernando não fez rodeios sobre o que precisava:

– Dona Yolanda, vou lhe pedir um favor. Está aqui um discurso meu, a senhora entende a minha letra, as datilógrafas aí também, eu pago três vezes mais pra senhora, por cada página: pare todo o serviço aqui e dedique-se somente a esta transcrição, porque eu preciso entregar isto antes do meio-dia num escritório aqui perto. É uma coisa muito importante. Por favor.
– Claro – respondeu a gentil Yolanda – pode ficar sossegado, seu Fernando. Mas... o senhor está muito pálido, o senhor está se sentindo bem?

Tirando o fato de que fôra acordado de madrugada por um empresário ligeiramente histérico e passado as horas seguintes movido a café, na redação de um discurso sobre assunto que não lhe interessava em nada, sim, estava razoavelmente bem.

– É, sim, estou mais ou menos. Por favor, a senhora...
– Claro, claro, fique tranqüilo, eu vou convocar todas as minhas datilógrafas, vamos parar os outros serviços.
– Eu serei bem generoso com a senhora, a senhora não vai se arrepender.

As quinze moças dividiram o calhamaço e começaram a bater. Nervoso, Fernando ficou perambulando pela Praça da Sé, esperando o tempo passar. Uma hora depois voltou, quando elas já estavam no fim. Remunerou regiamente Dona Yolanda e suas funcionárias, pegou o calhamaço datilografado, juntou da maneira que pôde e saiu correndo em direção ao escritório de Wilson na José Bonifácio, no oitavo andar de um prédio perto do Largo São Francisco.

O escritório de Wilson ocupava o andar e tinha um corredor estreito que levava a uma ante-sala onde havia um sofá no canto, a mesa da secretária e a sala do empresário, com duas portas, uma em direção à secretária e a outra para o corredor. Quem estivesse no sofá podia ver quem entrava na sala por qualquer uma das portas. Fernando chegou, foi anunciado, entrou na sala e viu Wilson em manga de camisa, ansiosíssimo.

– E o discurso? Cadê o discurso?
– Está aqui.
– Ahhhhh, que maravilha!!! Que maravilha!!! Excelente! E eu não esqueci, não, olha aqui, toma o seu cheque!

De repente batem na porta. Era a secretária:

– Doutor Wilson, o senador Lino de Mattos acaba de chegar.

Fernando quis sair imediatamente, mas se saísse por qualquer uma das portas seria visto por Lino, que estava sentado no sofá da ante-sala, e o senador o conhecia, fôra apresentado a Fernando por Salomão Jorge, pai de Fernando e colega de Lino na Assembléia Legislativa de 47 a 50. Wilson espremeu o escritor na porta do corredor e abriu a outra porta em direção à secretária.

– Senador, tenha a bondade de entrar.

Lino se levantou e foi andando em direção a Wilson, enquanto este sinalizava veladamente para que Fernando saísse pela porta do corredor. Fernando abriu a porta e saiu correndo. Pegou o elevador, chegou à rua mas não resistiu; encostou-se numa parede e começou a gargalhar, desanuviando sua tensão. Os transeuntes acharam que se tratava de um reles doido, acometido de um ataque de riso.

Com o discurso em mãos, o senador foi para Brasília, pronunciou-o no mesmo dia e obteve uma repercussão tremenda. No dia seguinte O Estado de S. Paulo publicou longo artigo de fundo na terceira página, comentando que Lino havia pronunciado um discurso estranho, enigmático, e questionando qual teria sido sua intenção ao proclamar-se “senador da legalidade”, declarando que sempre pregara a posse de Jango. O jornal observava que Lino parecia estar acusando alguém e falava com tanta veemência que parecia irritado. Outros jornais, inclusive a Folha, também comentaram.

Juvenal Lino de Mattos

O resultado disso é que Lino de Mattos não parou mais de pedir discursos a Wilson Moreira da Costa. Nos meses seguintes, Fernando escreveu algo em torno de 70 ou 80 discursos diferentes para Lino, alimentado pelo dinheiro do Wilson. O senador não regateava elogios ao empresário:

– Wilson, aquele discurso que você escreveu... como você escreve bem... como você escreve bem! E que discurso erudito, cheio de cultura.... por favor, você não me abandone... não me abandone, eu preciso de você, você é uma pena brilhante, o Jânio tem razão, você tem muito talento literário. Posso contar com você? Agora, meus discursos de Grande Expediente, você é que vai escrever! Você é que vai escrever! Sou professor, mas eu reconheço: a sua cultura é eclética, é ecumênica!

Lino acreditou piamente que era o empresário quem escrevia, e o verdadeiro autor daqueles discursos que tanto o encantavam era Fernando Jorge.

Wilson, sempre desejoso de freqüentar as mais altas e exclusivas rodas, e constantemente iludido por seus delírios de grandeza e de poder, não conseguia esconder sua felicidade, e as vantagens que – imaginava ele – viriam daquela triangulação secreta:

– Ah, o Lino está na minha mão... o senado agora está na minha mão... eu vou ser o homem mais poderoso deste país. Amanhã o que eu quiser, vou ter o apoio do senado, porque o Lino vai manobrar tudo lá, é amigo íntimo do João Goulart, agora ninguém mais me derruba! Esses canalhas que andam dizendo por aí que eu não sou autor destes livros... eles vão ver!

E Fernando? Teria mágoas por ver Wilson Moreira da Costa mais uma vez levando mérito intelectual por aquilo que não fez? Aparentemente não:

"Você não queira saber como eu fiquei satisfeito com aquele dinheiro. Comprei liquidificador, comprei geladeira, comprei livros, roupas, camisas, gravatas, fui nos melhores restaurantes. E o Lino nunca soube. Morreu sem saber".


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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
350 pgs ilustradas
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4 comentários:

  1. Esse post não tem outra palavra senão espetacular ! A história é ótima e foi escrita de modo a prender o leitor, parabéns !
    Amigo, gostaria muito de entrar em contato com familiares do empresário Wilson Moreira da Costa. Sou jornalista e estou desenvolvendo pesquisa para um livro sobre fatos da década de 1960. Ficarei muito grato se puder me ajudar de alguma forma. Pode mandar informações para o e-mail gcnreporter@yahoo.com.br
    Desde já obrigado.

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  2. Gleydsson, o mérito é todo do grande Fernando Jorge. Neste artigo não fiz mais do que transcrever os diálogos e colocar em terceira pessoa o que ele me contou. Quanto à família do Wilson, infelizmente não posso te ajudar; como você vê, não tenho sequer uma foto dele para ilustrar os artigos. Minha fonte para essa e qualquer outra história sobre ele é o Fernando. Acredito inclusive que a esposa e o filho do Wilson já morreram. Tente encontrar irmãos, sobrinhos, e tal.
    Abraços, obrigado por escrever.

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  3. Sou neto do Wilson. Ele teve três filhos. Devo dizer que o senhor deu uma bela floreada nos fatos. Mas não vou entrar no mérito. Queria frisar minha irresignação! Até porque, contar histórias sobre quem já faleceu há anos é muito fácil, certo?
    Att. Marco Antônio Moreira da Costa

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  4. Marco, não leve por esse lado. O Fernando e o Wilson (como você deve saber) foram amicíssimos, eram muito ligados e tudo que o Fernando conta dele é com saudade e bom humor, sem qualquer jaça ou má intenção.
    Abraço, obrigado por escrever.

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